Mostrando postagens com marcador fontes de sabedoria. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador fontes de sabedoria. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Abril, sorvete de Gianduia, Focaccia de morangos, melhores almôndegas, criança na cozinha, saudade de comida de vó

FLORES FINALMENTE!
A Primavera parece ter finalmente chegado. Depois da última nevasca no começo de Abril, que pegou todo mundo de surpresa, finalmente os pássaros voltaram, as formigas ressurgiram e as flores começam a nascer novamente. Só quem passa por um Inverno rigoroso conhece a alegria de ver um tufo de grama verde. Sair finalmente sem gorro, com o vento soprando pelos cabelos no topo da cabeça é um alívio.

O começo de Abril também trouxe o aniversário de oito anos de meu Matador de Dragões. Oito anos. Olho para esse menino comprido do meu lado e me assusto com a velocidade do tempo. É uma delícia acompanhar seu amadurecimento, essa montanha russa comportamental, que o leva da risonha bobeira infantil à opinião forte e respondona mais típica de um adolescente em milissegundos.  

Quase que  não sobra bolo para fotografar. Era o bolo de baunilha de sempre da Alice Medrich, ao qual acrescentei 1/4xic. de coco ralado hidratado em um pouquinho de água quente. Chocolate Fudge frosting da Alice também. A ideia do bolo foi do Thomas: um bolo de coco, com cobertura de chocolate, com coco ralado em cima e morangos.

Numa manhã recente, enquanto eu tomava meu cappuccino, braços cruzados, quadris repousados contra a pia, observei a movimentação silenciosa de meus filhos. Thomas veio até a cozinha a passos certeiros, apanhou a frigideira da gaveta de panelas e deixou-a sobre o fogão. Continuei apenas observando, sem dizer nada. Pegou uma fatia de pão. Não, duas. Tirou o pote de vidro de manteiga da geladeira e, com uma pequena faca afiada, tirou-lhe um naco, cuidadosamente depositado no centro da frigideira. Esticou o braço por cima da frigideira, erguendo seu corpo apenas a alguns centímetros do chão sobre a ponta dos dedos, e ligou a boca sob a panela, após um segundo de pausa, enquanto lembrava para que lado girar o botão. Quando a manteiga começou a derreter, segurou firme o cabo de metal com as duas mãos, fazendo um movimento circular com a frigideira, para que a gordura se espalhasse por sobre todo o fundo. Depositou ali suas duas fatias de pão, pressionando-as com as pontas dos dedos para que absorvessem a manteiga, e então cruzou a minha frente em direção à cafeteira automática, onde posicionou sua caneca favorita, de dinossauros, e se preparou um pouco de leite quente com espuma, que bebericou aos poucos, enquanto esperava suas torradas dourarem. Quando desligou o fogo e colocou seu café da manhã no prato para levar à mesa, voltei meus olhos para Laura, que àquele dia resolvera, não sei por quê, já que nunca peço isso a ela, esvaziar a lava-louças. Foi tirando cuidadosamente todos os pratos, tigelas, copos, talheres e panelas pesadas da máquina, e arrumando cada item em seu lugar no armário lá no alto, empoleirada num banquinho, de forma organizada, deixando sobre a bancada apenas os potes que eu precisaria para seus lanches escolares.  Terminada a tarefa, ela abriu o freezer, apanhou um saco de mirtilos congelados, despejando um punhado deles sobre a peneira que ela tirara da lava-louças, e abrindo a torneira de água quente da pia, finalmente ao seu alcance. Depois de deixar a água quente correr sobre as frutas o bastante para que descongelassem, ela as espalhou sobre colheradas de iogurte natural retiradas do pote tamanho família da geladeira, e seguiu contente e em silêncio para a mesa, onde saboreou seu café da manhã com seu irmão, enquanto conversavam sobre tipos de monstros e demônios que desenhariam em seguida.

Ri por dentro, contentíssima e surpresa. 

Meus filhos cresceram. Com seis e oito anos, não há mais crianças pequenas em casa. 

Sempre estimulei sua independência, por motivos altruístas (quero que desenvolvam diferentes habilidades e autoconfiança) e por motivos completamente egoístas (quanto mais independentes eles são, mais tempo eu tenho para mim). Se eles mostram capacidade física e emocional para uma tarefa, quero mais é que façam sozinhos. Começando com arrumar as próprias camas e se vestirem sozinhos quando eram bem pequenos, comerem sozinhos, usarem louça de adulto sem quebrar (sempre fui contra prato de plástico e copo antirespingo, porque não ensina a ter cuidado com os objetos e com a sujeira - a única pessoa da casa que quebrou prato e copo desde que as crianças nasceram fui eu)... passando por tomarem banho sozinhos e escovarem os dentes (o último precisa de uma avaliação materna e paterna e às vezes mandamos eles refazerem). 

