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quarta-feira, 10 de abril de 2019

Abril, sorvete de Gianduia, Focaccia de morangos, melhores almôndegas, criança na cozinha, saudade de comida de vó

FLORES FINALMENTE!
A Primavera parece ter finalmente chegado. Depois da última nevasca no começo de Abril, que pegou todo mundo de surpresa, finalmente os pássaros voltaram, as formigas ressurgiram e as flores começam a nascer novamente. Só quem passa por um Inverno rigoroso conhece a alegria de ver um tufo de grama verde. Sair finalmente sem gorro, com o vento soprando pelos cabelos no topo da cabeça é um alívio.

O começo de Abril também trouxe o aniversário de oito anos de meu Matador de Dragões. Oito anos. Olho para esse menino comprido do meu lado e me assusto com a velocidade do tempo. É uma delícia acompanhar seu amadurecimento, essa montanha russa comportamental, que o leva da risonha bobeira infantil à opinião forte e respondona mais típica de um adolescente em milissegundos.  

Quase que  não sobra bolo para fotografar. Era o bolo de baunilha de sempre da Alice Medrich, ao qual acrescentei 1/4xic. de coco ralado hidratado em um pouquinho de água quente. Chocolate Fudge frosting da Alice também. A ideia do bolo foi do Thomas: um bolo de coco, com cobertura de chocolate, com coco ralado em cima e morangos.

Numa manhã recente, enquanto eu tomava meu cappuccino, braços cruzados, quadris repousados contra a pia, observei a movimentação silenciosa de meus filhos. Thomas veio até a cozinha a passos certeiros, apanhou a frigideira da gaveta de panelas e deixou-a sobre o fogão. Continuei apenas observando, sem dizer nada. Pegou uma fatia de pão. Não, duas. Tirou o pote de vidro de manteiga da geladeira e, com uma pequena faca afiada, tirou-lhe um naco, cuidadosamente depositado no centro da frigideira. Esticou o braço por cima da frigideira, erguendo seu corpo apenas a alguns centímetros do chão sobre a ponta dos dedos, e ligou a boca sob a panela, após um segundo de pausa, enquanto lembrava para que lado girar o botão. Quando a manteiga começou a derreter, segurou firme o cabo de metal com as duas mãos, fazendo um movimento circular com a frigideira, para que a gordura se espalhasse por sobre todo o fundo. Depositou ali suas duas fatias de pão, pressionando-as com as pontas dos dedos para que absorvessem a manteiga, e então cruzou a minha frente em direção à cafeteira automática, onde posicionou sua caneca favorita, de dinossauros, e se preparou um pouco de leite quente com espuma, que bebericou aos poucos, enquanto esperava suas torradas dourarem. Quando desligou o fogo e colocou seu café da manhã no prato para levar à mesa, voltei meus olhos para Laura, que àquele dia resolvera, não sei por quê, já que nunca peço isso a ela, esvaziar a lava-louças. Foi tirando cuidadosamente todos os pratos, tigelas, copos, talheres e panelas pesadas da máquina, e arrumando cada item em seu lugar no armário lá no alto, empoleirada num banquinho, de forma organizada, deixando sobre a bancada apenas os potes que eu precisaria para seus lanches escolares.  Terminada a tarefa, ela abriu o freezer, apanhou um saco de mirtilos congelados, despejando um punhado deles sobre a peneira que ela tirara da lava-louças, e abrindo a torneira de água quente da pia, finalmente ao seu alcance. Depois de deixar a água quente correr sobre as frutas o bastante para que descongelassem, ela as espalhou sobre colheradas de iogurte natural retiradas do pote tamanho família da geladeira, e seguiu contente e em silêncio para a mesa, onde saboreou seu café da manhã com seu irmão, enquanto conversavam sobre tipos de monstros e demônios que desenhariam em seguida.

Ri por dentro, contentíssima e surpresa. 

Meus filhos cresceram. Com seis e oito anos, não há mais crianças pequenas em casa. 

Sempre estimulei sua independência, por motivos altruístas (quero que desenvolvam diferentes habilidades e autoconfiança) e por motivos completamente egoístas (quanto mais independentes eles são, mais tempo eu tenho para mim). Se eles mostram capacidade física e emocional para uma tarefa, quero mais é que façam sozinhos. Começando com arrumar as próprias camas e se vestirem sozinhos quando eram bem pequenos, comerem sozinhos, usarem louça de adulto sem quebrar (sempre fui contra prato de plástico e copo antirespingo, porque não ensina a ter cuidado com os objetos e com a sujeira - a única pessoa da casa que quebrou prato e copo desde que as crianças nasceram fui eu)... passando por tomarem banho sozinhos e escovarem os dentes (o último precisa de uma avaliação materna e paterna e às vezes mandamos eles refazerem). 

Lembro de uma mãe reclamando que não tinha tempo pra nada. Quando descobri que ela ainda dava banho no filho de nove anos, entendi: se eu tivesse de parar meu dia pra ficar dando banho nos dois, eu também teria pouco tempo. Aqui é justo o contrário: enquanto eles tomam banho, eu tenho sossego. (Escrevo isso enquanto Laura está no chuveiro e Thomas fazendo lição.)

Facas sempre foram motivo de discussão: tinha gente que me xingava porque eu dava faca na mão do meu filho quando ele tinha uns três anos (aquelas facas comuns de jogo de jantar).  Desde pequenos eles tinham as facas comuns para que aprendessem a cortar a própria comida no prato ou ajudar a empurrar a comida para cima do garfo - até hoje eu chamo isso de escavadeira e parede: a escavadeira (garfo) tem que empurrar a comida em direção à parede (faca) - e eles aprenderam a comer feito gente grande super rápido. Tenho um orgulho bem besta dos dois por saberem enrolar spaghetti no garfo sem precisar de outros talheres ou por saberem comer alface dobrando a folha sob o garfo com a ajuda da ponta da faca, sem cortá-la. Besta, besta, mas fico super contente. (No entanto, ainda tenho que pedir pra mastigarem de boca fechada e não falarem de boca cheia, em TODA REFEIÇÃO.)

Faz um tempo, comprei-lhes uma tábua de corte menor e uma faca de frutas bem afiada e bem leve, para que não precisem fazer força para cortar as coisas nem usar as minhas facas de corte, que são muito pesadas. Essa faquinha lá embaixo na foto é a faca das crianças, que Laura usa para picar cebolas para mim (ela corta uma cebola inteira em cubinhos ainda devagar, mas com muito capricho) e cortar a parte verde dos morangos quando os trago do mercado. A faca é bem afiada, então eles não precisam fazer FORÇA (o que diminui o risco de acidentes). E é do tamanho exato para que, proporcionalmente ao tamanho de suas mãos, eles possam usar como uma faca de Chef.

Todo restaurante japonês por aqui serve fatias de laranja de sobremesa. As laranjas daqui são muito doces e perfumadas, e foi nos restaurantes que aprendi esse corte: Você corta a laranja como se ela fosse uma melancia, e passa a faca da mesma forma para soltar a polpa da casca. O truque é deixar um cantinho ainda preso. Você pode mandar as fatias de laranja de lanche, e a casca ajuda a mantê-las intactas e ainda ajudam na hora de comer: você segura pela casca, entorta ela um pouquinho para a polpa se separar e come o gomo de fruta assim numa bocada só. A pimpolhada adora, inclusive Thomas, que anda resistente à frutas frescas.
Já cortaram os dedos? Claro que sim. E aprenderam a tomar mais cuidado depois disso. No começo eles só faziam comigo do lado. Hoje em dia eles têm autorização para usar a faca para cortar uma fruta se quiserem, sozinhos. As regras são claras: é um de cada vez na tábua de corte, sempre olhe onde estão os dedos, não pode fazer força com a faca, e a faca não sai de cima da tábua nunca. 

Então, um dia, Thomas pediu para fazer as panquecas sozinho. Expliquei a receita e ele mediu os ingredientes, misturou e então cozinhou, virou e serviu todas as panquequinhas sem minha ajuda. E quando vi que ele já alcançava os botões do fogão, que aqui ficam lá atrás das bocas, perto da parede, expliquei que ele só poderia usar o fogão quando eu estivesse do lado, sem exceção. Ele entendeu. Aliás, esse tipo de regra eles sempre entendem e respeitam muito bem, o que faz com que eu confie ainda mais nos dois. Só não achei que ele sairia assim, fazendo seu próprio café com tanta segurança tão rápido. 😜

Enfim. Ele já se queimou? Claro que sim. Laura também. Thomas anda interessadíssimo no processo de auto-cura do corpo humano, observando o progresso de uma bolha em seu dedo mindinho, queimado quando ele encostou sem querer na borda da panela. Eu gosto que eles se machuquem? CLARO QUE NÃO. Fico preocupada? MAS É ÓBVIO QUE SIM. Ao mesmo tempo, eu conheço meus filhos e sei do que eles são capazes. Nunca deixo que façam nada em dias em que estão cansados ou distraídos, por exemplo, e nunca forço ninguém a ajudar na cozinha - faz só quem quiser. Mas sei que se você não deixa a criança correr e cair, ela nunca vai aprender que o chão é duro e precisa ser evitado. A gente aprende errando. E quando você toma a primeira queimada no antebraço, aprende a manter o cotovelo pra cima enquanto mexe a panela com a colher. Eles têm maturidade o bastante (pelo menos nessa área, no resto tá longe ainda) para saber que a gente não brinca com faca e não brinca com fogo. Quando estão na cozinha, eles são sérios e respeitam os perigos. E acho isso lindo. Quando começa a bagunça, eu já berro: na cozinha só tem UM CHEF! Vocês são ajudantes, e ajudante faz o que pedem, não o que quer. E pronto. Tudo volta ao normal. E se não volta, mando todo mundo pra fora da cozinha e acaba a brincadeira.

Talvez vê-los crescendo e se virando assim tão rápido seja o motivo do meu recente saudosismo culinário. Talvez seja um reflexo natural da idade e dessa busca por comida mais simples. 

Começou quando me dei conta de que havia muito tempo não usava castanhas na minha cozinha, por causa de todo o problema de alergias na América do Norte. Meus filhos são proibidos de levar castanhas e amendoins para a escola, e Allex não levava nada do tipo para o trabalho desde o incidente em que eu quase matei uma colega dele por causa de um biscoito de amendoim. 

Eu e Thomas somos apaixonados por castanhas (coisa que aprendi a comer com meu pai), e sempre inclui um bom punhado delas em nossas refeições e lanches. Meus bolos e biscoitos sempre tiveram amêndoas e nozes. Sempre comemos pesto com castanha do Pará (pois pinolis eram muito caros) e as crianças sempre foram as primeiras a devorarem as castanhas de caju trazidas de Fortaleza por meu pai. (Até hoje castanha de caju é a única que Laura come sem reclamar.)

Mas por que, Ana, você não faz o biscoito com castanha e simplesmente não manda pra escola? Porque, caro leitor, as crianças passam o dia todo fora e todos os lanches são feitos fora de casa, e não há um momento no dia, na verdade, que comporte biscoitos que não possam ser levados para a escola. Seu consumo não se encaixa no nosso dia-a-dia e usar meu tempo pra fazer um doce com nuts e um nut-free sempre me pareceu um abuso.

