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segunda-feira, 8 de junho de 2020

Mudanças de olhar, aprender sem escola, focaccia de panela.


A pandemia por aqui anda um bocado esquisita. O governo faz finta de relaxar algumas políticas, mas quando o povo relaxa também, ele volta atrás. Os parques urbanos andam cheios. Não tão cheios quanto estariam nesse junho lindo de céu azul e temperaturas veranis, mas indubitavelmente cheios, quando nos lembramos de que deveríamos ficar distantes uns dos outros. Tentamos. Chamo a atenção das crianças para não se aproximarem de outras pessoas, vamos ao parque em horários mais tranquilos, onde não fico estressada por uma pessoa sem noção estar perto demais na hora de atravessar a rua. Nos fins de semana, quando a cidade inteira parece esquecer a quarentena em nome de um banho de sol, fugimos para o mato, para os parques provinciais que estão abertos para quem gosta de andar em trilhas na solidão da natureza.

Os números aqui no Canadá começam a dar esperanças de que logo (espero!) algumas coisas cheguem a uma nova realidade menos surreal, e que possamos, se não marcar um piquenique com os amigos, pelo menos programar um acampamento em família.

Mas o governo tem sido cauteloso, e há grandes chances de que a escola não volte (ao menos não em sua integralidade) a funcionar em Setembro, quando as crianças começam um novo ano letivo. Sinceramente, já não espero mais. Não espero, de verdade, coisa alguma. Desde o início dessa bizarrice toda, o mundo tem me ensinado a não esperar nada, a viver um dia de cada vez, sem grandes planos. Ou mesmo pequenos. Esse foi o tema das conversas desse fim de semana, quando dividimos um com o outro, Allex e eu, a coleção de pequenas, médias e grandes frutrações dos últimos meses, que parecem terem ficado ainda mais intensas em frequencia e variedade desde que Gnocchi morreu. Como uma aceleração do karma, eu disse. Ele concordou.

Mas desde Março, quando a escola fechou,eu já repetia: não sei quanto tempo isso vai durar, não sei o que vai acontecer amanhã, então não espero nada e sigo o fluxo; e se tiver perrengue, e se der tudo errado, e se o universo me tropeçar de novo, dou risada, aceito, e trabalho com o que tenho.

Porque no fim é isso. A gente faz o que pode com o que tem. E se a gente tira o olhar da falta que gera a frustração e o dirige para aquilo que está presente, descobre que tem um bocado, e que está tudo bem. Ou que tem apenas um pouco, mas esse pouco é o bastante para segurar a onda enquanto a onda não quebra na praia e vira marolinha.

Não ando focando na falta da escola. Ando olhando para a curiosidade natural das crianças, para a oportunidade de tomar um pouco as rédeas da educação deles, para reafirmar alguns valores e hábitos que andavam se perdendo no estressante ambinte escolar.

Nem que seja o hábito de almoçar. Eles estão felizes por poder almoçar todos os dias num ambiente sem pressa nem gritaria, ainda que a mãe, na TPM, às vezes solte um grito apressado.

Ando lendo um bocado a respeito de Unschooling, ou Desescolarização, não porque pretenda tirar as crianças definitivamente da escola, mas porque os diferentes processos de aprendizagem das crianças fora da escola, quando bem estimulados, tormam-me uma mãe mais tranquila e menos preocupada com pressões acadêmicas. Principalmente num momento em que a principal preocupação deveria ser o bem estar mental e físico das crianças (e dos adultos).



Um exemplo simples. Thomas e Laura aprenderam frações cozinhando. Medindo ingredientes com xícaras e colheres-medida. Tentando descobrir como obter 1/8colh(chá) de sal tendo em mãos apenas uma colher que comporta 1/4. Fazendo contas mentais para saber quantas vezes precisam usar o medidor de 1/3xic para obter 1 xícara e 2/3 de leite. Quando enfim precisaram sentar na frente do computador e fazer suas lições de fração, bastou lembrá-los dos bolos que haviam preparado, e não foi precisa mais nenhuma explicação.

Um exemplo complexo. Thomas e Laura adoram bichos. Começou com os dinossauros de Thomas, há muito tempo. Todos os livros que ele pegava na biblioteca eram de dinossauros. Na primeira série, ele tinha preguiça de ler os livros da escola, mas conseguia ler sem dificuldades os nomes científicos mais escalafobéticos de seus dinossauros. E os dinossauros o transformaram num leitor. Os dinossauros levaram, por conta do Mosassauro, seu dinossauro aquático favorito, aos animais marinhos. E lá foi ele ler em letras miúdas, palavras multissilábicas, medidas, nomes científicos, comparando quem é maior que quem, quem come quem, quem mora onde. Por causa dos dinossauros e dos animais marinhos, ele logo se interessou pelos nomes dos continentes e dos oceanos. Seu livro favorito de animais marinhos também mostrava pássaros, que ele logo relacionou aos dinossauros com penas e quadris de aves, e quando ele ouviu falar de Evolução e Seleção Natural pela primeira vez, aquilo tudo já fazia sentido.

Por conta de Thomas, Laura hoje tem a mesma paixão por bichos.Quando saímos para passear no mato, eles me explicam que libélulas são mais antigas que dinossauros, Laura me pergunta se as amoras do nosso snack são da mesma família do milho, por terem estrutura parecida, e pesquiso no celular sobre a estranha pedra que vemos por toda parte no rio que cruza o parque em Scarborough, e que descobrimos que é ardósia, e conversamos sobre os tipos de formações rochosas que vimos no museu de História Natural em Ottawa. Laura pergunta se pode usar uma lâmina de ardósia como faca, e quando acha uma fogueira, descobre que carvão serve para escrever, e que se ela esmagá-lo e misturá-lo com água do lago, faz uma tinta preta que ela pode usar para desenhar com os dedos nas pedras. Explico pinturas rupestres e tinta azul feita com lapis-lazuli (a pedra que carrego em meu anel favorito) e tinta vermelha feita com cochonilhas, aqueles mesmos bichinhos que Laura se lembra de ver sob as folhagens de nossa horta no Brasil, e que as joaninhas adoram comer.\


Quando encontramos uma toupeira morta no meio da trilha, paramos para examiná-la, e eles ficam fascinados pelo formato das patas, pelas unhas fortes, e pelo fato de que ela é de fato tão cega que não conseguimos encontrar seus olhos em meio aos pelos. Falamos sobre o processo de decomposição. Isso eles já sabem bem. No Brasil, uma vez, encontramos um gambazinho que fora morto por uma pedra de gelo durante uma geada forte. Todos os dias íamos ao terreno baldio onde ele estava para vermos em que estágio o bicho se encontrava: formigas primeiro, moscas depois, então larvas, então o corpo parecia desaparecer sob a pele que afundava, como um balão desinflando, e num belo dia, encontramos apenas o esqueleto, perfeito, branco como se tivesse sido polido em laboratório, e tufos de pelos espalhados pelo vento. No crâniozinho dele, uma rachadura feia marcando onde a pedra de gelo o acertara. Ninguém nunca esqueceu daquela lição de como a morte alimenta a vida de tantos outros seres, de como todos voltamos à terra para alimentá-la e prosseguir num ciclo infinito de vida-morte-vida tão maior do que qualquer indivíduo. Laura lembrou do gambazinho e de tudo o que conversamos naquela época para me consolar quando Gnocchi morreu: "Ele virou terra de novo, mamãe, ele vai alimentar as plantas e as plantas vão florir e vão ter frutas por causa dele. E a energia dele desmanchou e voltou pro Universo, ele está no ar, mamãe, então ele está em todo lugar agora. Se você respirar agora, ele está com você."



Quando paramos para descansar na trilha ao lado de um rio, as crianças, enfiadas até os bumbuns no leito gelado, de roupa e sapatos, embaixo do sol forte, procuram bichos embaixo da água. Girinos, pequenos peixes, caracóis. Thomas grita, de repente, que viram uma lagosta, e por um momento me assusto, achando que se tratava de um escorpião. Mas vejo Laura de cócoras no rio, concentrada, dando patadas rápidas na água como um urso, e de repente os dois voltam gritando de alegria, correndo em nossa direção, Laura com as mãos fechadas em concha. Ela abre as palmas como uma ostra, e me mostra o que parece um lagostim bem pequeno e escuro. E depois de passada a fascinação, eles devolvem o bicho ao rio, são e salvo, enquanto pesquiso que bicho era aquele. Crayfish!, exclamo feliz.
Laura pergunta se o Crayfish é um inseto como as aranhas e explico que nem um nem outro é inseto, e passamos uns bons minutos na trilha brincando de descobrir quem é inseto e quem é aracnídeo pelo número de patas, pelas divisões do corpo.


