segunda-feira, 7 de abril de 2008

Panquecas de polenta com guacamole

Já devo ter mencionado isso por aqui, mas sempre fico irritada quando alguém me chama para comer e quer me levar a um "restaurante vegetariano". E, com exceção de um ou dois lugares, a maioria desses restaurantes serve comida sem tempero, sem textura, sem vida, o que faz com que realmente muita gente se sinta pouco estimulada a diminuir suas refeições carnívoras.

Está certo, é preciso fazer uma distinção para a culinária vegan. Esses sim se viram para substituir derivados de leite e ovos, e é preciso tirar o chapéu para sua força de vontade. Acho que jamais conseguiria viver mais de uma semana à base de leite se soja e margarina. Mas muita gente olha para mim e diz isso a respeito de bife. De qualquer forma, o que quero dizer é que existe sim "comida vegan". Mas não acredito que exista "comida vegetariana".

Evito comprar livros de receita que se vendam como vegetarianos, pois normalmente eles são abarrotados de receitas criadas para substituir carne. Bifes de soja, hambúrgueres de soja, lasagne de soja, e por aí vai. Quando o que deveriam fazer é mostrar que é possível ter um prato na sua frente absolutamente delicioso, que qualquer carnívoro devoraria, mas... tchananans! sem carne.

Por isso comprei meu primeiro livro de "cozinha vegetariana" (os outros da estante foram presentes), que só tem me dado alegria desde então. Salvo duas receitas de hambúrguer, o livro é recheado de tortas, omeletes, panquecas, saladas, massas, salteados, aperitivos, cheios de legumes, verduras, grãos, ovos e queijos. Recheado de fotos, acho que é o livro mais colorido que tenho, e um dos mais bonitos. E mamãe sempre me ensinou a comer pratos bem coloridos: quanto mais cores diferentes, mais saudável.

Como tinha abacates maduros e um resto de feijão preto cozido na geladeira, apanhei uma receita do livro de panquecas de polenta com guacamole. O livro, em português de Portugal é muito ambíguo ao distinguir polenta (sêmola de milho) de farinha de milho. Por instinto, usei a polenta mesmo, mas acredito que a farinha não produza um resultado muito diverso. Segui a receita das panquecas, mas ignorei a do recheio, preparando o guacamole do meu jeito, e "refritando" os feijões pretos. Cobri tudo com muito Tabasco e creme azedo.

Nham-nham. Quem acha que vegetariano só come salada de alfafa... :P

PANQUECAS DE POLENTA
(quase nada adaptado do livro Culinária Vegetariana)
Tempo de preparo: 20 minutos
Rendimento: 5-6 panquecas de 15cm


Ingredientes:
  • 50g de polenta (sêmola de milho)
  • 60g de farinha de trigo
  • 1/4 de colh. (chá) de sal
  • 1/4 de colh. (chá) de fermento químico em pó
  • 1 colh. (chá) de açúcar cristal orgânico
  • 250ml de leite integral
  • 2 ovos
  • 1 colh. (sopa) de manteiga sem sal derretida

Preparo:
  1. Misture os ingredientes secos em uma tigela e os líquidos em outra. Junte as duas e misture com um garfo até ficar homogêneo. Cubra e deixe descansar por 20 minutos.
  2. Aqueça um fio de óleo em uma frigideira pequena. Despeje uma concha da massa, cobrindo todo o fundo e deixe dourar em fogo médio, virando para dourar do outro lado. Mantenha aquecido até servir, e recheie de guacamole, feijões refritos e creme azedo.

Strozzapreti alla carbonara di porro

Na falta do creme de leite para preparar um molho de alho-poró que se tornou figurinha fácil em casa, improvisei uma massa alla carbonara. O prato original, spaghetti alla carbonara ("à moda dos carvoeiros"), leva pancetta salteada em azeite, que é misturada à massa cozida com muito queijo pecorino (ou uma mistura de pecorino e parmesão), gemas cruas (que cozinham ligeiramente com o calor da massa), salsinha fresca e muita pimenta-do-reino. As gemas, unidas à água da massa e ao queijo, formam um molho fino e cremoso que simplesmente adoro. Mas a verdade é que você pode substituir a pancetta pelo que quiser. Muito antes de Jamie Oliver colocar a receita em seu livro, eu já experimentara, em um restaurante à beira mar de Positano, um prato de massa alla carbonara de abobrinhas. Acredito inclusive que o mesmo tenha surrupiado desavergonhadamente sua receita de uma italiana que publicara no fórum de seu site, há anos atrás, uma receita de carbonara de aspargos sensacional que rendera inclusive uma menção especial do chef.

Para preparar essa versão, substitua a pancetta por cerca de 2-3 alhos-poró médios fatiados fino, refogados em azeite e uma pitada de sal até que murchem bem. Cozinhe a massa (usei 200g de strozzapreti porque era o que havia na despensa), escorra, e reserve uma ou duas colheres da água do cozimento. Junte o alho-poró, 2 gemas, um punhado de queijo pecorino ralado, outro de parmesão, salsinha fresca picada e a casca ralada de meio limão. Misture bem, muito rápido, até que toda a massa esteja recoberta por uma fina camada de molho. Polvilhe pimenta-do-reino moída na hora e sirva. As "medidas" são para duas porções.