Mas no embalo das sobremesas de fim de semana, me dei conta de que podia reincorporá-las dessa forma sem correr o risco de mandar coisa errada pra escola sem querer. Resolvi fazer aquele sorvete de amêndoas com cerejas em calda do post anterior. Laura tomaria o sorvete sem reclamar da textura crocante das amêndoas. O sorvete gerou conversas interessantes com meus filhos, e foi quando eles disseram não saber o que era Gianduia que dei um basta. Ok. Mamãe vai voltar a cozinhar com nozes e castanhas. Porque terem família italiana e não conhecerem Gianduia é um crime. Castanhas fazem parte de quem somos (tanto brasileiros quanto de ascendência italiana) e eu não vou abdicar disso.
Quando a gente decide comer sorvete à noite, assistindo Masterchef no computador, a foto não fica lá essas coisas.

E como sorvete é mandatório no fim de semana, preparei um de Gianduia para as crianças imediatamente. Adaptei muito a receita de David Lebovitz. Porque depois de muito fazer sorvete, decidi que prefiro texturas mais delicadas. Os sorvetes dele, apesar de deliciosos, costumam levar mais gemas e gordura do que um gelato normal, e mesmo as crianças comentaram que o sorvete de amêndoas ficou um pouco pesado (Laura também achou muito doce). Adapto sem dó, usando sempre a mesma proporção de gemas para leite e creme a partir de agora, que produz um sorvete mais leve e delicado, mais de acordo com o meu paladar e o das crianças. E o resultado ficou excelente.

GELATO DI GANDUIA
Rendimento: cerca de 1 litro

Ingredientes:
  • 2 xícaras de avelãs inteiras, com casca (assadas por 10 minutos a 180oC, esfregadas para liberar as cascas)
  • 115g chocolate ao leite de qualidade (ao menos 40% de cacau), picado
  • 4 gemas
  • 200g açúcar
  • 750ml leite
  • 250ml creme de leite fresco
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 1/4 colh  (chá) extrato de baunilha

Preparo:
  1. Pique muito bem as avelãs e coloque-as numa panela com o açúcar e o leite. Leve à fervura branda, misturando, desligue, tampe e deixe descansar por 1 hora pelo menos.
  2. Passado esse tempo, passe a mistura por uma peneira fina (se alguns pedacinhos de avelã passarem não tem problema). Reserve as avelãs para outro uso (você pode secá-las no forno para que durem mais na despensa, mas eu apenas coloquei-as no freezer como estavam).  
  3. Bata as gemas em uma tigela. 
  4. Em outra tigela maior, coloque o chocolate e reserve. 
  5. Reaqueça o leite de avelã até a fervura branda e desligue o fogo. 
  6. Tempere as gemas, acrescentando uma concha de leite quente por vez, misturando bem com um fouet. Depois de três ou quatro conchas, junte toda a mistura à panela, e ligue o fogo médio-baixo e mexa bem com uma colher de pau ou espátula, riscando um 8 no fundo da panela, por 8-10 minutos, ou até que a mistura engrosse o bastante para recobrir as costas da colher. As avelãs vão apressar esse processo, na verdade. Fique atento para não deixar o creme ferver ou talhar. 
  7. Passe por uma peneira sobre a tigela com o chocolate e misture bem até que o chocolate esteja todo derretido.
  8. Misture à tigela o creme de leite, o sal e a baunilha. Continue misturando até que o vapor pare de sair. Deixe a tigela em temperatura ambiente até que esfrie e então leve à geladeira por pelo menos 4 horas. 
  9. Passado esse tempo, coloque a mistura na sorveteira segundo as instruções do fabricante.

É CLARO que eu não joguei fora as avelãs picadinhas que foram peneiradas. Misturei-as a uma receita simples de granola, para assarem junto com a aveia logo do começo, e o resultado ficou delicioso. Pronto, mais castanhas incorporadas no nosso dia-a-dia.
Granola, banana e iogurte depois da corrida. Nham.
A empolgação com as castanhas me fez buscar novamente as receitas abandonadas de bolos e biscoitos italianos que eu andava ignorando em detrimento das preparações nut-free. Foi aí que voltei a preparar bolos feitos não com o intuito de serem lanche de escola, mas sim café da manhã. Pois assim poderia colocar todas as castanhas que quisesse, sem peso na consciência. Mas acontece que acabei apaixonada pelos bolos italianos, leves, pouco doces, cheios de fruta, que não parecem uma indulgência logo pela manhã, e esqueci-me de que a ideia era ter castanhas ali.

Além disso, bolos italianos costumam ser ridiculamente fáceis de preparar. Os dos livros de Marcella Hazan são praticamente todos feitos com uma tigela e uma colher, e as crianças gostaram de todos até agora.

Outra coisa boa para o café da manhã, que Laura me fizera prometer preparar no dia em que folheou meu livro e viu a foto é essa focaccia rápida de morangos. Rápida porque fermenta apenas uma vez e por apenas 1 hora e meia, indo direto para o forno. Ainda assim ela fica macia por dentro, ligeiramente crocante por fora, e com esses morangos mornos e macios, quase como uma compota. Ótimo para o fim de semana, quando todo mundo acorda meio sem fome e com vontade de ir brincar, e pode esperar duas horinhas para tomar café. (Mamãe não. Mamãe toma cappuccino enquanto prepara a focaccia.)

A focaccia da foto é apenas meia receita, que basta para 4 pessoas. (Eu não tinha fermento para uma receita inteira)
FOCACCIA RÁPIDA DE MORANGOS
Do livro Recipes and Dreams from an Italian Life, de Tessa Kiros)
Rendimento: 8 porções

Ingredientes:
  • 2 colh. (sopa) fermento biológico seco
  • 1 1/4 xic. àgua morna
  • 5 colh. (sopa) cheias de açúcar
  • 2 2/3xic. farinha de trigo
  • 1 pitada de sal
  • 2 1/2 colh. (sopa) azeite
  • 450g morangos maduros
  • açúcar de confeiteiro para polvilhar

Preparo:
  1. Junte o fermento à agua com 1 colh. (sopa) açúcar e deixe uns minutinhos para espumar. 
  2. Junte a farinha e o sal e sove ligeiramente dentro da tigela, obtendo uma massa macia e mais grudenta que o normal.
  3. Espirre um pouco de água numa assadeira e forre-a com papel-manteiga (a água vai ajudar o papel a grudar lisinho no lugar). Unte o papel com o azeite, espalhando com as mãos (o azeite nas mãos ajuda a massa a não grudar depois).
  4. Espalhe a massa sobre o papel, e comece a esticá-la sobre ele usando os dedos, empurrando o centro da massa para fora. Se a massa estiver elástica e voltando para o lugar, deixe descansar por 5 minutos e tente de novo. Espalhe com os dedos e as palmas das mãos até que cubra boa parte da assadeira (uns 33cm de comprimento).
  5. Cubra com um pano apoiado a copos, para que o pano não encoste na massa, e deixe levedar por 1 hora a 1 hora e meia. 
  6. Enquanto isso, corte ao meio os morangos grandes e deixe os menores inteiros. Numa tigela, misture-os a 2 1/2colh. (sopa) açúcar. Deixe macerar.
  7. Pré-aqueça o forno a 205oC. Quando a massa tiver crescido bem, espalhe os morangos com seu suco sobre ela, com cuidado para não desinflá-la. Polvilhe com o restante do açúcar, inclusive as bordas, e leve ao forno por 25 minutos, ou até que a massa esteja dourada e assada. Tenha certeza de que a parte do meio está assada, mas não cozinhe demais, ou os morangos vão virar uma geleia. 
  8. Retire do forno, deixe amornar e polvilhe com o açúcar de confeiteiro antes de servir.


Foi justo num fim de semana cansado, depois de muita correria, em que eu só queria parar e não pensar muito em nada enquanto tomava minha cerveja, que resolvi assistir a um programa do Jamie Oliver em que ele vai (de novo) para a Itália. Jamie já me deu um bode imenso, mas a proposta do programa era fofa: ir atrás das vovós italianas e suas receitas.

Pronto, eu estava apaixonada. Aquelas avós que eram iguais às minhas, cortando cebola na palma da mão com uma faquinha de fruta fizeram minha saudade explodir. Fiquei mais bodeada ainda com Jamie, pois depois de anos e anos enchendo todo mundo pra aprender a picar legume com faca de chef, cheio de técnica, agora ele estava ali, se debulhando em elogios à "técnica fantástica" de cortar batata com faca de bife na palma da mão, e de picar os legumes sem qualquer espécie de padrão de tamanho "porque dá mais textura para o prato".

😒



Sério?

Ok, então.

Eu assisti com deleite às senhorinhas preparando seus pratos regionais com carinho e dei um fast-foward nas adaptações escalafobéticas do Jamie Oliver. E quando terminei de ver todos os episódios, cheia de lembranças carinhosas de minhas avós e de minhas viagens à Itália, o YouTube me recomendou um canal italiano com videos de receitas de Nonna. E ali estava uma linda Ciambella, um bolo de furo no meio, e eu não resisti.

O video é uma delícia. A carinha da cozinha, os utensílios, a relação da Nonna com o Nonno que só senta lá pra dar palpite, a toalha de plástico, a Nonna esfriando bolo no chão da cozinha. (Se eu fizesse isso, o Gnocchi seria o primeiro a experimentar o bolo, com certeza!) E desse videozinho fui para vários outros, e descobri que depois de passar tantos anos da minha vida vendo Chefs de cozinha preparando comida com precisão científica e empilhando ingredientes no prato, dá um alívio infinito ver uma velhinha italiana sovando massa e batendo bolo até o glúten arrebentar. Ri muito quando uma das avós soltou em italiano a expressão "uma vez a cada morte de Papa", porque eu falo isso o tempo todo e não fazia ideia de onde eu tinha tirado.

Ver aquilo me fez pensar na minha avó paterna que me ensinou a fazer pasta fresca, na materna, que sempre preparava meus pratos favoritos, na avó do Allex que me ensinou a fazer seu Apfelstrudel, na avó da minha melhor amiga na infância, que sempre preparava arroz doce quando sabia que eu viria e fazia bolinhos de chuva para nosso lanche da tarde... Fez com que eu lembrasse que comecei esse blog dizendo que eu era uma Nonna em treinamento, e que, no fim, o objetivo era chegar nessa cozinha de amor, nutrição e conforto que as avós fazem tão bem. No mundo de hoje em que cozinha é de mostrar pros outros, de show, de exibição, lembrar da cozinha fria de azulejos azuis da minha avó paterna e de suas mãos pequenas sovando massa sobre a mesa de fórmica branca me trouxe um chão e um norte que eu vinha buscando com força há muitos anos e mais ainda desde que mudei de país.

Munida de amor por aquelas velhinhas, resolvi tentar me ater àquela cozinha simples e carinhosa, e com certeza meu prazer na cozinha se multiplicou.

