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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Volta às aulas na câmara de descompressão - um bolo e um peixe


As crianças voltaram à escola.

A casa está com aquele silêncio familiar que relaxa meus músculos e acalma meus nervos. Eu amo a companhia de meus filhos, mas eles estão grandes e independentes demais para passarem tanto tempo confinados comigo. Eles precisam de um tempo sem minha presença, muito mais do que eu, na verdade. Talvez fosse diferente se eles fossem mais novos. Não sei. Entramos nesse apartamento quando Laura tinha 4 anos e Thomas 6. Laura fez 8 em janeiro e Thomas faz 10 em abril. Duas crianças de 8 e 10 anos correndo num apartamento de 70m2 é bem diferente de duas crianças de 4 e 6 fazendo a mesma bagunça nesse mesmo espaço. Esse espaço que temos não comporta seus corpos em expansão de energia. A casa é, cada vez mais, o local de sossego, de descanso. É preciso ter um 'lá fora". É preciso ter um "outro lugar". Coisas precisam acontecer em outro ambiente, para que a casa possa atingir seu máximo potencial de acolhimento. 

E as crianças, como eu disse, voltaram à escola. 

A manhã foi estranha, desconjuntada, como um corpo reaprendendo a andar, consciente de cada músculo, cada tendão, cada nervo, em espasmos de movimento desajeitado. Putz, eu tinha que fazer almoço. Putz, não preciso mais colocar os tablets para carregar. Putz, eu costurei a calça de neve do Thomas? Putz, cadê aquele livro da biblioteca da escola que a Laura tinha que devolver? Putz, eu não posso sair para correr, porque tenho que andar até a escola com os dois. Putz, tem máscara extra? Putz, pega uma luva extra pra se a sua encharcar. Putz, não esquece os "indoor shoes". 

Putz.

Faz -20oC lá fora, e há 30cm de neve nas calçadas. Pequena aventura. Há quem reclame, mas eu tenho amor por essas nevascas noturnas que nos acordam como se alguém tivesse derrubado um saco de açúcar sobre a cidade. Afundar o pé na neve até o joelho me dá uma satisfação infantil muito semelhante a me enfiar em uma piscina de bolinhas. 

Os dias andavam tão iguais. Me deixa fingir que a neve é uma piscina de bolinhas. 


 

Tentei sair para correr, mas a neve fofa no asfalto me fazia escorregar, e a noite mal dormida pesou nas pernas mas do que eu gostaria. Voltei para casa cedo, com frio, pensando que deveria ter ouvido meu coração que dizia que hoje não era dia de corrida. Contentei-me em fazer um pouco de yoga e alongamento, e saí para o mercado. 

"Você vai de carro?", perguntou Allex.

"Vou."

"Você já dirigiu na neve?"

"Nunca."

"Cuidado."

"Podexá."

Dirigir na neve requer atenção. As rodas derrapam tanto quanto meus tênis de corrida. Mesmo em velocidade baixa. Há os solavancos dos montes de neve compactados nas laterais da rua. As ruas que estão limpas ficam mais estreitas, porque parte delas é ocupada pela muralha de neve ao longo da calçada, empurrada pelos caminhões que desobstruem a rua e jogam sal. É como aquela estradinha que sai da praia  no meio do mato: com areia, pedregulhos e lama, tudo junto ao mesmo tempo, só que na cidade. 

Eu estava tão focada, e ao mesmo tempo me divertindo tanto com aquela novidade, que me senti jogando video-game. 

Os dias andavam tão iguais. Me deixa fingir que dirigir até o mercado é como jogar video-game. 


 

Mercado desorientado. Por algum motivo eu não tinha clareza para criar uma lista mental de refeições e ingredientes para a semana. O apetite das crianças anda irregular, assim como o de Allex, e eu não conseguia resolver o quebra-cabeça dos jantares para quatro, almoços em casa para dois com preferências diferentes (eu almoço leve, e Allex é do "comfort-food")  e almoços de escola para as crianças. Mais "snacks".Sem "nuts". 

Eu havia preparado dois bolos de banana, coco e nozes da Martha Stewart algumas semanas antes, e ainda tinha um deles congelado. Enquanto tirava o bolo do freezer para mandar de snack na primeira semana da escola, Thomas lembrou: "Mas mamãe! Tem nuts!"

Putz.

Então no dia anterior ao primeiro dia de escola, preparei, no improviso do que eu tinha, um bolo simples com frutas, para que as crianças tivessem lanche. 

E agora eu saía do mercado carregando sacolas demais. O reflexo de minha confusão mental, comprar mais comida do que precisamos na semana. 

Arruma tudo na geladeira. Almoça. 

"Eu não tenho reunião pela próxima meia hora. Quer tirar um cochilo?", pergunta Allex. 

"Por favor". 

O silêncio gostoso da casa pedia cochilo. Minha cabeça sem dormir também. Deito sob as cobertas, as costas relaxando e estalando sob a luz de inverno entrando pela janela aberta, e ouço o estalo da maçaneta. 

"Pra que você fechou a porta? As crianças não estão aqui!", disse, rindo. 

"Pois é, eu me perguntei isso também", ele riu. "Foi automático."

Meia hora de cochilo restaurador. Sonhei. Quão cansada está uma pessoa que entra em REM e sonha em trinta minutos de cochilo? 

Café. Tem isso de a gente ter colocado um timer na tomada da cafeteira, nos horários em que a gente gosta de tomar café, já que ela demora uns vinte minutos para esquentar a caldeira. Ela liga às seis da manhã e desliga às nove. Liga de novo ao meio-dia e meia, e desliga às duas. "A cafeteria está aberta!", Allex diz. 

Trabalho. O texto demora a se formar em minha mente, como se eu tentasse escrevê-lo em outra língua. Leio palavras formadas por ideogramas desconhecidos.  

"Ana! Eu fiz uma coisa importante que a gente tinha esquecido de fazer!", Allex grita do quarto. 

"O quê?"

'Coloquei um timer pra lembrar de buscar as crianças."

Putz. 

Ainda bem. Porque eu tenho disso. Quando engato no trabalho acho que duas horas passadas foram quinze minutos. Perco-me. Perco a noção. Perdi a conta de quantas vezes cheguei atrasada na escola pra buscar as crianças. Mas eles ficam tranquilos. São filhotes lindos, que sabem que a mamãe é meio cabeça-de-vento, mas transborda amor por eles.

Não cheguei atrasada. Bom. Mais ou menos. O elevador do meu prédio imenso, que só comporta duas pessoas por vez durante a pandemia, demorou horrores para aparecer. Mas o caminho até a escola havia sido limpo e alcancei as escadas do pátio mais rápido que de manhã, sem passar pela aventura da piscina de bolinhas. 

Eles me esperavam, juntos, ao lado da professora, todos mascarados. Acenei. Levantei o trenó de plástico preto, essa grande banheira com cordinha, chata de carregar com dedos gelados, para que eles vissem como eu sou uma mãe legal. Atrasada. Mas legal. 

É proibido brincar no pátio da escola depois da aula. O que não faz sentido, porque tem menos criança brincando no pátio depois da aula do que durante a aula. Mas tudo bem. Levei os dois ao parque em frente à escola, destino diário em tardes de inverno pós-escola pré-pandemia. Eu havia explicado aos dois, de manhã, como precisávamos voltar direto para a casa, sem brincar depois da aula, por conta da quarentena. Mas meu coração apertou. Há 30cm de neve fofa e divertida no parque, que a qualquer momento pode derreter e não voltar mais. Isso de estações marcadas faz a gente ver o tempo diferente. Não é um ano que passa. Não foi um ano de quarentena. Esse é o único inverno dos meus filhos com 8 e 10 anos. No próximo, vai saber, talvez Thomas não veja mais graça em brincar na neve. Talvez ele tenha crescido. Não vai ter outro inverno, outro dia de 30cm de neve no fevereiro que ele tem 10 anos e ainda gosta de brincar com o trenó. 

Por isso levei os dois ao parque. 

"Brinquem com as crianças da sua sala, por favor", recomendei. "E fiquem de máscara."

Havia menos gente ali do que eu esperava. O dia estava cinzento e sem graça, e os -20oC se tornaram -10oC, o que é mais confortável, mas ainda espanta muitos pais. Era possível brincar sem aglomerar. Era possível me manter distante de todos os outros adultos. Thomas correu para construir um iglu com uns amigos que carregavam pás de neve. Laura achou uns meninos da sua sala com quem ficou brincando de construir tijolos de gelo que eles quebravam com galhos. Eu fiquei ali, mãos nos bolsos, trenó aos meus pés, suspirando de alívio em ver duas carinhas contentes de quem teve um dia mais normal, de quem passou tempo com os amigos, de quem teve aula olhando para a professora sem um fundo de tela com uma praia do Caribe. 