[Vamos poupar todo o bafafá do "horror das gemas cruas", e simplesmente aceitar que eu não ligo para isso.]

sábado, 5 de abril de 2008

PADARIA DE DOMINGO 10: Pan de Mie, ou meu primeiro pão-de-forma sem defeitos de molde


O marido jogava video-game. O cão dormia confortavelmente sob a escrivaninha. [E antes que me escrevam nos maldizendo pela falta de espaço para o cão cochilar, explico já que, por algum motivo que desconheço, ele adora dormir assim, todo torto, confinado nos espaços menos prováveis.] Eu tivera a oportunidade, logo de manhã cedo, após uma xícara de café e um prato de panquecas, de assistir aos dois breves dvd´s que acompanham os livros de Bertinet. É estranho assisti-lo, acostumada que estou ao estilo histérico da maioria dos chefs-celebridades, que tentam, através de demonstrações efusivas de emoção, despertar no telespectador ocasional algum interesse genuíno por um prato ou ingrediente. Bertinet é muito calmo, sério, fala num tom muito baixo e com um sotaque tão carregado que, para pessoas com ouvidos medianamente sensíveis a idiomas, soa quase ininteligível. É preciso prestar muita atenção para não perder nenhum detalhe.

Entretanto, não é preciso dar pulinhos empolgados na cozinha ou repetir exaustivamente metáforas sexuais ao descrever texturas. Allex parou por um momento ao meu lado enquanto Bertinet moldava seu pão de massa azeda. Ele, que não costuma se interessar mais por comida do que no momento de comê-la, ficou admirado com a intimidade de Bertinet com a massa, com o modo com a manipulava e observava. "Está na cara que ele gosta muito do que faz...", comentou.

Vi nessa tarde a janela de oportunidade que eu precisava para testar a primeira receita do livro. Não pôde ser ciabatta, entretanto, pois ela precisava de uma biga que fermentaria por 24h, e eu queria pão para domingo de manhã. Escolhi, então, pan de mie. Pan de mie é a versão francesa do pão-de-forma, segundo ele, e quer dizer literalmente "pão de miolo", devido à importância do mesmo em detrimento da crosta. O pão é feito de forma que a casca fique muito fina e macia, ao contrário da maior parte dos pães franceses, de crostas crocantes.

A sova da massa foi muito mais simples do que imaginava. O movimento é bastante natural e fluido, e, de fato, ele só funciona com o balcão sem farinha. Onde houver vestígios da mesma, a massa não grudará, e você não conseguirá esticá-la para criar o bolsão de ar. Apesar de ficar longos minutos sovando, este modo é muito menos cansativo do que o tradicional que eu usara até então, com as bases das palmas; talvez porque a massa viscosa não ofereça a mesma resistência da massa seca.

O momento em que a massa muda de consistência é bastante óbvio. O que não é tão claro é o momento de parar de sová-la e moldá-la em forma de bola. Isso porque ela não chega a ficar sequinha como aquela a que estou acostumada. Ela persiste em sua consistência úmida, e é só ao polvilhar um nadinha de farinha e moldá-la que de fato torna-se lisa e incólume, pronta para a primeira fermentação.

Em 1 hora ela mais que dobrou de volume. E moldá-la da forma explicada no livro e no dvd, formando uma "espinha dorsal" na massa, foi muito fácil. Porém, minhas formas de pão eram maiores do que as requisitadas, e o pão não conseguiu preencher todo o espaço, ficando ainda baixo apesar de ter crescido um bocado no forno. Ainda assim ficaram lindos e dourados, sem os rasgos laterais que meus pães-de-forma costumam apresentar, ocasionados por erros na moldagem.

Se ficaram gostosos? Não sei. Não os provei ainda, pois pão quente (ainda que tentador) causa indigestão. Ao tirá-los do forno e colocá-los sobre a grade, seu aroma era muito bom. E pela primeira vez ouvi o som que Bertinet descreve no começo de seu primeiro livro, quando as cascas dos pães quentes começam a rachar em contato com o ar frio, crepitando como o fogo de uma lareira. No silêncio da cozinha, aproximei meu rosto dos pães, e seu calor, aliado ao seu rumor, acalmava, como de fato uma lareira num dia cinza o faz.

Só não sei se deixo ou não a receita, uma vez que você precisa ter visto e entendido a técnica por trás da coisa. Façamos o seguinte: depois que experimentá-lo, decido. Ok?

[UPDATE: a casquinha não ficou macia como eu imaginava, mas fininha e crocante como a do nosso pãozinho francês de todo dia. A textura, o aroma e o sabor também ficaram excelentes! Um ponto a rever, entretanto: falta de sal, que a receita não mencionava, nem na lista de ingredientes nem no processo, mas que eu acrescentarei numa próxima vez. Ainda assim, considerando que comemos nosso pãozinho com manteiga e sal grosso moído na hora, ele com certeza não fará falta no pão em si, que conseguiu ser gostoso mesmo sem esse ingrediente crucial. Aprovadíssimo. Deixou-me ansiosa por testar todo o resto do livro.]

[UPDATE (again):
Ok, ok. Depois do comentário da Laurinha, da Laila e da Camila, senti-me até culpada. Apesar de não gostar de publicar receitas ipsis literis como estão no livro, vou colocar essa só porque, no mínimo você precisa ir lá ver o vídeo do cara, e porque acho que a receita vai convencer o pessoal a comprar o livro. De resto, só colocarei outras receitas dele se forem adaptações ou se já estiverem publicadas na net somewhere, como as que ele publicou na revista Gourmet. Os números são bizarros pois são conversões de onças para gramas. Acrescento aqui a quantidade de sal que há na receita base mas não desta específica (mas se quiser omitir o sal, eu juro que ele não faz falta, e é como está no livro, de qualquer forma).