O YouTube normalmente só me recomenda bizarrice, razão pela qual às vezes passo semanas sem nem abri-lo. Mas uma vez que volto a assistir Masterchef Brasil (que é o único Masterchef que gosto hoje em dia), abre-se a porteira novamente e lá vou eu ficar fuçando em video tonto ao invés de ler meus livros (foi justamente aí que caí na série do Jamie Oliver). Mas ás vezes ele acerta: acertou na Ciambella da Nonna e acertou numa pequena série de videos de um outro canal italiano chamado Italia Squisita. Trata-se de uma seriezinha de chefs italianos reagindo aos videos mais assistidos do mundo de receitas de seus pratos regionais. Então você tem três pizzaiolos napolitanos assistinto os videos mais famosos da internet sobre como fazer pizza napolitana. Achei que seria algo só muito metido a besta, mas ver os italianos reclamando dos crimes cometidos contra sua comida é hilário. De quebra, eles dão algumas dicas do preparo "correto" dos pratos. É melhor para quem fala italiano, mas as legendas em inglês estão bem adequadas.

Uma das dicas que os pizzaiolos de Napoli dão é a respeito da pizza em forno caseiro. Eles sugerem que se coloque o molho sobre a massa e leve a pizza ao forno pela maior parte do tempo, colocando o queijo apenas no final, para derreter por pouquíssimos minutos, sem dourar. Queijo dourado, para eles, é um defeito. Não vou entrar no mérito de certo e errado, aqui o que vale é o gosto pessoal: se você gosta do queijo dourado, faça a pizza com queijo dourado. (Até porque, pizza romana é crocante, e em Napoli pizza crocante é defeito. Então, cada um que faça o que gosta e seja feliz. Eu sou do time napolitano: pouco recheio, queijo suculento e não dourado e massa por baixo fina e macia com bordas pãozudinhas. É disso que eu gosto. Outra dica era colocar o queijo em pedaços maiores, para que não perdesse tanta umidade no forno.


Pizza depois de 12 minutos de forno a 225oC, apenas com molho de tomate, voltando para o forno com parmesão ralado, o queijo mozzarella em tiras, manjericão e um fio de azeite.
Eu tentei. Mas oito minutos para o queijo em pedaços teve o mesmo efeito que o queijo ralado e ele dourou mesmo assim.



Na próxima vez vou tentar deixar a pizza por uns 15-16 minutos e deixar o queijo apenas por 4-5 e ver o que acontece. :)

Os videos desse canal também mostram como abrir a pizza com as mãos, sem o rolo. Segundo eles, o segredo está em manipular a massa o menos possível. Vou dizer que minha pizza nunca saiu tão uniforme e redonda. :D

Depois de me esborrachar de rir com os italianos reclamando e aprender alguns truques novos, vi-me novamente sentada no sofá folheando meus livros de cozinha italiana. Vi-me comprando polenta de novo e arroz arbóreo novamente, ingredientes que andavam meio esquecidos nos últimos tempos.

Num dia em que eu tinha uma quantidade grande de cogumelos na geladeira, dourei-os todos com um pouco de alho e os cobri com o que restara do molho de tomate que eu fizera em dobro para um spaghetti de fim de semana. Esse "ragù" de cogumelos acompanhou polenta molinha e fumegante.

Ragù rápido de cogumelos com polenta.

O spaghetti al sugo que sobrara do fim de semana virou doze mini-frittate, feitas na forma de muffins muito bem untada de manteiga para nada grudar. Dividi o spaghetti (tinha bastante) entre as formas já untadas (o spaghetti retornado à temperatura ambiente fica molinho de novo e fácil de separar uns fios dos outros), e fiz uma mistura de 8 ovos, um splashzinho de leite, sal, noz mocada e pimenta-do reino, um punhado de parmesão, e dividi entre as formas, que devem ficar preenchidas algo entre metade e 3/4 da capacidade. Polvilhei cada uma com salsinha e mozzarella ralada e levei ao forno médio por uns 15-20 minutos, até que inflassem, dourassem e estivessem cozidas. Esperei que esfriassem um pouco antes de desenformar com a ajuda de uma faquinha. As frittate que não foram jantadas viraram lanche da escola no dia seguinte.


As melhores almôndegas que já fiz (ou comi) na vida.

Na semana seguinte não me aguentei e quando vi Grass Fed Beef em promoção, catei um pacote na gôndola. Porque aqui tem disso: tem carne de boi de pasto e carne de boi que come soja. O de pasto é claro que é mais caro. Então espero as promoções para poder comprar boi feliz pelo preço de boi triste. Como tivesse repolho crespo igualmente em promoção (repolho crespo = savoy cabbage), decidi preparar as almôndegas de inverno da Marcella Hazan. Tantas, tantas receitas maravilhosas que eu nunca havia feito, preocupada demais em me entulhar de livros da última moda culinária. Eita, se eu tivesse cabeça de 40 anos quando tinha corpo de 20...

Enfim. Claro que servi as almôndegas com polenta. Preparei as almôndegas com antecedência, num momento tranquilo da minha manhã, enquanto esperava a tinta da minha ilustração secar, e deixei para preparar o restante do molho no fim do dia, junto com a polenta. (Polenta, aliás, que depois que esfria, você corta em tirinhas e frita, ou tempera com azeite e coloca 18 minutos na Air Fryer até que fiquem crocantes por fora.)

O veredito da Laura para esse prato: "Mamãe, essa comida está SENSACIONAL!"

Adoro quando ela usa essas palavras, que parecem saídas da boca de um adulto e não de uma criança do Kindergarten. ;)

Elas são de fato absolutamente deliciosas, mesmo antes de acrescentar o molho de repolho e tomate. Muito suculentas e saborosas. As melhores que já preparei na vida e ouso dizer as melhores que já comi.

ALMÔNDEGAS DE INVERNO COM REPOLHO CRESPO (OU COUVE)
(Do livro Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana, de Marcella Hazan)

Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 1/3 xic. leite quente
  • 1 fatia de pão sem casca
  • 500g carne moída (de preferência de 1a)
  • 50g pancetta (usei bacon) picado pequenininho
  • 1 ovo
  • sal a gosto
  • pimenta-do-reino a gosto
  • 2 colh. (sopa) cebola picadinha
  • 3 colh. (sopa) queijo parmesão ralado
  • 1 colh. (sopa) salsinha picada
  • 1 xícara de farinha de rosca
  • Óleo ou azeite para fritar
  • 550-600g repolho crespo ou couve, em tiras de 0,6cm, sem o miolo (eu piquei o miolo junto, porque desperdiçar comida fazendo um prato italiano é um paradoxo)
  • 2 colh. (sopa) azeite
  • 2 colh. (sopa) alho picado
  • 2/3 xic. tomates pelados em lata (eu usei 1 xícara e meia, pois queria mais molho e meu repolho não soltou muita água)

Preparo:

  1. Coloque o pão no leite quente e deixe ali até que ele o absorva todo. Quando isso acontecer, amasse bem com um garfo até que vire uma papa.
  2. Junte a papa de pão à carne moída, bacon picado, o ovo, salsinha, queijo e cebola. Tempere com sal e pimenta e misture bem com as mãos até que dê liga e os temperos estejam distribuídos.
  3. Forme bolinhas de 3,5cm e passe-as ligeiramente na farinha de rosca.
  4. Aqueça cerca de meio centímetro de altura de óleo ou azeite numa frigideira. Frite as almôndegas, algumas de cada vez, até que dourem de todos os lados. Deixe-as secando num prato com papel toalha. (Eu fiz até aqui e deixei o prato em temperatura ambiente até a hora de preparar o restante do jantar.)
  5. Descarte adequadamente o óleo. Você vai precisar de uma frigideira ou panela grande o bastante para comportar todas as almôndegas em uma só camada. Aqueça o azeite nela e junte o alho picado, cozinhando até perfumar. Junte a couve ou repolho em tirinhas, tempere com um pouco de sal, mexa duas ou três vezes e tampe a panela. Passe para o fogo baixo.
  6. Cozinhe por cerca de 40 minutos (enquanto isso você faz a polenta, se quiser), mexendo de vez em quando. Experimente e corrija o tempero adicionando sal e pimenta-do-reino.
  7. Passe para fogo médio, destampe a panela e continue a cozinhar até que o repolho escureça um pouco. Junte os tomates, mexa bem e cozinhe por uns quinze minutos em fogo baixo.
  8. Junte as almôndegas, vire-as na panela algumas vezes, tampe e cozinhe por mais uns dez minutos. Sirva imediatamente.

E aquelas polpettine, aquele monte de polenta, claro que me mantiveram com a mente fixa em minhas avós. Fiquei pensando nas tradições familiares, nas lembranças. Em como meus filhos jpa pedem constantemente a canja de galinha da avó (que eu já prometi preparar diversas vezes mas ainda não fiz), que é o prato de que mais sentem falta desde que vieram para o Canadá.

Fiquei buscando nos livros receitas que me lembrassem das minhas avós, algo que reproduzisse aqueles gostos de infância, aquelas histórias de cozinha, já que minhas avós não me deixaram praticamente receita nenhuma.

E então liguei para minha mãe e lhe pedi todas as suas.

"Mas minha comida é simples", disse ela. " É alho e cebola, não tem nada de muita invenção."
"Eu sei, e é isso o que eu quero. Não quero que aconteça com a sua comida a mesma coisa que aconteceu com a da vovó, que ninguém sabe preparar igual. Tô com saudade do estrogonofe, do couscous, daquele frango com pimentão e batata, a sopa de frango com legumes, da Braciola, daquela carne de panela que você botava tomate e azeitona..."
"Carne lessa?"
"É esse o nome?"
"É."
"Carne lessa". Carne cozida. Fui procurar no tio Google. Bolito di manzo. A carne bovina que se cozinha em muita água por muito tempo até ficar macia. Que quando pronta, é separada do caldo, resfriada e transformada em salada de carne (com tomates e azeitonas, por exemplo) ou desfiada para virar bolinhos ou é misturada a molho de tomate para um macarrão. E o caldo vira outra coisa: vai para uma sopa, um ensopado, um risotto, exatamente como faziam minhas avós. Um prato que vira dois. Cozinha esperta.

Essa carne fria com tomates e azeitonas foi um ícone da minha infância, tantas vezes que comemos sanduíches dela. Minha pergunta gerou histórias. Quem fazia, aprendeu com quem, como servia. Juntar as informações da família com as dos livros e mesmo as da internet, explicaram melhor aquele prato simples que, antes de ser típico da Itália, era típico da minha mãe, que é avó dos meus filhos. Comida de Nonna.

Essa semana ela começou a me mandar as fotos do passo-a-passo de suas receitas, começando com a tal Carne Lessa.

....

Agora, apesar da brincadeira dos videos de chefs italianos, levanta a mão quem está meio cansada de comida de chef.

o/

Foi divertido aprender por todos esses anos todas as técnicas de corte, de cozimento, as combinações clássicas e as escalafobéticas, os modismos de ingredientes, o vegetariano, o vegan, o cru, o natureba, o pode, o não-pode, o típico e o bastardo, o autêntico e a adaptação.

Certamente parte do meu prazer em cozinhar todo dia advém do fato de eu ter aprendido a picar uma cebola inteira em trinta segundos ou conhecer o preparo de molhos básicos sem ter que ficar olhando receita.

E isso é muito bom e sou grata pela curiosidade (e pretensão e preciosismo, digamos de passagem) que me fez correr atrás de tanta informação ao longo desses anos. Sinto que posso explicar melhor a meus filhos hoje porque mamãe faz isso ou aquilo. Como ontem, quando acabou o fermento que Thomas tinha de acrescentar ao bolo e eu disse que estava tudo bem, pois havia muito suco de limão na massa (ácido) e se usássemos bicarbonato de sódio (sal), a massa cresceria mesmo assim (e cresceu).