"Eu tô no Big Hill!", avisei às crianças, puxando a cordinha do trenó atrás de mim e andando pela neve fofa em direção à grande ladeira que separa a parte alta e a parte baixa do parque. Ali, onde tem uma placa altamente ignorável em que se lê "proibido descer de trenó". Lá em cima, desviei de três crianças e dois adultos, posicionei o trenó num trajeto que imaginei ter menos buracos, e sentei minha bunda de quarenta anos no plástico já coberto de flocos de gelo. Inspirei. Expirei. Empurrei o chão. É como montanha-russa. O ar frio veio por entre meus pés, atingindo meu rosto. A parte da frente do trenó abria caminho pela neve, levantando, como água, cristais brancos e leves em ondas nas laterais do meu corpo. Gosto do jeito como o estômago se move dentro de mim na queda, abrindo um espaço vazio no meu tórax que se preenche de alegria. Deixei que o trenó desacelerasse sozinho, derrapando de um lado e do outro, até cansar no meio do descampado. Espere que o carro pare completamente antes de desafivelar os cintos de segurança. Ao sair, por favor verifiquem se não deixaram nenhum pertence para trás. Levanto. Minhas calças estão polvilhadas de branco até as coxas, por baixo do casaco comprido. Tiro a neve das roupas com batidas leves, no ritmo do coração. 

Subo de novo. Desço de novo.

De novo. De novo.

De novo. Última. 

Os dias estavam tão iguais. Me deixa brincar de trenó.  



As crianças me acompanham na rua a passos cansados, arrastados. Tiram botas molhadas, penduram casacos, colocam as luvas encharcadas para secar em cima do aquecedor. Desmontam lancheiras sem eu precisar pedir. Tomam banho e leem os livros da escola. Sento para ajudar Laura com a pronúncia. Communities. Expectations. Empathy. Empathy is when you notice other people's feelings and try to understand them. São cinco horas e Allex ainda trabalha. Coloco uma música. Há dois momentos do dia em que gosto de colocar uma música. No café da manhã, para agitar. No fim do dia, para acalmar. O App de música criou uma lista especial para mim: as músicas que eu mais ouvi em 2020. Play. Metade dela era Frozen 2, metade Moana. Tinha um Nick Cave e um Icona Pop perdidos no meio. Curioso.

Preparo o jantar. Into the unknooooooooown... Into the unknoooooown... Um risoto com tomates e ervilhas, em que uso um caldo de camarões que fiz umas semanas antes, com as cascas dos camarões que cozinhei. Eu não quis comprar mais camarões para o risotto,pois eles viriam de novo com cascas, e eu quereria fazer caldo de novo, e viraria o ciclo infinito do risotto do caldo de camarão. Mas àquela manhã, pela primeira vez na vida, as vieiras estavam em promoção no mercado. Vieiras fresquinhas. Porque aqui tem disso: quando a comida está perto do vencimento, principalmente carnes e laticínios, os mercados colocam uma etiqueta avisando que o produto tem que ser consumido hoje ou amanhã, e que por isso está com 30, 50 ou até 70% de desconto. Acho isso muito honesto. Comprei duas bandejinhas de vieiras pelo preço de uma. 50% off. Enjoy tonight! Podexá. 

Dourei as vieiras na manteiga e servi sobre o risotto. Laura adorou. Thomas achou curioso. Mas gostou mais quando eu mostrei, no Wikipedia, como era uma vieira viva, dentro de sua concha. Onde ficava sua boca, seu intestino, o modo como ela nada abrindo e fechando a concha, expulsando ar de si mesma feito um fole. Você sabia que as vieiras tem diversos olhos? Eles ficam ao longo das beiradas das conchas, entre os filamentos que elas usam para apanhar comida. Quando a luz bate neles, eles brilham feito bolinhas azuis,. Parece uma nave espacial. 

As crianças cogitaram se a vieira seria capaz de ver vários filmes ao mesmo tempo.

Escova dentes. Desenha um pouco. Senta do lado do pai no sofá. Conversa sobre o dia. O que teve de bom? O que pode melhorar? 

Boa noite. Boa noite. Beijinhos. Mais um abraço. Me dá água? Allex coloca as coisas na lava-louças. Santa lava-louças, que eu sempre achei que fosse bobagem. Me lembra de só morar em casa com lava-louças. Sento na poltrona amarela com um chá. Já é noite faz tempo. Gosto de luz amarela de abajur. A sala tem quatro abajures. Eu nunca acendo a luz do teto. Como foi seu dia? Você viu a notícia? Olha esse meme. Achei que você fosse gostar. Amo você. Eu também. 

Os dias andavam tão iguais. As crianças voltaram à escola. Amanhã vou escrever um post no blog. Faz tempo que não consigo me concentrar nisso. Vou falar do peixe no forno que eu fiz e ficou uma delícia. Só precisa de menos alho. Vou falar do bolo de fruta que preparei para o primeiro dia das crianças.Vou falar de como foi um dia bom, muito bom, o primeiro dia de aula, ainda que tenha sido de alguma forma enevoado e confuso, como uma câmara de descompressão. 

Vai ficar tudo bem. 

....

 

O Bolo

Um bolo simples, muito simples. Adaptável. Pouco doce. Desses bons para o café da manhã ou bons pra mandar de lanche, quando você não pretende que seus filhos comam tanto açúcar no recreio que pirem e despenquem durante a aula de geometria. Bolo bom de fazer na mão. Mas pode fazer na batedeira. Era pra usar buttermilk, usei iogurte. Buttermilk deixa a massa mais molinha. Meu iogurte é mais consistente, gordinho, e deixou a massa com cara daqueles bolos italianos de massa compacta. Eu gosto. Mas você pode substituir uma parte do iogurte por leite, se quiser. Ou usar buttermilk. Também era para ser só de mirtilos. Mas eu tinha 3/4 xic. de um mix de frutas congeladas: mirtilo, cereja e amora preta. Achei que era pouco e piquei uma maça com casca junto. Ficou ótimo. Moral da história: use a fruta que quiser. Mas as que soltam caldinho ficam mais gostosas. Também era para ser numa forma de 12x8 polegadas. Me deu até coceira de preguiça de calcular isso. Usei uma forma quadrada de 9x9 polegadas (22-23cm). Dá pra usar forma redonda. Dá pra usar uma forma retangular, desde que não muito maior que isso. Ela pedia para untar e enfarinhar. Fui teimosa, porque achei que seria chatinho desenformar depois, e forrei tudo com papel-manteiga. Acabou que demorou bem mais pra assar. Não forre com papel-manteiga. No máximo, use um papel-manteiga untado em baixo, pra desenformar fácil. Ou use uma forma de fundo removível. Enfim. Falei que era um bolo de improviso.


BOLO DE IOGURTE E FRUTAS 

(adaptado do livro Apples for Jam, da Tessa Kiros)

Ingredientes:

  • 2 1/2 xic, farinha de trigo
  • 1 colh (sopa) fermento químico em pó
  • 1/2 xic. de açúcar
  • Noz moscada ralada na hora
  • 2 ovos grandes
  • 1 xic. iogurte natural
  • 4 colh. (sopa) manteiga, derretida
  • 1 colh (chá) casca ralada de um limão
  • 1 xic. frutas vermelhas ou outra de sua escolha, picada
  • 2 1/2 colh. (sopa) açúcar para polvilhar

Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 205oC. Unte e enfarinhe uma forma quadrada de 22cm (ou qualquer outra de mesmo volume). Se quiser, forre o fundo com papel manteiga untado, para ajudar a desenformar. 
  2. Numa tigela, misture a farinha, fermento e uma ralada generosa de noz moscada. 
  3. Em outra tigela, bata com um fouet os ovos e o açúcar até que fique claro e fofo.
  4. Junte aos ovos o iogurte, a manteiga e a casca de limão, e misture bem. 
  5. Junte a farinha em três adições, misturando com uma espátula, apenas até que não se veja mais farinha.Não misture demais, ou o bolo ficara maçudo. 
  6. Espalhe colheradas da massa na forma (a massa é mais firme, como de muffin), e, com a ajuda de uma espátula, tente tornar uniforme. Espalhe as frutas por cima e polvilhe com o açúcar. 
  7. Leve ao forno por 25 minutos, ou até que um palito saia limpo quando espetado no centro. O bolo não necessariamente vai ficar muito dourado. A foto do livro mostrava o bolo super dourado, e eu acabei deixando bem mais tempo no forno, sem necessidade. Coisas de mente atrapalhada com o primeiro dia de aula. Deixe no forno apenas até o palito sair limpo. 
  8. Deixe que esfrie completamente antes de cortar em quadrados. O bolo se mantém bem por alguns dias em pote fechado. 

O Peixe. 

Um jeito muito fácil de fazer peixe. Assado, com ervas. Usei haddock fresco, que é peixe fácil de se encontrar aqui. Mas acho que pescada amarela, linguado, ou qualquer outro peixe branco mais alto e mais firme ficaria bom. Você pode usar as ervas que quiser, na verdade, na combinação que mais gostar. Eu só não picaria o alho, que ficou muito forte. Faria lâminas, fáceis de remover de cima do peixe na hora de comer. Ou deixaria ele em metades, apenas para aromatizar. Servi com brócolis cozidos e batatas-doces assadas nesse dia.