Um dia no mato com os dois me obriga a buscar na memória as coisas que aprendi na escola e, quando a mente falha, buscar no Google. Passar tempo com eles me faz querer ver o mundo com olhos frescos também. E ao invés de olhar um passarinho e só dizer "que passarinho bonito", volto a fazer perguntas como eles fazem. Qual é o nome dele? Onde ele faz ninho? Ele migra como os gansos ou fica por aqui no inverno como o Chickadee? O que é que ele come? De que cor são seus ovos? Será que ele é da época dos dinossauros? Ok, essa última pergunta seria mais do Thomas mesmo.

Minha própria curiosidade às vezes quebra silêncios, e gera de novo conversa interessada. E criança é um bicho que gosta de pergunta, e às vezes basta a gente fazer uma para eles criarem mais vinte. E se eles tiverem liberdade de explorar, experimentar, mexer, quebrar, construir, e tempo para criar, tempo para ler o que lhes interessa de fato, eles aprendem tanto que a gente às vezes cai sentado de susto.

E mesmo quando a informação é demais, é difícil, eles tiram algo daquilo. Assistimos à série Cosmos, e de repente Laura vira para mim e diz: "Mamãe, não tô entendendo nada do que esse moço tá explicando, mas tá divertido mesmo assim." E apanhou seu caderno e começou a desenhar. "Ó, mamãe, eu tô desenhando as coisas do filme: isso é uma nebulosa! Esse é um buraco negro! E essa é uma cadeia de DNA!"

Ela não faz ideia do que de fato seja uma cadeia de DNA nem tem condições ainda de entender. Mas desenhou aquilo que seu cérebro conseguiiu compreender daquelas imagens, e quando ela de fato quiser estudar a respeito, o conceito está ali, aquela imagem presa à memória, gravada permanentemente pelo processo daquele desenho expontâneo. No dia seguinte ela me pediu para ter um livro sobre o espaço. "Um que você consiga ler sozinha ou um que eu precise ler pra você?', perguntei para alinhar expectativas. "Um pra eu ler sozinha." Apanhei um livro da National Geographic chamado "My Fisrt Space Book". Junto desse, aproveitei para comprar um lindíssimo chamado Maps, com mapas do mundo inteiro ilustrados de forma divertida e cheio de informações sobre cada país (muito útil já as crianças têm amigos de todas as partes do mundo, na escola daqui) e um outro livrão ilustrado chamado Curiositree Natural World, que é uma espécie de enciclopédia da natureza, com lições simples de biologia, botânica, ecologia, e curiosidades sobre animais. Laura já me pediu um outro sobre elementos. Ela tem um de pedras preciosas, mas queria um que mostrasse todos os elementos em seus estados naturais, porque ela quer encontrá-los na floresta.

Tenho tentado ampliar a biblioteca dos dois, que até então tinha mais livros de histórias, para livros de consulta. Os dois passam muito tempo no sofá ou no tapete, folheando os livros informativos, discutindo sobre as figuras, comparando com outras coisas que aprenderam. Acho que o livro folheado sem pressa é uma experiência diferente de buscar informação na Wikipedia. Ainda que tenha ensinado Thomas a pesquisar seus assuntos de interesse nela e registrar sua pesquisa em forma de perguntas e respostas.

Quando paro de pensar nas pequenas e nas grandes frustrações da quarentena e da pandemia, olho para os tesouros encontrados à minha frente.Ver o modo como as crianças aprendem (todas elas, não apenas meus filhos, porque ninguém aqui é especial), e o quanto eles de fato aprendem quando estão genuinamente interessados num assunto e podem explorá-lo do seu jeito e no seu ritmo, sou invadida por essa tranquilidade a respeito das lições da escola, do passar de ano, do desinteresse que a criança mostra ao ter de escrever uma redação sobre a Primavera ou calcular perímetros e áreas quando na verdade queria estar lendo sobre dinossauros e nebulosas.

Durante todas as semanas de escola ã distância, Thomas fez drama para fazer redação. Reclamações, pequenas revoltas, bufadas e cadernos ao chão. "Ele não gosta de escrever", repeti a mim mesma e às outras mães inúmeras vezes, revirando os olhos. Então, cansada de colocar a falha nele, resolvi colocar a falha no método e tentei algo novo: "Seguinte, gente, eu acho as redações da escola uma chatice. Então eu quero o seguinte: todo dia, eu quero uma redação, caprichada, letra pequena, com data, mínimo de cinco frases, SOBRE O QUE VOCÊS QUISEREM. Inclusive se quiserem escrever como a mamãe é chata porque ela está obrigando vocês a escrever, pode. Desde que usem cinco frases para reclamar. Tá bom?"

Thomas tinha que fazer UMA redação por semana para a escola, e era sempre aquele teatro, aquela briga, aquela frustração. Das redações diárias de tema livre ele reclamou só da primeira. Tentou ainda roubar no jogo, e copiou um trecho inteiro de um de seus livros favoritos. "Você copiou?", perguntei. "Sim, desse livro aqui.", ele respondeu, com um sorriso espertalhão. Devolvi o caderno para ele. "Tá muito caprichado. Gostei que você escolheu um trecho com palavras bem difíceis. Muito bem."

E as batalhas para escrever terminaram. Tem dia que ele transforma a redação em história em quadrinhos, fazendo os textos no meio de desenhos. Tem dia que é sobre batalhas entre super heróis que ele inventa. Tem dia que é a descrição dos poderes de um dragão. Laura escreve, ainda sem acertar muito a ortografia, em adivinhações fonéticas, sobre a casa na floresta em que vai morar, sobre um livro do aplicativo da escola que mostrava bolos de formatos divertidos, sobre gostar de cozinhar e sobre seus desenhos favoritos.

O governo de Ontario estabeleceu que as escolas daqui não vão avaliar as crianças do ensino elementar durante o período da pandemia. Até porque só se repete ano a partir dos dez anos e mesmo assim só se for muito necessário, já que até o ensino médio espera-se que as crianças cheguem no resultado esperado em seu próprio ritmo. Valho-me disso para relaxar um pouco e não obrigar as crianças a fazer todas as atividades propostas pelos professores. Mas tenho plena consciência de que essa abordagem do governo é condição sine-qua-non para que eu possa levar com leveza o assunto escola ã distância por aqui. Eu já tentava ensinar meus filhos dessa forma no Brasil e não levar a escola tradicional tão a sério, mas era muito, muito mais difícil, e eu sentia que tanto as crianças quanto os pais sofriam muito mais cobranças por resultados não condizentes com a maturidade emocional dos pequenos alunos. Justamente por me lembrar dessa pressão, tento não soltar as rédeas assim de um vez, porque eu não sou tonta nem nada e olho o curriculum da semana e saio propondo brincadeiras e questões relativas ao assunto, para mantê-los razoavelmente alinhados com o sistema, mas não subjugados por ele. Foi assim com as frações. Agora tenho que sacar da estante os jogos de tabuleiro e RPG que envolvem dados, porque Thomas vai começar a estudar Probabilidade.

Enfim.


É bom sentir menos pressão sobre os ombros, menos pressão pelo resultado, pelo "sucesso", pelo desempenho, pelas notas do boletim. Tem sido enriquescedor mergulhar com as crianças no processo, no desenvolvimento, na exploração, no imprevisível, no aleatório, no caos desenfreado da curiosidade. Tem sido importante parar de pensar em enfiar informações em suas cabeças "na ordem certa" e, ao invés disso, ensiná-los a gostar de aprender, ensiná-los a não terem medo de perguntar nem vergonha de propor uma solução. E principalmente, ensiná-los a pensar, a juntar informações que na escola são ensinadas separadas uma da outra mas que no mundo de verdade são inseparavelmente conectadas.

Num dia cheio de pequenos perrengues, Thomas quis fazer a salada do jantar enquanto eu preparava uma torta de verduras. Pensei em voz alta meu estranhamento de a tal "Focaccia" de  panela não levar fermento biológico. Ele me fez algumas perguntas, e comecei a explicar os tipos de fermento. Como o biológico é um ser vivo minúsculo comendo açúcares e soltando pum na massa (isso sempre faz as crianças rirem), e como o fermento químico é feito de um sal e um ácido que se transformam quando você os dissolve em líquido, produzindo gases. Ficamos falando sobre outros tipos de sal e outros tipos de ácido, e o fiz lembrar do dia em que fizemos um vulcão de massinha e enchemos ele de vinagre e bicarbonato de sódio.

Cozinha aliás, foi um hobby que durante anos alimentou também minha curiosidade infantil, e vorazmente estudei como eram os processos químicos por trás das transformações dos alimentos. Até hoje me pergunto porque a cozinha não é usada nas escolas como ponto central para todas as matérias. (Só fui entender botânica de verdade quando aprendi a fazer cerveja e tivemos de estudar a fisiologia do grão de cevada. Imaginei uma classe cheia de adolescentes aprendendo a fazer cerveja.) Na comida estuda-se química, biologia, matemática, história, geografia...