PAN DE MIE
(literalmente do livro Dough, de Richard Bertinet)
Tempo de preparo: 20 min. + 2h fermentando + 30 min. de forno
Rendimento: 2 pães


Ingredientes:
  • 20g de fermento fresco
  • 510g de farinha de trigo para pães
  • 2 colh. (chá) de manteiga sem sal
  • 10g de sal
  • 297g de água
  • 57g de leite integral

Preparo:
  1. Em uma tigela grande, esfregue a farinha, a manteiga e o fermento até esmigalhá-lo completamente, como você faria para começar a massa de uma torta. Junte o sal e misture. Acrescente a água e o leite e misture com um raspador de plástico ou uma espátula até formar uma massa. Passe-a para o balcão sem farinha e sove conforme a técnica do vídeo. Deixe descansar por 1 hora, coberta com um pano.
  2. Pré-aqueça o forno a 250ºC. Passe a massa para o balcão ligeriamente enfarinhado, e divida a massa em duas partes iguais. Amasse uma das partes com a base da palma da mão, até formar um retângulo. Dobre a parte mais comprida do retângulo sobre seu centro, selando bem com a base da palma. Repita com o outro lado (a massa vai mantendo o mesmo comprimento, mas diminuindo em largura). Repita novamente, dobrando-a ao meio, e selando bem com as pontas dos dedos. Coloque na forma de pão untada com manteiga, com a fenda virada para baixo. Repita com o outro pedaço de massa e deixe descansar coberto por mais uma hora. Se os pães atingirem a borda da forma, cubra com uma assadeira pesada.
  3. Coloque os pães no forno e cubra com a assadeira para que os pães não cresçam além da borda. Se você tiver uma daquelas formas de pão pullman, com tampa, use-a, claro. Tenha certeza de que o pão está bem fechadinho lá dentro. Minha assadeira estava torta e manteve fendas abertas, o que fez com que o pão formasse crosta. Abaixe o fogo para 220ºC e asse por 25 minutos. Retire a assadeira e mantenha por mais 5 minutos. Retire do forno, tire os pães das formas e deixe que esfriem completamente antes de comê-los.]

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Acalmando... acalmando... tô bem, tô bem...

[*Suspiro*].

Finalmente é sexta-feira. Graças aos deuses. Depois de uma semana decididamente infernal, tudo o que posso desejar é um fim de semana tranqüilo. Hoje, pela primeira vez, consegui navegar pelos blogs que costumava visitar diariamente. Consegui também sentar e de fato ler um pouco de um dos livros novos que comprei. Consegui almoçar com calma e até procrastinar um pouco do trabalho para segunda-feira. Porque ninguém é de ferro.

Estou com sérias dificuldades para escolher que pão fazer neste fim de semana. São tantas as opções de Bertinet... Mas decerto fico maravilhada com a capacidade que o mundo culinário tem de me fazer sentir ligeiramente idiota às vezes. Tem tanto que ainda preciso aprender... Achava que a técnica bizarra de sova de Bertinet fosse exclusiva para massas mais grudentas, e eis que leio, atônita, que é ele quem se surpreende quando chefs ensinam a sova comum, com a base das palmas das mãos. Os padeiros franceses, segundo ele, sempre manipulam a massa daquela forma difícil, grudenta, úmida. Daí a qualidade dos pães franceses, tão leves.

Estou absolutamente apaixonada. Suas explicações são exatas sem serem demasiado técnicas. Ele transmite verdadeira paixão nos textos e nas fotografias por todo o livro. Sua "tabela de cores", com fotos dos vários estágios de cozimento do pão, com legendas como "light golden brown" e "dark golden brown", até "burnt", além de uma página dupla comparativa com fotos e ingredientes de um pão de forma caseiro e um industrial, me ganharam definitivamente. Sequer preparei ainda um de seus pães e sou já fã incondicional de Richard Bertinet.

Para quem não se incomoda com instruções em inglês, recomendo seus livros. Ambos. Pois, ao contrário de outros chefs-celebridade por aí, não há reciclagem de receitas, ao contrário do que eu imaginaria em dois livros sobre pães. Um é claramente continuação do outro, apenas com breves explicações no segundo livro, para quem de fato pulou seu predecessor.

Aaaaaaah... isso com certeza acalma meus nervos. Espere... espere... Opa! Os músculos de meus ombros acabaram de relaxar um pouco.

A semana que vem será melhor. Com certeza.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Bolo de cenouras dummy-proof de minha mãe

Pode parecer mentira, mas algumas memórias muito antigas estão tão impressas em meu cérebro que são impossíveis de serem esquecidas, mesmo tendo acontecido há tanto tempo. Lembro-me da primeira vez em que comi chocolate. Um pedacinho, pequenininho, de chocolate meio-amargo. Não sei quantos anos tinha, mas, considerando que me lembro do dia em que minha irmã nasceu (e eu tinha apenas dois anos), imagino que era também muito nova nessa ocasião. Lembro-me perfeitamente de estar sentada no sofá da sala — um sofá cor de burro quando foge, que nem existe mais — perninhas esticadas para frente, quando meu pai apareceu com aquele quadradinho marrom escuro, quase preto, ligeiramente lustroso, que mais me parecia um pedaço de plástico, do que qualquer coisa comestível.

"O que que é isso?", perguntei, muito desconfiada.
"Chocolate", respondeu meu pai.

Não sei dizer exatamente por quanto tempo resisti a experimentar aquela coisa de aparência pouco apetitosa. Meu pai gostava de pregar peças em mim desde pequena, e por isso eu olhava para aquilo como algumas crianças olham para uma couve-de-bruxelas. Recusei.

