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terça-feira, 19 de novembro de 2019

40 anos, 42km, um Dahl, um Frango


Acordei  àquela manhã de quinta-feira ao som de Parabéns A Você, cheiro de cappuccino quentinho e lambidas de cachorro usando chapéu de festa. Levantei um tanto atordoada, pois fora dormir tarde na noite anterior, e, saboreando pequenos goles do meu café, ri da cara do Gnocchi enquanto andava em direção à sala. Eu já sabia que eles tinham aprontado alguma, pois na hora do Boa Noite, Laura sussurrara ao meu ouvido: "Mamãe, amanhã, quando você acordar, fica na cama, tá, não pode levantar se não você vai ver sua surpresa!"

Abençoada inocência infantil.

Mas nem esse aviso me preparou para o que Allex montara na sala. Havia bandeirinhas e balões de látex coloridos por toda a parte onde se lia "Happy 40th Birthday!", e outros balões de hélio variados, incluindo um enorme unicórnio de crina cor-de-rosa (segundo Allex era para ter uma lhama também, mas o moço da loja esqueceu), e outros ainda amarrados com fitas coloridas numa sacola no meio da sala que tinha meu presente: um relógio de corrida, pra eu parar de correr carregando o celular. No aparelho de som, tocava uma playlist especial só de músicas lançadas em 1979. Laura me entregou um caixa inteira de cartões de aniversário que ela fizera durante um mês todo. Thomas pulou em cima de mim e colocou uma enorme coroa de plástico dourado na minha cabeça. "Porque você é a Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa, então precisa de uma coroa!"

Eu ria compulsivamente.

Feliz Quarenta Anos.


Naquela manhã, as crianças foram para a escola normalmente, ainda que àquele dia tivessem uma prova de corrida (para o qual vinham treinando havia dois meses) em um parque distante. Allex tirara dois dias de férias especialmente para meu aniversário e veio logo perguntar, enquanto tomávamos um café com mais calma, só nós dois: "O que você quer fazer no seu aniversário?"

"Correr. Primeiro, correr."

Explicando... Logo ao fim da visita de minha irmã, em Agosto, Allex veio empolgado: "Estou me inscrevendo na Maratona de Toronto, do Scotiabank!"
"Certeza? Você nunca correu mais do que 25km..."
"Ah, mas fiz 25km em trilha, com altimetria. A maratona é reta, asfalto... Acho que rola."
"Ok. Divirta-se."
"Tô inscrevendo você também."
"Mas hein?"
"É, ué. Vamos! A gente faz nossa primeira maratona juntos!"
"Vixe... Hmmm... Será?"
"Você já correu 30km, são só mais doze... hahah... Vai, você consegue!"
"Eita. Tá bom. Quando é?"
"Vinte de outubro."
"P*ta que pariu. Tem dois meses pra treinar, é isso?"
"É. Vai, pronto, já te inscrevi. Aqui ó... camiseta? Tamanho M... feminino... Motivação... Wine and Pasta!"
"Ei!"
"Ué..."
"É. Verdade. Você tá certo. Bora treinar então. Vixe..."

Até o fim das férias escolares continuei correndo como era possível. Às vezes as crianças montavam em suas bicicletas e pedalavam pelas ciclovias à minha frente, parando e olhando para trás para ter certeza de que mamãe ainda estava ali, ou me esperando para atravessar ruas e avenidas. Eles pedalavam e eu corria 10, 12, 16km, dependendo do dia, parando ocasionalmente para brincar um pouco num parquinho ou numa praia.

Em outros dias, quando não queriam sair de bicicleta, acordava mais cedo e ia correr trajetos mais curtos enquanto Allex se arrumava para o trabalho.
Vista para o lago, de uma das trilhas onde gosto de correr.

Mas o treino de verdade só começou quando as aulas voltaram, em Setembro.

Foi um mês atabalhoado. É sempre estranho voltar à rotina da escola, depois de dois meses de férias de verão. Além disso, Laura está agora na primeira série, e os horários dela finalmente são os mesmos dos do Thomas. Voltam as aulas, voltam os eventos escolares. Volta o preparar almoço de todo mundo logo de manhã cedo. Voltam os gostos e desgostos que transforma a montagem do lanche num quebra-cabeça de 5 mil peças. Thomas não gosta de fruta fresca. Laura não gosta de nada "cheesy" (sim, Laura anda se revoltando contra queijo.) Thomas não come comida quente na marmita, Laura não gosta de levar sanduíche. Eu quero esganar todo mundo e mandar comer o que a mamãe preparou e parar de encher os pacová e me arranjar sarna pra coçar. Mas né? A gente faz aquele esforço zen para não matar a prole.

Eu tinha vários projetos envolvendo ilustração e novas exposições engatilhados para Setembro, mas além da adaptação à rotina escolar, as reuniões com professor, a anual caça às roupas de inverno que não cabem mais porque as crianças cresceram dois números de calça e de bota em quatro meses, minha cabeça só pensava em uma coisa... Maratona.

Eu não sou tonta nem nada, e por mais que me jogue loucamente em algumas empreitadas, gosto de pesquisar onde estou me metendo para não me estrepar muito lá na frente. Até então eu vinha correndo muito mais esporadicamente, 5km por dia, dez de vez em quando, e num sábado me dava a louca e eu ia correr vinte e um. Assim, come um donut, sai pra correr, volta três horas depois, pro espanto da família que não sabia das minhas intenções. Ou corre até o centro da cidade, toma uma cerveja na Steam Whistle, a cervejaria que fica em frente à CN Tower, e volta correndo tudo de novo. Manda uma foto da cerveja pro marido, pra ele dar risada e saber quando começar a preparar o almoço.

Decidi que ia tentar fazer mais ou menos direito. Vi videos e li textos sobre maratonistas e ultra-maratonistas, gente de trail running e povo de Iron Man. Lembrei de tudo o que eu fazia na época em que tinha treinador. Peguei os pontos em comum dos treinos e da alimentação e vi como melhor adaptar isso tudo à minha realidade.

E lá fui eu.

Allex achava graça que, se antes meu feed do YouTube só tinha video de comida, agora só tinha video falando sobre fascite plantar e síndrome do trato iliotibial. Quem corre vai entender. ;) O marido, enquanto isso, fazia seus treinos e trocava figurinhas com amigos ultramaratonistas (e quando paro pra pensar, me surpreendo com a quantidade de gente que a gente conhece que corre 70km em montanha...)

Comecei a planejar melhor meus treinos, para ir aumentando as distâncias um pouco por semana. Li em várias fontes que meus treinos longos não poderiam ser maiores que 30% do treino total da semana, então logo me dei conta de que isso de correr meia horinha por dia não ia mais rolar.

Conforme as distâncias aumentavam, percebi que aquela dieta que a nutricionista fizera para mim dez anos antes, quando corria com treinador no Brasil, era insuficiente. Eu andava com fome, e o objetivo não era emagrecer. Era correr bem.
Café da manhã de corrida. Torrada com tahini, banana e mel, pêssego e uvas.
Meu café da manhã mudou muito pouco. Continuei na minha torradinha com cappuccino, mas colocando um pouco mais de frutas no prato. Às sextas-feiras, quando fazia algo entre 18 e 26km, acrescentava mais uma torrada com queijo ao prato. Levava na pochete de corrida sempre duas bananinhas (aquele docinho de banana e açúcar) trazidos do Brasil por minha mãe, pois nunca na vida aquele Gel bizarro de corrida me desceu.
Café de treino longo: Torrada com tahini, banana e mel, torrada com manteiga e queijo, pitaya e uvas. E Cappuccino, claro.

"Você vai ter que mudar o trajeto. A Maratona sai do centro e vem pra esses lados pelo lago, você vai achar chato fazer o mesmo caminho...", avisou Allex.

E por isso saí me enfiando em novas ciclovias e trilhas que me levassem por parques e caminhos que eu nunca percorrera. Descobri pedaços lindos de Toronto, que me fizeram ainda mais grata pela oportunidade de morar aqui.