A gente nunca para de aprender enquanto for curioso.


E nessa cozinha a gente aprende a fazer torta na frigideira.Taí uma coisa que eu nunca fizera antes, mas passarinho que tem medo de novidade nunca sai do ninho. Fiz essa torta, que Benedetta chama de focaccia recheada, mas que nada tem a ver com a focaccia genovesa que nos vem à mente, pela primeira vez há um mês atrás e mais duas vezes depois e considero ela um clássico instantêno. Verdadeiramenre instantâneo, pois é a torta mais rápida do mundo: uns dez minutos para preparar, dez minutos na frigideira e pimba! Jantar. Como a massa não leva ovo, leite nem manteiga, se rechada apenas de verduras e legumes ainda por cima é vegana. Isso tem sido meio importante pra mim, pois tenho tentado manter a cozinha plant-based durante a semana. (Fiz isso por pura curiosidade, e no fim das contas, tem sido muito bom para mim.) Até hoje fiz com recheio de verduras com queijo, mas quero fazer umas versões só de verduras a partir de agora. Allex já imaginou a torta recheada com queijo, presunto e tomate, como um bauru. Enfim, o recheio é livre, só não coloque nada muito úmido, pois a massa ainda crua pode rasgar ao ser transferida para a frigideira. Divirta-se. Aproveite para clicar no link da receita para ver Benedetta preparando a focaccia, mesmo que você não fale italiano.


FOCACCIA RIPIENA IN PADELLA
Rendimento: 4 porçoes fartas para acompanhar uma saladinha ou 6 como parte de uma refeição mais completa

Ingredientes:
  • 400g farinha de trigo
  • 250ml água
  • 3 colh(sopa) azeite de oliva
  • 1 colh (chá) sal
  • 1 colh. (chá) bicarbonato de sódio
(recheio)
  • 350g verdura da sua escolha (escarola, espinafre, almeirão...), refogada do modo que preferir
  • 150g queijo de sua escolha (mozzarella, provolone, queijo prato...)

Preparo:
  1. Misture todos os ingredientes da massa numa tigela grande, usando os dedos, e então transfira para a bancada e sove até que fique lisa. Cubra com um pano para não ressecar, e prepare o recheio de sua escolha.
  2. Coloque a frigideira em fogo médio. Benedetta usa uma frigideira antiaderente de 30cm. A minha tem 25cm e é de inox. Costumo untar a frigideira toda por dentro com um fio de azeite e a torta nunca grudou. O fato de minha frigideira ser menor quer dizer que a torta fica com bordas mais grossas, mas ninguém nunca reclamou.
  3. Divida a massa em duas partes iguais e abra com um rolo em uma bancada enfarinhada até ficar um pouco maior que a frigideira. Esopalhe o queijo e então a verdura e depois mais queijo sobre uma das massas e cubra com a outra. Dobre as bordas das massas uma sobre a outra, apertando para o selar bem.
  4. Quando a frigideira estiver bem quente, transfira a torta para a frigideira com cuidado. Tampe e deixe cozinhar por cinco minutos, até sentir cheiro de farinha tostando. Tire a frigideira do fogo e, sem destampar, num movimento rápido, vire a frigideira de cabeça para baixo para que a torta fique apoiada na tampa. Deslize a torta agora invertida de volta para a frigideira,tampe novamente e cozinhe por mias cinco minutos.
  5. Desenforme a torta em uma tábua e deixe descansar alguns minutos antes de cortar e servir.


quarta-feira, 7 de março de 2018

Fevereiro, vida tranquila, um post em duas partes


Cerca de um ano antes de virmos para Toronto, minha cunhada me emprestou um livro pequenininho em italiano chamado Novecento, de Alessandro Baricco. No livro, esse homem que nasceu num barco e nunca saiu dele, um dia diz que quer descer para a terra. Por quê?, perguntam. Para ver o mar onde ele vivera a vida toda de outro ponto de vista.

Aquilo ficou gravado dentro de mim. Porque é preciso sair da ilha para ver a ilha, segundo Saramago, e percebi que confortavelmente inserida no contexto da minha existência no Brasil, eu jamais conseguiria enxergar a ilha, ver minha vida de outro ponto de vista. E eu vinha tentando, havia muito tempo, com todos esses processos de auto-ajuda encaixotados que peguei para mim, da naturebice, no minimalismo, do moda parisiense, dos livros de parenting, sem perceber que usar os óculos dos outros para enxergar pode ajudar mas não é a solução.

Em fevereiro fizeram seis meses que mudamos de país.

Durante esse tempo houve uma dezena, uma centena de desastres miniaturas dentro de mim, quebrando-me inteira por dentro, obrigando-me a reorganizar os pedaços e montá-los de um jeito novo, de novo e de novo. Demorei para me dar conta de que aquele quebra-cabeça emocional era tão difícil porque continuava forçando as peças dentro de um molde velho, gasto e torto.

Estava na hora de jogar o molde fora e montar aquelas peças livres no ar. Olhar para cada uma delas e decidir se elas ainda combinavam com as outras, se ainda tinham lugar. Muito como desentulhar uma garagem cheia de tralha, mas ao invés de olhar para os objetos em volta, você olha para aquele imenso espelho de cristal dentro de si. E abdicar de um pedaço do que você achava que queria ser, ou um pedaço da pessoa que você queria que os outros acreditassem que você era, é bem mais difícil do que jogar fora um abajur.

Mas quando você sai da ilha e se encontra à deriva nesse mar sem referências, você se dá conta de que todas aquelas pecinhas que formavam o que você acreditava ser sua identidade não passavam de bagagens externas. Eu sou uma pessoa que faz. Eu sou uma pessoa que tem. Eu sou uma pessoa que usa. Eu sou a pessoa que é filha de... Sou a pessoa que é mãe de... Eu sou uma pessoa que gosta de... coisas, pessoas, ações fora de mim. Todas essas malas pesadas que a gente carrega com a gente para fora da ilha e não nos permitem nadar para longe. E ali você está, na marolinha, achando que é alto-mar.

Fui nadando para longe e largando um baú medieval repleto de tralha emocional a cada braçada, e agora sento aqui nesse meu barquinho simples, olhando a ilha. O balanço do mar me conforta e meus olhos divisam as formas da terra firme claras sob o sol. E o que eu vejo não é bom nem ruim, apenas é.

Tudo mudou em mim.

Dou-me conta de que cada mudança de casa na minha vida foi o passinho que eu aguentava para longe da ilha que eu sabia que teria de deixar definitivamente um dia para me conhecer de verdade. Coisa louca, que muita gente não precisa fazer, mas que para mim era imprescindível. Não é que eu não me sentisse confortável no Brasil. Eu não me sentia confortável em mim mesma.

Agora o barco navega tranquilo. Tempestades ocasionais aqui e ali, mas a diferença crucial entre o antes e o agora é essa recém-descoberta calma frente ao conflito. Isso que tenho tentado ensinar aos meus filhos, isso de aprender a identificar suas emoções, ainda que abruptas e explosivas, e lidar com elas de forma tranquila. Isso de resolver os problemas sem perder a cabeça. Isso que eu não sabia fazer mas vi os professores canadenses ensinando às crianças. Oi, tia. Pode me ensinar isso também? Essa coisa linda de não perder a calma? De ficar zen? De se respeitar e respeitar o outro e exigir respeito? Adorei isso, quero tentar também.

E tudo flui. Essa vida tranquila que eu sempre busquei e que estava dentro de mim, escondida atrás de uma muralha de coisas que não eram eu, uma floresta de vitimismo, um mar inteiro de infantilidade e um deserto de ausência de responsabilidade pela minha própria vida.

E a gente se resolve um pouco e as coisas se resolvem em torno por osmose, porque a natureza assim funciona. E as crianças imitam o adulto, seja ele descompensado ou feliz. Que me imitem feliz então, que aprendam a respirar fundo e enfrentar seus medos, e tentar coisas novas, e resolver pepinos, e amar, e pedir desculpas, e dar a vez ao outro mas também exigir respeito.

As crianças vão aos pouquinhos nadando também para longe da ilha e entendendo que o mundo é grande e que as pessoas são incrivelmente diferentes e interessantes, e que todo mundo pode ser amigo desde que haja conversa. E conversando eles vão, aprendendo inglês em ritmo de trem-bala, contando histórias e aprendendo histórias, e Laura quer viajar para outros países e Thomas diz que vai morar no Japão um dia. E eu vejo esses dois seres imensos, desde quando a mão deles é tão grande?, fazendo lição-de-casa sozinhos e preparando o café de manhã, e recortando papéis coloridos e desenhos em folhas sulfite para criar seus próprios jogos de tabuleiros, e brincando metade em inglês, metade em português, e me dá uma tranquilidade imensa vê-los apanhar os livros da estante para folheá-los no sofá, em silêncio, por muito tempo, enquanto ouço uma música e preparo o jantar.