Mas agora eu meio que cansei. Agora que eu já sei tudo isso, só tenho vontade de voltar às origens. Ao arroz com feijão e creme de espinafre, à farofa de ovo com azeitona e à canja que comi toda semana quando criança na casa de minha mãe; ao frango com batatas de minha avó materna, ao tagliatelle fresco de minha avó paterna; aos bolos simples de café da manhã e aos torcidinhos de lanche da tarde. Alguém lembra dos torcidinhos? Era uma receita do livro da Dona Benta. Um biscoito salgado com sementes de erva-doce,comprido e torcido, que minha avó fez todos os domingos durante os quinze anos em que minha vida e a dela se intercalaram. É uma receita que todo mundo tem, mas é a quintessência de minha relação com minha avó.

Está na hora de preparar torcidinhos.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Um aniversário simples mas não um simples aniversário + coxas de frango e um bolo de anos atrás

Princesa viking na neve brincando com boneca.


Agora que a fase das visitas passou, a vida voltou ao normal. Bem, até o clima voltou ao normal, mandando embora aquela onda de -30oC e trazendo de volta os agradáveis -10oC. Houve até uma semana inteira de temperaturas positivas, vejam só! Lembro da vida na Aldeia da Serrra, tilintando de frio no vento ao passear o cachorro, toda encapuzada, três blusas, gorro, cachecol, maldizendo aqueles 8oC. Ha. Ha. Ha. Vale dizer que depois de passar pelos -30oC, Laura e eu nos vimos andando no parque, cercadas de neve derretendo, sem gorro, sem luvas, sem cachecol, apenas camiseta e o casaco aberto para refrescar. Fazia 3oC nesse dia. TRÊS. O ar é totalmente diferente no seu rosto, quando a temperatura é positiva, mesmo que seja apenas um grau acima de zero. Referências. Ah, referências. Comecei a entender bem aquelas fotografias engraçadas de gringo de short em dia frio. É sempre muito interessente perceber como nosso corpo se adapta rápido.


Passou Natal, passou Reveillon, sogra foi embora, e rapidamente me dei conta de que o próximo grande evento da família estava logo ali: o aniversário da Laura.

Quando ela me perguntou se os amigos do Brasil viriam visitá-la no aniversário, confesso que meu coração afundou. É sempre difícil lidar com essas perguntas de forma sincera mas leve. Difícil explicar que não é simples para os amigos visitarem, que custa caro, e que... bem... os pais dos amigos precisam de fato quererem vir aqui. E, vamos combinar, amizade de jardim de infância só dura se as crianças continuam estudando juntos. Essa parte é bem, bem difícil. A saudade que tenho dos meus amigos é dura. As saudades que as crianças têm dos seus amigos me faz sofrer bem mais.
Minha pequena lenhadora num dia de -10oC.
Assim que eu expliquei a ela que não, ninguém viria do Brasil para o seu aniversário, ela imediatamente supôs que faríamos uma grande festa e chamaríamos seus trinta colegas de classe.

Respira no saquinho.

"Não, querida, os pais e mães ainda não se conhecem direito, ainda é seu primeiro ano aqui, a gente não sai fazendo festa grande assim logo de cara. Precisa conhecer melhor os amiguinhos antes de chamar em casa. Além disso, o apartamento é pequeno, não tem espaço para a festa grande."
"Tem sim! Ó, cabe ali do lado do sofá todo mundo!"
"Cabe não, Laura."
"Tá. E o que é que a gente faz então, mamãe? Que é que faz no aniversário aqui no Canadá?"
"A gente canta parabéns na escola e manda as lembrancinhas. Você me ajuda a fazer os gift bags?"
 "SIIIIIIIIIIIIIIIMMMM!!!!!"

Pronto, os olhinhos dela estavam iluminados de novo.

Quando Thomas nasceu, prometi a mim mesma que não me meteria nessa de festão de criança. Havia comparecido a suficientes aniversários de 1 ano em buffet para saber que isso era roubada. Eu não faria festa até a criança de fato pedir por uma, e quando fizesse seria simples e caseiro como foram os meus na minha infância, e não daria presentes aos meus filhos até eles terem idade para saberem o que é um aniversário.

Isso não funcionou muito bem. Nada te faz morder mais a língua do que maternidade.

Logo no primeiro aniversário do Thomas, eu despiroquei. Nós não faríamos nada, nada mesmo, só um bolinho para nós três. Mas enquanto eu preparava o bolo, tive um siricotico, e comecei a achar que eu era a pior mãe do mundo, que todo mundo se importava com festa de 1 ano menos eu, que algo deveria estar errado comigo. De uma hora para a outra chamamos umas vinte pessoas que podiam vir, passei 6 horas enfurnada na cozinha, e fizemos uma festa meio esquisita e improvisada, que claro, não aplacou essa minha sensação de ser a pior mãe do mundo. Nenhum dos nossos amigos tinha filho ainda, então Thomas era o único bebê ali, e meia hora depois dos convidados chegarem, ele teve de se retirar para sua soneca habitual.

ISSO NÃO FAZ SENTIDO NENHUM.

No ano seguinte, as coisas foram mais tranquilas. Thomas fez dois anos no início de seu primeiro ano de escola, e me lembro de ter apenas enviado um bolinho de chocolate para a escola e foi isso aí. Paz de espírito, criança feliz comendo chocolate sem saber exatamente por quê. Achei que tinha voltado ao meu eu habitual.

Mas não.

Começaram a aparecer os convites para as festinhas dos colegas. As "festinhas de criança" eram verdadeiros festões, bailes de debutante, principalmente quando o aniversário era de menina. Entretenimento, DJ, barracas de comida, garçons, pula-pula inflável do tamanho da minha casa, pais estressados reservando data de aniversário com todo mundo 6 meses antes, lembrancinhas mais caras do que o presente que meu filho levava.

Depois de meia dúzia destas festas, Thomas começou a criar sérias expectativas a respeito de seu próprio aniversário. Ele mal falava direito, mas já sabia pedir uma festa de aniversário com dragões e dinossauros e todos os seus amigos. >_< Então, aos três anos, Thomas ganhou sua primeira festa com os coleguinhas da sala, aquela fatídica em que ele teve estomatite e chorou porque não conseguia comer brigadeiro. Aquilo deveria ter sido interpretado como um sinal para largar mão e voltar ao meu plano original. Mas é impressionante como o ambiente mexe conosco, desequilibra, tira o foco. Eu já não tinha mais firmeza para insistir no que eu achava que era certo, porque já não tinha mais certeza de coisa nenhuma, desprovida de qualquer outra referência em que me apoiar. Depois de todo aquele frio de -30oC, eu estava achando que 3oC era verão. Eu era praticamente a única mãe que fazia festa para menos de 60 convidados com bolo feito em casa, então pensar em algo ainda menor, um bolo só com os avós, parecia impensável, uma enorme injustiça com a coitada da criança.

Laura era outro tipo de abacaxi: no Brasil, ela jamais teria o bolinho na escola, pois seu aniversário é em Janeiro. Então veio outro jogo de culpa, aquele comum nas mães, de tentar resolver problema antes de ele de fato ter aparecido. Na minha cabeça, Laura se perguntaria por que o irmão teve festa e ela não teve, por que tinha foto de um monte de gente e um monte de comida no primeiro ano dele, e no dela só tinha pai e mãe e um bolinho. Loucura total. E pronto, Laura teve festa no primeiro ano, com um dos melhores bolos que já fiz, bolo branco classicão de 1 tigela da Alice Medrich (aquele de fazer no processador) e a cobertura adaptada de mascarpone do bolo de Tiramisú da Dorie Greenspan do livro Baking From My Home To Yours, que eu nunca postei aqui porque estava meio que de férias do blog na época.
Lembra dessa bochecha???? Muito amor. Olha esse bolo. Nham!
O BOLO DE TIRAMISÚ DO PRIMEIRO ANO DA LAURA
Rendimento: esse bolo da foto, alimentou um monte de gente e o povo lambeu o prato.

Ingredientes: 
(bolos)
  • 2  xic. farinha de trigo
  • 2 1/2 colh. (chá) fermento
  • 6 ovos
  • 1 3/4 xic. açúcar
  • 1 colh (sopa) extrato de baunilha
  • 1/2 colh (chá) sal
  • 6 colh (sopa) manteiga sem sal, derretida
  • 2/3 xic. creme de leite fresco, em temperatura ambiente
(xarope de café)
  • 1 xicarazinha normal de café espresso ou café bem forte (tipo 60ml de café, e não uma xícara-medida)
  • 1/2 xic. água 
  • 1/3 xic. açúcar
  • 1 colh (sopa) de Marsala, outro vinho doce fortificado ou conhaque
(cobertura)
  • 1 pote de marcarpone (uns 250g) (qualquer marca que tenha apenas creme de leite e ácido cítrico na composição, sem gomas ou coisas estranhas)
  • 3/4 xic. creme de leite
  • 1/2 xic. açúcar de confeiteiro
  • 150g chocolate amargo picado
  • cacau para polvilhar

Preparo:
(bolos)
  1. Coloque a grade na parte inferior do forno e pré-aqueça a 180oC.Unte e enfarinhe duras formas redondas de 20cm. Forre o fundo com papel-manteiga. 
  2. No processador, coloque o açúcar, farinha, sal e fermento e pulse para misturar. Junte o creme e a manteiga epulse rapidamente, 8-10 vezes, até que os ingredientes estejam misturados.
  3. Junte os ovos e a baunilha de uma vez e pulse mais 5-6 vezes. Raspe as laterais da tigela de processador com uma espátula, tomando cuidado com a lâmina, e então pulse mais 5-6 vezes, até estar tudo homogêneo, não mais que isso.
  4. Divida a massa entre as formas, espalhando uniformemente, e asse por 30-35 minutos, até um palito inserido no meio sair limpo. Coloque o bolo para esfriar numa grade por 10 minutos antes de desenformar e retirar o papel de baixo do bolo. Deixe que esfrie completamente antes de embrulhar bem os bolos em filme plástico individualmente e levar à geladeira. É mais fácil decorar o bolo depois de um dia na geladeira.
(xarope)
  1. Coloque a água e o açúcar numa panela e aqueça apenas até que todo o o açúcar se dissolva e o líquido fique transparente outra vez. Desligue, junte o café e o Marsala. Deixe esfriar.
(cobertura)
  1. Na hora de decorar o bolo, numa tigela, misture o mascarpone e o açúcar até que fique homogêneo e bem cremoso. Na batedeira, bata o creme de leite em ponto de chantilly. Junte algumas colheradas ao mascarpone, misturando delicadamente com uma espátula para deixar a mistura mais leve e então incorpore o restante do creme batido, como você faria com claras em neve. Leve à geladeira até a hora de usar. 
  2. Desembrulhe um dos bolos, e, usando um pincel, pincele metade do xarope por cima. Cubra com algumas colheradas do creme de mascarpone, polvilhe com 1/3 do chocolate picado, e cubra com a outro bolo. Pincele com a outra metade do xarope. 
  3. Passe uma camada fina da cobertura de mascarpone por todo o bolo e leve à geladeira por umas duas horas. 
  4. Retire o bolo da geladeira e termine de espalhar toda a cobertura uniformemente. Polvilhe com cacau a parte de cima e o restante do chocolate picado.