Os treinos longos são sempre meus favoritos. Lembro de um amigo nosso avisando: "Correr longa distância é mais cabeça do que perna - você tem que se acostumar com a ideia de que vai passar MUITO tempo correndo. É a cabeça que quebra primeiro, o corpo depois." No melhor estilo Dorie, quando estou perto de chegar na distância a que me propus a correr àquele dia (pois acordo e decido assim, de supetão, "Hoje eu vou correr 25km, porque é isso que me deu vontade") saio cantarolando: "Just keep running... Just keep running..."

Correr virou para mim muito mais que um exercício físico, mas um momento completa e unicamente meu, que não serve a mais ninguém a não ser... eu. É meu cuidado comigo. Meu momento de silêncio, de solitude, de botar a cabeça no lugar. Eu corro sorrindo. Assobiando uma música. Parando para olhar o mirante ou procurar um bicho selvagem ao ouvir um farfalhar de folhas ao meu lado na trilha. Correndo, já tive encontros com guaxinins, coelhos, esquilos, chipmunks, cobras, falcões, gaviões, corujas, corvos, garças pretas, uma raposa e dois coiotes. Coisas de Toronto. Há muitos corredores verdes no meio da cidade, e a bicharada simplesmente circula por aí.

Volto pra casa cansada e feliz, cheia de endorfina. O ritual é sempre o mesmo. Ainda suando, sento pra comer meu iogurte com fruta, agora com manteiga de alguma castanha e sementes de cânhamo. Banho, e seguir com a vida normal.
Iogurte natural, pêssegos, manteiga de amêndoa, sementes de cânhamo e mel.
Na hora do almoço, durante a primeira semana inteira de treino segui uma receita de um livro ayurvédico que Allex me dera de presente há muitos anos e que minha irmã trouxera para mim em sua visita. Arroz integral e legumes no vapor temperados com ghee e cúrcuma. Simples demais e muito bom.  Só isso mesmo. Quando os legumes estão prontos, você esquenta o ghee numa panelinha, dissolve um pouco de cúrcuma em pó e derrama isso por sobre os legumes. Nham!
Arroz integral com legumes no vapor e ghee com cúrcuma.
Como isso era bem mais que minha usual torrada com abacate, eu não tinha fome no meio da tarde. Se tivesse, comia uma fruta. Os pêssegos e nectarinas do fim do verão estavam um desbunde!
Dahl de lentilhas e legumes no vapor com ghee, castanhas e coco ralado.
O jantar eram aqueles mesmos legumes no vapor e ghee, polvilhados com castanha de caju picado e coco ralado, e um fenomenal dahl de lentilhas cuja receita deixo aqui. As crianças amaram a refeição, para quem servi também arroz.

DAHL AYURVEDICO TRI-DOSHA
(Do livro You Are What You Eat, Cooking for body, mind and soul, de Sandra Herber-Percy)

Ingredientes:
  • 1 xic. lentilhas (vermelhas, amarelas ou qualquer outro tipo - usei uma mistura da vermelha, preta, marrom e verde)
  • 8 xic. água
  • 2 xic. abóbora ou abobrinha em cubos
  • 1 xic. cenoura fatiada
  • 1/2 colh.(chá) assafétida (se não tiver, use 1/4 cebola pequena bem picadinha, que foi o que fiz. O sabor é ligeiramente diferente e não é uma substituição autêntica, porque há muitos indianos que não usam cebola e alho de jeito nenhum. No entanto, fica delicioso igual.)
  • 2 colh. (sopa) ghee ou óleo vegetal
  • 1 colh. (chá) cúrcuma em pó ou fresca, ralada
  • 1 colh. (chá) suco de limão
  • 1 colh. (chá) sal marinho
  • 1/2 colh (chá) gengibre fresco ralado
  • 2 pimentas verdes, sem sementes, picadas (aqui, vai no gosto, na verdade, e dependendo do tipo de pimenta verde que você encontrar. Comprei uma pimenta verde que era grande e forte, e usei apenas uma e foi o bastante)
  • 1 colh (chá) sementes de mostarda
  • 1 colh. (chá) sementes de cominho
  • 1 colh (sopa) coentro fresco
  • 1 colh (sopa) de coco ralado fresco

Preparo:
  1. Aqueça 1 colh (sopa) do óleo ou ghee numa panela grande. Junte a assafétida, cúrcuma e suco de limão e refogue em fogo baixo por 30 segundos. Junte as lentilhas e refogue por 1-2 minutos.
  2. Junte os legumes, e misture bem por 1-2 minutos.
  3. Junte a água, pimenta, sal e gengibre. Leve à fervura,  cubra, abaixe o fogo e mantenha em fervura branda por 45 minutos, ou até que as lentilhas estejam se desmanchando.
  4. Aqueça o óleo restante em uma frigideira pequena. Junte o cominho e sementes de mostarda e cozinhe até que as sementes de mostarda comecem a pular. Desligue o fogo e adicione o óleo e sementes às lentilhas.
  5. Sirva o Dahl com coentro e coco ralado por cima.  

Variei os legumes durante a semana, usando também berinjela e brócolis e temperando o ghee não só com cúrcuma, mas também com um pouco de gengibre fresco picado. Castanhas por cima e tudo cobrindo arroz.
Arroz integral, berinjela e brócolis no vapor, com castanhas e gengibre.
Noutro dia, já sem arroz, fiz novamente aquelas mesmas berinjelas, mas sobre soba, e temperado também com um nada de shoyu e folhas de coentro.

Soba com berinjelas no vapor.
Essas primeiras semanas comendo mais leve me deram um gás para de fato engatar os treinos. Pela primeira vez desde o nascimento do Thomas, eu estava correndo consistentemente e melhorando. Eu me sentia bem, forte e motivada. Junto dos treinos de força de kettlebell para evitar lesões, comecei a ver meu corpo reagir bem àquela nova rotina.

E lá estava eu, no meu aniversário, a 17 dias da maratona, querendo sair para correr.

Chovia leve. O dia estava feio. Allex saiu para correr comigo, mas não sem antes apanhar dois chapéus de festa e colocá-los em nossa cabeça.

"Você acha que eu vou sair assim?"
"Vai. É seu aniversário."

E lá fomos nós correr na chuva de chapéuzinho colorido.

Foram os 12km mais engraçados da minha vida. Todo canadense que passava por nós desejava Happy Birhtday! Caminhões buzinavam. Velhinhas riam da nossa cara. E nós ríamos de volta. Foi sensacional.

Saímos para almoçar só nós dois depois disso, e então fomos buscar as crianças na escola. Depois de algum descanso, saímos para comer uma pizza numa das poucas pizzarias da cidade que usam forno à lenha. Apesar de estar caindo de sono, foi um bocado divertido. Principalmente porque a família toda usava chapeuzinhos coloridos e eu, claro, fui a louca andando por aí de coroa dourada na cabeça. "Vocês foram ao Medieval Times?", perguntou a garçonete, servindo-me meu segundo Spritz da noite. "Não", respondeu Allex, "É o aniversário de 40 anos dela e a gente tá fazendo ela passar vergonha." Por conta disso, ganhamos sorvete de chocolate com uma vela de aniversário em cima. ;)

Na manhã seguinte, com crianças na escola e Allex ainda de férias, arrastei o marido para o treino longo. O dia estava lindo e ensolarado. Subimos o rio Humber e eu ria apontando para ele todos os locais que haviam usado como cenário na série Handmaid's Tale. Achava engraçadíssimo que os personagens quisessem fugir para Toronto mas já estivessem aqui. (Explico: Toronto e Vancouver são cidades canadenses amplamente usadas pela indústria cinematográfica americana para fingir que são Nova York ou outras cidades americanas, pois elas se parecem muito e são mais baratas.)


Paramos sobre uma ponte abaixo da ferrovia para comer uma bananinha e voltamos. Nos separamos num certo ponto, pois ele queria voltar logo para casa indo por cima, e eu queria fazer todo o trajeto de volta pela margem do lago. Ele correu 21km, eu queria fazer 30.