Passei fevereiro todo refazendo meu portfolio. Entra lá: www.anaelisagranziera.com

A vida anda mais devagar, ainda que bastante ocupada.

Numa quinta-feira corrida, voltamos da escola para a rotina de sempre: banho, lição, brincar, jantar, cama. Está um fim de tarde lindo, no entanto, um céu azul claro brilhante diferente da noite que caía cedo no auge do inverno e a sala inteira se ilumina e refresca como havia meses não acontecia. Acabáramos de assar biscoitos, e enquanto Thomas roubava um ainda quente da última fornada, pergunto se querem ir ao parque estrear os patins de gelo que apanhara usados na escola. Pensei que o jantar sairia atrasado, que era uma "school night", que Thomas não fizera a lição ainda. Mandei as favas as preocupações, o controle da rotina, e fomos. E as crianças patinaram pela primeira vez na vida, e Laura não parava de dizer o quanto AMAVA aquilo, e eu, ainda sem meus patins, sentei e vi o por-do-sol cor-de-laranja deitando sobre o rinque branco, e éramos praticamente só nós ali quando a noite caiu e continuei ouvindo seus risos e o raspar das lâminas no gelo sob a lâmpadas amarelas do parque.

Voltamos para casa no escuro, jantamos pipoca e Thomas disse para que eu não me preocupasse, pois ele faria a lição de manhã antes de ir à escola. Na manhã seguinte, ao invés de mandar consertar meu celular quebrado, comprei-me um par de patins para poder acompanhá-los no rinque. Prioridades.

O celular quebrou enquanto eu tirava essa foto, quando tropecei no cachorro e caí em cima do celular.
Senti-me estúpida e peguei birra do Instagram por alguns dias.

Patinei pela primeira vez na primeira festa de aniversário para a qual Thomas fora convidado. Os pais haviam reservado um espaço para fogueira num parque ali perto, do lado do rinque público de patinação. Havia smores e cachorros-quentes feitos na fogueira, e pipoca. Eram apenas meia-dúzia de crianças e os respectivos pais. Nossos pés chafurdavam na lama criada pela neve que se derretera nos dias anteriores. As crianças ajudavam os adultos a alimentar o fogo e saíam correndo para patinar mais um pouco. Era tudo simples e bom. O som dos pássaros, do fogo, das crianças.

Deslizar no gelo foi aterrorizante e maravilhoso. Fazer algo novo. Vencer meu medo de quebrar um braço ao cair. Eu já escorregara no gelo ao correr com o cão num parque e já sabia quão doloroso isso podia ser. As crianças estavam em êxtase ao me ver fazendo algo pela primeira vez, como eles. Mamãe não sabe tudo. Mamãe também está aprendendo. Se mamãe cair, tudo bem. Então se a gente cair, tudo bem também. Depois é a vez do papai. A gente quer ver o papai tentar também. 

Fevereiro se foi e levou com ele muito de quem eu achava que precisava mostrar para os outros que eu queria ser. E o que sobrou foi apenas eu. Eu que só quero uma vida tranquila.

Já estou com saudades da neve, pode?


.....

Agora vamos às praticidades da vida. Era preciso que entendessem isso aí em cima para entenderem isso aqui embaixo.

Em fevereiro minha cozinha começou a se aventurar de novo. Janeiro foi o mês em que Thomas decidiu que não queria mais levar fruta para a escola. E que tinha vergonha de comer salada na frente dos amigos. Pudera, bastou uma olhadela no almoço dos coleguinhas, num dia em que ajudava a professora, para entender. Era um tal de pão branco sem nada e sucrilhos de almoço que me deixou de cabelo em pé. Além disso, ele veio me explicar que não tinha lá muito tempo para comer, que os amigos engoliam a comida meio de qualquer jeito e saíam correndo para brincar ou jogar Ball Hockey, atividade gratuita que a escola oferece nos intervalos de almoço umas duas vezes por semana durante o inverno - e na qual Thomas se inscreveu assim, sozinho; fui descobrir que ele estava jogando um mês depois.

Janeiro eu passei preocupada tentando convencer a criança a comer fruta e verdura, e fiquei me enfiando em sites natureba-vegan-gluten-free-vida-sem-queijo para tentar inventar novas formas de enfiar coisas verdes na lancheira dele. Fiquei lá passando sabão no coitado, discursando à mesa cada vez que o lanche voltava, e vi logo que um sinal de que eu precisava mudar alguma coisa era o fato do meu filho levar as mãos às orelhas e fazer cara de exausto enquanto a ladainha prosseguia. 

Nisso, caí de gaiata no canal relaxante da Lu Azevedo, coleguinha ilustradora e brasileira que mora em Vancouver. Mais ou menos de gaiata, pois eu já conhecia o canal antigo, o Fala Maluca, cujos videos eu assistia para tentar me situar nesse futuro incerto que seria mudar para o Canadá com filhos. Mas o que eu não sabia era que ela havia partido em "carreira solo" e tinha criado esse canal que para mim é a versão em video da maternidade-sussa da Maria, do Seis Mais Dois. Quando ela fez um video mostrando o que mandava de almoço para os filhos na escola, logo caí em mim que eu andava complicando demais as coisas. (Aliás, sempre me deixa contente assistir a seus videos, pois parece que estamos sempre mais ou menos alinhadas em algumas coisas da vida - andava falando para uma amiga sobre comon mudara meu relacionamento com as crianças nos últimos meses, e vai lá a Lu e faz um video sobre disciplina positiva que é praticamente um resumão do que eu tentava explicar.)

Larguei mão geral e se meu filho diz que não dá pra comer mais que um sanduíche, então sanduíche será. Sanduichinho, macarrão, nori, cenoura, mini-pretzel e passas cobertas de iogurte, os dois últimos comprados a granel na loja de orgânico. E bolo e muffin e cookie feitos pela mamãe, porque a maior graça é poder fazer essas coisas toda semana. E aí que vem o pulo do gato: as frutas que Thomas não come em natura na escola, ele come nos doces que eu faço.


Como esse bolo de banana com chocolate do livro da Magnolia Bakery. Muito bom. Era para ter amendoins, mas como na escola não pode, omiti, e não fez falta.

CHOCOLATE CHIP BANANA LOAF
(do livro The Magnolia Bakery CookBook)

Ingredientes:
  • 1/3xic. manteiga sem sal, amolecida
  • 1/2 xic. açúcar
  • 2 ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 1 1/2 xic. bananas maduras, amassadas
  • 1/3 xic. leite
  • 2 xic. farinha de trigo com fermento (eu usei farinha comum, adicionei 1 colh (chá) de fermento e uma pitada de sal)
  • 3/4xic. chocolate chips
  • (se quiser usar os amendoins, é só acrescentar 1/2 xic. de amendoins sem sal e sem pele, picados

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte e enfarinhe uma forma de bolo inglês de cerca de 21cm.
  2. Na batedeira, bata a manteiga e o açúcar até que fique clara e fofa. 
  3. Junte os ovos, um a um, batendo bem. Junte a banana e o leite e misture.
  4. Adicione a farinha e misture apenas até que esteja tudo incorporado. 
  5. Junte os chips com a ajuda de uma espátula e passe a mistura para a forma.
  6. Asse por 45-55 minutos, até que um palito inserido saia limpo. 
  7. Deixe que esfrie na forma por uns 20 minutos antes de desenformar,.


PORÉM... é claro que a nutricionista esquizofrênica dentro da gente começa a achar que a criança está comendo muito açúcar, muita farinha branca e aquela coisa toda. (Se for comparar com criança-padrão canadenses e brasileiras, meus filhos não comem quase nada de aç[ucar, mas a nossa cabeça adora achar problema com o qual se preocupar e fica tentando resolver o que já está resolvido, simplesmente pelo prazer de resolver alguma coisa. - Tivesse resolvido os problemas de verdade dentro de mim, não ficaria enchendo tanto o saco dos meus filhos.)

E daí que eu catei todas as receitas da Kim Boyce (do livro Whole to the Grain) que eu tinha anotado e saí tentando encontrar um denominador comum entre elas, um template para criar outros muffins com outras farinhas integrais e outras frutas, pois sempre gostei dos muffins altos, massudinhos e pouco doces dela. E assim fiz. E nasceu o Muffin de Salada de Frutas. Com todas as frutas que Thomas se recusou a levar para a escola naquela semana. E ficou ótimo, principalmente quentinho com manteiga. E Thomas amou. E eu achei que meus problemas estavam resolvidos.