Num outro momento, não sei nem se no mesmo dia ou no mesmo ano, pois a memória é boa mas não tanto, meu pai se aproveitou do fato de estar completamente hipnotizada pela televisão, e aproximou-se sorrateiramente, dizendo "abre a boca!". Obedeci sem pensar nem olhar o que ele tinha na mão, e quando mastiguei, senti todo um mundo de novos sabores se abrindo diante de mim. Imediatamente a televisão perdeu o encanto. "Hmmmm! Que é isso???" Chocolate. Foi paixão à primeira mordida.

Claro, em outra ocasião, só para provar que televisão não fazia bem para meu cérebro, meu pai aplicou a mesma técnica e colocou uma rolha de garrafa na minha boca, que cuspi imediatamente, revoltadíssima, em meus sei lá quantos poucos anos.

Quanto ao bolo da fotografia, trata-se do bolo de cenoura que comi durante toda a minha vida. Receita de minha mãe, apanhada não se sabe onde, anotada num caderno velho, naquele velho estilo impreciso que tanto me enerva. Não me lembro da primeira vez em que comi do bolo, mas recordo quando primeiro o contestei:

"Do que que é esse bolo?"
"Cenoura", disse minha mãe.
"Ah, vá? Cenoura é legume! Do que que é? Fala a verdade!"
"Cenoura, juro! Olha aqui os pedacinhos!"

A verdade é que já testei diversos bolos de cenoura; com farinha de amêndoas, com nozes, com laranja, com cobertura de cream-cheese, versões italianas, inglesas, receita de tia, de amiga... Mas nunca nenhum bateu a simplicidade, a doçura e a infalibilidade do bolo de minha mãe. Porque mesmo quando ele dá errado, ele dá certo. Desta vez mesmo, atrapalhada por ter esquecido de marcar o tempo de forno e ter ido trabalhar, fui confundida pelo aroma doce que invadia a sala e o princípio de casquinha dourada por sobre o bolo, e abri o forno para testá-lo com o palito, ao que o danado respondeu imediatamente desinflando como um soufflé fracassado. Feiúra solucionada virando-se o bolo de ponta-cabeça, escondendo-se a parte em colapso.

Este é o bolo de cenoura mais fácil, mais rápido e também o mais gostoso que já fiz ou comi em minha vida. Seu miolo é muito macio e úmido, contido por uma ligeira crosta quase caramelizada que nunca vi repetida em receitas mais sofisticadas. Deixo aqui, então, essa simples mas carinhosa "herança de família", que foi para o meu caderno, acompanhado de uma ilustração, para que eu ache a receita mais facilmente, dentre tantas outras.


BOLO DE CENOURA (Updated)
Tempo de preparo: aprox. 1 hora
Rendimento: 8-10 porções


Ingredientes:
  • 2 cenouras médias raladas bem fino
  • 3 ovos
  • 1 xíc. de óleo (canola ou girassol)
  • 2 xíc. de açúcar
  • 2 1/2 xíc. de farinha de trigo
  • 1 colh. (sopa) de fermento químico em pó

Preparo:
  1. Em um liqüidificador muito potente ou um processador, bata todos os ingredientes até que fique homogêneo.
  2. Coloque em uma forma de cerca de 20cm de diâmetro com furo no meio, untada e enfarinhada, e leve ao forno médio (180ºC) pré-aquecido por 45-50 minutos, até que fique dourado e um palito saia limpo quando inserido no bolo (insira o palito na rachadura central, em que se pode ver o miolo, pois muitas vezes ele está pronto nas laterais mas cru nesse meio, apesar da casquinha dourada em volta).
  3. Deixe esfriar completamente numa grade antes de desenformar. Se quiser, cubra com ganache, mas ele é perfeito assim, sem nada.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Dois livros novos e nenhum tempo para aproveitá-los

Entre três trabalhos encruados, que não terminam nunca, a busca por um apartamento maior, e o cão tomando um remédio que me obriga a passear com ele pelo menos quatro vezes ao dia, é pouco ou nada o tempo (e a força de vontade) que me resta para cozinhar algo que preste. Nestes dias tenho lançado mão da criatividade para criar pratos rápidos para o jantar, em porções que me deixem sobras "requentáveis" para o almoço do dia seguinte.

Minha maior tristeza é ter mantido o blog às moscas, sem conseguir cumprir nem com minhas Padarias de Domingo nem com as Vítimas Culinárias.

E finalmente, após mais de um mês de espera, com porteiros que nunca estão na portaria para receberem pacotes e greves de carteiros, enfim consegui rastrear meu pacote da Amazon e encontrar em uma agência de correios completamente aleatória meus livros encomendados. Desde que vi o vídeo de Bertinet fiquei completamente apaixonada por sua intimidade com a massa, e corri sem dúvidas para comprar seus dois livros: Dough e Crust, ambos acompanhados de DVDs com instruções detalhadas.

Depois de dar a caixa de papelão para Gnocchi destruir, o que me resta é esperar o fim de semana, quando terei um tempinho para testar a primeira receita. Tenho esperanças de que consiga me livrar da recente maldição da ciabatta, e produzir um pão digno de uma boa passadela de manteiga.

Enquanto isso, cruzem os dedos para que eu encontre uma casa nova com uma cozinha decente!!

sexta-feira, 28 de março de 2008

Galettes de trigo sarraceno

Desde o post do pizzoccheri, quando expliquei muito rapidinho num comentário outros usos do trigo sarraceno que estava maluca para tentar os crêpes.

Passei toda a minha vida vendo minha mãe preparar crêpes muito finos, empilhá-los num prato, recheá-los e levá-los ao forno. Lembro-me até hoje do dia em que ela me deixou ajudá-la, e foi me orientando enquanto eu espalhava a pequena quantidade de massa na frigideira, movia o pulso em círculos para deixá-la uniforme, e virava o disco delicado com a ajuda de uma espátula, para tostar dos dois lados.