 

 

PEIXE BRANCO ASSADO COM ERVAS

(do livro Twelve, de Tessa Kiros)

Ingredientes:

  • 6 filés de peixe branco, sem pele, de cerca de 150-200g cada
  • Cerca de 30g de farinha de trigo
  • 3 colh. (sopa) azeite
  • 125ml (1/2 xic) vinho branco
  • 60ml água
  • 2 dentes de alho, fatiados ou cortados na metade 
  • 1 colh. (sopa) de cada uma destas erva, picadas; alecrim, sálvia, salsinha, tomilho e hortelã
  • 30g manteiga

Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 220oC. 
  2. Corte os filés na metade, para facilitar. Tempere com sal e pimenta-do-reino. Passe os filés na farinha de trigo, chacoalhando pra tirar o excesso.
  3. Coloque o azeite numa travessa de forno ou panela que comporte todos os filés numa camada só, e coloque ali os filés de peixe enfarinhados. Regue com o vinho e a água. Espalhe o alho e as ervas por cima. Divida  manteiga em pedacinhos pequenos e coloque sobre os filés. 
  4. Leve ao forno já aquecido e asse por cerca de 20 minutos. O peixe deve estar opaco, branco e macio, com um pouco de molho borbulhando em volta. Sirva quente.

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Julho veio, julho foi, o verão que acaba, um bolo mármore.


Minha cunhada, na Noruega, faz sempre a piada: esse ano a gente perdeu o Verão, porque ele caiu numa terça-feira. Aqui em Toronto, apesar de termos tido vários dias de temperaturas altas e sol forte, o Verão, que tanto custou a chegar, parece querer fugir rapidamente. Os dias de 34oC se intercalam com alguns de 17oC, a brisa quente, devagar e úmida foi substituída pelo vento frio que arrasta as nuvens e traz a chuva, e o sol começou a se por a cada dia mais cedo. A noite já não cai às dez da noite, mas às nove, e o coração palpita a essa contagem regressiva, sem querer desperdiçar as últimas oportunidades de aproveitar a estação que se vai.

O dia amanhece cedo. No início, quase antes das cinco da manhã, agora já às seis. Sabendo como são seis meses sem usar a varanda, levo meu cappuccino para fora, para o cheiro da rua e do parque, para o som das gaivotas, dos casais de Cardinal que fizeram ninho no topo do prédio, e da obra intensa logo ao lado, que inicia suas marteladas em horários surreais.

As crianças têm seu tempo de desenhos e video-game enquanto me sento à prancheta e ao computador para trabalhar por um par de horas. Escrevo meu livro, pinto aquarelas, resolvo pepinos. Enquanto isso o forno trabalha: um bolo simples, uma porção de pão-de-queijo da Marina ou aqueles muffins de sempre, adaptados aos ingredientes disponíveis.

Cada vez mais as receitas básicas me atraem. A baunilha, a laranja, os ovos e o creme. Sabores limpos e claros, processos simples, resultados que falam mais ao coração da criança que fui e das crianças que fiz do que ao adulto gourmet que um dia almejei ser.

Desliguem tudo, nada mais de telas, computadores, tvs, celulares, é hora de olhar a janela, hora de ver o dia que se estende lá fora e mergulhar no seu ar quente enquanto ele há. Hora de levar o cão a um passeio longo, sem coleira, a correr por entre seus companheiros caninos, cheirar uns rabos, latir um tanto; mandão, esse cão que lembrou que é pastor desde que pisou em terras canadenses. É hora de subir em pedras, de escalar árvores, cutucar insetos, procurar as últimas amoras que os esquilos e os passarinhos ainda não apanharam.

O retorno à casa é uma parada breve. Banheiro para quem precisa, enquanto monto o piquenique.

Piquenique é sinônimo de Julho. 



O piquenique é o almoço, é o lanche da tarde, tudo num só. É meu atestado de férias, sem hora, sem pressão, sem cobrança. O abandono total e completo daquela expectativa irreal do Piquenique Na Provence de tantos livros de cozinha que eu colecionara ao longo da vida, com quiches e macarons, e saladas, e pães recheados, e louças e talheres em cestas de vime com alças para guardanapos de linho. Essa história linda em livro mas que na realidade é um grilhão do perfeccionismo e da memória fabricada. O que meus filhos querem é estar do lado de fora, é brincar e correr e não sentir fome. Quando mostro a foto do almoço de legumes e restos de waffles, alguém ri: "Mas isso é almoço?!". No verão Canadense, é almoço qualquer petisco que lhe permita ficar o dia todo na grama. Não há tempo de voltar para casa e bater um arroz com feijão. Não há tempo para os deliciosos cochilos de tarde toda após a manhã de praia. O Verão vem sorrateiro e vai embora sem aviso, e o tempo que se passa à mesa e à cama é tempo de Verão perdido.

Apanho um pouco do que saiu do forno e esfriou na bancada, ou mesmo o que restou dos waffles ou panquecas do café da manhã. Se sobrou pão, monto sanduíches, de prosciutto com manteiga e alface, de tahini, abacate e pepino. Se sobraram crepes, recheio de pouco queijo e da sobra da salada de ontem e faço rolinhos refrescantes e fáceis de comer.

Apanho legumes como salsão, cenouras, pepinos, tomatinhos. Junto as frutas que houver: morangos, cerejas, mirtilos, pêssegos, melancia, ameixas amarelas (que noutro dia uso para fazer essa torta deliciosa). Um queijo? Um queijo, em cubos, se houver. Meto os potes, que não são especiais, mas meramente os da escola, e as garrafas de água na mochila, com uma toalha de acampamento, leve e compacta, os trajes de banho dos pimpolhos num saco plástico e um livro para mim. Às vezes vamos à pé, às vezes as crianças vão de bicicleta, às vezes precisamos pegar o metrô. O cão, ainda de coleira, esperando, vai junto sempre.

As crianças decidem a qual parque vamos. A diversão é essa. Num dia, ao Splash Pad, esse complexo de chafarizes gratuitos em vários parques da cidade. Todos os playgrounds têm Wading Pools, piscinas circulares e cônicas, rasas, cuja água é trocada e tratada por funcionários temporários da prefeitura umas três vezes por dia. Todos os playgrounds são diferentes. Alguns parecem castelos medievais de madeira. Alguns são complexas estruturas de metal para crianças se pendurarem das formas mais escalafobéticas. Alguns têm imensos tanques de areia com pás de construção civil e água para enormes diques e canais. Alguns são simples, mas são sempre uma agradável novidade quando encontrados.

Laura quer testar os Monkey Bars de todos os parques da cidade, num ponto em que cria bolhas nas palmas das mãos de tanto se pendurar. As bolhas estouram e viram calos, pois ela não se importa com a dor. Vejo seus músculos se desenvolverem ao longo das férias. Thomas encontra os mesmos amigos em parques diferentes. We go to the best parks, diz uma mãe para mim, depois da terceira vez em que nos encontramos ao acaso.



Quando chegamos, todos querem comer. Arrancamos os sapatos, sentamos na grama e disponho as opções do dia. Peço para que comam bem e com calma antes de sairem correndo. Nunca gostei do hábito que via com frequência no Brasil e continuo vendo aqui, da babá ou da mãe com o saco de biscoito aberto e a criança ao longo de três horas "snacking" enquanto brinca. Ou come, ou brinca. É preciso dar tempo ao corpo para que ele entenda o que está fazendo e se dedicar integralmente a isso. É preciso prestar atenção ao que se faz. Não dá para prestar atenção à subida do trepa-trepa com um sanduíche na mão. Não dá para prestar atenção ao gosto do pêssego quando se está cavando no tanque de areia.

Claro, isso nem sempre funciona. As vezes catam um bolo e saem correndo.

Às vezes eles sentam. Comem sem pressa. Explicam em detalhes seus planos para aquele dia. Vou botar o biquini e brincar na water, mamãe. Vou construir um castelo no sand box para esse galho em forma de dragão destruir. Vou chamar aquele menino para brincar de Grounders, para brincar de Tag, para brincar de Hide And Seek.. Mamãe, I'm going to be a Zombie! Os nomes das brincadeiras já são outros. O inglês se intromete em nossa conversa.

Eles correm para longe. Combinamos que não podem sair da área do Playground. Afago o cão, guardo os potes até a hora do lanche. Olho em volta. Abro meu livro.

Às vezes passam-se cinco horas.

Noutras vezes, passam-se duas, e eles querem procurar um parque diferente. Vamos a dois, três num dia. Vamos ao lago.



Às vezes ficamos no lago.

Às vezes saímos do lago para um parquinho, do parquinho para o lago, do lago para casa.

Às vezes ficamos perto de casa. Noutras andamos seis, sete quilômetros.

Eles correm, escalam, sobem, descem, escorregam, puxam, empurram, constroem, destroem, criam, falam, gritam, andam, contam, conversam, discutem, correm de novo.

Fico impressionada com sua energia. Com seu potencial para a vida. Com o modo como enfrentam seus medos. Como se desafiam. Como conseguem.



Penso nas crianças trancadas em casa. Enlouquecendo pais. Tanta energia prestes a explodir dentro de corpos tão pequenos. Pequenas bombas nucleares. Nos dias em que, preguiçosa, largo os dois em frente à TV, sei que aquela que precede a bronca explosiva é minha culpa. Meia hora de parquinho faz milagres. Seis horas são felicidade plena.