Lembro de uma mãe reclamando que não tinha tempo pra nada. Quando descobri que ela ainda dava banho no filho de nove anos, entendi: se eu tivesse de parar meu dia pra ficar dando banho nos dois, eu também teria pouco tempo. Aqui é justo o contrário: enquanto eles tomam banho, eu tenho sossego. (Escrevo isso enquanto Laura está no chuveiro e Thomas fazendo lição.)

Facas sempre foram motivo de discussão: tinha gente que me xingava porque eu dava faca na mão do meu filho quando ele tinha uns três anos (aquelas facas comuns de jogo de jantar).  Desde pequenos eles tinham as facas comuns para que aprendessem a cortar a própria comida no prato ou ajudar a empurrar a comida para cima do garfo - até hoje eu chamo isso de escavadeira e parede: a escavadeira (garfo) tem que empurrar a comida em direção à parede (faca) - e eles aprenderam a comer feito gente grande super rápido. Tenho um orgulho bem besta dos dois por saberem enrolar spaghetti no garfo sem precisar de outros talheres ou por saberem comer alface dobrando a folha sob o garfo com a ajuda da ponta da faca, sem cortá-la. Besta, besta, mas fico super contente. (No entanto, ainda tenho que pedir pra mastigarem de boca fechada e não falarem de boca cheia, em TODA REFEIÇÃO.)

Faz um tempo, comprei-lhes uma tábua de corte menor e uma faca de frutas bem afiada e bem leve, para que não precisem fazer força para cortar as coisas nem usar as minhas facas de corte, que são muito pesadas. Essa faquinha lá embaixo na foto é a faca das crianças, que Laura usa para picar cebolas para mim (ela corta uma cebola inteira em cubinhos ainda devagar, mas com muito capricho) e cortar a parte verde dos morangos quando os trago do mercado. A faca é bem afiada, então eles não precisam fazer FORÇA (o que diminui o risco de acidentes). E é do tamanho exato para que, proporcionalmente ao tamanho de suas mãos, eles possam usar como uma faca de Chef.

Todo restaurante japonês por aqui serve fatias de laranja de sobremesa. As laranjas daqui são muito doces e perfumadas, e foi nos restaurantes que aprendi esse corte: Você corta a laranja como se ela fosse uma melancia, e passa a faca da mesma forma para soltar a polpa da casca. O truque é deixar um cantinho ainda preso. Você pode mandar as fatias de laranja de lanche, e a casca ajuda a mantê-las intactas e ainda ajudam na hora de comer: você segura pela casca, entorta ela um pouquinho para a polpa se separar e come o gomo de fruta assim numa bocada só. A pimpolhada adora, inclusive Thomas, que anda resistente à frutas frescas.
Já cortaram os dedos? Claro que sim. E aprenderam a tomar mais cuidado depois disso. No começo eles só faziam comigo do lado. Hoje em dia eles têm autorização para usar a faca para cortar uma fruta se quiserem, sozinhos. As regras são claras: é um de cada vez na tábua de corte, sempre olhe onde estão os dedos, não pode fazer força com a faca, e a faca não sai de cima da tábua nunca. 

Então, um dia, Thomas pediu para fazer as panquecas sozinho. Expliquei a receita e ele mediu os ingredientes, misturou e então cozinhou, virou e serviu todas as panquequinhas sem minha ajuda. E quando vi que ele já alcançava os botões do fogão, que aqui ficam lá atrás das bocas, perto da parede, expliquei que ele só poderia usar o fogão quando eu estivesse do lado, sem exceção. Ele entendeu. Aliás, esse tipo de regra eles sempre entendem e respeitam muito bem, o que faz com que eu confie ainda mais nos dois. Só não achei que ele sairia assim, fazendo seu próprio café com tanta segurança tão rápido. 😜

Enfim. Ele já se queimou? Claro que sim. Laura também. Thomas anda interessadíssimo no processo de auto-cura do corpo humano, observando o progresso de uma bolha em seu dedo mindinho, queimado quando ele encostou sem querer na borda da panela. Eu gosto que eles se machuquem? CLARO QUE NÃO. Fico preocupada? MAS É ÓBVIO QUE SIM. Ao mesmo tempo, eu conheço meus filhos e sei do que eles são capazes. Nunca deixo que façam nada em dias em que estão cansados ou distraídos, por exemplo, e nunca forço ninguém a ajudar na cozinha - faz só quem quiser. Mas sei que se você não deixa a criança correr e cair, ela nunca vai aprender que o chão é duro e precisa ser evitado. A gente aprende errando. E quando você toma a primeira queimada no antebraço, aprende a manter o cotovelo pra cima enquanto mexe a panela com a colher. Eles têm maturidade o bastante (pelo menos nessa área, no resto tá longe ainda) para saber que a gente não brinca com faca e não brinca com fogo. Quando estão na cozinha, eles são sérios e respeitam os perigos. E acho isso lindo. Quando começa a bagunça, eu já berro: na cozinha só tem UM CHEF! Vocês são ajudantes, e ajudante faz o que pedem, não o que quer. E pronto. Tudo volta ao normal. E se não volta, mando todo mundo pra fora da cozinha e acaba a brincadeira.