Claro, naquela época ninguém que eu conhecesse chamava aquilo de crêpes; eram panquecas. E confesso só tê-las começado a chamar pelo nome em francês quando preparei minha primeira panqueca de verdade, a americana, da que se come com mapple syrup. Chamar tudo de panqueca então parecia-me confuso. Crêpes são crêpes. Panquecas são panquecas.

Ou assim pensava minha mente simplória. Tudo mudou novamente, quando assisti a um Menu Confiança filmado na Bretagne (região no norte da França), em que uma francesa dona de uma crêperie preparava crêpes doces e salgados. Fiquei extasiada ao ver que as massas diferiam em mais coisas além do detalhe do açúcar, e que seus nomes eram diferentes: crêpes e galettes.

Saí em busca de mais informações e descobri que galettes são crêpes servidos como prato principal, e cuja massa leva trigo sarraceno. E crêpes são as versões doces, feitas apenas de farinha de trigo.

Graças a essa pequena pesquisa, acabei encontrando outras informações sobre o trigo sarraceno. Aparentemente ele é a semente de uma fruta, não um cereal, e é relacionado ao ruibarbo. Não tem glúten (como eu já havia mencionado), é abarrotado de ômega-3 (aquela mesma substância contida no azeite e no salmão), vitaminas B1 e B2, fibras, minerais e aminoácidos essenciais. [Normalmente eu não ligo para nada disso, mas acabo sempre indo atrás de informações como essa para comprovar a algumas pessoas que não, eu não sou anêmica por não comer carne. Tive um treinador que me enchia a paciência com isso.]

Fiquei um pouco apreensiva ao começar os crêpes — ops! galettes! — depois de ler Julie & Julia. Três anos morando nesse apartamento e, apesar da profusão de panquecas, nunca preparara um crêpe sequer. E se grudassem na minha panela? E se rasgassem? O que eu faria com aquela tigela enorme de recheio? No entanto, ao contrário da protagonista do livro, as galettes foram ficando prontas, uma a uma, fininhas, douradas, perfeitas (com exceção de uma, pobrezinha, que rasgou ao meio). Fiquei muito orgulhosa. Lembrei-me imediatamente de um amigo que trouxera certa vez de uma viagem uma francesa a tiracolo, e que nos convidara para jantar. Sentamo-nos na cozinha e ela foi preparando galette por galette, muito delicadas, virando-as e dobrando-as com tanta facilidade que, na época, senti-me uma cozinheira bruta e truculenta.

Bom, acredito que aquela sensação tenha desaparecido para nunca mais voltar.

GALETTES
(traduzido e ligeiramente adaptado do La Tartine Gourmande)
Tempo de preparo: 5min + 2h de descanso + 20 min.
Rendimento: 9-12 galettes, dependendo do tamanho da frigideira


Ingredientes:
  • 100g de farinha de trigo sarraceno
  • 60g de farinha de trigo comum
  • 1/4 colh. (chá) de sal
  • 2 ovos
  • 300ml de água fria
  • 100ml de leite integral
  • 2 colh. (sopa) de azeite extra-virgem

Preparo:
  1. Misture as farinhas e o sal.
  2. Bata ligeiramente os ovos e junte-os à farinha.
  3. Acrescente a água, o leite e o azeite e misture bem com um fouet, para aerar bem a mistura. Deixe descansar em temperatura ambiente por 2 horas.
  4. Aqueça uma frigideira anti-aderente e derreta um naco de manteiga. Despeje massa suficiente para apenas recobrir o fundo da frigideira e deixe dourar em fogo médio-baixo.
  5. Com a ajuda de uma espátula, deslize a galette e vire-a, deixando-a dourar do outro lado.
  6. Você pode apenas transferir a galette para um prato e mantê-la aquecida para recheá-la depois, ou pode já recheá-la direto na frigideira. Imagine o círculo de massa divido em 4 partes iguais, como uma pizza. Coloque uma ou duas colheres do recheio de sua escolha em um desses quartos. Não exagere. Dobre a galette ao meio, seguindo a divisão de quartos que você imaginara, e depois dobre-a novamente, formando um triângulo. Pressione-a muito suavemente com a espátula, retire e disponha em um prato aquecido. Sirva quente.
A quem interessar possa: o recheio que usei foi ricotta, parmesão e talos de espinafre refogados com alho e cebola vermelha. Reaqueci no forno com uns nacos de manteiga e polvilhado de queijo pecorino.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Achou o ovo!

Precisava fotografar o que restou da torta de Páscoa, simplesmente pela diversão que é ver esse ovo assim no meio dela. A receita foi uma das poucas que segui sem nenhuma adaptação nos últimos tempos, e por isso, infelizmente, não a colocarei aqui. Por isso, na verdade, e pela chatice que foi abrir a massa. Quatro vezes. Afe!

Se quiser fazer algo parecido, é mais fácil usar sua massa de torta favorita (ou massa folhada comprada pronta), e rechear com um maço inteiro de espinafre aferventado, escorrido e refogado com alho, misturado a ricotta fresca, um punhado de queijo pecorino ralado e um tantinho de creme de leite, só para dar cremosidade. Faça quatro buracos redondinhos no recheio e quebre os ovos lá dentro, polvilhando com queijo por cima. E cubra com a massa com muuuuuuuuito cuidado para não estourar as gemas! hehehe...