Penso no privilégio que é estar aqui. E em como era estar lá. Do esforço necessário para fazer em São Paulo o que faço aqui. Converso com uma amiga que mora num bairro paulistano com muito relevo e ela conta das dificuldades, do filho não poder andar de bicicleta nas calçadas irregulares, de ter de andar um bocado até encontrar um parquinho, de ter de ficar vigiando a criança o tempo todo, de ter de pegar carro para conhecer um parque diferente. Neide Rigo comenta no Instagram sobre festas em parques, sobre balões amarrados em bancos de praça. Uma pessoa conhecida comenta comigo como acha cafona as bandeirinhas e balões nas árvores, o bolo imenso de aniversário na mesa de concreto. Fico fula. Cafona é teu nariz. Cafona é não usar o espaço público que teu imposto paga. Cafona é a gente ter de morar em condomínio fechado com escolta armada para teu filho ter espaço pra andar de bicicleta. Todo mundo tem direito ou deveria ter direito de usar os parques. De fazer um piquenique sem ser chamado de farofeiro, de fazer um aniversário numa praça. Toda praça deveria ter um playground, todas as calçadas, se fossem apropriadas para cadeiras-de-rodas, seriam também para bicicletinhas de criança. Todo bairro deveria ter uma infinidade de praças e parques. E todas as pessoas deveriam poder sentar na grama e relaxar um pouco no fim de semana.

Meu Verão ficou infinitamente mais fácil aqui. Mas me lembro de que o esforço em São Paulo, ainda assim, valia a pena. Se houvesse um parquinho, parávamos nele. Levávamos sempre piquenique, mesmo que o local de destino fosse abarrotado de opções para comer e beber. Farofeira sim, vai lamber sabão. Pesquisava atividades gratuitas para crianças. Íamos a museus gratuitos e entrávamos em galerias particulares pelo caminho. Qualquer coisa que fosse novidade era excitante e interessante. A mesma prerrogativa do brinquedo, mas aplicada a experiências. Lembro das crianças terem detestado a exposição do Museu da Escultura. Mas adoraram a água que espirrava sob a marquise de concreto: Splash Pad brasileiro. Bicicleta, só dentro do condomínio. Mas quando visitávamos minha mãe, usávamos as pernas. Subíamos a pé até a Paulista para ir ao Trianon, contar quantas aranhas-de-jardim gigantescas encontrávamos entre as árvores até chegar ao parquinho. Parquinho caidinho, sem manutenção, mas o bastante para duas horas de brincadeira entre aquelas árvores de folhas verde-escuras brilhantes de mata atlântica das quais sinto saudades. E íamos ao Masp, e olhávamos a cidade, e caminhar com eles pelo lugar onde cresci era enxergar com olhos novos o que minhas retinas já deixaram de registrar.

O tempo no trânsito era mais difícil. Não havia mesmo nada a se fazer do lado de fora do condomínio, e invariavelmente eu precisava planejar uma ida a São Paulo. Uma hora e meia dentro do carro. E as tardes de Verão acabavam cedo por causa das chuvas. Chuvas que às vezes faziam minha volta para casa se arrastar por três horas.

O medo dos assaltos era difícil. Fecha o vidro, dá a mão, não corre para longe, cuidado com o carro, cuidado com a bicicleta, cuidado com aquele homem, cuidado.

Mas ainda assim, tentávamos. Tentávamos estar do lado de fora. Olhar aquela cidade com a inocência dos meus filhos. Viver ali a vida que eu imaginava em outros lugares. Dois anos antes de imigrar, eu decidira não esperar vir para o Canadá para ter a vida que eu queria ter. Decidira que não ia suspirar de inveja de quem vivia no interior ou em cidades européias. Eu crio o meu mundo. E criei para minha família aquela realidade. Eu queria minha vida tranquila imediatamente, e não num futuro condicionado por uma dezena de variáveis.

Eu já tinha lá o que tenho aqui.

Aqui só ficou mais fácil, pois o ambiente é favorável.

Fecho meu livro e voltamos para casa.

Cheios de areia e terra e grama e lama e suor, as crianças são coagidas a ir para o banho. Penso no jantar. Às vezes penso numa sobremesa. Ambos sempre de improviso. Olho a geladeira. Hoje tem curry. Meu curry sem receita. Refogo cebola e alho e gengibre fresco picados em azeite. Douro junto 1 colh. (chá) de cada especiaria: cominho, coentro e mostarda em grãos; cardamomo, canela, chinese five spice, cúrcuma, todos em pó. Sal, pimenta caiena  e pimenta-do-reino a gosto. Refogo qualquer legume que eu tenha à disposição ou nenhum se não houver. Junto grão-de-bico ou lentilha, com seu caldo. Tomate em lata ou umas colheres de extrato de tomate. Leite de coco. Cozinho até engrossar. Cubro com uma cama de coentro fresco. Acompanha arroz. Se houver pepino, uma raita. Se não houver, uma colherada de iogurte é o que as crianças pedem para amansar a pimenta do curry.



Se o jantar sai rápido, dá tempo de improvisar a sobremesa. Frutas com chantilly batido na hora são frequentes. Morangos e ameixas e figos e cerejas. Nos dias de calor, todos querem sorvete. Não tenho máquina de sorvete e ninguém quer andar até o NoFrills para pegar o sorvete pela metade do preço. Bato manga congelada com uma colherinha de limão no processador. Melhor sorvete de manga do mundo. Bato bananas congeladas com morangos, mel e iogurte. Fica mais molinho, mas agrada a todos. Então tento algumas receitas de No-Churn Ice Cream com leite condensado, como fazia minha avó, que batia uma lata de leite condensado, duas de creme de leite e suco de limão e me dava para comer na varanda da chácara. Aquele limão que um dia respingaria no dorso de minha mão e faria uma mancha marrom sob o sol forte do interior; uma mancha que demoraria trinta anos para sumir quase que completamente.

Preparo ESTA RECEITA com frutas vermelhas congeladas e é um sucesso, ainda que eu sinta mais que os outros o doce agressivo do leite condensado. A versão de limão de minha avó fica muito doce para o meu paladar e o de Laura. Mas descubro que esmigalhar por cima os biscoitos de Tahini da Alice Medrich, ligeiramente salgados, equilibram a sobremesa e dão um gostinho de torta de limão. Por último, tento o de baunilha, de Tessa Kiros, de gemas cruas, leite condensado e creme de leite. Ele me lembra o sorvete de creme da Kibon da minha infância, doce e denso. Bom, mas sinto falta da delicadeza dos sorvetes feitos na máquina. Quem sabe no próximo verão?

Num dia com muitas cerejas, carnudas, rubi, suculentas e saborosas, resolvo fazer um clafoutis. Apanho o livro de Gynette Mathiot, I Know How to Cook, e preparo a receita ipsis literis. Acho estranho que a 1/2 xícara de açúcar de confeiteiro vá toda por cima da sobremesa terminada e não na massa, mas prossigo. Todas as vezes em que embarquei na estranheza daquelas receitas, elas se mostraram deliciosas. Desta vez no entanto, eu tinha uma pulga atrás da orelha e deveria ter dado ouvidos a ela. O Clafoutis ficou denso e com gosto forte de massa crua de panqueca. Não estava ruim. Mas claramente precisava do açúcar ali dentro. 

 Por isso, foi com curiosidade mórbida e desconfiança que resolvi testar um bolo do mesmo livro. Todas as receitas salgadas são ótimas, por mais escalafobéticos que alguns detalhes possam ser. No entanto, eu nunca preparava nenhum doce dele. Era um bolo mármore. Que ao invés de usar cacau em pó na massa de chocolate, usava chocolate ralado e não especificava que tipo de chocolate. Um bolo assado por 1 hora a 120oC. Sim, CENTO E VINTE. Isso não pode estar certo. Ainda assim, me joguei. Arrisquei. E como acontecera com a sopa de peixe engrossada com maionese, e tantas outras receitas esquisitas desse livro, o resultado foi mágico. Foi o melhor bolo mármore que fiz até hoje. A textura é compacta, macia e úmida, algo que vinha perseguindo há anos, uma vez que todos os bolos-mármore que fazia pareciam ligeiramente secos. O sabor do chocolate é intenso e as raspas de limão na massa branca trazem vida ao bolo. Delicioso.

Empolgada com o tal bolo, e tendo apanhado o livro Sweet, de Ottolenghi, na biblioteca, resolvi tentar repetir o sucesso com outra receita estranha. Esse bolo mármore também tem um processo diferente, em que se bate a manteiga amolecida direto na farinha e se mistura os ovos já batidos com o leite. Estava tudo indo bem até a hora de fazer as misturas das duas massas. A massa de café e chocolate levava só duas colheres de chá de cacau, o que achei muito pouco para tingir a massa. E a de cardamomo levava 1 colh e meia de chá de cardamomo, o que me pareceu coisa demais. Resultado, um bolo de textura ok, ligeiramente seco na boca, com ausência de chocolate e excesso de cardamomo, que acabou me lembrando gosto de remédio. As crianças detestaram. "O outro era muito melhor, mamãe."

Mais uma vez, ponto para os clássicos.