Sozinha, descendo à margem do rio, ri novamente da minha sorte com bichos. Aproximei-me do rio ao ver um acumulado de gente batendo fotos, quando me dou conta do que está acontecendo: a piracema do salmão. Lá iam os salmões imensos rio acima, se debatendo nos ares, cheios de convicção e coragem, tentando infinitas vezes ultrapassar a pequena queda d'agua que os separava de seu objetivo.


Quando o primeiro deles conseguiu, dei um gritinho de alegria com braços para o ar e continuei a correr. Se o salmão consegue subir aquele rio, eu vou conseguir correr minha maratona. Just keep running! Just keep running!

Na última semana antes da prova, minha sogra veio visitar. Consegui correr uma ou duas vezes, mas no restante do tempo simplesmente passeamos. As crianças faltaram dois dias na escola para que pudéssemos ir até Algonquin Park, pois lá o Outono já chegara oficialmente e as árvores estavam todas coloridas. Alugamos um chalezinho simples perto do parque, à beira de um lago, e fomos passear pelo parque imenso, lindo, inteiro dourado e vermelho.


Passávamos o dia fora, em trilhas pelo parque. Capas de chuva protegendo do tempo ruim mas que não desanimou nossos espíritos. Eu ia na frente com o cão e com Thomas, que ia "Kilian-Jornando" * todo o caminho íngreme de pedra e lama. Mais tarde eu me inspiraria nessa visão do meu filho correndo a trilha sem medo, mas estou me adiantando.

*Procure vídeos do Kilian Jornet, se não sabe quem é, e vai entender do que estou falando.

O último local a que fomos antes de voltarmos a Toronto foi à pedra mais antiga do mundo. É um morro rochoso cuja datação de carbono é tão antiga que o local inteiro parece ter sido importado de Marte.


Foi uma viagem curta mais deliciosa. Não há nada que eu goste mais do que me enfiar no mato, principalmente com minha família.
De volta a Toronto, as primeiras árvores a ficarem vermelhinhas.
No dia da Maratona, minha sogra ficou com as crianças. O outono começara a dar as caras também em Toronto, e estava frio. Fazia oito anos que eu não participava de uma prova de rua, sendo a última a Meia-maratona do Rio, que eu corri sem saber que estava grávida de Thomas. Fiquei impressionada com a participação popular durante toda a prova. Muita gente por todo o trajeto carregava cartazes engraçados, como "You payed to do this!", "It seems like a huge effort just for a banana!", "Pain is only the french word for bread!", "You think your legs hurt, my arms are killing me!" "You already ran 40km, I can't run even 1", "There's beer at the end!", "The faster you run, the sooner you're drunk!"e tantos outros. Havia grupos de música tocando e dançando em vários pontos do caminho. Crianças distribuindo pretzels e bananas para os corredores com suas mães. Gente fantasiada torcendo e soltando bolhas de sabão. A energia toda da prova era muito boa, e me lembrou da sensação de participar da São Silvestre, há tantos anos atrás.
Preparando para a largada em Downtown.
Allex se machucou no quilômetro 21, e por um instante fiquei triste, achando que ele abandonaria a prova. Mas logo se recompôs e me alcançou e por algum tempo corremos juntos outra vez até ele me dizer para ir no meu ritmo, que ele iria mais devagar. E assim fui. Assobiando, sorrindo, feliz.

Quando cheguei ao quilômetro 32, conhecido como o "paredão", eu estava me sentindo ótima, o que me empolgou ainda mais. O problema desses últimos dez quilômetros, é que eles consistiam de loooooongas retas em áreas industriais, feias e sem sombra. O frio fora embora, e os dezoito graus ao meio dia começavam a cobrar pedágio. O calor (sim, 18oC é quente) sob minha camiseta preta incomodava. E aquelas retas eram infinitas. Você via os quilômetros passando e não via a curva de retorno. A cabeça começava a pirar, pensando que tudo o que a gente ia, teríamos de voltar.

Foi no quilômetro 37 que a pilha começou a acabar. Meus quadris doíam. Meus joelhos doíam (Olá, iliotibial!). Meu abdome doía. Lembrava dos videos de corrida, treinadores avisando: "você vai cansar de simplesmente passar tanto tempo em pé".

Comecei a desacelerar. Então pensei em Allex: "o negócio é não pensar nos 42. Pensar que são só dez. E dez é um treino de terça-feira. Cinco K é uma volta no parque. Você consegue dar uma volta no parque."

Eu consigo dar uma volta no parque. É só uma volta no parque. São só 5k.

Não parei de correr. A reta industrial acabou e subi um viaduto de volta a Downtown. As ruas se fechavam por entre prédios altos novamente. Eu ouvia de longe gente torcendo. Eu ouvia o narrador da corrida falando, empolgado, o nome de quem terminava. Meu sorriso se abriu largo de felicidade e de repente havia força para aqueles últimos dois quilômetros. Acelerei. Acelerei mais. Fiz a curva para a praça da prefeitura, e ali estava a multidão torcendo atrás das barricadas vermelhas, a linha de chegada, e todo mundo gritava e aplaudia como se me conhecesse. Meus olhos se encheram de lágrimas. Energia tão boa. Ouvir aquela voz no microfone dizendo meu nome quando cruzei a linha dos 42km foi uma das coisas mais fantásticas da minha vida. Felicidade plena.

Foi perfeito.

Foram 4 horas e 48 minutos correndo sem parar. Muito longe de ser um tempo impressionante. Mas foi o bastante para mim. Eu fiz. Eu terminei. Eu queria muito, fui lá e fiz. Quarenta quilômetros para comemorar meus quarenta anos. E mais dois de lambuja.

Allex terminou depois de mim.

Voltamos, exaustos, pernas duras, medalha pesada no peito, de metrô para casa. Ríamos. Meu deus do céu, como tinha sido difícil! Mas como era legal! Vixe, imagina povo que faz 50? E 100? Nossa, não rola. 42 acho que já foi o bastante.

A cerveja e o macarrão em casa eram divinos. Eu me sentia bem.

Passado o cansaço, que perdurou por alguns dias, não sobrou nenhuma lesão. Sobrou a surpresa de me dar conta de que meu abdome e meus braços doíam mais que as pernas.

Fazer uma maratona foi como parir. Tanto tempo de preparo, chegou a hora, acelera, acelera, parece que não vai, eita, que maravilha!, terminou, você conseguiu. Também é como parir porque depois que passa o efeito do primeiro filho, você esquece o sofrimento e decide ter o segundo. Por isso, na semana seguinte, me inscrevi para minha primeira ultra. Cinquenta quilômetros em trilha, daqui a um ano. Muito tempo para treinar. Para fazer maratonas em parques. Para melhorar minha velocidade, para passar menos tempo correndo. Mas em trilha. Chega de asfalto. Correr em asfalto foi chato. Gosto de mato.

Três semanas depois, fiz minha primeira prova de trail running. 25km no mato. Lama e pedras e limo e raízes escondidas pelas folhas mortas de outono. Lembrei de Thomas "Kilian-Jornando", levantei os braços na altura do ombro pra me equilibrar e simplesmente soltei o corpo. Vai. Pula de pedra em pedra. Aceite o fato de que você vai cair em algum momento, dizia um video de uma ultra-maratonista numa entrevista. Aceito. Eu sei que vou cair. Não vou ter medo. Só pula. Pulei. Caí. Duas vezes. Xinguei, ri, limpei a lama das luvas (porque fazia -7oC àquele dia) e continuei correndo. Meu eu de vinte anos atrás, se borrando de medo de altura nas trilhas, ficaria orgulhosíssima.

Feliz Quarenta Anos.

....


Uma das abóboras, design da Laura.