MUFFIN DE SALADA DE FRUTAS
(Rendimento: 12 muffins)

Ingredientes:
  • 1 1/2 xic. de farinha de trigo
  • 1 xic. farinha de trigo integral 
  • 1/2 xic açúcar mascavo (eu tentaria 3/4 xic também, para algo mais doce)
  • 1 colh (chá) fermento
  • 1 colh. (chá) bicarbonato de sódio
  • 1/2 colh. (chá) canela
  • 3/4 xic. manteiga derretida (150g, aproximadamente)
  • 2 ovos grandes
  • 1 (colh) chá extrato de baunilha
  • 1 xic. iogurte natural
  • 1/2 xic. leite
  • 2 xic. de frutas picadas grosseiramente, como maçãs, peras, bananas, caquis, abacaxi.

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Forre a forma de muffins com forminhas de papel.
  2. Misture com um fouet todos os ingredientes secos numa tigela. Em outra, misture a manteiga derretida, os ovos, a baunilha e o iogurte e o leite, até que fique homogêneo. A massa não pode ficar líquida. Ela precisa fazer um montinho e ficar ali quietinha, sem espalhar. Isso garante aqueles muffins altos com domos grandes.
  3. Junte os líquidos aos secos e misture com uma espátula apenas até que a farinha suma. Junte as frutas.
  4. Divida a massa entre as formas. A massa VAI FICAR PARA FORA, mais alta que as formas. Desde que esteja firme, está tudo bem, ela não vai vazar. Vai inflar e firmar bonitinho sem virar aquela gororoba de quando tudo espalha, achata e afunda. Asse por cerca de 25 minutos, ou até que um palito inserido no meio de um deles saia limpo. 
  5. Retire do forno e deixe esfriar cinco minutos antes de comer. 

Mas Laura não comeu.

Porque aqui a grande diversão dos dois parece ser me deixar culinariamente louca.

Thomas ama nozes e castanhas e sementes e qualquer coisa crocante. Laura detesta. DETESTA.
Laura pede e devora qualquer fruta. Thomas diz que só gosta de melancia.
Thomas me pede para fazer mingau pelo menos uma vez por semana. Laura reclama sempre que eu faço mingau.
Ela adora tomate cereja. Ele nem encosta.
Ele adora edamame. Ela faz cara de nojo.
Ele adora sanduíche de almoço. Ela só quer prato quente.

Não tem saída.

Parece que eles só têm pontos em comum no que se refere às porcarias. Eu queria dizer que eles concordam na pizza, mas Thomas gosta de massa fina e Laura gosta de massa grossa.

Em fevereiro eu larguei mão de me preocupar demais com isso, virei para os dois, e disse: vocês vão levar o que tiver em casa e o que eu tiver tempo de preparar. Comeu, comeu, não comeu, traz de volta. E é isso aí.

E é isso aí.

E uma coisa puxa a outra. Se eu não fico aflita com o almoço deles, posso relaxar e me divertir mais nas outras refeições. E me deu vontade de fazer pão de novo, para variar um pouco o pão do sanduíche, e porque o pão integral das padarias daqui meio que não têm gosto de coisa nenhuma.

Catei um livro na biblioteca e achei essa receita aqui. Fiquei meio ressabiada com a quantidade absurda de fermento e cortei pela metade. Mas deixo aqui a quantidade original e, você conhecendo o fermento que usa, pensa bem o que fazer a respeito. O pão ficou fofo e delicioso, e eu faria de novo várias e várias vezes.

Thomas amou as sementes no pão.
Laura destestou e comeu só o queijo. >_<



BIRDSEED BREAD
(receita de um livro de baking de uma autora canadense. Preciso pegar o nome. Não curti muito o livro mas esse pão ficou muito bom. Fotografei a receita mas esqueci de anotar o nome do livro.) 
Rendimento: 2 pães

Ingredientes:
  •  2 xic. água morna
  • 5 colh (chá) fermento ativo seco (usei metade)
  • 3 colh (sopa) óleo vegetal (usei azeite)
  • 1 colh (sopa) suco de limão
  • 2 colh (sopa) mel
  • 2 colh (sopa) açúcar mascavo
  • 1 colh (sopa) melado ou extrato de malte
  • 1 colh (sopa) sal
  • 1/4 xic farinha de centeio
  • 1 xic. farinha de trigo integral
  • 1/2 xic. sementes de girassol
  • 2 colh. (sopa) de farelo de trigo (omiti pois não tinha)
  • 2 colh (sopa) de linhaça (depois vi que era moída, mas usei inteiras)
  • 2 colh (sopa) de sementes de gergelim
  • 3 a 4 xic. farinha de trigo branca 
  • mais sementes para polvilhar

Preparo:
  1. Unte duas formas de pão e posicione sobre uma assadeira.
  2. Na tigela da batedeira planetária, misture a água morna, o fermento, o óleo, mel, açúcar e melado, até que tudo esteja dissolvido. Se o fermento não for do tipo instantâneo, deixe uns cinco minutos ativando antes de prosseguir. (Fermento instantâneo dissolve rápido na água - o meu aqui não é, e se eu não der uns minutos, as bolinhas de fermento continuam inteiras na massa do pão.)
  3. Junte todos os ingredientes menos a farinha branca e misture. 
  4. JUnte 2 xicaras da farinha branca e misture por alguns minutos. 
  5. Vá misturando na batedeira com o gancho aos poucos o restante da farinha branca, até obter uma massa grudenta mas que pareça razoavelmente manipulável. Talvez você não precise de toda a farinha.
  6. Cubra a tigela com filme plástico e deixe fermentando por 1 hora ou até dobrar de tamanho.
  7. Divida a massa em duas partes, e deixe descansar por 15 minutos. Molde como dois cilindros do comprimento da forma. Espalhe as sementes pela bancada e role os pães sobre elas para que grudem na superfície. Coloque-os dentro da forma, cubra e deixe que fermentem novamente até que estejam ultrapassando a borda da forma. Enquanto isso, aqueça o forno a 190oC.
  8. Coloque os pães no forno e imediatamente abaixe o forno para 180oC. Asse até que estejam com a crosta dura e dourada, cerca de 35-40 minutos. Esfrie nas formas sobre grades.




Pode ter sido minha maratona de The Great British Bake Off  seguido do The Great Canadian Baking Show que me transformou na louca da padaria novamente. Pode ter sido o fato de eu ter encontrado um lugar para comprar farinha de trigo orgânica em sacos imensos e mais baratos - pensa a pessoa que usa um saco de 11kg de farinha em um mês. Sei que devo a isso o fato de ter encontrado ESSA RECEITA PERFEITA DE CINNAMON BUNS, sucesso absoluto com 100% da família. Catei a receita do Smitten Kitchen mas omiti tudo o que não pertencia a um Cinnamon Bun, e é isso aí. Pense macio. Úmido. Doce. Delicioso. E PRÀTICO. Você faz ele todo num fim de tarde, começo de noite e deixa fermentando durante a noite na geladeira para ir direto para o forno. Vinte minutos depois, eis o melhor café-da-manhã de sábado do mundo. :D A massa é feita na batedeira, e é uma delicinha de abrir e enrolar e cortar.

 
Daí que as crianças pediram bolo de chocolate e eu, que andava feliz e tranquila, catei o tal livro do Birdseed Bread e resolvi fazer um bolo dele com sour cream que parecia muito bom e muito simples. Havia um mês eu encontrara cacau Valhrona numa loja de importados e andava enrolando para abrir, usando o baratinho da Hersheys até então. Lá fui eu. Três quartos de xícara de cacau Valhrona. TRÊS QUARTOS DE XÍCARA.
E o bolo ficou assim:


Falei que foram 3/4 de xícara de cacau Valhrona? Pois é. No mesmo dia, a máquina de lavar e secar roupa quebrara, com todas as toalhas de casa, sujas e molhadas, dentro. E eu tinha queimado consideravelmente meu braço na tampa de uma das panelas ao preparar o jantar (a bolha se foi, a cicatriz ficou.) Laura resolveu virar no Jiraia e fazer as birras mais escalafobéticas do mundo. Daquelas que você se surpreende pelos vizinhos não terem chamado a polícia. Daquelas que te dão vontade de levantar, ir embora e não voltar mais. Daquelas que fazem você pensar por que diabos resolveu ter filhos mesmo. E quando meu marido me mandou um recado perguntando como estavam as coisas e eu expliquei, ele perguntou se eu queria que ele voltasse mais cedo, pois eu deveria estar um caco.