E nos clássicos, continuo mergulhada nos italianos. No meu desafio de acabar com toda a despensa antes de comprar mais comida, coisa que geralmente cria pratos um pouco esquizofrênicos, o spaghetti com ragù de lentilhas da Tessa Kiros aparece sempre. Você cozinha as lentilhas com sálvia fresca e alho, sem refogar. E então acrescenta as lentilhas cozidas com algum caldo a um molho de tomates feito de tomates em lata e cebola refogada em azeite. Deixa apurar. Tempera e polvilha com salsinha em abundância. Não apenas é delicioso mas, com um pouco mais de lentilhas, faz um pacote de 450g de spaghetti render mais de seis porções. Afinal. passamos o mês todo com o filho da prima de Allex hospedado em casa, estudando inglês, e eu estava tentando fazer as refeições renderem três porções de adulto, duas de crianças que já comem como adultos e uma extra para o almoço de Allex no trabalho.


 Depois de brincar e ler histórias, às vezes no horário de sempre às vezes mais tarde porque as partidas de Exploding Kittens ou Zombie Dice ou Uno com o pai se estenderam noite adentro, as crianças vão dormir. Elas sabem que estão indo dormir tarde quando o sol já se pôs.


Eu apanho meu livro novamente e vou à varanda, aproveitar aqueles dias em que posso ficar sentada do lado de fora por um longo tempo sem perder a sensação dos dedos.

Sento com Allex e fazemos o balanço dos últimos doze meses. As expectativas que tínhamos, as frustrações, as conquistas. O que melhorou, o que piorou, o que ficou igual.

Dia cinco de Agosto faz um ano que entramos naquele avião com nossas sete malas rumo a uma cidade que eu não conhecia. Já parece distante aquele mês de aflição e aventura na casa velha do AirBnB. A correria enlouquecida do aluguel do apartamento, da compra dos colchões e dos pratos na Ikea e a volta de metrô para casa às dez da noite, crianças dormindo no meu colo. Acordar a primeira vez no apartamento vazio e comer pão com manteiga sentados no chão. Descobrir o caminho para a escola. Descobrir onde comprar verduras e que cara tem o creme de leite. Esperar o PR Card chegar para buscar o cão no Brasil. Ficar doente enquanto marido viaja. Descobrir a neve. O inverno que chega rápido e demora para ir. Patinar no gelo. Descer encostas de trenó. O silêncio da natureza gelada. A alegria das primeiras plantas verdes nascendo numa Primavera fria. Ficar sem ver meus pais por seis meses. Um ano sem tomar café com minha melhor amiga.

Um ano.

Eu queria que esse Verão tivesse aquele mesmo gostinho de quando chegamos aqui. De parques e piqueniques. Eu fizera daquele primeiro verão exatamente o que eu imaginara no Brasil, o que eu tentava produzir em São Paulo, apesar das dificuldades. O Verão chegou de novo e está indo embora. E foi um reviver delicioso daquele Agosto. De parques e piqueniques. Mas sem a correria de achar apartamento, sem a aflição da chegada, sem a desestabilização da ausência de referências. Um Verão de descanso. Merecido. Depois de um ano.





BOLO MÁRMORE "FRANCÊS"
(Do Livro I Know How to Cook, de Gynette Mathiot)
Rendimento: 1 bolo de 21cm.

Ingredientes:
  • 1/2 xic. manteiga sem sal (100g) em temperatura ambiente
  • 1 xic. açúcar
  • 3 ovos, separados
  • 1 2/3xic. farinha
  • 1/3 xic. leite
  • 1 colh. (chá) fermento químico em po
  • 60g chocolate ralado (usei 70%)
  • 1/2 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 1/2 colh. (chá) raspas de limão (tahiti ou siciliano)

Preparo:
  1. Aqueça o forno a 120oC ou o mais baixo que seu forno tiver. Unte uma forma de bolo inglês com manteiga e polvilhe com farinha, batendo para retirar o excesso.
  2. Bata a manteiga com o açúcar até que fique macia e pálida. Junte as gemas, uma a uma, e misture até que fique homogêneo. 
  3. Misture a farinha e o fermento e uma tigela e reserve.
  4. Junte a farinha em duas partes e o leite, alternadamente. Junte a baunilha.
  5. Bata as claras em neve até obter picos firmes e incorpore à massa. Divida a massa em duas partes iguais. 
  6. Numa das partes, incorpore o chocolate ralado. Na outra, as raspas de limão. 
  7. Coloque colheradas alternadas das duas massas na forma, que deve ter 2/3 de seu volume preenchido. Leve ao forno por 1 hora ou até que esteja dourado e um palito saia limpo ao ser inserido no centro. (No caso de seu forno não assar a 120oC, fique de olho a partir dos 45 minutos. O meu assou em exatamente 1 hora a 120oC.)
  8. Deixe esfriar por 10 minutos antes de desenformar. O bolo fica delicioso ainda um pouco morno e maravilhoso no dia seguinte.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Ansiedade em Junho, Marcella Hazan, e bolo


Bolo delicioso e fácil da Dorie Greenspan. Vanilla and Browned Butter Weekend Cake.

Lembrei-me de quando era criança, do esforço de meus pais em tentar me arrancar da cama para ir à escola, levando pão e café na cama (minha mãe), espirrando água em minha testa (meu pai), ligando o rádio na Jovem Pan AM alto o bastante para o vizinho dezesseis andares abaixo escutar (meu pai de novo). Lembrei-me da frustração dos dois, pois todo aquele cansaço que usávamos como justificativa para uns minutos a mais sob os lençóis desaparecia aos sábados e domingos, quando pulávamos da cama antes das seis e começávamos a despejar o Lego de suas caixas e brigar pelas bonecas em nosso quarto, enquanto os adultos nos maldiziam por termos arruinado sua soneca de fim de semana.

Lembrei-me disso quando comecei a ver meus filhos fazendo o mesmo.

Junho foi o último mês de aulas. Último mês do ano letivo. Meus filhos haviam passado por seu primeiro ano letivo no Canadá. Sentia algo entre surpresa e orgulho. Laura empolgada em ser do Senior Kindergarten, Thomas preocupado em ter um professor diferente no Second Grade. Ambos ansiosos ao pensar em ficar dois meses sem ver os amigos que custaram a fazer. Frustrados porque muitos colegas viajariam para seus países de origem. Mas nós não.

Ansiedade tornou-se sinônimo de Junho.

Ansiosos para terminarem as aulas. Via em Thomas olhos cansados. Ele atropelava sua lição de casa para poder descansar. Enquanto lia um dos livros da escola em voz alta, adiantado já para quem chegou há onze meses sem falar uma palavra de inglês, Laura, sentada ao seu lado, ouvindo a história, despencava num sono pesado nos ombros do irmão. Não foram poucas as vezes em que a carreguei direto para a cama, seu corpo abandonado ao sono em meus braços, sem a capacidade sequer para jantar.

O calor nos exaure.

Depois de uma primavera praticamente inexistente, tendo nevado pela última vez em Abril (!!!), o Verão veio como um meteoro para cima da cidade, rápido, incandescente, brutal. De um dia para o outro, calças e malhas finas foram arremessadas ao fundo do armário e substituídas por shorts e regatas. Havia avisos de excesso de calor vindo do Comitê de Educação por email, e pais reclamando das altas temperaturas na sala do Kindergarten. Splash Pads e Wading Pools foram acionadas nos parques. O cão arfava a caminho da escola e buscava uma sombra para andar. O sol começou a se por às dez da noite, e as vespas, moscas, bumblebees e besouros finalmente surgiram. Num apartamento preparado para um frio ártico, o calor entra e não sai, e em noites sem vento, deitamos abandonados em nosso próprio suor sobre lençóis empapados, membros estendidos como estrelas-marinhas ressecando ao sol, e a mente, sem sossego, atordoada pelo excesso de luz, excesso de calor, excesso de movimento durante o dia, excesso de tarefas a completar, não adormece.

Não se dorme.

Não durmo.

O dia está claro antes das cinco da manhã e a luz entra cortante por entre as persianas.

Há de se aproveitar o Verão que dura tão pouco. As estações definidas fazem o tempo passar mais rápido e provocam uma ansiedade estranha, um medo de aquela semana de calor passar e você ter de esperar até o ano que vem para nadar no lago outra vez. Thomas, que ficou um ano sem bicicleta, agora precisa tirar as rodinhas até o fim do outono, ou terá de esperar até o ano que vem. Ansiedade.

As crianças vão para a escola de bicicleta. Corro atrás, lancheiras e cadeado numa mão, cachorro na outra. Estamos atrasados. Há uma série de eventos escolares esse mês. Os últimos eventos para arrecadar dinheiro para a escola. As festas de classe. O teatrinho do Kindergarten.

Quando uma mãe envia a lista de pratos da festa de fim de ano de Laura, imediatamente me candidato a levar os legumes. São mais rápidos de se preparar e mais baratos que as frutas. Preciso colocar imensos avisos por toda a casa e em minha agenda e meu celular, para me lembrar de comprar tudo, lavar, cortar e levar no dia correto. A semana toda é atravancada de consultas médicas, dentistas, passeio de escola que eu me comprometera a acompanhar no mês anterior, reunião de professores. Allex me cobra a carteira de motorista, que ainda não fui tirar. Não dá tempo, explico. Na vez da festinha de sala de Thomas, não havia lista para os pais. Teria mandado legumes também, mas ele veio cheio de carinho perdir-me um bolo, e às nove da noite, cansada, com poucos ingredientes na despensa, tentei adaptar um bolo que eu fizera uma vez há anos atrás e adorara, mas que desta vez acabou falhando miseravelmente, ficando com gosto de omelete e textura borrachosa, e foi direto para o lixo. Expliquei isso a ele no dia seguinte, e sua resposta "Tudo bem, mamãe, isso acontece!" me tranquilizou. Passamos no mercadinho vinte-e-quatro-horas a caminho da escola, com cachorro e bicicletas, atrasados para a natação do primeiro período e comprei um saco de pipocas de caramelo e queijo para que não fosse de mãos vazias. No meio da manhã me dei conta de que não checara se as pipocas eram Nut-Free. Passei a manhã toda ansiosa pensando se alguma criança fora parar no hospital por conta desse descuido ou se eu tomaria bronca da escola por mandar um lanche inadequado. 