No meio do caminho, claro, teve Halloween. Laura me pediu para mandar um lanche "scary", e pela primeira vez na vida me dei ao trabalho de fazer isso. Eu não curto essa coisa de fazer comida parecer outra coisa. Pra mim comida tem que parecer comida. Mas... enfim. Foi divertido.

Preparei muffins de abóbora (com o miolo da abóbora que virara Jack-O-Lantern), com o glacê de açúcar e limão em forma de teia de aranha.  Improvisei aranhas com uvas verdes e salsão. Thomas comeu o muffin e deixou a uva, Laura comeu a uva e deixou o muffin. Né? Minha sina. (Improvisei os muffins usando de base aquela mesma receita-base da Martha Stewart que já linkei aqui várias vezes. Mas esqueci de escorrer e apertar a abóbora cozida e o purê ficou muito úmido, o que afetou toda a receita...)



 Também mandei ovos cozidos, com lascas de azeitonas encaixadas em buraquinhos que escavei com a ponta da faca para fazer os olhos e a boca. Ghost-eggs. Esse fez sucesso com os dois.

Teve sanduíche de queijo e salame demoníaco, com lascas de tomate-cereja como olhos brilhantes. Thomas adorou. Laura reclamou que foi difícil de comer, porque seus dedos tocavam o salame ao invés do pão. Ai, ai...

 
Por último, Cheesy Feet da Nigella, suuuuuuuuper fáceis e deliciosos. Por que pés? Porque eu não tinha nenhum cortador de biscoito assustador. Eles foram tão fáceis de fazer e ficaram tão gostosos, que pretendo prepará-los mais vezes para mandar de lanche da escola. Apesar de bem "cheesy", Laura aprovou.



No meio disso tudo, dos curries ayurvédicos e tranqueiras de halloween, continuo no meu surto de cozinha saudosista. Rolaram panquequinhas de ricotta e espinafre, um dos pratos que minha mãe mais fez para mim e para o Allex em nossa fase mais vegetariana. Quando eu era criança, elas eram recheadas de carne moída e eram deliciooooosas. Acabei usando a receita de um dos livros da Tessa Kiros, mas apesar de amar os crepes doces dela, a versão salgada foi meio difícil de acertar e achei que molho branco MAIS molho de tomate ficou meio pesado. Delicioso, mas pesado. Próxima vez vou na receita simples da minha mãe para a massa dos crepes e faço como ela, servindo apenas com molho de tomate.
Amor puro, panqueca de ricota e espinafre.
 Quando Allex viaja a trabalho, sempre aproveito para preparar frango, pois ele não gosta, mas as crianças sim. A pedido deles, resolvi preparar o frango frito da minha mãe, uma das coisas que ela mais preparou para mim e para meus filhos desde que nasci. É a quintessência da casa dos meus pais.

Liguei para ela e pedi a receita. Ao contrário das panquequinhas, nesse caso, tinha que ser a receita da mamãe.

Como sempre, muito didática e solícita, minha mãe preparou o frango na casa dela e fotografou todos os passos, explicando minuciosamente o preparo.

Fui ao mercado comprar peito de frango, mas quando cheguei lá, quase caí pra trás com o preço de dois peitinhos orgânicos. Era o preço do frango inteiro. Vai o frango todo, então, que pelo menos rende mais refeições e faço caldo com a carcaça. Fora que sempre me divirto destrinchando o bicho. Ok, acho que perdi um zilhão de leitores veganos e vegetarianos agora. A técnica. A técnica eu acho divertida. De separar as partes. Ah, você entendeu.

Estava tudo bem não fosse o fato de a geladeira estar vazia, pois eu acabara de passar por uma daquelas minhas semanas divertidas de "rapa-despensa". Fui vendo a lista e botando no carrinho. Vendo e botando. Na hora de pagar, fui encaixando tudo nas duas grandes sacolas que levo comigo e na minha mochila.

"Quer ajuda pra levar até o carro?", perguntou a caixa.
"Eu tô a pé", respondi. Ao que ela me lançou um olhar desconfiado."Eu aguento. Sou mais forte do que pareço."

Faz a conta... 1 frango inteiro, 4 litros de leite, 2 litros de água de coco, meio quilo de queijo, 1,7kg de iogurte, 1,5kg de maçã, 1,5kg de pêssego, meio quilo de tomate, meio quilo de cenoura, 2 caixas de ovos, 1 abóbora, 1 couve-flor... Pois é. Esse 1,5km carregando essa tralha no braço pareceram MUITO mais longos do que os 42 correndo... ;)

Aí no fim do dia, Allex me pede ajuda para ROLAR (literalmente) os pneus de neve pra fora do nosso armário e até a garagem, para que ele pudesse aproveitar a revisão do carro e já trocar os pneus.

"Vai, Ana! É cross fit!", brincou ele.
"Minha vida é um cross fit, Allex."


 Durante a viagem dele, destrinchei o frango e com o peito preparei o franguinho frito, macio e suculento, de crostinha crocante e com gosto de comida de vó. Servi com macarrão gratinado e couve refogada. Foi a alegria da pimpolhada. "Mamãe, agora faz a sopa da vovó? E o rocambole?" Tá na lista, filho.
E outro amor puro: frango frito.
 O que sobrou do frango virou uma caçarola com molho de tomate, também da Tessa. E a carcaça foi cozida com legumes para virar 2 litros de caldo de frango que foram direto para o freezer. Contei o causo para meu pai, que ria, perguntando se o frango era do tamanho de um cisne, tanta comida tinha vindo dele.

Para arrematar a seção saudade, bolinho de chuva, que meus filhos nunca tinham comido na vida. Usei a receita da Rita Lobo e o sucesso foi retumbante. A única reclamação foi que a receita rendia muito pouco.



FRANGO FRITO DA MINHA MÃE

Ingredientes:
  • 2 peitos de frango sem pele
  • 1 colh. (chá) sal
  • leite (cerca de 2 xic)
  • 2-3 ovos
  • 2 xic. farinha de rosca
  • óleo para fritar

Preparo:
  1. Limpe bem o frango, tirando qualquer nervura. Corte em pedaços mais ou menos iguais, do tamanho de uma bolinha de ping-pong, lembrando que o frango encolhe depois de cozido. (Prefiro tamanhos menores, pois é garantia de que o frango vai cozinhar por dentro sem ficar seco ou queimado.)
  2. Numa tigela grande, misture o leite ao sal e coloque ali o frango já cortado. Cubra com um prato e leve à geladeira por pelo menos meia hora. 
  3. Retire da geladeira uns quinze minutos antes de usar, para perder um pouco o gelo. 
  4. Numa outra tigela, bata com um garfo dois ovos com cerca de meia xícara do leite do frango (aprendi a não desperdiçar nada com minha mãe e meu pai, veja bem.) até que fique misturadinho. (Segundo minha mãe, o leite na mistura de ovos para empanar deixa a casquinha mais fina e leve). Num prato, disponha metade da farinha de rosca.
  5. Retire o frango do leite (reserve o resto do leite, para se precisar bater com aquele ovo que sobrou). Pegue um pedaço de frango por vez, passe na farinha de rosca, então no ovo, e depois na farinha de rosca novamente e deixe num prato ao lado. (O leite, também, segundo mamãe, impede que o ovo faça aquele rabicho pingando quando a gente está empanando - a mistura fica mais homogênea.)
  6. Quando todo o frango estiver empanado (use o último ovo com um pouco daquele leite, e o resto da farinha de rosca, se precisar), coloque uns dois dedos de altura de óleo vegetal numa frigideira grande e aqueça em fogo médio-alto. Coloque um fósforo lá dentro. Quando o fósforo acender, o óleo está a 180oC. (Minha mãe não gosta de fritura com muito óleo, então usa um pouco de azeite e manteiga, mas desse jeito precisa ficar com uma colher banhando o os pedaços de frango. Esse jeito dela prefiro fazer quando é filé e não nuggets.)
  7. Enquanto isso, ligue o forno a 180oC.
  8. Coloque os franguinhos no óleo quente, sem encher muito a frigideira, para que a temperatura não abaixe. Cozinhe até dourar embaixo e vire-os com uma colher. Deve demorar uns dois a três minutos de cada lado, se os nuggets estiverem pequenos e o óleo na temperatura certa. Retire os franguinhos prontos, coloque-os numa assadeira e leve ao forno. Isso vai garantir que continuem cozinhando, para que nenhum fique cru por dentro, e a casquinha continue crocante. Termine de preparar o restante. 
  9. Simples e bom. 




quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Julho veio, julho foi, o verão que acaba, um bolo mármore.