Foi aí que me dei conta de que não, eu não estava um caco. Eu estava tranquila. Já ligara para a administradora do condomínio requisitando o reparo da máquina (que, diga-se de passagem, ainda não foi consertada até o momento em que eu escrevo - toda uma epopéia). Lidara com a queimadura feia no braço com a mesma calma com que lidara com a vez em que chanfrei a ponta do dedo cortando salsinha, ou quando rasguei o outro dedo na lâmina serrilhada do processador: cuidei e segui a vida. Mantive-me zen-budista frente à reencarnação de Cthulhu que era minha filha e resolvi sem castigo nem escândalos adicionais, e terminamos o dia tranquilos ouvindo música. E quando o Gólgota emergiu da minha forma de bolo, eu soltei um palavrão cabeludo, tirei a porcaria do forno, suspirei e disse a mim mesma: Meh. É só um bolo. o_O Isso foi inédito. As crianças roubaram uns pedaços cozidos de bolo da beirada da forma, eu deixei tudo esfriar para jogar fora e limpar o piso do forno, catei um livro mais confiável e... fiz outro bolo.


 CHOCOLATE SOUR CREAM CAKE WITH CHOCOLATE CHIPS
(Do livro The Magnolia Bakery Cookbook)

Ingredientes:
  • 3 xic. + 2 colh (sopa) farinha de trigo
  • 1 1/2colh (chá) bicarbonato
  • 1/4 colh (chá) sal
  •  85g chocolate 100% cacau (unsweetened chocolate, difícil de achar no Brasil, mas que eu substituía com sucesso por chocolate 85% ou 90% cacau)
  • 1 1/2 xic. café forte ainda fervendo
  • 3/4 xic (150g) manteiga sem sal, amolecida
  • 2 2/3 xic açúcar mascavo
  • 2 ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 1 1/2 colh (chá) extrato de baunilha
  • 3/4 xic. sour cream (se não tiver, deixe o creme de leite fresco com uma colher de vinagre fora da geladeira por algumas horas e use)
  • 2/3 xic. chocolate chips

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 160oC. Unte e enfarinhe uma forma bundt ou de tubo com capacidade para 12 xícaras.
  2. Numa tigela, peneire a farinha, bicarbonato e sal.
  3. Em outra, coloque o chocolate 100%. Adicione o café fervendoe misture até derreter o chocolate. Deixe esfriar por uns 10 minutos.
  4. Na batedeira, bata a manteiga e o açúcar até que fique fofo. Junte os ovos, um a um, batendo bem. Junte a baunilha. 
  5. Adicione os ingredientes secos aos poucos, batendo apenas até incorporar, em velocidade baixa. Junte o sour cream. Junte o chocolate derretido em três partes.Incorpore os chips. 
  6. Passe a mistura para a forma e asse por 70-80 minutos, até que um palito inserido no meio saia limpo. DEixe esfriar por 20 minutos pelo menos na forma antes de desenformar.

A vida não é horrível. O universo não está te perseguindo. O mundo não está contra você. É só um bolo de 14 xicaras que você meteu numa forma onde só cabiam 12. É só uma birra de criança porque a criança tem f*cking 5 anos e está aprendendo a controlar as emoções. É só uma máquina de lavar que tem conserto e o prédio tem lavanderia. E é só uma bolha no braço para acompanhar as dúzias de marcas de guerra que você adquiriu na cozinha durante sua vida.

Finito. Caput. No more drama. Porque a vida no fim é isso: tem muito mais birra de criança, machucado e máquina quebrada do que dia de piquenique, todo mundo fofo e céu azul com borboletas. E se você for deixar um bolo afundado estragar seu dia... bom... você está lascado, pois está destinado a uma vida de miséria e frustração. Vida tranquila não é vida de comercial de margarina. É aceitar que a vida tem uns momentinhos mequetrefes e desastres estrambólicos mas não deixar isso te destruir. A gente é melhor que isso. A vida é muito curta pra chorar por bolo explodido no forno. Limpa tudo e segue a vida. É só um bolo.

Quando estou alegre, quero que a cozinha reflita isso. Saio buscando muito mais cores e mais vida para a mesa combinar com meu humor. Daí que catei o livro Plenty More na biblioteca, que me trouxe belíssimas surpresas, como um COZIDO DE ERVILHAS E ALFACE ROMANA maravilhoso (no qual usei edamames ao invés de favas, pois era o que tinha e Laura comeu sem saber o que eram) e esse BOLO DE COUVE-FLOR sensacional, que preparei acompanhado de uma salada de alface romana, abacates e watermelon-radish, esse rabanete grandalhão que quando cortado parece uma melancia, lindo e delicioso. Esse foi um jantar tão bom que as crianças pediram repeteco para a escola, até com o tal rabanete e alface acompanhando, e a lancheira voltou vazia, vazia.



Acabei estendendo meu empréstimo do livro por mais 20 dias para poder fazer outras receitas.
E outra coisa que valeu muito a pena fazer e que rendeu igualmente almoços escolares bem sucedidos foi essa TORTA SALGADA do blog Smitten Kitchen. Aliás, tenho cozinhado tanto dessa fonte que sinto que preciso ir até Nova York e dar um abraço na Deb por isso, mas acho que ela acharia esquisito esse abraço de uma completa desconhecida. ;)

A receita original era com batatas e espinafre, mas substituí por brocolis branqueado e puxado no alho, e algumas fatias de bacon douradas e picadas. O restante do recheio de ovos e queijo, mantive igual. Também arrisquei estender a massa mais fina para conbrir minha assadeira, um pouco maior que a dela, e o risco compensou, pois a torta ficou um desbunde de boa. Fria, dava para comer os quadrados com a mão, o que facilitou no almoço da escola. De novo, torta acompanhada de salada de alface, watermelon radish, cenouras e sementes de abóbora.



 E é isso aí. Vida tranquila.


quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Frio, mexilhões, minhas tralhas, minha cozinha

Mexilhões com tomate. Simples, bom e barato. Morri de orgulho da criançada pedindo mais e mais.
Numa manhã, tomávamos café à mesa sob a janela, e fomos surpreendidos por uma mancha escura no céu, sobrevoando o prédio e se afastando em direção ao sul. De todos os lados, vimos pontos negros surgindo de trás das árvores, dos prédios, das casas, e se unindo àquela massa de pássaros.

"Os gansos foram embora", eu disse, em mono tom, anestesiada por aquela visão.

Houve um momento de empolgação por aquela demonstração da natureza. Mas o que restou, conforme terminávamos nossas panquecas e sentíamos o café esfriando no fundo da xícara, foi uma estranha sensação de abandono. Como o silêncio antes da tempestade.

Alguns dias depois, os corvos chegaram.

Dois anos antes, em nossa visita a Vancouver, eu havia ficado impressionada pela quantidade de corvos na cidade, na mesma proporção de pombas em São Paulo, e surpreendi-me ao chegar a Toronto durante o fim do verão e não encontrar nenhum deles.

E ei-los aqui agora. Pretos, imensos, empoleirados sobre os semáforos, sobrevoando os parques de árvores desfolhadas, grasnando alto seu chamado metálico como o cinza das nuvens que acobertam o céu, buscando naqueles que não fugiram do inverno seu alimento.

Veio a primeira neve e um frio inesperadamente intenso, recorde de temperaturas baixas para esta época do ano, e lá fomos nós para a rua, empacotados como presentes, sentindo o vento cortante no rosto, em direção à escola.

-17oC.

Frio.


O vento. Havia ouvido falar do vento, mas você só entende quando o sente, como uma parede gelada a ser transposta. Ou, como brinquei com amigos, como se alguém espancasse você constantemente com um bacalhau da noruega congelado.

Thomas escorrega no chão gelado e aterrissa em cheio sobre o bumbum. Ainda bem, a calça de neve é fofinha e ninguém se machuca. Eu patino um pouco sobre a mistura de folhas e gelo na calçada perto da escola. Gnocchi tenta me puxar para o lado, derrapa e espatifa o focinho na neve.

Quando chegamos à escola, sou surpreendida pelo clima alegre. Não se vê ninguém amuado nos cantos, encolhido, tremelicando. Todas as crianças correm pelo pátio, fazem bolas de neve, divertem-se com a fina cobertura branca no playground. Olho para o lado, e Laura está deitada, rindo, agitando braços e pernas, fazendo um anjinho naquele um centímetro de neve que jaz sobre o chão de cimento.

Quando as crianças entram na escola quentinha, Gnocchi me puxa para o parque em frente, alucinado. Solto sua guia e ele corre feliz sobre a neve, calda em riste de alegria, latindo e me chamando para correr atrás dele; e ao fazer isso, aqueço um pouco mais meu corpo e me dou conta de que aquele cão, descalço e desagasalhado, está sequer tremendo sob a sensação térmica de -17oC. Evoluída sou eu, certo? que tenho de gastar os tubos em casacos e botas e luvas e camadas de blusas e calças térmicas para não congelar, e lá vai o Gnocchi, rolando no gelo contente. Ok, então.