Talvez vê-los crescendo e se virando assim tão rápido seja o motivo do meu recente saudosismo culinário. Talvez seja um reflexo natural da idade e dessa busca por comida mais simples. 

Começou quando me dei conta de que havia muito tempo não usava castanhas na minha cozinha, por causa de todo o problema de alergias na América do Norte. Meus filhos são proibidos de levar castanhas e amendoins para a escola, e Allex não levava nada do tipo para o trabalho desde o incidente em que eu quase matei uma colega dele por causa de um biscoito de amendoim. 

Eu e Thomas somos apaixonados por castanhas (coisa que aprendi a comer com meu pai), e sempre inclui um bom punhado delas em nossas refeições e lanches. Meus bolos e biscoitos sempre tiveram amêndoas e nozes. Sempre comemos pesto com castanha do Pará (pois pinolis eram muito caros) e as crianças sempre foram as primeiras a devorarem as castanhas de caju trazidas de Fortaleza por meu pai. (Até hoje castanha de caju é a única que Laura come sem reclamar.)

Mas por que, Ana, você não faz o biscoito com castanha e simplesmente não manda pra escola? Porque, caro leitor, as crianças passam o dia todo fora e todos os lanches são feitos fora de casa, e não há um momento no dia, na verdade, que comporte biscoitos que não possam ser levados para a escola. Seu consumo não se encaixa no nosso dia-a-dia e usar meu tempo pra fazer um doce com nuts e um nut-free sempre me pareceu um abuso.

Mas no embalo das sobremesas de fim de semana, me dei conta de que podia reincorporá-las dessa forma sem correr o risco de mandar coisa errada pra escola sem querer. Resolvi fazer aquele sorvete de amêndoas com cerejas em calda do post anterior. Laura tomaria o sorvete sem reclamar da textura crocante das amêndoas. O sorvete gerou conversas interessantes com meus filhos, e foi quando eles disseram não saber o que era Gianduia que dei um basta. Ok. Mamãe vai voltar a cozinhar com nozes e castanhas. Porque terem família italiana e não conhecerem Gianduia é um crime. Castanhas fazem parte de quem somos (tanto brasileiros quanto de ascendência italiana) e eu não vou abdicar disso.
Quando a gente decide comer sorvete à noite, assistindo Masterchef no computador, a foto não fica lá essas coisas.

E como sorvete é mandatório no fim de semana, preparei um de Gianduia para as crianças imediatamente. Adaptei muito a receita de David Lebovitz. Porque depois de muito fazer sorvete, decidi que prefiro texturas mais delicadas. Os sorvetes dele, apesar de deliciosos, costumam levar mais gemas e gordura do que um gelato normal, e mesmo as crianças comentaram que o sorvete de amêndoas ficou um pouco pesado (Laura também achou muito doce). Adapto sem dó, usando sempre a mesma proporção de gemas para leite e creme a partir de agora, que produz um sorvete mais leve e delicado, mais de acordo com o meu paladar e o das crianças. E o resultado ficou excelente.

GELATO DI GANDUIA
Rendimento: cerca de 1 litro

Ingredientes:
  • 2 xícaras de avelãs inteiras, com casca (assadas por 10 minutos a 180oC, esfregadas para liberar as cascas)
  • 115g chocolate ao leite de qualidade (ao menos 40% de cacau), picado
  • 4 gemas
  • 200g açúcar
  • 750ml leite
  • 250ml creme de leite fresco
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 1/4 colh  (chá) extrato de baunilha

Preparo:
  1. Pique muito bem as avelãs e coloque-as numa panela com o açúcar e o leite. Leve à fervura branda, misturando, desligue, tampe e deixe descansar por 1 hora pelo menos.
  2. Passado esse tempo, passe a mistura por uma peneira fina (se alguns pedacinhos de avelã passarem não tem problema). Reserve as avelãs para outro uso (você pode secá-las no forno para que durem mais na despensa, mas eu apenas coloquei-as no freezer como estavam).  
  3. Bata as gemas em uma tigela. 
  4. Em outra tigela maior, coloque o chocolate e reserve. 
  5. Reaqueça o leite de avelã até a fervura branda e desligue o fogo. 
  6. Tempere as gemas, acrescentando uma concha de leite quente por vez, misturando bem com um fouet. Depois de três ou quatro conchas, junte toda a mistura à panela, e ligue o fogo médio-baixo e mexa bem com uma colher de pau ou espátula, riscando um 8 no fundo da panela, por 8-10 minutos, ou até que a mistura engrosse o bastante para recobrir as costas da colher. As avelãs vão apressar esse processo, na verdade. Fique atento para não deixar o creme ferver ou talhar. 
  7. Passe por uma peneira sobre a tigela com o chocolate e misture bem até que o chocolate esteja todo derretido.
  8. Misture à tigela o creme de leite, o sal e a baunilha. Continue misturando até que o vapor pare de sair. Deixe a tigela em temperatura ambiente até que esfrie e então leve à geladeira por pelo menos 4 horas. 
  9. Passado esse tempo, coloque a mistura na sorveteira segundo as instruções do fabricante.