Um pouco de paz, sossego e comida em boa companhia na Páscoa






Confesso ter me exaltado no último post. Às vezes falho em controlar meus impulsos de atear fogo no circo. Quem me conhece sabe que não hesito em iniciar uma discussão, principalmente quando encontro pelo caminho alguém que não apenas tenha boa disposição para argumentar, mas também — e mais importante — tenha inteligência para não levar para o lado pessoal e, depois de ninguém ter convencido ninguém de coisa nenhuma, após horas de discussão acalorada, que consiga sorrir e combinar a próxima cerveja. Adoro quando encontro gente assim. Houve mesmo uma vez que fiquei num bar discutindo política com uma amiga de um amigo que tinha uma visão diametralmente oposta à minha, e mesmo depois de alguns pontos delicados muito bem esmiuçados, terminamos a noite com um "Ótima conversa! Quando vai ser a próxima?".

No entanto, família não funciona assim. Não sei por quê; em algum momento os cientistas vão descobrir porque parecemos absolutamente incapazes de manter uma conversação de base lógica com pessoas com quem compartilhamos o mesmo sangue. Por isso mesmo, pendurei as armas atrás da porta e me preparei para uma tarde inteira de paz. Ainda que muito do meu autocontrole tenha sido fruto do cansaço, confesso, pois autocontrole não é, normalmente, uma de minhas virtudes.

Esse almoço de Páscoa foi especial, pois pela primeira vez conseguimos unir os dois lados da família. Claro que só foi uma possibilidade porque havia pouca gente. Nosso pequeno "apertamento" não comporta uma grande festa de família com todos os avós, tios e apêndices de cada lado. Convidamos então os pais dele, minha mãe e minha irmã, pois a cunhada voltou para a Itália e meu pai continua em Fortaleza. Éramos seis [não resisti...]. Recusamos qualquer ajuda, e minha mãe ficou logo preocupada, pedindo para que não fosse louca como minha avó, que começava a preparar o almoço de domingo na sexta-feira, ao que eu respondi: "E não é essa a graça??"

No sábado de manhã comecei a maratona. Primeiro de tudo, o prato mais arriscado: uma torta siciliana de Páscoa, do livro Sabores da Sicília, do SENAC. Recomendo o livro: receitas deliciosas. Foi arriscado porque havia muita coisa que poderia dar errada, e era o único prato que eu jamais fizera. Eram quatro bolinhas minúsculas de massa que deveriam ser abertas em círculos finos como papel, translúcidos, e intercalados com azeite, duas camadas embaixo, duas em cima, recheio no meio. Este, de ricotta fresca, espinafre e queijo pecorino, deveria comportar em buracos muito bem estruturados quatro ovos inteiros, assim crus, para cozinharem como pequenos ovos pochés dentro do recheio verde enquanto a torta assava. Ainda bem, apesar do ligeiro stress para abrir a massa do tamanho certo sem rasgá-la, tudo deu certo e a torta ficou excelente. Não fosse o fato de a camada de cima ter-se descolado, inflado e entortado, a torta teria ficado perfeita.

Depois da torta, a massa. A receita é ipsis literis do livro Jamie´s Italy, de orecchiete al forno. Eu já preparara a receita usando conchiglie (na falta de orecchiete) e tomates frescos. Desta vez, encontrei um pacote de orecchiete de semolina da marca Granarolo, a mesma da farinha italiana que costumo comprar, e tomates em lata Raiola, meus favoritos. Intercala-se camadas de massa com molho, punhados generosos de parmesão ralado na hora e mozzarella de búfala em pedaços, e leva-se tudo ao forno. Ao contrário da torta, entretanto, deixei o prato apenas pré-montado. Para evitar que o macarrão continuasse cozinhando em seu próprio calor e ficasse empapado e sem textura (scotto, come dicono gli italiani), deixei que o molho esfriasse completamente antes de utilizá-lo, e cozinhei a massa por 1 minuto menos que o indicado no pacote, escorrendo-o e passando-o pela água fria, até que não restasse mais qualquer calor emanando dele. Montei o prato na minha panelona vermelha, que comportou confortavelmente os 500g de orecchiette, e foi, no dia seguinte, do forno para a mesa combinando bonitinho com minha toalha-cliché de trattoria.

Afe. Feito isso, hora do sorvete de creme. Depois de preparar a mistura e deixá-la na geladeira, saí para almoçar na Osteria del Petirosso, um lugar que adorei, apesar de ser meio salgado, e que me deu muita dó, por estar vazio, vazio. Melhor tiramisù de São Paulo, e único tortelli di zucca que comi fora da Itália em que se podia sentir o tempero sutil mas marcante da Mostarda di Cremona. No fim de tudo, depois do cafézinho, foi-nos servido um licor de amêndoas por conta da casa; uma delicadeza por parte dos donos que é difícil de se encontrar nos restaurantes por aqui, mesmo os mais caros.

Voltando do almoço, retorno à maratona. Asso os pimentões sob o grill, retiro-lhes a pele, fatio, refogo na cebola, com uma colherinha do molho de tomates reservado da massa. Vinagre. Sal. Pimenta. Pepperonata pronta.

Enquanto isso, cozinho as ervilhas com menta seca, escorro-as, tempero-as e misturo-as a azeite extra-virgem. Cubro-as e deixo marinando na geladeira.