E assim foi indo, ano após ano, eu tentando simplificar as festas, trocando pastelzinho de palmito por biscoito de polvilho e cupcake por fruta, achando que isso ia resolver, e mesmo assim enfiando o pé na jaca e me dando mal todo ano.

Até o ano passado.

Já sabíamos que viríamos para o Canadá. Não tínhamos data certa, mas viríamos. E enfiei na minha cabeça que, aquele sendo o último aniversário com os amigos do Brasil, eu precisava fazer uma festa. Afinal, Thomas tivera festa de 4 anos, era justo que ela tivesse também. De novo, mãe resolvendo problema que ainda não existe. Por que é que a gente se complica tanto??

Chama todos os amiguinhos da sala. Cada amiguinho da sala vem com pai, mãe, irmão, e alguns, até com primo e avó. MESMO. O que poderia ser uma festinha para vinte crianças, vira uma festa para sessenta pessoas. Eu tento manter a coisa simples, mas claro que me atrapalho com o excesso de expectativa da Laura. Gasto mais dinheiro do que posso, gasto mais tempo do que gostaria, cozinho mais do que pretendia. No dia da festa, cai uma tempestade, destas de escurecer o céu. Ficamos todos enfurnados dentro de casa. É um caos. Comida e suco por todos os lados, brinquedos dos meus filhos espalhados por todo canto, gente que eu de verdade não conheço abrindo minha geladeira para procurar mais cerveja, criança sendo extremamente mal educada comigo quando peço para não pular no sofá e pais vendo isso acontecer  e não fazendo nada. Na época não quis comentar nada disso aqui no blog, e só coloquei as fotinhos fofas da mesa. Mas de verdade, foi um trauma.

Canta-se parabéns. Minha família se despede. Meus amigos se despedem. Mas há todo um grupo ali que entra na cozinha, pega de volta a cerveja e os sanduíches que eu já havia tirado da mesa, e continua sua festinha particular na varanda, ignorando a anfitriã com o saco de lixo limpando a casa. Detalhe: já se haviam passado 2 horas do horário de término da festa avisado no convite. As mesmas crianças mal educadas brincam de virar copo com resto de suco, eu grito com elas e ninguém liga. Ninguém dá bronca.

Quando finalmente consigo pôr fim àquilo e ter minha casa de volta (ou o que sobrou dela), pergunto à Laura se ela gostou da festa.

"Não. A Celine não estava aqui."

Meu mundo caiu. A melhor amiga ficara presa na estrada por causa da tempestade e não pudera vir. Eu passara por tudo aquilo, gastara tempo e dinheiro, e no fim das contas, eu só precisava ter chamado a melhor amiga.

Quando chegou o aniversário do Thomas, usei aquilo de exemplo. Chamei os três melhores amigos para passarem o dia brincando com ele. E foi isso. Fiz macarrão para todo mundo, comemos brigadeiro, e mandei um bolo para a escola. Thomas adorou. Foi divertido para todo mundo, INCLUSIVE PARA MIM.

Vir para cá foi de certa forma uma libertação dos aniversários escalafobéticos. Por conta de alergias alimentares, não se pode mandar bolo de aniversário para a escola. Mas pode-se mandar lembrancinhas. Você vai numa loja de 1,99, enche a sacola de cacareco, do tipo canetinha colorida, balão, borrachinha de bichinho, adesivo e língua de sogra, no melhor estilo aniversário de antigamente. Gasta-se muito pouco. Bota num saquinho colorido (tem toda uma sessão de Gift Bags nas lojas), e manda a criança para a escola para distribuir aquilo para os amigos.

Só isso já acho positivo: é aniversário da criança, mas é ela que dá os presentinhos, ao invés de ficar esperando receber dezenas de brinquedos e tralhas.

Laura AMOU separar todos os cacarecos e arrumar nos saquinhos e foi para a escola toda orgulhosa. Depois que ela entendeu e aceitou que seríamos só nós quatro a cantar parabéns, ela olhou bem para mim e disse:"tá bom; mas eu quero um bolo de chocolate e quero brigadeiro e balões, ok?"

Ok.



Preparei o mesmo bolo de chocolate que eu fizera no meu aniversário, mas numa forma quadrada, para ficar mais fácil cortar em pedaços para mandar de lanche depois. Usei confeitos coloridos, bem porcaria e cheios de corante, que eu sei que ela adora, fiz uma porção de brigadeiros e enchi com as forças restantes dos meus pulmões de quase quarenta anos pelo menos uns vinte balões - e descobri que os balões canadenses são mais espessos que os brasileiros, e, portanto, mais difíceis de encher. Afe. Povo aqui adora cartões de todos os tipos, então lhe comprei um cartão de unicórnio.

O dia do seu aniversário amanheceu lindo. Um céu azul limpíssimo, uma temperatura agradável, e neve fresca e fofinha para brincar. Um presentão, disse a ela. Assim que acordou, foi imediatamente brincar com seu presente de aniversário: ela pedira uma mala de madeira com tintas em tubos, pincéis e papel duro como o da mamãe, e achei lindo quando ela dividiu o presente com o irmão. Pintaram lindas pinturas até a hora de ir para a escola, e ela fez questão de carregar sozinha a sacola das lembrancinhas. Quando fui buscá-la, levei o trenó e meu canecão térmico cheio de chocolate quente, e ficamos no parque brincando na neve até quase escurecer. Voltamos para casa, Allex chegou cedo, e cantamos parabéns, jantamos bolo e brigadeiro e comemos pão de queijo de sobremesa. É, nessa ordem mesmo. ;)

 

Eu morrendo de dor na bunda por ter caído no gelo, e a brincadeira das crianças é justamente escorregar nele e cair.

Eles foram tomar banho, e deixei que brincassem na banheira até cansarem. Lemos um milhão de histórias antes de dormir, e quando fui dar um beijo de boa noite, Laura me deu um abraço e disse: "Eu adorei meu aniversário, mamãe!".

Foi a primeira vez que ela disse isso. E vir assim, expontaneamente, sem a chatice da mãe buscando aprovação, perguntando se o filho gostou da festa... foi a cereja do bolo, a certeza de que tudo o que a gente precisa é se ouvir mais, ser mais fiel a si mesmo e aos nossos princípios. E que criança quer mesmo é passar tempo com a gente, tempo de qualidade, quer mesmo é brincar e comer brigadeiro, e não precisa de DJ, nem garçom, nem princesa.

Fico contente que as coisas aqui pareçam, de modo geral, um pouco mais tranquilas. Claro, é uma cidade de imigrantes, e as referências de festas de crianças são muitas, e tem de tudo. Mas por ter de tudo, não tem problema ser só um bolinho. Ou só chamar a melhor amiga para um playdate. Ou só passar a tarde depois da escola brincando na neve e tomando chocolate quente.

Declaro aqui o fim dos aniversários escalafobéticos e o início da minha paz de espírito. Recomendo muito a todos. Faz bem.

Agora Laura anda toda orgulhosa. Cinco anos. Meia década. Uma mão cheia. Uma menina grande. Minha Madame Bochechas que agora perdeu a carinha de nenê completamente.
"Agora que eu tenho 5 anos eu já posso dormir na parte de cima do beliche, não é?"

Ai, ai, ai.

...............................

O resto do mês de janeiro foi bem comum. Tão comum e nos eixos, que consegui voltar a pintar. E consegui remontar meu portfólio para buscar trabalhos de ilustração em Toronto: www.anaelisagranziera.com
Ainda faltam alguns ajustes, mas vamos lá que está indo bem.

  
A vida culinária por aqui continua relativamente simplificada. Tray bakes são ainda o modo mais simples de montar uma refeição: assei batatas com alhos e cebolas (batatas previamente cozidas por 10 minutos, para ficarem bem macias por dentro e crocantes por fora), e quando ficaram prontas, juntei ervilhas congeladas por alguns minutinhos e quebrei alguns ovos para meio que fritarem / assarem no calor residual do forno. Polvilhei de salsinha e cebolinha, e voilà: almoço de sábado.
Em outro dia, fiz parecido com abóboras.  A butternut squash, com seu gostinho amanteigado, está virando uma de minhas abóboras favoritas. Assei cubos dela com cebolas, e quando prontas, juntei grão-de-bico cozido para aquecer e couve (black kale) rasgada por uns 5 minutinhos, para que cozinhasse e ficasse crocante nas beiradas. Servi com um molhinho simples de iogurte, tahini, azeite, limão, sal e pimenta-do-reino (as proporções são a gosto, e depende do quão amargo é o tahini e do quão azedo é o iogurte, mas é sempre mais iogurte e azeite do que tahini e limão).  As sobras, no dia seguinte, reaqueci e completei com um ovo frito.

Ainda que se possa comer a casca da abóbora, o pessoal aqui em casa não aprecia muito a característica coreácea que a casca adquire depois de assada. Então o que fiz foi guardar no freezer a casca da abóbora para usar num caldo, como sempre fizera. Mas quando vi que tinha já num saco separado casca de 2 abóboras inteiras, resolvi testar outra coisa: cozinhei as cascas em água fervendo até ficarem bem macias, escorri (guardando a água para uma sopa ou um pão) e bati no processador as cascas cozidas até obter um purê bem homogêneo. Surpresa! Você vê esse purê cor-de-laranja e nem acredita que eram as cascas, parece mesmo purê de polpa de abórora. Congelei porções de duas xícaras  (cascas de 2 butternut squash com alguma polpa agarrada a elas renderam 4 xícaras de purê). Uma dessas porções virou ESSE BOLO DELICIOSO DE ABÓBORA com cobertura de cream cheese e mel.
Tinha sobrado grão de bico cozido e molho de tahini. Então piquei a couve crua, misturei a fatias finas de beterraba amarela, sementes de romã, cebolinha e comi acompanhado de uma frittata simples de batata e salsinha. Salada de couve crua é ótima para levar de almoço, pois ela não murcha já temperada. E as sobras ficam ótimas com fatias de queijo dentro de um sanduíche tipo wrapp.
 Janeiro foi também o mês em que o Papai Noel trouxe de presente atrasado uma máquina de waffles. Os primeiros waffles canadenses foram intensamente comemorados por todos aqui em casa. E eu imediatamente lembrei das receitas de waffles do Good to The Grain, da Kim Boyce, e me arrependi de ter vendido o livro. Quem comprou, cuida bem, tá? Muito amor por esse livrinho.

Então, no fim de janeiro, fiquei sozinha pela primeira vez desde que cheguei em Toronto: Allex foi viajar a trabalho. Aproveitei para mimar as crianças, pois Thomas vive me pedindo para fazer coxa de frango para ele comer com a mão, e nunca faço porque Allex detesta carne de aves. Dei vazão à minha curiosidade culinária e preparei essas coxas com molho agridoce da Tessa Kiros. E como o que estava em promoção no mercado eram rutabagas e não batatas, o acompanhamento foi purê de rutabaga. Ligeiramente adocicado, como um purê de batatas com maçãs. Mas muito bom. O que sobrou dele no dia seguinte, misturei a ovos e farinha e fermento até conseguir consistência de massa de panqueca, e fiz panquequinhas de rutabaga no forno com salada de alface, e as crianças gostaram tanto, que levaram de almoço na escola.
  