Minha cunhada, na Noruega, faz sempre a piada: esse ano a gente perdeu o Verão, porque ele caiu numa terça-feira. Aqui em Toronto, apesar de termos tido vários dias de temperaturas altas e sol forte, o Verão, que tanto custou a chegar, parece querer fugir rapidamente. Os dias de 34oC se intercalam com alguns de 17oC, a brisa quente, devagar e úmida foi substituída pelo vento frio que arrasta as nuvens e traz a chuva, e o sol começou a se por a cada dia mais cedo. A noite já não cai às dez da noite, mas às nove, e o coração palpita a essa contagem regressiva, sem querer desperdiçar as últimas oportunidades de aproveitar a estação que se vai.

O dia amanhece cedo. No início, quase antes das cinco da manhã, agora já às seis. Sabendo como são seis meses sem usar a varanda, levo meu cappuccino para fora, para o cheiro da rua e do parque, para o som das gaivotas, dos casais de Cardinal que fizeram ninho no topo do prédio, e da obra intensa logo ao lado, que inicia suas marteladas em horários surreais.

As crianças têm seu tempo de desenhos e video-game enquanto me sento à prancheta e ao computador para trabalhar por um par de horas. Escrevo meu livro, pinto aquarelas, resolvo pepinos. Enquanto isso o forno trabalha: um bolo simples, uma porção de pão-de-queijo da Marina ou aqueles muffins de sempre, adaptados aos ingredientes disponíveis.

Cada vez mais as receitas básicas me atraem. A baunilha, a laranja, os ovos e o creme. Sabores limpos e claros, processos simples, resultados que falam mais ao coração da criança que fui e das crianças que fiz do que ao adulto gourmet que um dia almejei ser.

Desliguem tudo, nada mais de telas, computadores, tvs, celulares, é hora de olhar a janela, hora de ver o dia que se estende lá fora e mergulhar no seu ar quente enquanto ele há. Hora de levar o cão a um passeio longo, sem coleira, a correr por entre seus companheiros caninos, cheirar uns rabos, latir um tanto; mandão, esse cão que lembrou que é pastor desde que pisou em terras canadenses. É hora de subir em pedras, de escalar árvores, cutucar insetos, procurar as últimas amoras que os esquilos e os passarinhos ainda não apanharam.

O retorno à casa é uma parada breve. Banheiro para quem precisa, enquanto monto o piquenique.

Piquenique é sinônimo de Julho. 



O piquenique é o almoço, é o lanche da tarde, tudo num só. É meu atestado de férias, sem hora, sem pressão, sem cobrança. O abandono total e completo daquela expectativa irreal do Piquenique Na Provence de tantos livros de cozinha que eu colecionara ao longo da vida, com quiches e macarons, e saladas, e pães recheados, e louças e talheres em cestas de vime com alças para guardanapos de linho. Essa história linda em livro mas que na realidade é um grilhão do perfeccionismo e da memória fabricada. O que meus filhos querem é estar do lado de fora, é brincar e correr e não sentir fome. Quando mostro a foto do almoço de legumes e restos de waffles, alguém ri: "Mas isso é almoço?!". No verão Canadense, é almoço qualquer petisco que lhe permita ficar o dia todo na grama. Não há tempo de voltar para casa e bater um arroz com feijão. Não há tempo para os deliciosos cochilos de tarde toda após a manhã de praia. O Verão vem sorrateiro e vai embora sem aviso, e o tempo que se passa à mesa e à cama é tempo de Verão perdido.

Apanho um pouco do que saiu do forno e esfriou na bancada, ou mesmo o que restou dos waffles ou panquecas do café da manhã. Se sobrou pão, monto sanduíches, de prosciutto com manteiga e alface, de tahini, abacate e pepino. Se sobraram crepes, recheio de pouco queijo e da sobra da salada de ontem e faço rolinhos refrescantes e fáceis de comer.

Apanho legumes como salsão, cenouras, pepinos, tomatinhos. Junto as frutas que houver: morangos, cerejas, mirtilos, pêssegos, melancia, ameixas amarelas (que noutro dia uso para fazer essa torta deliciosa). Um queijo? Um queijo, em cubos, se houver. Meto os potes, que não são especiais, mas meramente os da escola, e as garrafas de água na mochila, com uma toalha de acampamento, leve e compacta, os trajes de banho dos pimpolhos num saco plástico e um livro para mim. Às vezes vamos à pé, às vezes as crianças vão de bicicleta, às vezes precisamos pegar o metrô. O cão, ainda de coleira, esperando, vai junto sempre.

As crianças decidem a qual parque vamos. A diversão é essa. Num dia, ao Splash Pad, esse complexo de chafarizes gratuitos em vários parques da cidade. Todos os playgrounds têm Wading Pools, piscinas circulares e cônicas, rasas, cuja água é trocada e tratada por funcionários temporários da prefeitura umas três vezes por dia. Todos os playgrounds são diferentes. Alguns parecem castelos medievais de madeira. Alguns são complexas estruturas de metal para crianças se pendurarem das formas mais escalafobéticas. Alguns têm imensos tanques de areia com pás de construção civil e água para enormes diques e canais. Alguns são simples, mas são sempre uma agradável novidade quando encontrados.

Laura quer testar os Monkey Bars de todos os parques da cidade, num ponto em que cria bolhas nas palmas das mãos de tanto se pendurar. As bolhas estouram e viram calos, pois ela não se importa com a dor. Vejo seus músculos se desenvolverem ao longo das férias. Thomas encontra os mesmos amigos em parques diferentes. We go to the best parks, diz uma mãe para mim, depois da terceira vez em que nos encontramos ao acaso.



Quando chegamos, todos querem comer. Arrancamos os sapatos, sentamos na grama e disponho as opções do dia. Peço para que comam bem e com calma antes de sairem correndo. Nunca gostei do hábito que via com frequência no Brasil e continuo vendo aqui, da babá ou da mãe com o saco de biscoito aberto e a criança ao longo de três horas "snacking" enquanto brinca. Ou come, ou brinca. É preciso dar tempo ao corpo para que ele entenda o que está fazendo e se dedicar integralmente a isso. É preciso prestar atenção ao que se faz. Não dá para prestar atenção à subida do trepa-trepa com um sanduíche na mão. Não dá para prestar atenção ao gosto do pêssego quando se está cavando no tanque de areia.

Claro, isso nem sempre funciona. As vezes catam um bolo e saem correndo.

Às vezes eles sentam. Comem sem pressa. Explicam em detalhes seus planos para aquele dia. Vou botar o biquini e brincar na water, mamãe. Vou construir um castelo no sand box para esse galho em forma de dragão destruir. Vou chamar aquele menino para brincar de Grounders, para brincar de Tag, para brincar de Hide And Seek.. Mamãe, I'm going to be a Zombie! Os nomes das brincadeiras já são outros. O inglês se intromete em nossa conversa.

Eles correm para longe. Combinamos que não podem sair da área do Playground. Afago o cão, guardo os potes até a hora do lanche. Olho em volta. Abro meu livro.

Às vezes passam-se cinco horas.

Noutras vezes, passam-se duas, e eles querem procurar um parque diferente. Vamos a dois, três num dia. Vamos ao lago.



Às vezes ficamos no lago.

Às vezes saímos do lago para um parquinho, do parquinho para o lago, do lago para casa.

Às vezes ficamos perto de casa. Noutras andamos seis, sete quilômetros.