Hora do único toque de chocolate do almoço: um bolo cremoso muito fácil que eu já fizera diversas vezes na casa de minha mãe, mas nunca aqui. Derrete chocolate com manteiga, mistura gemas, açúcar, sal e baunilha. Bate as claras em neve com o resto do açúcar, incorpora as claras na meleca de chocolate, coloca na forma forrada e untada e leva ao forno MÉDIO por 40 minutos. Até onde eu sei, forno médio é 180ºC. Pelo menos é o que diz na Dona Benta e em um monte de outros livros clássicos e imprecisos. Olho o meu termômetro e ele está marcando 180ºC exatamente, nem um milímetro para lá ou para cá. Lembro-me de que na casa de minha mãe o bolo sempre dava certinho, então coloco o timer para 40 minutos e vou descansar a coluna deitando no sofá um pouco, pois depois de 8 horas de pé, picando, cortando e misturando, eu mereço. Trinta minutos depois, aquele cheiro. É, aquele que eu detesto: queimado.

Corro para a cozinha, testo com o palito e, apesar de continuar a 180ºC, o bolo ficou pronto antes da hora. Tinha as beiradinhas das placas quebradas por cima chamuscadas e, ao desenformá-lo, via-se claramente o fundo enegrecido.

Insira imprecações aqui.

"Vai assim mesmo", pensei. Já estava cansada, e como o objetivo era comer o bolo com sorvete, mandei um "dane-se, todo mundo vai comer bolo queimado". Eu que não ia jogar tudo fora e começar de novo. Então me lembrei de que o forno de minha mãe é também desregulado como o meu, e a razão pela qual o bolo demorava 40 minut0s para ficar pronto era que a temperatura era 30ºC mais baixa.

Hunf.

No dia seguinte, todos chegaram ao mesmo tempo, exatamente na hora marcada, o que é sempre uma bênção para qualquer anfitrião: isso quer dizer que todos terão o mesmo tempo para se entupir de aperitivos, e que não é preciso esperar mais tempo para servir o almoço. Quando eles entraram, já estavam distribuídos pela "imensa" sala potinhos com castanhas de caju, azeitonas Kalamata (menos amargas que as comuns Azapa, e por isso ótimas para serem comidas puras), queijo Feta marinado em azeite e orégano (como me ensinou uma amiga grega de minha irmã), pepperonata e uma pasta de grão-de-bico que acabei aprontando no pilão cerca de 5 minutos antes de os convidados entrarem pela porta, com medo de que não houvesse comida suficiente. Para acompanhar a pasta e a pepperonata, fatias de pão ciabatta.

Reaqueci a torta, aqueci e gratinei a massa, e servi ambos acompanhados das ervilhas com menta e da salada Cole Slaw, feita no dia, com repolho branco, cenouras e cebolas roxas, maionese e mostarda de Dijon.

Tudo correu muito mais suavemente do que eu esperava. Todos os pratos deram certo e agradaram, até mesmo o pobre bolo queimado que, no fim, por milagre talvez, não pegara gosto de queimado. O único erro foi ter calculado mal a quantidade de bebidas, razão pela qual Allex teve de sair de fininho para comprar mais.

Quem mais gostou da festança foi o cachorro, que não sabia no colo de quem pular. O fato de ter feito muito mais comida do que seis pessoas poderiam comer (e repetir e repetir de novo), prova de uma vez por todas que carrego em mim os genes da fartura de minha avó Lydia. Espero tê-la deixado orgulhosa, onde quer que a véia tenha reencarnado.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Sexta-Feira Santa: Santa Paciência!



A despeito do fato de não sermos exatamente católicos, é impossível para mim não querer sentar à mesa posta, tomar um bom vinho e comer algo especial em uma Sexta-Feira Santa. No primeiro ano em que nos mudamos, lembro-me vagamente de algum pai (o meu ou o do Allex, já não sei mais) nos perguntando se comeríamos peixe na sexta-feira.

"É claro que não!", respondemos, exasperados. "Não comemos carne o ano todo, porque comeríamos justamente no dia em que não devemos???"

E, respondendo ainda ao olhar confuso e perplexo do interlocutor oculto pelo véu de minha parca memória: "Para quem não come carne, Sexta-Feira Santa não tem nada de especial: é só sexta-feira."

De fato, fico sempre boquiaberta com a falta de disciplina dos assim chamados católicos. Ninguém está pedindo para que eles sejam perpetuamente vegans. São 364 dias de balbúrdia e descontrole e apenas um — unzinho só — sem carne. E pensar que antigamente eram dias e dias de jejum, diminuídos posteriormente para apenas sexta-feira, então atenuados para uma dieta restrita, que, finalmente, foi deturpada por um monte de gente sem o menor senso de autocontrole, para "um peixinho pode". Daqui a uns tempos vão dizer que franguinho também está ok. Ah, vá, povo, ninguém consegue ficar 24 horas sem comer um bicho???

De qualquer forma, sou sempre invadida por sentimentos paradoxais em feriados religiosos. Por um lado, há o saudosismo incontrolável, as lembranças das Páscoas da infância, de quando bacalhau era item raro e caro, e por isso, preparado apenas uma vez ao ano, razão pela qual eu já começava a salivar de ansiedade assim que terminava o Carnaval. Por outro lado, minha parte cínica pulula e grita, irritada pela comemoração em nome da comemoração, sem conhecimento, sem tradição, rendida e vendida às fábricas de chocolate e brinquedos, inundando mentes maleáveis de noções consumistas e fúteis que contrapõem justamente a mensagem que o feriado deveria difundir. Páscoa não é mais um momento de reflexão. Nem Natal. Nem coisa nenhuma. O importante é pagar 40 reais num ovo de 300g de chocolate de qualidade inferior e abarrotado de gordura hidrogenada. Tudo porque é mais fácil agradar a criançada com uma dose colossal de açúcar do que de fato ensinar-lhes algo que preste para suas vidas.