Crianças na escola, bicicletas com cadeado, corro com o cão para o parque em frente para que ele possa ao menos encontrar seus coleguinhas caninos. Dez minutos no parque, uma conversa apressada, e meu corpo inteiro parece atraído para o caminho de casa. A força imensa que me arranca daquela rotina matinal de que tanto gosto e que normalmente cumpro com calma é o trabalho.

Em Junho meu trabalho voltou de verdade, com força, múltiplos projetos ao mesmo tempo, prazos todos iguais: para ontem. Olhei minha agenda, aquela miríade de compromissos interrompendo minha manhã, e tentei encaixar meu trabalho da melhor forma possível sem interferir muito na dinâmica familiar.

Volto do passeio do cão às pressas, atropelo meu ritual de iogurte com fruta, ignoro minha necessidade de fazer algum exercício, ou de meditar, e me atiro ao computador e à prancheta, onde fico debruçada sem pausa, até a hora de buscar as crianças. Esqueço de almoçar algumas vezes. Em outras, preparo minha torrada com abacate, mas peco comendo sem proveito e sem prazer em frente ao computador. O cão choraminga. Esqueci seu passeio do meio-dia. Desculpe-me, cãozinho, mas preciso entregar tudo isso enquanto as crianças estão na escola. Nas Férias tudo será melhor.

Ergo-me da cadeira com dificuldade, depois de cinco horas corcunda e torta. Tanto tempo olhando sem piscar para a tela, pintando detalhes, que lágrimas gordas começam a escorrer por meu rosto. Os olhos ardem. Sinto-me ridícula. Não estou chorando. Apenas meus olhos entrando em estado de emergência, mandando que eu olhe para fora, para o lago, que pelamorededeus PISQUE uma mísera vez durante toda a manhã, só uma. Não precisa ser assim. Mas precisa. Preciso entregar tudo antes que as férias comecem. Preciso aproveitar essas duas horas para trabalhar, pois daqui a pouco preciso ir na apresentação da Laura e depois tenho que pegar as crianças. É isso? É e não é. A verdade é que quero entregar logo todos os trabalhos contratados para poder voltar a meus projetos pessoais e todos aqueles planos mirabolantes que eu fizera para mim.
Feijões brancos com couve e lascas de parmesão, feitos do jeito que Marcella ensina a fazer com brócolis, e salada de tomares, aipo e ovos cozidos. "Que bonito isso, mamãe! Parece uma flor!", disse Thomas.

Saí todos os dias atrasada para pegar Laura no Kindergarten, sempre a última criança dando a mão para a professora. Estava trabalhando e perdi a noção do tempo, querida, desculpe, eu dizia. Ela saía correndo para o pátio da escola elementar para brincar com as amigas e buscar o irmão. O sol das três e meia estava a pino como se fosse meio do dia. Meu corpo ainda lembrava da luz esmaecida das curtas tardes de inverno, e meu peito continuava a palpitar. Preciso aproveitar o verão. AS CRIANÇAS precisam aproveitar o Verão. Precisam ir ao parque, precisam nadar no lago, precisam tomar sorvete, precisam andar de bicicleta, precisam acampar, precisam fazer trilha, precisam... ah. Não sei. E todas as tardes corríamos da escola para o parque em frente, onde eu me sentava sobre a grama (sentar-se sobre a grama! essa ação tão simples que fora impossível durante seis meses!), abria um livro e tentava não prestar muita atenção às peripécias infantis. Deixe-os correr e se pendurarem onde quiserem, pois fazem isso na escola com abandono e eu nunca estou lá para mandá-los descer. Tento não incutir neles os meus medos. Eles são capazes. Tive mãe que me avisou o tempo todo de que forma eu poderia quebrar partes do meu corpo caindo de lugares altos, e hoje me apavoro de subir em cadeira, uma miríade de acidentes potenciais surgindo em meu cérebro como desastre em forma de fogos de artifício. Eles dão cambalhotas no Monkey Bar e sobem nos telhados da casinha do Playground. Eu enfio meus olhos nas letras do livro e levanto a vista apenas de vez em quando, para ter certeza de que ninguém sumiu. Tendo meus filhos se machucado das piores formas ao brincarem comigo, sob minha vigília, desenvolvi essa teoria de que criança brincando é como o barulho que a árvore faz numa floresta sem ninguém para ouvir. Se a criança está no trepa-trepa e nenhum adulto está olhando, ela se machuca?

Piadas à parte, manter minha atenção na leitura aplaca um pouco minha ansiedade, pois os fogos de artifício do desastre continuam provocando arrepios em minha nuca e tensionando o meio da minha coluna todas as vezes que meus filhos sobem em uma pedra.

E eu sei que o problema sou eu, não eles.
 
Então tiro os sapatos, sinto a grama hirsuta por entre os dedos dos pés, e leio através de meus óculos escuros, protegida pela sombra balouçante de uma árvore. Gritos e risos e pássaros se sobrepõem ao ruído dos carros na avenida ao lado. Leio Marcella Hazan. Amarcord. "Eu me lembro". Um livro delicioso sobre uma vida interessantíssima. Um relato de alguém que passou por uma guerra, que teve um companheiro cheio de amor por toda uma vida, que encontrou na comida e na cultura um conforto sem fim e um trabalho digno.

Quando termino o livro, há uma tristeza em mim. Ler suas palavras foi como falar com minhas avós. Saudades.

Meus pais terem me trazido meus livros de Marcella de volta causou uma revolução positiva em minha cozinha. Eu me lembro. Eu me lembro de uma dezena de suas receitas que preparara, do amor que sentia ao cozinhar aquela comida, da saudades que me dava dos meus trinta dias na Itália e de minha infância inteira com minhas avós, e minha vontade de ver um pouquinho daquela senhorinha que fora tão importante para mim (seu livro Cucina foi o primeiro livro de culinária que comprei na vida) foi tamanha que fiz uma busca na Internet para encontrar algum video em que ela aparecesse cozinhando. E foi por conta deste, em que ela ensina Martha Stewart a preparar Tortellini, que pedi sua biografia na biblioteca.

O video imediatamente lembrou-me da vez em que preparara essa mesma receita, uma década antes, no Brasil. Usando espinafre, o presunto que encontrei no mercado, a ricotta ressecada disponível, e errando totalmente o tamanho das bolinhas de recheio e dos tortellini. Ver aquela senhorinha brava preparando os bocadinhos de massa, me encheu de amor no coração e decidi que era hora de tirar minha máquina de macarrão da gaveta. Havia anos que não preparava massa recheada para meus filhos.
Os tortellini tortinhos, cada um de um tamanho. O tempo estava quente e a massa começou a secar rápido, e a pressa é inimiga da perfeição.

Ainda assim, nenhum dos tortellini abriu, e todos cozinharam maravilhosamente.

Laura fez frescura para experimentar, mas todos rasparam o prato. Foi uma das coisas mais gostosas que preparei no último ano.
Atribulada com o trabalho e sabendo que voltaria do parque com as crianças perto das cinco da tarde para que Thomas fizesse a lição de casa antes do jantar, precisei de um certo nível profissional de planejamento para continuar preparando boas refeições. Como faço pizza toda sexta-feira, e as latas de tomates aqui são bem grandes, sempre faço uma quantidade grande de molho, já usando uma receita de molho de tomate que eu queira colocar sobre um macarrão na semana que segue. O molho fica bem durante uns cinco dias na geladeira, então sempre posso me valer dele para uma refeição rápida na semana seguinte. Logo, eu já tinha o molho para os tortellini, só precisando acrescentar creme de leite. Preparei o recheio dos tortellini na noite anterior, e naquele fim de tarde, enquanto Thomas fazia lição e Laura cochilava no sofá, só precisei preparar a massa, rechear e cozinhar os travesseirinhos.

Parece muito trabalhoso para uma refeição no meio da semana, mas sovar a massa é muito rápido, e a meia hora em que ela descansa antes de ser aberta, me possibilitou ajudar Thomas com a lição e responder alguns emails de clientes. Abrir a massa na máquina, pelo menos para mim, é um processo relaxante. Mas eu sou o tipo de pessoa que relaxa debulhando feijões.

Quando Allex chegou do trabalho, eu acabara de escorrer os tortellini e misturá-los a seu molho cremoso, e o resultado foi de lamber o prato. Um pouco de paz de espírito em meu peito.