Volto para casa e preparo um Chai bem quente, aquele chá preto com especiarias, leite e açúcar mascavo. Uma xícara imensa, que ganhei de presente de aniversário do marido junto de chás especiais, um kettle e o livro novo do Neil Gaiman.

O kettle é um apetrecho muito útil por aqui. É vantajoso ter algo que esquente água mais rápido e usando menos energia, uma vez que o fogão é elétrico. Além do kettle, repus também rapidamente meu processador de alimentos e minha batedeira. Como disse no post anterior, foi muito bonito isso de tentar viver uma vida simples com uma tigela e uma colher de pau, mas quando o assunto é facilitar minha vida para prover as refeições da família em casa, na escola e no trabalho, não tive dúvidas e corri atrás dos meus queridos eletrodomésticos.

No restante da cozinha entretanto, as coisas de mantiveram mais acomodadas no reino da simplicidade. Como agora tenho poucos livros de cozinha, foi possível sentar e folheá-los e ter uma noção mais exata do que eu de fato precisava. Basta de ter uma forma especial para uma receita só.

Compramos louça na Ikea apenas para o realmente necessário.

E para o baking em geral, apanhei numa loja:

  • UMA assadeira bem grande de bordas baixas, onde asso legumes e faço minha pizza retangular toda sexta-feira.
  • UMA forma retangular de 23x33x5cm, onde faço bolo, lasanha, barrinhas, o que for; ou seja, faz as vezes de travessa também.
  • DUAS formas de pão de 23x13x8cm, que fazem pão de forma grande o bastante para bons sanduíches.
  • DUAS formas de bolo inglês de 22x10x8cm, porque quase todas as receitas de bolo inglês que tenho fazem dois bolos, e congelar um para outro dia é sempre esperto.
  • UMA forma redonda de aro com mola de 23cm, para bolos e cheesecakes.
  • UMA forma de 22x5cm para bolos em geral (dava para usar a de mola para tudo, mas bolos de massas muito líquidas correm o risco de vazarem).
  • UMA forma de muffins com 12 cavidades.
  • UM refratário de vidro quadrado de 20cm, para brownies e qualquer outra coisa, na verdade.
  • UM prato refratário de vidro para tortas de 23cm, que pretendo usar para quiches também.
  • E a forma de furo no meio, com capacidade para 12 xícaras, velha, riscada e amassada, roubada da minha mãe; essa forma que fez todos os bolos de cenoura da minha infância.


Também me arranjei um jogo de 8 tigelas de vidro refratário que se encaixam uma na outra, economizando espaço no armário: a maior sendo perfeita para fermentar receita dupla de pão, e a menorzinha, sinceramente... não imagino ela servindo para nada além de separar algum ingrediente delicado em pequena quantidade - é tão pequena, na verdade, que virou piada aqui em casa, a mini-mini-mini-mini-mini-tigelinha. Mas todas as outras entre esses extremos têm sido diariamente usadas para misturar ingredientes, separar ovos, derreter manteiga, ou simplesmente guardar restos na geladeira.

Comprei-me aqui um raspador de massa, colheres e xícaras medidoras, uma jarra de vidro medidora, duas espátulas de silicone, um descascador de legumes, e um único fouet, pois meu antigo ficou com minha mãe. Mas trouxe duas colheres de pau, as únicas que sobraram da minha coleção: uma pequena, presente de minha cunhada, e uma grande, boa para mexer polenta e panelões cheios. Fora isso, na viagem para apanhar o Gnocchi, trouxe na mala minha máquina de macarrão, presente de minha mãe quando casei, a máquina alemã de Spaetzle, presente da minha sogra, e meu passa-verdura, que uso para fazer desde geleia de maçã até purê de batatas.

Só que de todos os utensílios de cozinha comprados aqui, o que mais gostei foi meu rolo de massa: inteiriço, bem comprido, com extremidades que afunilam. É o melhor rolo que já tive, infinitamente mais fácil de usar do que aqueles que giram sobre um eixo.

É lógico que estar num ambiente novo, numa cidade nova, num país novo, deixa você desnorteado. E minha cozinha com certeza passou por esse processo. Primeiro, encantada com os ingredientes à disposição que eu sempre cobiçara lá no Brasil, saí metendo os pés pelas mãos e comprando mais do que o necessário, tentando fazer todas as receitas de uma só vez. Animei-me com a biblioteca do bairro e saí retirando livro de cozinha atrás de livro de cozinha, acreditando que prepararia mil pratos de cada um. Sem saber o que era mais barato e onde, perdi dias incontáveis indo a todos os mercados do bairro, várias vezes por semana e saindo de cada um deles mais perdida.

O que aconteceu, no entanto, quando voltei da viagem do Gnocchi, foi que fiquei doente. Um bocado doente. Todo o stress dos meses anteriores parecia ter finalmente atingido seu ápice naquelas duas viagens internacionais em menos de cinco dias, e na tensão de embarcar meu melhor amigo numa gaiola. Meu sistema imunológico explodiu enfim, quando pus os pés em casa, e passei quase vinte dias me sentindo um lixo.

E esses vinte dias me fizeram pensar mais um bocado.

E eu olhei para aqueles livros emprestados da biblioteca e concluí que essa fase havia passado. Que eu não queria fazer nada complicado, que eu não queria correr até o outro lado da cidade para um ingrediente especial, e que eu não tinha mais paciência para comida que não tivesse gosto de comida de pai e mãe. Devolvi todos os livros.

E cansei dessa correria por preço baixo em supermercado longe. Noutro dia, encontrei um casal conhecido no metrô. Eles estavam indo até um mercado umas duas estações para leste, pois o frango lá era muito mais barato. Fiquei pensando que eles estavam gastando pelo menos 12 dólares indo e voltando de metrô os dois juntos, e que provavelmente isso cobriria a diferença de preço entre o frango do mercado lá longe e o daqui da vizinhança. Fora o tempo. Tempo é precioso.

Resolvi que iria apenas uma vez por semana ao mercado. Porque qualquer mercado aqui é a quinze minutos à pé de casa. Levo o cão comigo, passeamos juntos, e resolvo a compra da semana no mercado orgânico, comprando apenas o que está em promoção, e o que falta, no mercado barato, vinte minutos na outra direção, onde também tem a padaria de que gosto, a biblioteca, a farmácia, a loja a granel e a loja de bebidas.

Tudo resolvido num dia só. A gente cozinha com o que tem. Se os ingredientes não se encaixam em nenhuma receita, a gente inventa. E se faltar alguma coisa, ok, eu pego na semana que vem. Basta de pulinhos no mercado, que eu perco tempo e gasto dinheiro.

A gente se vira com o que tem: conchiglie com broccoli salteado no alho, azeite e pimenta calabresa. O parmesão tinha acabado, então fiz o que os italianos pobres do sul faziam: dourei farinha de rosca caseira em azeite, alho e salsinha (usei um filé de anchova amassadinho junto para trazer o umami do queijo), e polvilhei por cima no lugar do parmesão. 

Isso começou a me dar mais tempo para respirar, e um norte na cozinha. E percebi que fico empolgada com coisas bestas como receber por email o flyer com as promoções do mercado orgânico  para a semana. Sento no domingo, analiso o flyer, e escolho umas duas ou três receitas-chave para preparar na semana seguinte. Há sempre uma carne e um peixe interessante em promoção. E tenho me aproveitado disso, pois como aconteceu nos últimos anos, meu vegetarianismo parece hibernar durante o tempo frio, e meu lado carnívoro aflora.

Quem quer comer salada enquanto faz -5oC lá fora? Eu não.

Pense num almoço bom. :)
Comecei a trocar as saladas dos meus almoços solitários por torradas com verduras refogadas ou variações sobre o tema. Num dia em que achei inhame no mercado, descasquei-os, ralei-os na parte grossa do ralador, e apertei-os em forma de panquequinhas na frigideira bem quente com manteiga, até que as panquequinhas dourassem. Assim, um inhame virou uma panqueca. Num dia, cobri com folhas de beterraba refogadas em alho, azeite, uma folha de louro e uvas passas. Polvilhei com salsinha e hortelã, nozes e queijo feta esmigalhado. Sensacional, e durante a semana toda repeti a receita apenas para mim, até que os ingredientes acabassem.

Numa semana, fiz o dobro da receita de cozido de carne com cenoura da Tessa Kiros, cuja metade congelei. E comprei Vermelho para preparar no forno com tomates e servir com arroz, e seis filés renderam bastante para o jantar e para levar de almoço no dia seguinte. Faço o dobro de molho de tomate para a pizza de sexta, pois o o molho que resta cobre macarrão cozido de manhã para o almoço da segunda.