Veja bem, fui criada como católica. Fiz primeira-comunhão. Quando me revoltei contra tudo e todos, em meus anos aborrecentes, costumava desejar "Feliz Solstício!" e "Bom Equinócio!" a meus pais, apenas para enfurecê-los. Sim, porque me parecia ridícula toda a comemoração em torno de datas arbitrárias, escolhidas pela igreja medieval em função de festas pagãs e judaicas, apenas com o intuito de minar o espírito comemorativo de indivíduos de outra fé, e, aos poucos, substituir uma festa pela outra. Isso não é segredo para ninguém. Mas acredito que se for para tomar com desinteresse uma data como esta, que pelo menos seja com essa consciência, e não por ter sido dominado pelo desejo por chocolate. Fiquei em choque ao assistir a um programa de TV em que, perguntado sobre o significado da Páscoa, um transeunte de quociente intelectual questionável respondeu que era uma data relacionada ao descobrimento do Brasil, algo a ver com o monte Pascoal.


Hmmmmmmmmmf...


Esse tipo de coisa me dá dor no estômago. Sério.


Mas, como meu lado cínico e meu lado saudosista são duas partes que há muito tempo aprenderam a conviver em paz e ceder um ao outro em nome da boa vizinhança, tento nessas datas criar minhas próprias tradições. Afinal, algo terá de ser ensinado aos filhos quando eles um dia vierem. Os pimpolhos decerto saberão o significado da Páscoa, pois, apesar de não-católica, tenho grande respeito e admiração por esse homem que tentou desesperadamente botar a humanidade nos trilhos e que (dizem os padres) morreu hoje. Mas também saberão que as datas são apenas simbólicas, e que houve e há muita politicagem no meio. Assim como também terão consciência de que Páscoa não é o Dia Oficial do Chocolate.

Por isso, e por detestar ovos de Páscoa, nessa Sexta-Feira Santa fiz um almoço simples, Risi e Bisi, que, no dialeto de Veneza, quer dizer apenas "Arroz e Ervilhas". Um risotto quase sopa (pois os venezianos bem gostam de seu risotto com mais água), de ervilhas frescas e salsinha, muito leve, ideal para um dia de calor e de restrição. É claro que omiti (como sempre omito) as fatias de pancetta. O risotto combinou à perfeição com a garrafa de Pinot Grigio do Friuli, D.O.C.

E, para iniciar uma tradição muito inglesa e pouco italiana, preparei esses brioches de Páscoa, Hot Cross Buns, que devem ser comidos na Sexta-Feira. Adoro esse tipo de pão semidoce, perfumado de especiarias e pontilhado de frutas secas. Como dez desses em lugar de um pedaço de ovo de chocolate. O aroma que se espalha pela casa quando eles estão no forno vale decerto uma lembrança daqui a 20 anos, dos pãezinhos de Páscoa preparados toda Sexta-Feira Santa.



HOT CROSS BUNS (Brioches Ingleses de Páscoa)

(Ligeiramente adaptado do livro Biscuits et Petits Gâteaux)
Tempo de preparo: 20 min. + 2h30 fermentando + 25min forno
Rendimento: 8 pães do tamanho de um punho


Ingredientes:
  • 1/2 colh. (sopa) de fermento ativo seco instantâneo
  • 40g de açúcar cristal orgânico
  • 315g de farinha de trigo para pães
  • 1/4 colh. (chá) de pimenta-do-reino branca moída
  • 1/4 colh. (chá) de gengibre em pó
  • 1/4 colh. (chá) de cravo moído
  • 1/2 colh. (chá) de canela em pó
  • 1/2 colh. (chá) de noz moscada ralada na hora
  • 1/4 colh. (chá) de sal
  • 125ml de leite morno
  • 50g de manteiga sem sal derretida
  • 1 ovo extra-grande batido
  • 120g de passas sem sementes
  • 50g de cascas de laranja cristalizadas cortadas em pedaços

Preparo:
  1. Junte o fermento, uma pitada de açúcar e 60ml de água morna e deixe descansar por 10 minutos, até que espume.
  2. Em uma outra tigela, misture a farinha, os temperos e o sal.
  3. Na tigela de uma batedeira planetária, bata com o gancho para massas o leite, a manteiga, o açúcar, o ovo e cerca de 4 colh. (sopa) da mistura de farinha, até que fique liso. Junte o fermento, as passas e as cascas de laranja e misture.
  4. Vá juntando a farinha aos poucos (4 colh. por vez), misturando bem entre cada adição, até que tudo tenha sido incorporado. A massa ficará muito mole e grudenta, como massa de panettone. Bata com o gancho na velocidade 2 por 5 minutos.
  5. Passe a mistura para uma tigela untada com óleo, cubra com filme plástico e deixe descansar por 1h30-2h, até que dobre de volume.
  6. Afunde a massa com o punho enfarinhado, e, em uma superfície igualmente enfarinhada, divida a massa em 8 porções iguais. Forme bolas com elas e disponha-as em uma assadeira grande, untada com óleo, com cerca de 4cm de distância entre elas. Cubra com um pano úmido e deixe descansar por 30 minutos.
  7. Pré-aqueça o forno a 180ºC. Leve ao fogo alto 1 colh. (sopa) de açúcar com a mesma quantidade de água, e desligue assim que ferver. Reserve.
  8. Misture 30g de farinha a um pouco de água, até formar uma massa. Abra-a com 2mm de espessura, e corte 16 tiras de 5mm de largura, formando cruzes sobre os pães crus. Leve ao forno por 20 minutos ou até que dourem.
  9. Pincele os pães com o xarope de açúcar frio e deixe que os pães esfriem sobre uma grade.

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