 (Eu asso as pizzas sobre papel-alumínio untado de azeite, nas costas da assadeira, o que facilita transferir a massa para o forno, e assar mais de uma pizza uma depois da outra, não importa quão fina e grudenta a massa esteja. Primeira foto, massa crua com o molho de tomate. Segunda foto, massa assada por doze minutos a 250oC. Terceira foto, vai a cobertura. Quarta foto, pizza pronta, depois de mais 8 minutos de forno. O papel alumínio destaca facilmente da base da pizza.)

 Marcella acabou sendo uma forte influência durante todo o mês depois do sucesso dos tortellini, e a cozinha foi meu oásis de tranquilidade na tempestuosa rotina do último mês de aulas.

Crianças no parque, pés na grama, livro nas mãos, eu respirava. Tentava não checar o horário. Mas eu sabia que ainda precisaria continuar trabalhando depois. Era importante para mim não fazê-las sofrer por minhas responsabilidades. Daria tempo. Daria tempo de tudo. Eu também precisava daquela pausa.

Respirava. Tentava não me aborrecer com as crianças pedindo para que eu entrasse na fila quilométrica para comprar sorvete soft-serve porcaria do caminhão de sorvetes estacionado na calçada. Como nos filmes da sessão da tarde, as crianças são atraídas por uma musiquinha metálica e dissonante que se ouve a um quarteirão de distância, e todas largam suas brincadeiras, gritando ICE CREAM! ICE CREAM! e correm para o caminhão, como ratos atrás do flautista.  Ansiedade? Ansiedade é esse comportamento louco, de pais e crianças num parque numa tarde de sol, parados por trinta minutos numa fila na calçada ESPERANDO o caminhão de sorvete chegar e estacionar no local de sempre. "Eu só vou comprar sorvete quando a fila diminuir", explico às crianças. "É um desperdício de vida ficar ali em pé. Nem sabemos se o caminhão vai chegar." E de fato, houve tardes em que ele nunca veio, e a fila dissolvia-se depois de quarenta minutos, mas mesmo depois de uma hora ainda havia duas ou três pessoas agarradas à ideia de que ele viria, ali, em pé na calçada.

Lia Bukoxwsky.

Bukowsky, Ham on Rye, On Wrtitting, você me deprimiu. Deprimiu porque me identifico muito com você, e isso foi inesperado. Lembranças de questionamentos de infância e de juventude que até hoje não se resolveram, impressões da humanidade, desapego dos valores do mundo, sensação de isolamento, desencaixe. Olhar meu trabalho, olhar o trabalho dos outros, a motivação dos outros, o processo e o resultado dos outros e me dar conta de que jamais serei assim porque minhas premissas são tão diversas, meu mundo é tão outro, minha mente sonha num universo paralelo em que tenho permissão para a apenas ser e fazer, mas sou constantemente cutucada por sombras à minha volta que me despertam para esse entorno que me diz que é preciso ganhar, ter, parecer.

Enquanto ocupo meu tempo com os projetos que trarão um pequeno incremento à conta bancária, vejo meu blog, meu livro, minhas pinturas e ilustrações pessoais ali à deriva, tomando pó (literalmente), e meu coração se amarga. Apesar de ter trabalho, sinto-me mal por interromper aqueles outros processos. Sinto-me mal por não conseguir prosseguir com eles madrugada adentro. Não dar os passeios longos de que o cão precisa me aborrece. Sinto-me mal novamente, uma amiga ruim do meu companheiro peludo. Sei que deveria catar as crianças e voltar correndo para casa para continuar meu trabalho, mas isso faz com que me sinta uma mãe ruim, depositando neles o ônus do meu trabalho. Quando terão dias assim para brincar de novo, se o frio chega tão rápido novamente? Meu coração aperta um pouco. Eles são mais importantes. Eu me viro, eu sei que me viro, eu sei que vai dar tempo de tudo. Eu sei que os trabalhos serão entregues, as crianças terão brincado, o cão estará contente e eu hei de terminar meu livro e minhas ilustrações. Sei, racionalmente sei, que tudo a seu tempo será feito e que tudo vai ficar bem. Mas havia essa ansiedade. Essa angústia. Essa sensação de não estar fazendo o suficiente.

Voltava para casa. Tentava não ter pressa. Isso é mais importante que qualquer coisa, eu repetia. E eu sentia. Sabia que estava feliz com meus filhos e que eles estavam felizes também, por poderem viver a seu tempo. As crianças em suas bicicletas, o sol da tarde por entre as árvores, a fome doendo no estômago depois de um dia todo de escola e mais um par de horas no parquinho. Eu sempre consciente da minha respiração, na tentativa de acalamar aquela palpitação constante, aquele verme da ansiedade que pulava num canto escuro do meu cérebro, sussurrando com maldade que nada disso era o bastante, que não daria tempo de nada.

Em casa, preparava aspargos, o novo legume favorito das crianças. Barato agora que é época e ele é local, faço cozido com ovos pochés e lascas de parmesão, e me felicito por fazer três ovos pochés ao mesmo tempo pela primeira vez. Depois me valho de Marcella para esse prato incrível, que as crianças ajudaram a montar: fiz a primeira trouxinha de aspargo, queijo, prosciutto e manteiga como exemplo, e eles fizeram o resto. Usei a água do cozimento dos aspargos para preparar o arroz, perfumado de ervas e manteiga. Salada verde simples para acompanhar.



Noutro dia, boto as crianças para preparar Pici. Essa massa fácil, que não requer máquina de macarrão nem habilidades maiores do que uma criança de três anos tem ao brincar de massinha. E o majericão genovês de verão perfuma novamente o molho feito com antecedência. 600g de farinha, 300ml de água, 1 colh (sopa de azeite). Basta sovar como qualquer massa, embrulhar e deixar descansar por meia hora. Então abrir como um retângulo pequeno, cortar pedaços e abrir como minhoquinhas o mais finas que conseguir, como um fio de spaghetti grosso. Cozinhe normalmente e sirva com um bom molho de tomate ou ragù.


Você sabe que passou por um longo inverno do hemisfério norte quando dá um grito de alegria ao ver abobrinhas novamente. Como senti falta de abobrinhas. E berinjelas. E pimentões. E tomates frescos. E vagens. Laura clama por vagens. Tenho colocado abobrinhas em tudo, mas essas em especial, recheadas das próprias abobrinhas refogadas em cebola e prosciutto até seu total colapso, e misturadas a um béchamel simples, ficaram deliciosas.

Vou ao mercado e a ansiedade se instala, no entanto. Quero aproveitar os aspargos. Quero aproveitar as abobrinhas. E as cerejas, e os morangos, e os tomates. Logo eles se vão de novo e lá vem mais seis meses de batata, couve e maçã. 


As abobrinhas haviam sido cozidas antes. Usei a água das abobrinhas para cozinhar o arroz, e servi com uma simples salada de cenoura com muito azeite.

As crianças vão dormir contentes e exaustas, eu desço o cão para o último passeio, trabalho mais um pouco e então desabo no sofá com o celular e uma cerveja nas mãos. Quando Allex pergunta, o dia foi bom. Deu tudo certo. Brincamos, cozinhamos, comemos, as crianças vão bem na escola, o cão está fofo, os trabalhos estão nos prazos. Apesar da correria, consegui terminar de ler mais um livro e fui catar outro na biblioteca. Sento e desenho mais um cartoon do meu #The100Day Project, e parece que tudo se encaixa mais ou menos bem.

Então por que me sinto consumida? Incapaz? Insuficiente? Bukowsky me deprimiu, explico ao marido. Mas não é isso. Usando aquela expressão boa em inglês, I can't quite put my finger on it. Não consigo identificar exatamente o que é.

Passo o resto da noite vendo o Instagram de outros ilustradores, trabalhos lindos e carreiras brilhantes e consistentes. Traço mil planos na minha cabeça. As direções são tantas que me perco.

Não durmo.

O dia seguinte é igual. Termino com o celular na mão, vendo as férias dos outros, e sentindo que sou uma mãe ruim por não viajar com meus filhos nesse verão.

Não durmo.

Então, no dia seguinte, quem não quer levantar da cama sou eu. Laura é quem me traz meu café. E se antes eu achava isso fofo, agora me pego amarga, pensando que queria ter dormido mais. Saio da cama já cansada, tomo meu café, não tenho apetite. Apanho o celular, e fico metida nele, tentando distrair a cabeça da avalanche de pensamentos. Minha mente é como os letreiros de um luminoso financeiro, mas as informações que correm nele são todas as tarefas do dia, todos os planos que fiz durante a noite insone, todos os pratos que quero fazer com os ingredientes sazonais que logo vão sumir. Uma briga das crianças por espaço para escovar os dentes me irrita e me pego explodindo com eles. Minha cabeça parece suspensa numa névoa.

O que era simples de repente parece complicado.

Saímos correndo para a escola, bicicleta, lancheiras, cachorro. Brigo com eles por todo o caminho por bobagens. Não vou ao parque com o cão. Voltamos da escola direto para a casa, trabalho, e olhar para o arquivo aberto de meu livro pela metade ou as aquarelas incompletas sobre a prancheta me enche de rancor.

Depois da escola, está quente, o cão não passeou o suficiente, eu não terminei o jantar. Mas queremos ir ao parque! Tá bem, tá bem, só um pouco. Sento na grama. Não consigo me concentrar no livro. Apanho o celular. Gente feliz em cidades européias espalhando aos quatro ventos como seus filhos não fazem birras porque eles usam disciplina positiva e todos crescerão para serem adultos absolutamente fantásticos que curarão o câncer, instituirão paz mundial e reviverão os unicórnios.