Já tinha preparado isso antes no Brasil, mas a carne aqui me pareceu mais marmorizada e mais maturada, então ela dourou mais fácil e ficou extremamente macia. Melhor picadinho que já fiz. As batatas, bem cerosas e de polpa clarinha, produziram um purê branquinho e delicioso.
Há sempre um saco de 3 libras de maçãs diferentes em promoção no mercado, e levo quase que um por semana para casa. As abóboras do Halloween renderam não só decoração, mas uma Pumpkin Pie devorada em dois dias, e meia receita extra de massa de torta no meu freezer. No mesmo dia do cozido de carne, descongelei a massa, abri, e recheei com as maçãs, poquíssimo açúcar (as maçãs Gala estavam bem doces), canela, noz moscada e manteiga, e fiz uma galette para a sobremesa, bem rústica e de improviso.

O novo saco de maçãs, Golden Delicious, está virando barrinhas de maçã e aveia, receita de um dos livros do Magnolia Bakery. Claro que a receita pedia uma lata de apple pie filling, e claro que eu fiz meu próprio recheio (4 xícaras cheias de maçãs descascadas e fatiadas + 1 colh (chá) canela + 1/3 açúcar + 3 colh (sopa) amido de milho cozinhando na panela em fogo baixo apenas até a maçã soltar um pouco de líquido, a maçã amaciar e o amido engrossar - deixe esfriar completamente antes de usar). Thomas anda numa fase em que se recusa a comer frutas no lanche da escola, então saio metendo frutas nos snacks que posso produzir em casa.

O que sobrou de purê de abóbora virou Pumpkin Spice Muffins para levar para a escola, que Thomas me ajudou a fazer, empoleirado no banquinho da cozinha. Nenhuma receita que achei na internet me agradou, e acabei inventando em cima daquela mesma receita básica de muffin da Martha Stewart do post anterior.

Cavoquei a abóbora, as crianças desenharam as caretas com canetinhas, e eu cortei com uma faquinha.

Depois de cavocar com uma colher e separar as sementes, cozinhei a polpa no vapor até conseguir transformá-la num purê com o passa verdura. Depois coloquei sobre uma peneira grande e fininha, sem apertar, e deixei pingando o excesso de água durante a noite na geladeira. No dia seguinte o purê estava bem sequinho, pronto para usar na torta.

Esta semana, os mexilhões estavam em promoção. Mexilhões lindos assim, em suas conchas negras como os bicos dos corvos, como eu nunca encontrava em São Paulo. Não sei porque, eles vinham sempre fora de suas conchas, sufocados em sacos plásticos. E eu perguntava aos peixeiros como diabos saberia se estavam bons, se estavam fora de suas conchas. E eles nunca sabiam me responder. Esses vieram fresquíssimos. De 4kg, acho que 4 conchinhas foram para o lixo, quebradas. Os outros moluscos espiavam por dentro das conchas abertas, e quando lhes tamborilava os dedos, toc-toc-toc, eles se fechavam rapidamente. Um truque que fez sucesso com a pimpolhada.

Da próxima vez vou fazer assim para as crianças. :)

O jantar foi um panelão de mexilhões com tomate e fatias de pão. Thomas passou o alho sobre as fatias e as colocou sobre a grelha, e depois me ajudou a colocar os mexilhões cuidadosamente na panela. As crianças se refestelaram. Tanto, que tive medo de que tivessem dor de barriga. Afinal, comemos em três uma porção para seis pessoas. Allex preparou um miojo, pois durante quinze anos juntos, eu não sabia que ele não podia nem com o cheiro dos mexilhões. Uma pena, pois estava delicioso. Guardei uma porção extra de mexilhões ainda vivos para meu almoço no dia seguinte, e os preparei gratinados, e ficaram ainda melhores.

E assim as coisas vão caminhando e se encaixando, e eu vou reencontrando o simples na minha cozinha, e o conforto, e a rotina, lembrando de não estressar demais com nutricionismos, e simplesmente relaxar e preparar comida gostosa de comer. Agora que toda a burocracia da mudança está resolvida, basta deixar a vida terminar de se assentar em seu novo local.

Depois daquele dia gelado, as temperaturas subiram de novo. Peguei-me passeando o cão à noite na chuva fininha, a 8oC, e falando para o marido que "estava uma noite gostosa para passear". Ou comentando de manhã com as crianças, ao ver os 3oC marcados no aplicativo do celular, que "não precisa botar muito agasalho porque o dia está mais quente". Referência é tudo na vida.

Que venha o inverno gelado. Que eu sei que assim que estivermos confortáveis, vem toda uma nova adaptação ao frio mais intenso, à neve que não derrete nunca, ao vento absurdo. Mas tudo bem. Respira fundo e encara a bucha. Vou continuar caminhando até o mercado, Gnocchi ao meu lado, contente em apanhar meu cream cheese sem gomas, as maçãs de um tipo que nunca provei, a carne de boizinho sem antibiótico em promoção. O bom do frio é que o sorvete não derrete no caminho. Só fico com um olho no céu para os corvos à espreita. Esse bife é meu, sai prá lá. Opa, um olho no chão também para não escorregar no gelo de bunda no chão. 

ZUPPA DI COZZE (Mexilhões em caldo de tomate)
Do livro Twelve - A Tuscan Cook Book, de Tessa Kiros).
Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 1,5kg mexilhões em suas conchas
  • 3 colh. (sopa) azeite de oliva
  • 3 dentes de alho, descascados e picados, + 1 dente extra para esfregar no pão
  • pimenta calabresa à gosto
  • 1 maço pequeno de salsinha, picado
  • 1 lata de 200g de tomate pelado, com seu suco, transformado em purê
  • pelo menos 6 fatias grossas de pão italiano ou de casca grossa e crocante


Preparo:

  1. Lave cuidadosamente em água fria corrente os mexilhões, tirando qualquer sujeira grudada nas conchas. Se houver barba, segure, e com movimentos para cima e para baixo, arranque-as. Jogue fora qualquer mexilhão que esteja aberto e não feche sua concha ao ser cutucado. Os outros, coloque numa tigela, cubra com um pano úmido e deixe na geladeira até a hora de usar. 
  2. Aqueça o azeite numa panela grande. Junte o alho, a pimenta e metade da salsinha.
  3. Quando o alho perfumar, junte os tomates e cozinhe por 5-10 minutos, até apurar um pouco. Tempere com sal e pimenta do reino
  4. Junte os mexilhões, misture bem, aumente o fogo e tampe. Cozinhe por cerca de 6 minutos, ou até que os mexilhões tenham aberto suas conchas. Descarte qualquer um que tenha permanecido completamente fechado. 
  5. Polvilhe o resto da salsinha. 
  6. Grelhe o pão e esfregue o alho em sua superfície quente e dourada. Sirva o pão acompanhando os mexilhões e seu caldo, imediatamente.   


COZZE GRATINATE (mexilhões gratinados - lembrando que gratinar não quer dizer derreter queijo por cima, ao contrário do que o povo acha)
Do livro Twelve - A Tuscan Cook Book, de Tessa Kiros.
Rendimento: 6 porções - fiz uma porção só para meu almoço, mas vale a pena ter a receita inteira para fazer

Ingredientes:

  • 1kg mexilhões em suas conchas
  • 1 maço médio de salsinha, picado
  • 4 dentes de alho, descascados e picados
  • 100g (1xic) farinha de rosca caseira
  • 4 colh (sopa) de azeite + extra para regar
  • Fatias de limão


  1. Preparo:
  2. Lave cuidadosamente em água fria corrente os mexilhões, tirando qualquer sujeira grudada nas conchas. Se houver barba, segure, e com movimentos para cima e para baixo, arranque-as. Jogue fora qualquer mexilhão que esteja aberto e não feche sua concha ao ser cutucado. Os outros, coloque numa tigela, cubra com um pano úmido e deixe na geladeira até a hora de usar. 
  3. Pré-aqueça o grill do forno ou ligue o forno na temperatura máxima.
  4. Coloque os mexilhões numa panela grande, ligue o fogo alto, tampe e cozinhe por alguns minutinhos apenas até que abram. Remova do fogo. Descarte qualquer um que permaneça completamente fechado.
  5. Abra os mexilhões e descarte a concha vazia, mantendo só as metades com os moluscos. Volte-os para a panela, ou para uma travessa refratária se eles não couberem numa camada só na panela.
  6. Misture bem o alho, salsinha, azeite e farinha de rosca numa tigela. Com uma colherinha, distribua a mistura sobre os mexilhões. Tempere com sal e pimenta-do-reino. Regue com mais um fio de azeite e leve ao forno por 5-10 minutos, até que a mistura de farinha de rosca esteja dourada. 
  7. Sirva imediatamente com as fatias de limão.





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