COXAS E ASAS DE FRANGO COM MOLHO AGRIDOCE DE LARANJA E TOMATE
(Do livro Apples for Jam, da Tessa Kiros)
Rendimento: 6 porções

Ingredientes:
  • 1 /2 xic. açúcar mascavo
  • 1 1/2 xic. suco de laranja fresco
  • 3/4 xic molho de tomate, de preferência caseiro (eu sempre tenho um pouco de molho pronto, sobra de quando faço pizza)
  • 1 1/2 colh (sopa) shoyu
  • 1 1/2 colh (sopa) molho inglês
  • 6 coxas de frango
  • 6 asas frango (fiz metade da receita do molho, omitindo as asas e usando só as coxas)

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 160oC. Coloque o açúcar, suco de laranja, molho de tomate, shoyu e molho inglês numa panela, leve à fervura, mexendo para dissolver o açúcar. Cozinhe em fervura branda por 5 minutos.
  2. Espalhe as peças de frango numa assadeira ou refratário de bordas altas em que as peças caibam numa camada única, mas encostando umas nas outras. Despeje o molho por cima. 
  3. Asse por 2 horas a 2 horas e meia, regando o frango com o molho de vez em quando e virando as peças, até que p frango esteja crocante e pegajoso, e o molho esteja espesso e brilhante. Sirva quente ou em temperatura ambiente.
Lembrei-me também de outra receita de livro perdido, um cake salée da Dorie Greenspan, cuja receita eu achei que havia anotado, mas não. Catei na internet (RECEITA DA VERSAO DE QUEIJO ORIGINAL AQUI)e fiz novamente, trocando o parte de queijo por bacon douradinho e figos secos e servindo com uma salada de alface com vinaigrete de bacon: você doura os pedacinhos de bacon (uma fatia por pessoa), retira da panela, deixando a gordura lá, com fogo apagado, mistura o vinagre e a salsinha ali na panela mesmo e cobre as folhas com o molho quente e o bacon. Delícia. De novo, as sobras do cake salée foram enviadas de almoço para as crianças. 



Estou pegando o jeito de novo. :)

SE VOCÊ É UM PURISTA DA COMIDA JASPONESA, POR FAVOR PULE ESSE PARÁGRAFO - estou prestes a assassinar a culinária japonesa. ;) Mesmo.

Num dia em que comprei uma marca diferente de arroz e ele empapou além da salvação, ao invés de fazer bolinhos, catei nori no armário (pimpolhada adora levar pedaços de nori de lanche), espalhei o arroz grudento, temperei com vinagre de maçã e uma pitada de açúcar (não tinha Mirin), recheei com cenouras coloridas cortadas em palitos, versões vermelha e amarela, e escataplá: "hosomaki vegetariano". Ficou bem sushi de posto de gasolina, segundo Thomas, mas deu bem para o gasto e os dois pediram para que eu fizesse de novo e mandasse de almoço. Logo, sucesso.

Sushi de cenoura de posto de gasolina. ;)

Spaghetti com molho de tomate de ontem, manda DO BRASIL, cenoura colorida, queijo e passas cobertas de iogurte.
Toda a coisa do lanche da escola anda bem mais descomplicada, mas vou deixar isso para o post seguinte. Uma coisa que anda aparecendo mais aqui é pão de queijo, a mesma receita do aniversário da Laura, passada a mim por minha melhor amiga, que me dá uma saudade imensa lá do Brasil. Eu amo receita fácil de lembrar, e essa é uma delícia de fácil.

PÃO DE QUEIJO DA MARINA
Rende: um monte

Ingredientes:
  • 1 xic. leite
  • 1 xic. óleo
  • 1 xic. água
  • 4 xic. de polvilho, tudo doce ou misturado com o azedo (no caso, o pacote inteiro que consigo comprar aqui, de 567g, que é doce - ainda não achei polvilho azedo - para quem mora fora do Brasil, eu compro o Bob´s Red Mill Tapioca Flour (Tapioca Starch), que se encontra em qualquer supermercado e é puramente polvilho doce, apesar do nome)
  • 1 ovo
  • 1 "prato" de queijo ralado grosso

Preparo:
Na panela, junte o óleo, o leite, a água e um pouco de sal, que vai depender do quão salgado é o queijo que você está usando. Leve à fervura. Desligue e junte o polvilho, de uma vez, mexendo sempre até amornar. Eu prefiro fazer isso na batedeira planetária, claro, então deixo o polvilho esperando na tigela da batedeira e despejo o líquido fervendo em cima. Bato por vários minutos em velocidade bem baixa, pois o grude é forte. Se sua batedeira for dessas de plástico, melhor quebrar o braço de cansaço mexendo com colher do que quebrar a batedeira. Quando estiver morno, misture o ovo até que esteja bem incorporado. Então misture o queijo e pronto. Forme montinhos com a colher, ou bolinhas com a mão, se não estiver grudando, e asse em forma sem untar, a 180oC por pelo menos 20 minutos, dependendo do tamanho ou até que estejam dourados embaixo e com pontinhos dourados em cima. Assei metade da massa e o resto congelei numa assadeira, depois transferindo as bolinhas cruas para um saco. Do freezer pro forno, demoraram uns 5-8 minutos a mais para ficarem prontos.
 
Ah, o que mais aconteceu em Janeiro? Claro, a placa-mãe do computador queimou, eu caí no gelo em cima do meu celular, que quebrou, razão pela qual quase não teve post em janeiro, a máquina de lavar roupa morreu... eh, laiá. Ainda bem que já é Fevereiro.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Pão de queijo francês, bolo de fubá americano, ler livros, seguir vidas


Faz já quase um ano daquelas férias de julho sem televisão que mudaram o jeito como fazemos as coisas aqui e como enxergamos nossa casa. A televisão com certeza voltou, pois ela sempre volta, mas uma mente expandida por boas idéias nunca mais volta ao tamanho original.

Naquela época, com a televisão desligada, começamos a passar muito mais tempo do lado de fora e, quando do lado de dentro, muito mais tempo juntos. Havia algo, no entanto, que me incomodava um bocado havia tempos, mas o qual não me dava ao trabalho de mudar, e que, tendo o empurrãozinho final daquelas férias, finalmente consegui: voltei a ler como lia antigamente. Um livro depois do outro, o que cair na minha mão, romance, sociologia, filosofia, Saramago, José de Alencar, ficção científica, best seller, livro técnico de arte, o que for. Felicidade pura, voltar a ler, hábito que andava em suspensão desde o nascimento dos meus filhos.

Preciso admitir que o que me impedia era pura preguiça. Os dias terminavam cansados, e eu buscava aquele entretenimento fácil debilitador de cérebros da televisão e da internet. Meu tempo andava dominado de tarefas e trabalhos e eu não conseguia nem me dar cinco minutos nem enxergar esse precioso intervalo de tempo em minha rotina para ler meia dúzia de páginas.

Foi daí que as noites sem tv se tornaram noites de leitura. E uma vez que você termina um livro bom em três dias, a empolgação é tanta que você não consegue parar mais.

Nesse meio tempo descobri tardiamente o canal da Tatiana Feltrin, da qual virei absoluta fã. E não se passou muito tempo de TV retornada até que eu estivesse de novo sentada ao sofá assistindo vídeos sobre os livros que os outros leram. Ficava encantada, fazia notas mentais sobre ler esse ou aquele volume, mas no frigir dos ovos o que eu estava fazendo de fato era parando de ler e vivendo uma vida imaginária através dos feitos dos outros.

O mesmo aconteceu quando descobri meu blog favorito, Seis Mais Dois, da Maria Cordeiro. Li de cabo a rabo, concordando com tudo, achando linda aquela vida tranquila, natural, aquelas sextas-feiras em família, aqueles jantares com amigos, aqueles piqueniques no parque, aquela simplicidade dos pães e bolachas descomplicadas de todo dia. Amei tudo aquilo, quis aquele ritmo de vida para mim, e tão logo acabei de ler o post mais recente, saí internet afora buscando outros blogs que fossem semelhantes, para suprir aquela minha carência por mais inspiração, mais vidas que não eram minhas para preencher os espaços dos meus dias, para que eu pudesse sonhar em ser assim um dia e criar aquela perigosa fantasia de que, porque eu tomara conhecimento daquela vida, a tal vida era minha também.

Aí eu tomei uns tabefes da vida que era minha e voltei a meditar.

Meditação, essa coisa linda. Dizia meu guru de Kriya Yoga que meditar é como colocar gasolina no carro: você nunca pode estar tão ocupado a ponto de esquecer de parar para abastecer. ;)

E assim mesmo parece funcionar. Os pensamentos ficam mais claros, e parece que você consegue enxergar as coisas de uma forma mais ordenada.

E numa noite dessas, quando eu procurava enfadonhamente ao que assistir no YouTube (o bom e velho zapear canais e perder tempo valioso de vida fazendo nada de bom), ao escolher um video antigo do Tiny Little Things, ocorreu um estalo no meu cérebro. Assim, como se alguém tivesse atirado um pedregulho na parte de trás da minha cabeça e me chamado de idiota. Lá estava eu, assistindo a um video de alguém falando sobre um livro que eu tinha na minha estante e nunca tinha lido na vida. Tinha a noite toda pela frente, e estava prestes a me contentar em ouvir sobre a incrível experiência que aquela pessoa tinha tido ao ler a história ao invés de eu mesma apanhar o livro e lê-la.

A sensação de desperdício de vida foi tão assustadora, que desliguei a TV imediatamente, arranquei o livro da estante e comecei a leitura. Pensei: Tatiana consegue ler 100 páginas por dia. Como ? Ah, ela não tem filhos, ela lê no ônibus a caminho do trabalho. Todas aquelas desculpas que a gente se dá para os outros conseguirem algo e nós não. Mas e daí? Quanto tempo eu de fato tenho no meu dia em que não estou ativamente com as crianças, ou trabalhando ou em alguma tarefa? Comecei a andar com um livro na bolsa o tempo todo. Até mesmo para apanhar as crianças na escola. Comecei a chegar dez minutos mais cedo apenas para me sentar no banco em frente ao portão e ler mais meia dúzia de páginas antes do sinal da saída tocar. Continuo não conseguindo ler 100 páginas por dia, a não ser que o Allex chegue tarde do trabalho. Senão, sinto muito, livros, mas ainda prefiro a agradável companhia do meu marido. :)

Isso do livro na mão o tempo todo, enquanto mexo o risotto, enquanto as crianças brincam no parquinho, enquanto espero um documento no cartório, fez-me sentir infinitamente mais feliz durante o meu dia. Eram cinco minutinhos só meus, imersa em uma atividade que gosto muito, mesmo que outras coisas estivessem acontecendo concomitantemente.

E então comecei a olhar em volta. As crianças pedindo para brincar um pouco mais na escola antes de irem para casa. Ok. Abro meu livro, leio mais um pouco. Sem pressa. Ergo os olhos. É uma escola. O único livro à vista está em minhas mãos. Adultos, jovens e crianças tem aparelhos eletrônicos nas mãos. Senti-me novamente com quinze anos, matando aula para ler Senhor dos Anéis no corredor.