Eles correm, escalam, sobem, descem, escorregam, puxam, empurram, constroem, destroem, criam, falam, gritam, andam, contam, conversam, discutem, correm de novo.

Fico impressionada com sua energia. Com seu potencial para a vida. Com o modo como enfrentam seus medos. Como se desafiam. Como conseguem.



Penso nas crianças trancadas em casa. Enlouquecendo pais. Tanta energia prestes a explodir dentro de corpos tão pequenos. Pequenas bombas nucleares. Nos dias em que, preguiçosa, largo os dois em frente à TV, sei que aquela que precede a bronca explosiva é minha culpa. Meia hora de parquinho faz milagres. Seis horas são felicidade plena.

Penso no privilégio que é estar aqui. E em como era estar lá. Do esforço necessário para fazer em São Paulo o que faço aqui. Converso com uma amiga que mora num bairro paulistano com muito relevo e ela conta das dificuldades, do filho não poder andar de bicicleta nas calçadas irregulares, de ter de andar um bocado até encontrar um parquinho, de ter de ficar vigiando a criança o tempo todo, de ter de pegar carro para conhecer um parque diferente. Neide Rigo comenta no Instagram sobre festas em parques, sobre balões amarrados em bancos de praça. Uma pessoa conhecida comenta comigo como acha cafona as bandeirinhas e balões nas árvores, o bolo imenso de aniversário na mesa de concreto. Fico fula. Cafona é teu nariz. Cafona é não usar o espaço público que teu imposto paga. Cafona é a gente ter de morar em condomínio fechado com escolta armada para teu filho ter espaço pra andar de bicicleta. Todo mundo tem direito ou deveria ter direito de usar os parques. De fazer um piquenique sem ser chamado de farofeiro, de fazer um aniversário numa praça. Toda praça deveria ter um playground, todas as calçadas, se fossem apropriadas para cadeiras-de-rodas, seriam também para bicicletinhas de criança. Todo bairro deveria ter uma infinidade de praças e parques. E todas as pessoas deveriam poder sentar na grama e relaxar um pouco no fim de semana.

Meu Verão ficou infinitamente mais fácil aqui. Mas me lembro de que o esforço em São Paulo, ainda assim, valia a pena. Se houvesse um parquinho, parávamos nele. Levávamos sempre piquenique, mesmo que o local de destino fosse abarrotado de opções para comer e beber. Farofeira sim, vai lamber sabão. Pesquisava atividades gratuitas para crianças. Íamos a museus gratuitos e entrávamos em galerias particulares pelo caminho. Qualquer coisa que fosse novidade era excitante e interessante. A mesma prerrogativa do brinquedo, mas aplicada a experiências. Lembro das crianças terem detestado a exposição do Museu da Escultura. Mas adoraram a água que espirrava sob a marquise de concreto: Splash Pad brasileiro. Bicicleta, só dentro do condomínio. Mas quando visitávamos minha mãe, usávamos as pernas. Subíamos a pé até a Paulista para ir ao Trianon, contar quantas aranhas-de-jardim gigantescas encontrávamos entre as árvores até chegar ao parquinho. Parquinho caidinho, sem manutenção, mas o bastante para duas horas de brincadeira entre aquelas árvores de folhas verde-escuras brilhantes de mata atlântica das quais sinto saudades. E íamos ao Masp, e olhávamos a cidade, e caminhar com eles pelo lugar onde cresci era enxergar com olhos novos o que minhas retinas já deixaram de registrar.

O tempo no trânsito era mais difícil. Não havia mesmo nada a se fazer do lado de fora do condomínio, e invariavelmente eu precisava planejar uma ida a São Paulo. Uma hora e meia dentro do carro. E as tardes de Verão acabavam cedo por causa das chuvas. Chuvas que às vezes faziam minha volta para casa se arrastar por três horas.

O medo dos assaltos era difícil. Fecha o vidro, dá a mão, não corre para longe, cuidado com o carro, cuidado com a bicicleta, cuidado com aquele homem, cuidado.

Mas ainda assim, tentávamos. Tentávamos estar do lado de fora. Olhar aquela cidade com a inocência dos meus filhos. Viver ali a vida que eu imaginava em outros lugares. Dois anos antes de imigrar, eu decidira não esperar vir para o Canadá para ter a vida que eu queria ter. Decidira que não ia suspirar de inveja de quem vivia no interior ou em cidades européias. Eu crio o meu mundo. E criei para minha família aquela realidade. Eu queria minha vida tranquila imediatamente, e não num futuro condicionado por uma dezena de variáveis.

Eu já tinha lá o que tenho aqui.

Aqui só ficou mais fácil, pois o ambiente é favorável.

Fecho meu livro e voltamos para casa.

Cheios de areia e terra e grama e lama e suor, as crianças são coagidas a ir para o banho. Penso no jantar. Às vezes penso numa sobremesa. Ambos sempre de improviso. Olho a geladeira. Hoje tem curry. Meu curry sem receita. Refogo cebola e alho e gengibre fresco picados em azeite. Douro junto 1 colh. (chá) de cada especiaria: cominho, coentro e mostarda em grãos; cardamomo, canela, chinese five spice, cúrcuma, todos em pó. Sal, pimenta caiena  e pimenta-do-reino a gosto. Refogo qualquer legume que eu tenha à disposição ou nenhum se não houver. Junto grão-de-bico ou lentilha, com seu caldo. Tomate em lata ou umas colheres de extrato de tomate. Leite de coco. Cozinho até engrossar. Cubro com uma cama de coentro fresco. Acompanha arroz. Se houver pepino, uma raita. Se não houver, uma colherada de iogurte é o que as crianças pedem para amansar a pimenta do curry.



Se o jantar sai rápido, dá tempo de improvisar a sobremesa. Frutas com chantilly batido na hora são frequentes. Morangos e ameixas e figos e cerejas. Nos dias de calor, todos querem sorvete. Não tenho máquina de sorvete e ninguém quer andar até o NoFrills para pegar o sorvete pela metade do preço. Bato manga congelada com uma colherinha de limão no processador. Melhor sorvete de manga do mundo. Bato bananas congeladas com morangos, mel e iogurte. Fica mais molinho, mas agrada a todos. Então tento algumas receitas de No-Churn Ice Cream com leite condensado, como fazia minha avó, que batia uma lata de leite condensado, duas de creme de leite e suco de limão e me dava para comer na varanda da chácara. Aquele limão que um dia respingaria no dorso de minha mão e faria uma mancha marrom sob o sol forte do interior; uma mancha que demoraria trinta anos para sumir quase que completamente.

Preparo ESTA RECEITA com frutas vermelhas congeladas e é um sucesso, ainda que eu sinta mais que os outros o doce agressivo do leite condensado. A versão de limão de minha avó fica muito doce para o meu paladar e o de Laura. Mas descubro que esmigalhar por cima os biscoitos de Tahini da Alice Medrich, ligeiramente salgados, equilibram a sobremesa e dão um gostinho de torta de limão. Por último, tento o de baunilha, de Tessa Kiros, de gemas cruas, leite condensado e creme de leite. Ele me lembra o sorvete de creme da Kibon da minha infância, doce e denso. Bom, mas sinto falta da delicadeza dos sorvetes feitos na máquina. Quem sabe no próximo verão?

Num dia com muitas cerejas, carnudas, rubi, suculentas e saborosas, resolvo fazer um clafoutis. Apanho o livro de Gynette Mathiot, I Know How to Cook, e preparo a receita ipsis literis. Acho estranho que a 1/2 xícara de açúcar de confeiteiro vá toda por cima da sobremesa terminada e não na massa, mas prossigo. Todas as vezes em que embarquei na estranheza daquelas receitas, elas se mostraram deliciosas. Desta vez no entanto, eu tinha uma pulga atrás da orelha e deveria ter dado ouvidos a ela. O Clafoutis ficou denso e com gosto forte de massa crua de panqueca. Não estava ruim. Mas claramente precisava do açúcar ali dentro. 