Minha vida é boa mas não é. Será que estou feliz aqui ou poderia estar melhor em outro lugar? Será que dou  bastantes oportunidades aos meus filhos? Será que estou aproveitando todo o potencial de vida plena que essa nova morada me oferece? Deveria ir a mais cafés? Deveria comprar um sapato novo? Deveria começar a fazer cartões postais dos meus desenhos? Deveria começar a pintar com guache? Deveria tentar fazer concept art, apesar de odiar ilustrar digitalmente?

Vejo meu dia como um mar de rabugice pontilhado de ilhotas de contentamento. Sirvo o jantar com farofa e as crianças acham lindo e delicioso e elogiam, e isso me enche de amor e calor. Então Laura começa a segurar o garfo torto para fazer o irmão rir e derrubar toneladas de farofa no chão, e Thomas levanta o tempo todo da mesa para fazer outra coisa, e há uma parte minha, uma parte ruim e mal resolvida, que parece se sentir ofendida porque as crianças arruinaram aquele momento bom, aquele momento que eu acabara de fotografar para compartilhar com mil pessoas. Tento conversar e ser civilizada e carinhosa e disciplinar positivamente, como se aquelas mil pessoas estivessem assistindo à cena e pudessem me cobrar qualquer outra atitude, mas eles estão cansados e agitados, e acham graça de minhas reprimendas. Explodo. E um milissegundo depois me arrependo. Sinto-me uma mãe ruim. O dia desanda, boto no lugar, desanda de novo, corrijo outra vez. 

No fim, quando paro e lembro, já na cama, o dia foi ótimo. Quase nenhuma bronca minha fizera sentido de fato. Elas tinham mais a ver com minhas expectativas do que de fato com alguma má intenção das crianças. O dia foi ótimo e eu poderia tê-lo aproveitado. Mas continuo me sentindo ansiosa e rancorosa. Sinto-me uma farsa.

Todos se esbaldando na farofa feita com a farinha de mandioca trazida pela vovó. Na outra panela, batatas-doces com ervilhas e queijo Haloumi (que parece queijo coalho), feitas daquele jeito que ensinei com salsichas no post anterior, mas agora versão vegetariana.
Converso com Allex. Minhas ansiedades com relação ao trabalho, à carreira, aos filhos, à vida de imigrante, são todas justas. Mas de alguma forma também desmedidas. Nada parece grande o bastante para me fazer sentir constantemente assim, sem ar. Essa sensação de estar fazendo tanto e que esse tanto não basta.

Então minha querida amiga me telefona. Ela que parece sempre alinhada comigo, que sempre diz exatamente o que preciso ouvir.

Ana.

Larga o Instagram.

Está te fazendo mal.

Você exagerou e agora está simplesmente sofrendo de F.O.M.O. (Feat of missing out) e excesso de comparação com os outros.

...

Hmmm...

Será?

Tentei ser racional a respeito. De fato, quando analisava as coisas, não havia nada de realmente errado na minha vida. Tudo andava, inclusive, muito bom. Minha vida tranquila. Ainda que corrida de vez em quando. Ainda que com contratempos. Ainda que absolutamente vida real. Vida de birra de criança, vida de dia cansado em que a gente dá uma bronca desmedida, vida em que não dá tempo de dar um passeio de quarenta minutos com o cachorro todo dia, vida de bolo que vai pro lixo, vida de pepino com documentos. Mas essencialmente uma vida boa. Uma vida de ler sentada na grama, vida com trabalho remunerado, vida de criança saudável brincando no parque, vida de tagliatelle fresco com molho de abobrinha e biscoito recheado de geleia feita em casa. Vida de apanhar amoras nas árvores do parque e ganhar alfaces de um senhor português cuidando de seu jardim.


Unfollow, unclutter.

Desliga o Instagram um pouco. Um dia, dois. Uma semana. Posta a ilustração nova e desliga, Ana, diz minha amiga.

Tagliatelle com molho de abobrinha frita, de Marcella Hazan.
Três dias depois meu coração batia novamente, no ritmo do vento, do sol, das crianças subindo nas árvores, do cão latindo na rua, no ritmo da luz da manhã na cadeira da varanda, no ritmo da máquina de café.

Agradeci à minha amiga. Expliquei ao meu marido. Tão simples, tão óbvio. Essa ansiedade dos novos tempos. Essa avalanche de informação e vida dos outros que nos faz achar que não somos o bastante, que não nos esforçamos tudo o que podemos, que não atingimos nosso potencial, que não usamos bem todo o nosso tempo, que não moramos no melhor lugar possível, que não criamos nosso filho da melhor forma, que não sabemos o suficiente sobre um assunto, e que não importa o que façamos, estamos sempre atrás, sempre perdendo, sempre insuficientes.




Já postei tantas receitas do livro Apples for Jam, de Tessa Kiros, aqui, que sinto que já passei da cota da infração de direitos autorais. Esses biscoitos recheados de geleia são facílimos, e dão certo mesmo quando parecem que não vão dar. Deixo o link para a receita que encontrei internet afora

Foi como desligar uma luz estroboscópica que piscava na minha cara enquanto tentava dormir.

Senti-me estúpida por cair nessa de novo, sendo justamente aquela pessoa que abandonara o Facebook pelos mesmos motivos, sendo alguém que se vê como tão atenta a essas armadilhas modernas. Mas muito rapidamente parei de me sentir estúpida. Todo mundo cai nessa. Eu não sou melhor que ninguém. Não sou especial. Basta um segundo de desatenção. Basta dar voz ao verme que nos manda "ver o que está acontecendo para não ficar por fora".

Agora conheço bem meus gatilhos, e isso me ajuda a evitar o tiro no pé. Foi assim com a comida, quando descobri qual era a emoção que me fazia comer além da conta, há anos atrás. Conhecendo meu gatilho ele fica evidente como um elefante no meio da sala, e assim basta enxotá-lo antes que faça estrago. Já sei que o primeiro sinal de que devo desligar o celular é quando penso que "preciso" ver o novo Stories da fulana antes que seja apagado. Ansiedade no nível máximo, e com besteiras sem absolutamente nenhum significado real.

Não preciso nada.

Não preciso ver Stories, não preciso dar like, não preciso comentar. Preciso tirar os sapatos e pisar na grama. Preciso ver meu cachorro correndo com seus colegas caninos, latindo feliz ao tentar juntar todos os cães no centro da clareira, como se fossem um rebanho. Preciso ver meus filhos desenhando e correndo em trilhas no mato. Preciso sentar na cadeira de plástico mequetrefe da varanda e ler Bukowsky. Bukowsky que primeiro me deprimiu, mas que depois me libertou. Que me permite escrever do jeito que escrevo, pintar do jeito que eu pinto, me relacionar do jeito que me relaciono e ser quem eu sou sem pedir desculpas nem dar explicações.

Também preciso de bolo. Nunca se esqueça do bolo.
Este, de Dorie Greenspan, é fácil e exatamente o tipo de bolo de que gosto: textura fechada, miolo macio, fácil de fatiar, casquinha úmida e doce, um sabor delicioso de manteiga queimada e baunilha.

BOLO DE MANTEIGA QUEIMADA E BAUNILHA
(do Livro Chez Moi, de Dorie Greenspan)

Ingredientes:
  • 115g manteiga sem sal
  • 1 3/4 farinha de trigo
  • 1 1/2 colh (chá) fermento
  • 1/4 colh. (chá) sal    
  • 1 1/2 xic. açúcar
  • 4 colh (chá) extrato de baunilha (ou uma fava de baunilha)
  • 4 ovos
  • 1/3 xic. creme de leite fresco
  • 2 colh. (sopa) rum (opcional)

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte com manteiga uma forma de bolo inglês de 22cm e polvilhe com farinha. Coloque a forma sobre uma assadeira.
  2. Derreta a manteiga numa frigideira em fogo médio até que comece a dourar, espumar e exalar um perfume de avelã. Deslique o fogo, e cuidado pois a manteiga continua escurecendo e queima muito fácil
  3. Numa tigela, junte a farinha, o fermento e o sal. 
  4. Se estiver usando a fava, retire as sementes e esfregue-as no açúcar. Se estiver usando o extrato, coloque-o depois que os ovos estiverem batidos. 
  5. Bata os ovos e o açúcar com um fouet por cerca de um minuto até que esteja homogêneo. Junte a baunilha, o rum, se estiver usando, e o creme de leite, misturando bem
  6. Junte os ingredientes secos em três adições, misturando com uma espátula apenas até que estejam incorporados. Junte por último a manteiga, aos poucos, misturando com a espátula até que ela suma. 
  7. Despeje a mistura na forma sobre a assadeira e leve tudo ao forno por 55-65 minutos, olhando um pouco antes para que não esteja escurecendo muito rápido. Se isso acontecer, cubra com um papel alumínio solto. O bolo está pronto quando estiver dourado e um palito inserido no meio sair limpo. 
  8. Retire do forno e aguarde uns dez minutos antes de passar uma faquinha nas laterais e desenformar. Deixe esfriar sobre uma grade.

Cozinhe isso também!

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