Pensei em pedaços de uma conversa com a coordenadora. Quando veio um comunicado dizendo que Thomas teria de fazer lições de matemática num tablet. Fui ter com ela, incomodada. Ele tem seis anos. Já tem lição de casa todos os dias. Não precisa ficar mais tempo estudando, ainda mais na frente de uma tela. Precisa ter tempo de brincar. Ele ainda é uma criança. Além disso, nós não temos um tablet.

Ela explicou que o programa de matemática era todo lúdico e divertido e extremamente pedagógico, e que os exercícios eram de quebra-cabeças e lógica. Eu expliquei que lúdico e divertido e extremamente pedagógico é montar quebra-cabeças de verdade, de papel, de madeira, de 200 peças, em que as peças não se encaixam magicamente ao arrastar de um dedo, em que você precisa separar as peças por tipo e pensar numa estratégia. E que mais divertido era aprender lógica e probabilidade jogando Zombie Dice e Dungeon Roll com o pai, ou livros de RPG com a mãe, somando dados e descobrindo se sua soma de 12 é suficiente para matar o ogro que tem 7 de força. Ou fazer frações calculando uma receita de bolo. Quantas medidas de 1/3 de xícara cabem em 1 xícara? Matemática que permite lamber a tigela no final. Lúdico, divertido e extremamente pedagógico é entender no mundo de verdade a aplicação daquilo que se aprende no livro da escola. É mexer com diferentes materiais para criar coordenação motora fina ao invés de exercitar unicamente o dedo indicador em riste e respostas automáticas de uma tela fria com cores berrantes.

Houve um incômodo. Ela quis defender o povo que criou o material pedagógico. Defendeu-se dizendo que o povo da quinta série estava indo mal em português e que por isso eles tinham se empenhado em estimular mais as crianças. Perguntei-lhe porque não estimulavam MENOS. Perguntei-lhe em que espaço da rotina de uma criança de 11 anos que tinha aulas de manhã e à tarde, lições de casa todos os dias, trabalhos todas as semanas e provas aos sábados, haveria um momento de suficiente tédio para que ela de fato escolhesse buscar na instante um livro para ler por prazer. Se todo o tempo dela era ocupado por leitura obrigatória de assuntos que de fato não lhe interessavam. Perguntei por que não faziam uma parceria com uma livraria para montar um stand na porta da escola, onde fica visível, onde atrai olhares, já que não há uma única livraria em nosso bairro. Recebi de volta uma resposta atravessada, dizendo que havia sim uma livraria mas fechara por falta de público, e encerrei a conversa aí, pensando no verdadeiro significado daquela sentença.

Atravessei o pátio da escola carregando meu José de Alencar velho e esfarelento e olhando em volta as crianças que usavam seus "tablets pedagógicos" para ver bobagens na internet. Pensei em algumas crianças de quatro anos que conheço que já sabem ligar o computador e escolher videos de youtube sem supervisão. Suspirei alto, sentei-me no banco e abri meu livro, esperando o sinal tocar. Às vezes meu ouvido captava a conversa dos adultos ao meu lado conversando sobre Candy Crush.

O sinal tocou, as crianças apareceram. Era sexta-feira e cada uma trazia um livro novo para ler no fim de semana. Ás vezes são livros legais, e muitas vezes são livros muito ruins. Mas eles vêm sempre felizes pedindo para ler antes do almoço, e depois do almoço, e depois do desenho, e antes de dormir. E antes de dormir Thomas pede para ler O Pequeno Príncipe de novo. Ou Como Treinar Seu Dragão pela terceira vez. E Laura apanha Pippi Meialonga e abre no colo e insiste em ela mesma ler a história, passando o dedo nas letras ao contrário e inventando as frases segundo a alternância entre sua memória e sua imaginação. E fico maravilhada com a riqueza de sua imaginação. E as palavras que eles conhecem, e as histórias que eles criam enquanto brincam e enquanto desenham. E me lembro do maior elogio que já recebi do meu marido, quando comentei sobre isso com ele: "Ana, o desenho-animado vem pronto; mas quando você lê O Hobbit e o Thomas escuta uma frase como "...e ele fez um cumprimento à moda dos anões", ele precisa criar na mente dele como diabos seria esse cumprimento e porque seria assim e não de outro jeito; eles criam assim porque você lê para eles todo dia livros legais."

Quem é mãe sabe que são raros os momentos em que ganhamos crédito pelo saldo positivo, então isso me deixou muito, muito feliz. De vez em quando a gente faz algo certo.

Dois dias depois ele me enviou um cartoon da New Yorker que eu nunca mais encontrei e procurei muito para ilustrar esse texto. O cartoon mostrava dois bancos de praça. Um com o pai lendo o jornal e as crianças lendo livros, e outro com o pai ao celular e as crianças com tablets e games. E o pai do celular perguntava: "Como você consegue fazê-los ler?"

Já dizia meu guru de yoga: viva pelo exemplo.

Da mesma forma como lemos blogs e vemos videos para nos inspirar, as crianças nos observam para nos imitarem. Se a única coisa que eles vêm em nossas mãos é um celular, não é difícil adivinhar o que eles farão para fingirem serem adultos. É preciso dar o exemplo. E é por isso que, ao invés de reservar minha noite, com crianças na cama, para ler em paz, eu me esforço para encaixar pequenos intervalos de leitura no meu dia, quando eles passam por mim no meio de uma brincadeira de velho-oeste e vêm me perguntar o que eu estou lendo e se posso ler em voz alta para eles. Nessa brincadeira de curiosidade infantil, numa tarde em que Laura cochilava no sofá, Thomas se aninhou comigo na poltrona e leu comigo oito contos do Neil Gaiman, atento e de olhos encantados, até se acabarem os contos apropriados para sua idade.

É importante para mim que eles peguem amor aos livros, pois acho que isso abre um mundo maravilhoso ao mesmo tempo que mantém seus pés bem firmes no chão. Traz possibilidades de fantasia mas também de aprendizado real e prático. Estimula a curiosidade, e melhora sua concentração muito mais do que qualquer texto eletrônico recheado de distrativos hiperlinks.

Tento o máximo que posso buscar respostas para suas perguntas nos livros ao invés de buscar na internet, outra briga, aliás, que tenho com a escola. Pois se você quer saber quantas pernas tem uma formiga, basta escrever "pernas" e "formiga" no google e apertar o Enter. Você sequer precisa formular saber formular uma pergunta coerente. Numa biblioteca, precisa começar raciocinando: formiga é um bicho. Que bicho? Inseto. Onde encontro informações sobre insetos? Seção de biologia. Qual livro? Qual página? E nem sempre você encontra nos livros uma resposta pronta. Às vezes precisa cruzar informações e desenvolver sua própria hipótese. Sabe isso que a gente costumava fazer o tempo todo? Pensar?

Como quase tudo hoje em dia, parece que nosso cérebro se beneficia quando temos mais trabalho.

Ironia das ironias, enquanto escrevia esse texto, nesse exato ponto, a internet desapareceu, deu tilt, e fiquei 2 dias sem a bendita em casa. Quem mais sentiu falta fui eu, pois não conseguia resolver meus assuntos de trabalho apropriadamente e fiquei justamente sem o meu filme de quinta-feira. O universo jogando na minha cara aquilo mesmo que eu estava escrevendo. As crianças aceitaram rapidamente que não haveria desenho àquela tarde e, enquanto eu discutia com o provedor de internet ao telefone, eles cataram um quebra-cabeças de mapa-mundi, levaram para a sala e ficaram montando e deliberando a respeito dos países que eles gostariam de visitar, os lugares onde moram pessoas que conhecemos, de onde vem a comida chinesa, se há dragões na Noruega e se precisa ou não de avião para chegar ao Japão, que, segundo Thomas, é o lugar especial dele, onde quer e vai morar um dia.

Enfim. Exemplos. Inspiração.

Nós somos como crianças buscando inspiração constante em quem acreditamos ter algo mais bem resolvido que nós. Seja a realização de um guru de yoga, seja a vida descomplicada de uma numerosa família portuguesa, seja alguém que lê oito livros ao mesmo tempo. Mas ao contrário das crianças, que não vêm a hora de partir para a ação e nos imitar, tentar sem vergonha ser como nós, nós, os adultos, parecemos nos refrear e nos contentar em apenas viver através dos outros. Colecionamos centenas de fotos do Pinterest de casas que não são as nossas, lemos sobre hábitos que não colocamos em prática, guardamos no coração ansioso essa vida potencial, porque um dia eu vou fazer isso, um dia eu chego lá, amanhã quem sabe, se minha rotina fosse diferente, segunda feira eu começo, mês que vem eu vou ter tempo, assim que eu terminar esse projeto vai dar pra começar, pena que eu nunca termino esse projeto.

Baumann diz que nessa nossa sociedade líquida procuramos incessantemente gurus (elementos externos a nós) para resolver nossas vidas e criamos metas inalcançáveis (ou metas alcançáveis cuja realização postergamos o quanto possível), pois enquanto temos uma meta, nos sentimos mais firmes no chão. O que acontece quando atingimos nosso peso ideal? O que fazemos quando terminamos de escrever aquele livro? O que eu faço quando já aprendi a costurar? O que eu faço quando finalmente fizer a minha viagem dos sonhos? O que eu faço com esse vazio imenso que sobra quando não há mais o que perseguir? Não é o medo de falhar que paralisa a maior parte das pessoas, mas o medo de conseguir.

Uuuuuuuuuuh.
Profundo, isso.

Enfim. Exemplos. Inspiração.

É preciso ser mais como nossos filhos e dar a cara a bater, enfiar o pé na jaca, guardar menos as experiências para o amanhã e simplesmente desligar a televisão e catar aquele livro de uma vez por todas. Começar alguma coisa e terminar o que se começou.

Inspiração é ótimo. Eu continuo assistindo ao canal da Tatiana e continuo lendo avidamente os posts da Maria. É fácil cair de novo na armadilha de maravilhar-se com o tempo que ela passa com os filhotes, e mergulhar na internet atrás de mais inspiração. Mais fácil ainda é ter o que admiramos tanto naquela vida: basta desligar o monitor e chamar as crianças para jogar um jogo de tabuleiro no tapete da sala. Ao invés de passar o resto do dia enfurnada no computador buscando mais dos reality shows que me viciam, eu leio um post, sinto-me feliz, e chamo as crianças para fazer um bolo.

Isso aconteceu duas vezes. E naquele dia eu tinha planos para fazer um bolo de milho da Dorie Greenspan, quando eu ainda tinha o livro comigo. É muito gostoso cozinhar com as crianças, se você desapegar um pouco da perfeição do resultado e estiver disposto a limpar um pouco de sujeira depois. (Mas em pouco tempo eles aprendem a quebrar os ovos sem que explodam e a não jogar farinha para todo lado, e o máximo que se deve fazer é mandar todo mundo lavar as mãos e a cara depois de enfiar a cabeça inteira na tigela do bolo. E se você tiver um pouco de TOC, basta deixar todos os ingredientes já medidos, e não tem risco de alguma mãozinha enfiar na massa uma xícara a mais de farinha.)