 Por isso, foi com curiosidade mórbida e desconfiança que resolvi testar um bolo do mesmo livro. Todas as receitas salgadas são ótimas, por mais escalafobéticos que alguns detalhes possam ser. No entanto, eu nunca preparava nenhum doce dele. Era um bolo mármore. Que ao invés de usar cacau em pó na massa de chocolate, usava chocolate ralado e não especificava que tipo de chocolate. Um bolo assado por 1 hora a 120oC. Sim, CENTO E VINTE. Isso não pode estar certo. Ainda assim, me joguei. Arrisquei. E como acontecera com a sopa de peixe engrossada com maionese, e tantas outras receitas esquisitas desse livro, o resultado foi mágico. Foi o melhor bolo mármore que fiz até hoje. A textura é compacta, macia e úmida, algo que vinha perseguindo há anos, uma vez que todos os bolos-mármore que fazia pareciam ligeiramente secos. O sabor do chocolate é intenso e as raspas de limão na massa branca trazem vida ao bolo. Delicioso.

Empolgada com o tal bolo, e tendo apanhado o livro Sweet, de Ottolenghi, na biblioteca, resolvi tentar repetir o sucesso com outra receita estranha. Esse bolo mármore também tem um processo diferente, em que se bate a manteiga amolecida direto na farinha e se mistura os ovos já batidos com o leite. Estava tudo indo bem até a hora de fazer as misturas das duas massas. A massa de café e chocolate levava só duas colheres de chá de cacau, o que achei muito pouco para tingir a massa. E a de cardamomo levava 1 colh e meia de chá de cardamomo, o que me pareceu coisa demais. Resultado, um bolo de textura ok, ligeiramente seco na boca, com ausência de chocolate e excesso de cardamomo, que acabou me lembrando gosto de remédio. As crianças detestaram. "O outro era muito melhor, mamãe."

Mais uma vez, ponto para os clássicos.

E nos clássicos, continuo mergulhada nos italianos. No meu desafio de acabar com toda a despensa antes de comprar mais comida, coisa que geralmente cria pratos um pouco esquizofrênicos, o spaghetti com ragù de lentilhas da Tessa Kiros aparece sempre. Você cozinha as lentilhas com sálvia fresca e alho, sem refogar. E então acrescenta as lentilhas cozidas com algum caldo a um molho de tomates feito de tomates em lata e cebola refogada em azeite. Deixa apurar. Tempera e polvilha com salsinha em abundância. Não apenas é delicioso mas, com um pouco mais de lentilhas, faz um pacote de 450g de spaghetti render mais de seis porções. Afinal. passamos o mês todo com o filho da prima de Allex hospedado em casa, estudando inglês, e eu estava tentando fazer as refeições renderem três porções de adulto, duas de crianças que já comem como adultos e uma extra para o almoço de Allex no trabalho.


 Depois de brincar e ler histórias, às vezes no horário de sempre às vezes mais tarde porque as partidas de Exploding Kittens ou Zombie Dice ou Uno com o pai se estenderam noite adentro, as crianças vão dormir. Elas sabem que estão indo dormir tarde quando o sol já se pôs.


Eu apanho meu livro novamente e vou à varanda, aproveitar aqueles dias em que posso ficar sentada do lado de fora por um longo tempo sem perder a sensação dos dedos.

Sento com Allex e fazemos o balanço dos últimos doze meses. As expectativas que tínhamos, as frustrações, as conquistas. O que melhorou, o que piorou, o que ficou igual.

Dia cinco de Agosto faz um ano que entramos naquele avião com nossas sete malas rumo a uma cidade que eu não conhecia. Já parece distante aquele mês de aflição e aventura na casa velha do AirBnB. A correria enlouquecida do aluguel do apartamento, da compra dos colchões e dos pratos na Ikea e a volta de metrô para casa às dez da noite, crianças dormindo no meu colo. Acordar a primeira vez no apartamento vazio e comer pão com manteiga sentados no chão. Descobrir o caminho para a escola. Descobrir onde comprar verduras e que cara tem o creme de leite. Esperar o PR Card chegar para buscar o cão no Brasil. Ficar doente enquanto marido viaja. Descobrir a neve. O inverno que chega rápido e demora para ir. Patinar no gelo. Descer encostas de trenó. O silêncio da natureza gelada. A alegria das primeiras plantas verdes nascendo numa Primavera fria. Ficar sem ver meus pais por seis meses. Um ano sem tomar café com minha melhor amiga.

Um ano.

Eu queria que esse Verão tivesse aquele mesmo gostinho de quando chegamos aqui. De parques e piqueniques. Eu fizera daquele primeiro verão exatamente o que eu imaginara no Brasil, o que eu tentava produzir em São Paulo, apesar das dificuldades. O Verão chegou de novo e está indo embora. E foi um reviver delicioso daquele Agosto. De parques e piqueniques. Mas sem a correria de achar apartamento, sem a aflição da chegada, sem a desestabilização da ausência de referências. Um Verão de descanso. Merecido. Depois de um ano.





BOLO MÁRMORE "FRANCÊS"
(Do Livro I Know How to Cook, de Gynette Mathiot)
Rendimento: 1 bolo de 21cm.

Ingredientes:
  • 1/2 xic. manteiga sem sal (100g) em temperatura ambiente
  • 1 xic. açúcar
  • 3 ovos, separados
  • 1 2/3xic. farinha
  • 1/3 xic. leite
  • 1 colh. (chá) fermento químico em po
  • 60g chocolate ralado (usei 70%)
  • 1/2 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 1/2 colh. (chá) raspas de limão (tahiti ou siciliano)

Preparo:
  1. Aqueça o forno a 120oC ou o mais baixo que seu forno tiver. Unte uma forma de bolo inglês com manteiga e polvilhe com farinha, batendo para retirar o excesso.
  2. Bata a manteiga com o açúcar até que fique macia e pálida. Junte as gemas, uma a uma, e misture até que fique homogêneo. 
  3. Misture a farinha e o fermento e uma tigela e reserve.
  4. Junte a farinha em duas partes e o leite, alternadamente. Junte a baunilha.
  5. Bata as claras em neve até obter picos firmes e incorpore à massa. Divida a massa em duas partes iguais. 
  6. Numa das partes, incorpore o chocolate ralado. Na outra, as raspas de limão. 
  7. Coloque colheradas alternadas das duas massas na forma, que deve ter 2/3 de seu volume preenchido. Leve ao forno por 1 hora ou até que esteja dourado e um palito saia limpo ao ser inserido no centro. (No caso de seu forno não assar a 120oC, fique de olho a partir dos 45 minutos. O meu assou em exatamente 1 hora a 120oC.)
  8. Deixe esfriar por 10 minutos antes de desenformar. O bolo fica delicioso ainda um pouco morno e maravilhoso no dia seguinte.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Panquecas de casca de abóbora à indiana e o fim do macarrão de fim de semana. Por enquanto.


Aquele meu plano lindo de preparar macarrão caseiro todo fim de semana enfim foi por água abaixo. Bocas para comer não faltam. Mas também não faltam mãos arrancando pedaços de massa, criança muito nenê querendo mexer no fogão, criança mais velha querendo girar manivela da máquina ao contrário, cachorro correndo em volta, massa caindo no chão, criança escorregando em farinha, manivela caindo no pé, massa grudando porque criança apertou o botão de zerar a balança enquanto você media a farinha...

Enfim.

Atingi meu limite.

Foi o ravioli de cebola e beterraba, que demorou tanto tempo – tantas interrupções – para ficar pronto, que a massa secou e não grudava mais, e me distraí e não abri a massa tão fina, e o que deveriam ser 150 ravioli (que eu pretendia congelar) produziu 1/3 disso e um resto de recheio que teve de virar torta. Fiquei estressada, o almoço saiu tarde e as crianças, com sono, não comeram nada.

A gota d'água foi no último fim de semana, quando descongelei o purê de casca de abóbora para o que prometia ser uma massa simples e saborosa.

Ha.