Esse bolo de milho, ouso dizer, correndo o risco de tomar pedradas dos leitores, botou no chinelo a maioria dos bolos de fubá que já fiz com receitas brasileiras. Melhor textura que já vi num bolo exclusivamente de farinha de milho. Nada esfarelento, super úmido. Não sei se de fato precisa dos grãos de milho. Mas muito, muito bom. Quem diria, bolo de fubá americano. ;) Sem preconceitos, povo. Com figos frescos e uma colherada de mel serviria facilmente de sobremesa para amigos.

A segunda vez, interessantemente, foi justo ontem, durante a ausência de internet. Estava um dia lindo, e eu queria muito levá-las ao parquinho ou brincar lá fora. Mas um torcicolo acachapante me impedia  e mesmo o relaxante muscular que eu tomara não fizera nem cócegas. Meio de mal humor, catei o celular e comecei a torrar minha franquia de internet fuçando por aí. Lá fui eu de novo do SeisMaisDois para ler o post novo. E de novo comecei a mergulhar, mergulhar, mergulhar. Ouvi as crianças fazendo sabe-se lá o quê no quintal, e de novo aquilo me despertou.

"Quem quer fazer um bolo com a mamãaaaaaeeeee???"

Diga-me se esse bolo não ficou lindo. :)
Lembrando do bolo de alecrim da Maria, resolvi testar um bolo de louro e laranja do David Leibovitz, cuja receita eu anotara antes de vender o livro. Mal sabia eu que havia encontrado o melhor e mais fácil pound cake que já fiz. Eu AMO pound cakes. São meus bolos favoritos, por conta da textura compacta. Quero muito depois omitir o louro e a laranja e simplesmente fazer um pound cake de baunilha usando essa receita, que além de tudo não precisa de batedeira. :) O truque de colocar uma linha de manteiga no centro do bolo produziu o pound cake mais lindo da minha vida. (Aliás, eu cortei a manteiga gelada em tirinhas bem fininhas com uma faca afiada e montei a linha, ao invés de às colheradas ou com saco de confeitar, como ele sugere.)

Laura veio correndo me ajudar a fazer o bolo, quebrou os ovos,  misturou tudo, ajudou a lamber a tigela no fim e depois a cobrir com o glacê aromático e crocante. E não fui só eu que adorei. Achei que as crianças estranhariam o sabor do louro, que fica bem forte, mas o bolo fez um sucesso estrondoso.

A foto não faz jus ao bolo. Mas tiver de correr pra fotografar antes que ele acabasse.

Inspiração não serve de nada se não inspirar ação. Se não fizer você se mexer, não é inspiração, é entretenimento, é distração. Inspiração de nada serve se só te traz aquela nostalgia melancólica de algo que você nunca viveu.



Noutro momento desses, inspirada pelos blogs minimalistas, embalando os livros que vendera, pensei na receita de gougères do livro da Dorie Greenspan que já estava empacotado para o correio. Deu-me uma vontade imensa de gougéres, e me dei conta de que já fizera éclairs e profiteroles, mas nunca sua versão salgada. Antes que me arrependesse de me despedir do livro, lembrei-me que havia uma receita no I Know How to Cook, minha bibliazinha de cozinha francesa. Em pouco mais de meia hora havia gougères quentinhas saindo do forno, que a pimpolhada recheou com manteiga e devorou no lanche da tarde. Consegui guardar alguns para comer depois com uma tacinha de vinho, versão sanduichinho, com manteiga, uma fatia fina de tomate bem maduro e folhinhas de rúcula. Os dois que sobraram foram de lanche da escola no dia seguinte, exatamente como meus sanduichinhos adultos, pois apesar de serem preparados exatamente como os nossos pães-de-queijo, os gougères se conservam maravilhosamente bem de um dia para o outro. Pão de queijo francês perfeito para o lanche da escola, Fica a dica.


Encerro o texto aqui, com essas receitas deliciosas, pois está na hora de buscar as crianças na escola e eu quero aqueles meus dez minutinhos para terminar de ler A Luneta Mágica, do Joaquim Manuel de Macedo. Que livrinho bom!

Torcendo para que esse texto inspire a ação de muita gente. ;)

(Disclaimer: aqui todo mundo lê bastante mas todos vêm TV e jogam video-game - com supervisão.)

BOLO DUPLO DE MILHO
(Do livro Baking Chez Moi, da Dorie Greenspan)
Rendimento: 1 bolo em forma de bolo inglês

Ingredientes:
  • 1 3/4xic (203g) farinha de milho
  •  1 1/2 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1/2colh (chá) sal
  • 1/2colh (cha) grãos de coentro moídos
  • 115g manteiga em temperatura ambiente
  • 1 xic (200g) açúcar
  • 3 ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 3 colh (sopa) leite integral
  • 1 xic. (125g) grãos de milho frescos cozidos, descongelados ou em lata (escorridos e secos em papel toalha)

Preparo:
  1. Unte uma forma de bolo inglês de uns 22cm, enfarinhe e coloque a forma sobre uma assadeira. Pré-aqueça o forno a 180oC.
  2. Numa tigela, misture com um fouet a farinha de milho, fermento, sal e coentro. 
  3. Na batedeira, bata a manteiga em velocidade média, até que fique cremosa. Adicione o açúcar aos poucos e bata por 2 minutos, até que esteja bem misturado. Não tem problema se ficar um pouco granuloso.
  4. Junte os ovos, um a um, batendo bem a cada adição.
  5. Em velocidade baixa, junte os ingredientes secos. Como o milho não tem glúten, não precisa se preocupar se bater demais, mas você só precisa de uma massa amarela e uniforme. Junte o leite.  
  6. Adicione o milho e misture com uma espátula para espalhar bem os grãos.  Aproveite para verificar se não ficou nenhum ingrediente seco mal misturado no fundo da tigela.
  7. Derrame na forma, alisando a superfície para que fique uniformemente espalhado. Leve ao forno por 55-65 minutos, até que uma faca saia seca do meio. Se depois de 30-40 minutos, o bolo estiver dourando demais, cubra com um telhadinho de papel alumínio, solto. 
  8. Transfira o bolo para uma grade e deixe que esfrie por 5 minutos pelo menos antes de tentar desenformar.

BOLO INGLÊS DE LOURO E LARANJA
(Do livro My Paris Kitchen, de David Lebovitz)
Rendimento: 1 bolo inglês

Ingredientes:
(bolo)
  • 6 colh. (sopa) (90g) manteiga + 1 colh (sopa)
  • 10 folhas de louro, frescas ou secas
  • 1 2/3 xic. farinha de trigo
  • 1 xic açúcar
  • 1 colh. (chá) fermento químico em pó
  • 1/2 colh (chá) sal
  • 3 ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 1/2 xic creme azedo (sour cream: creme de leite fresco + 1 colherinha de vinagre, deixado por algumas horas em temperatura ambiente)
  • Casca ralada de 1 laranja
  • 1/2 colh (chá) extrato natural da baunilha
(glacê)
  • 1 xic açucar de confeiteiro, peneirado
  • 1 1/2 - 2 1/2 colh (sopa) suco de laranja fresco
  • 1 colh (chá) licor de laranja, como Grand Marnier ou Cointreau

Preparo:
  1. Numa panela pequena, derreta os 90g de manteiga com 3 folhas de louro. Desligue o fogo, tampe e deixe em infusão por 1 hora. 
  2. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte com manteiga uma forma de bolo inglês de uns 22cm de lado, enfarinhe e forre o fundo com papel-manteiga. 
  3. Passe um pouco de manteiga em uma das faces das folhas de louro restantes (o jeito mais fácil é simplesmente esfregar de leve a folha na superfície do tablete de manteiga) e posicione as folhas no fundo da forma, com a parte amanteigada virada para baixo. As folhas não serão comidas. Elas apenas darão sabor ao bolo. Na hora de cortar as fatias, elas são descartadas.
  4. Numa tigela grande, misture a farinha, o açúcar, o fermento e o sal. 
  5. Em outra tigela, misture os ovos, o creme, as raspas de laranja e a baunilha até que fique homogêneo.
  6. Reaqueça a manteiga da panela, para que se liquefaça novamente e descarte as folhas. 
  7. Use uma espátula para misturar os ovos à farinha apenas até que esteja homogêneo. Então junte a manteiga e misture até que a manteiga seja absorvida. 
  8. Derrame na forma com cuidado para não mover as folhas. Alise a massa com a espátula. Então, disponha a manteiga restante por cima da massa, fazendo uma linha central no sentido do comprimento. (Achei mais fácil cortar tiras bem finas da manteiga do que fazer às colheradas). 
  9. Leve ao forno por 40-50 minutos, até que uma faca inserida no centro saia limpo. 
  10. Deixe que esfrie por 10 minutos sobre uma grade e então desenforme, retirando o papel manteiga da parte debaixo. 
  11. Quando esfriar, prepare o glacê, misturando todos os ingredientes até obter uma pasta lisa e opaca e que escorra devagar pelo bolo. Espalhe por cima do bolo e deixe que solidifique completamente. 
 GOUGÈRES
(Do livro I Know How to Cook, de Ginette Mathiot)
Rendimento: 6 porções (cerca de 3 por pessoa, dependendo do tamanho)

Ingredientes:
  • 1/2 xic manteiga sem sal (cerca de 100g)
  • 1 colh (chá) sal
  • 1 xic. farinha (cerca de 125g)
  • 4 ovos grandes, batidos
  • 1 3/4xic queijo Gruyère ralado 

Preparo:
  1. Numa panela grande, aqueça 1/2 xic água, a manteiga e o sal até que a manteiga tenha derretido, e então deixe abrir fervura. 
  2. Imediatamente e de uma vez, adicione a farinha, misturando energicamente com uma colher de pau. Abaixe o fogo para o mínimo e continue batendo por cerca de 1 minuto, até que a mistura se desprenda facilmente das laterais da panela. 
  3. Unte um prato grande com um pouco de manteiga e espalhe ali a massa e deixe que esfrie até temperatura ambiente. 
  4. Volte a massa para a panela desligada e junte os ovos gradualmente, até obter uma massa lisa, uniforme e brilhante. (Essa é a massa choux salgada. Se junto do sal, você usar 1 1/2 colh (sopa) de açúcar, voilà, você tem a pâte à choux doce para éclairs e profiteroles).
  5. Junte o queijo, misturando até que ele esteja bem espalhado. 
  6. Pré-aqueça o forno a 220oC. Unte uma assadeira grande com manteiga. 
  7. Com um saco de confeitar, ou uma colher, disponha porções de massa do tamanho de ovos pequenos, dando alguns centímetros de espaço para que os pãezinhos inflem. 
  8. Coloque a assadeira no forno e imediatamente reduza a temperatura para 205oC. Asse por 15-20 minutos para gougères individuais como esse, até que fiquem bem inflados e mais dourados do que você deixaria pães de queijo brasileiros. Atenção, pois se não assarem o suficiente (como aconteceu com minha primeira leva, que achei que já estavam dourados o bastante), eles desinflam. 
  9. Retire e sirva-os com o recheio que quiser, quentes ou em temperatura ambiente. Guarde os restantes embrulhados num pano de prato para que se conservem frescos até o dia seguinte. 

Cozinhe isso também!

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