Ha.

Ha.

A massa era do livro da Lisa Casali, que eu adoro, e pedia um certo peso de casca de abóbora, que então deveria ser cozida em panela de pressão e transformada em purê. Claro que não verifiquei isso quando vi, na abertura do capítulo, a indicação de como aproveitar a casca; e transformei tudo em purê sem verificar antes qual era o peso da casca crua.

Na hora de preparar a massa, fiquei perdida quanto à quantidade de purê em relação à farinha. Não farinha comum. Farinha de farro. Trazida de presente "lá das Europa". Farinha que eu estava guardando para usar em algo especial. Algo como uma massa caseira.

¬_¬ Vai vendo.

Fui incorporando o purê, incorporando o purê, parecia muito seco, botei mais, mas a farinha não é branca, absorve purê diferente... ficou macia como massa de pão. Mas lisa, linda, e achei que daria certo daquele jeito, pois o tempo estava muito seco, a massa acabaria perdendo umidade, e fiquei com receio de gastar mais da farinha de farro. Deixei descansando e fui preparar o pesto de nozes.

Vi num programa chamado A Mind of A Chef, uma chef de cozinha mostrando como colocava os garçons para arrancar a pelinha fina das nozes, o que teoricamente tornava o pesto muito mais suave e homogêneo e simplesmente melhor.

Lá vai ela.

Meia hora. Ou foram quarenta minutos? Muito tempo descascando aquelas nozes. A faquinha não dava jeito e foi tudo na unha, e terminei as nozes com dores nas pontas dos dedos que não sentia desde a infância, quando meus pais me colocavam para debulhar milho de pipoca na chácara.

Na hora de abrir, a massa grudou nos rolos da máquina. Fui incorporando mais farinha comum, até dar um ponto mais seco. Mesmo assim, mesmo com muita farinha... o negócio não ia lá muito bem.
Cortei mal cortado, com a criançada correndo em volta já com sono e eu querendo terminar aquilo logo.

Cozinhei. E em dois segundos a massa passou de crua para passada. No prato, não tinha textura. O molho ficou muito pesado para aquela massa tão molenga. As crianças estavam com sono e não comeram nada. Quando fui guardar o que sobrara na panela, pensando em transformar em frittata ou um gratinado, vi que a massa, tão mole, virara um grude, quase um purê ali na panela quente.

Joguei tudo no lixo, tive um pequeno faniquito e fui tirar um cochilo para esfriar a cabeça.

Quando, no dia seguinte, abri a geladeira e dei de cara com o resto do purê de casca de abóbora, ele ria para mim. DE mim, na verdade. E quis jogá-lo no lixo. Aquela raiva que dá quando a gente joga um monte de coisa boa fora na tentativa de economizar duas colheres de um resto de alguma meleca. Mas me recompus. Não deixaria que aquilo me indispusesse com o purê de casca, que era uma ideia tão boa, afinal.  

Pensei nos crepes de beterraba. Eles nunca me decepcionam. E fui por esse caminho. Massa de crepe é bem mais simples de adaptar e consertar. Bota mais farinha, bota mais leite. Tudo certo.

Os crepes ficaram ótimos. No dia seguinte cozinhei uma porção de feijões moyashi secos, refoguei-os com especiarias e recheei as panquequinhas, para serem servidas com raita de pepinos, para amansar um pouco a pimenta do garam-masala.

E foi a redenção do purê de casca de abóbora. Pimpolhada adorou o crepe e a raita... o recheio ficou pela metade, como quase sempre acontece com feijões em geral. Sem problemas, pois raspei seus pratos mais do que feliz de poder comer mais um pouquinho. ;) Nham.

PANQUECAS DE CASCA DE ABÓBORA E FEIJÕES MOYASHI
Rendimento: 8-10 panquecas grandes, dependendo da espessura das panquecas

Ingredientes:
(panqueca)

  • 1/2 xic. purê de casca de abóbora*
  • 1/2 xic. farinha de trigo branca
  • 1/2 xic. farinha de quinua
  • 1 ovo
  • 1 1/2 xic. de leite (ou até dar o ponto de massa fina de crepe)
  • 1 pitada de sal
  • manteiga para untar a frigideira
(recheio)

  • 2 xic. feijão moyashi (mung beans) cozido (ou 2/3 xic. feijões crus, deixados de molho e cozidos em água e sal por 40 minutos, ou até cozidos, mas sem desmancharem)
  • 1 colh. (sopa) óleo vegetal
  • 1 dente de alho picado
  • 1 cebola pequena, picada
  • uma rodela de 2cm de altura de gengibre fresco, descascado e picado
  • uma rodela de 2cm de altura de cúrcuma fresca, ralada (ou 1/2 colh. (chá) de cúrcuma em pó)
  • 1/2 colh. (chá) garam masala (ou a gosto, dependendo da potência)
  • 1/4 colh. (chá) sementes de coentro, amassadas um pouco no pilão
  • 1/4 colh. (chá) sementes de cominho, amassadas um pouco no pilão
  • 1 tomate picadinho
  • 1 xic. queijo-de-minas ou outro queijo fresco de vaca cortado em cubinhos

* Para preparar o purê, coloque a casca da abóbora cortada em pedaços grandes na panela de pressão com água o bastante apenas para cobrir e cozinhe por 15 minutos a partir do apito (ou no timmer da panela de pressão elétrica). Escorra a casca e transforme em purê com um passa-verdura. Reserve o líquido do cozimento para uma sopa ou caldo de legumes.

Preparo:

  1. Bata todos os ingredientes da panqueca no liquidificador, acrescentando o leite aos poucos até obter uma massa com consistência de creme de leite ralo, bem líquido. Deixe descansar pelo menos meia hora antes de preparar os crepes.
  2. Unte uma frigideira grande com manteiga e leve ao fogo médio-alto até ficar bem quente. Fora do fogo, despeje cerca de 1/3 xic. de massa no centro da frigideira, girando-a para que a massa escorra e cubra todo o fundo da panela. Volte ao fogo e cozinhe até que a panqueca pareça seca, principalmente nas bordas. Vire-a com a ajuda de uma espátula de silicone (dessas de raspar tigela de bolo: a panqueca não rasga como quando virada com espátula de metal)) e um dedo. Cozinhe até que doure um pouco também desse lado e retire da frigideira, repetindo o processo com o resto da massa. (Para que os crepes não fiquem empapados depois de prontos, deixe uma grade e um prato ao seu lado: o crepe sai da frigideira e vai para grade, para esfriar rápido. Quando outro crepe ficar pronto na panela, o da grade vai para o prato e o novo crepe, para a grade. Assim os crepes são empilhados já frios e não encharcam no próprio vapor.) Os crepes prontos e frios podem ser embalados em filme plástico e deixados por uns dois dias na geladeira, para serem então recheados e reaquecidos.
  3. Na mesma frigideira grande, aqueça o óleo vegetal. Junte alho, cebola, gengibre e cúrcuma, com uma pitada de sal, e cozinhe em fogo alto, mexendo de vez em quando, até amaciar.
  4. Junte o garam masala, coentro e cominho, abaixe um pouco o fogo e cozinhe por alguns minutos, mexendo sempre, até que a cebola doure e esteja recoberta por uma pasta marrom. 
  5. Junte o feijão cozido, o tomate e 1/2 xic. de água ou água de cozimento do feijão e cozinhe, amassando um pouco uma parte do feijão com as costas da colher, até que a água tenha praticamente evaporado. Prove e corrija o tempero. 
  6. Distribua o recheio e os cubinhos de queijo entre as panquecas. Enrole-as e coloque-as numa travessa untada. Leve ao forno a 180ºC apenas para aquecê-las (cerca de 10 minutos). Sirva com iogurte ou raita de pepinos. (Para a raita, basta fatiar bem fino um pepino japonês, salgar e deixar meia hora numa peneira. Esprema, junte a iogurte integral natural, cebolinhas picadas e coentro se quiser.)




Cozinhe isso também!

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