É CLARO que eu não joguei fora as avelãs picadinhas que foram peneiradas. Misturei-as a uma receita simples de granola, para assarem junto com a aveia logo do começo, e o resultado ficou delicioso. Pronto, mais castanhas incorporadas no nosso dia-a-dia.
Granola, banana e iogurte depois da corrida. Nham.
A empolgação com as castanhas me fez buscar novamente as receitas abandonadas de bolos e biscoitos italianos que eu andava ignorando em detrimento das preparações nut-free. Foi aí que voltei a preparar bolos feitos não com o intuito de serem lanche de escola, mas sim café da manhã. Pois assim poderia colocar todas as castanhas que quisesse, sem peso na consciência. Mas acontece que acabei apaixonada pelos bolos italianos, leves, pouco doces, cheios de fruta, que não parecem uma indulgência logo pela manhã, e esqueci-me de que a ideia era ter castanhas ali.

Além disso, bolos italianos costumam ser ridiculamente fáceis de preparar. Os dos livros de Marcella Hazan são praticamente todos feitos com uma tigela e uma colher, e as crianças gostaram de todos até agora.

Outra coisa boa para o café da manhã, que Laura me fizera prometer preparar no dia em que folheou meu livro e viu a foto é essa focaccia rápida de morangos. Rápida porque fermenta apenas uma vez e por apenas 1 hora e meia, indo direto para o forno. Ainda assim ela fica macia por dentro, ligeiramente crocante por fora, e com esses morangos mornos e macios, quase como uma compota. Ótimo para o fim de semana, quando todo mundo acorda meio sem fome e com vontade de ir brincar, e pode esperar duas horinhas para tomar café. (Mamãe não. Mamãe toma cappuccino enquanto prepara a focaccia.)

A focaccia da foto é apenas meia receita, que basta para 4 pessoas. (Eu não tinha fermento para uma receita inteira)
FOCACCIA RÁPIDA DE MORANGOS
Do livro Recipes and Dreams from an Italian Life, de Tessa Kiros)
Rendimento: 8 porções

Ingredientes:
  • 2 colh. (sopa) fermento biológico seco
  • 1 1/4 xic. àgua morna
  • 5 colh. (sopa) cheias de açúcar
  • 2 2/3xic. farinha de trigo
  • 1 pitada de sal
  • 2 1/2 colh. (sopa) azeite
  • 450g morangos maduros
  • açúcar de confeiteiro para polvilhar

Preparo:
  1. Junte o fermento à agua com 1 colh. (sopa) açúcar e deixe uns minutinhos para espumar. 
  2. Junte a farinha e o sal e sove ligeiramente dentro da tigela, obtendo uma massa macia e mais grudenta que o normal.
  3. Espirre um pouco de água numa assadeira e forre-a com papel-manteiga (a água vai ajudar o papel a grudar lisinho no lugar). Unte o papel com o azeite, espalhando com as mãos (o azeite nas mãos ajuda a massa a não grudar depois).
  4. Espalhe a massa sobre o papel, e comece a esticá-la sobre ele usando os dedos, empurrando o centro da massa para fora. Se a massa estiver elástica e voltando para o lugar, deixe descansar por 5 minutos e tente de novo. Espalhe com os dedos e as palmas das mãos até que cubra boa parte da assadeira (uns 33cm de comprimento).
  5. Cubra com um pano apoiado a copos, para que o pano não encoste na massa, e deixe levedar por 1 hora a 1 hora e meia. 
  6. Enquanto isso, corte ao meio os morangos grandes e deixe os menores inteiros. Numa tigela, misture-os a 2 1/2colh. (sopa) açúcar. Deixe macerar.
  7. Pré-aqueça o forno a 205oC. Quando a massa tiver crescido bem, espalhe os morangos com seu suco sobre ela, com cuidado para não desinflá-la. Polvilhe com o restante do açúcar, inclusive as bordas, e leve ao forno por 25 minutos, ou até que a massa esteja dourada e assada. Tenha certeza de que a parte do meio está assada, mas não cozinhe demais, ou os morangos vão virar uma geleia. 
  8. Retire do forno, deixe amornar e polvilhe com o açúcar de confeiteiro antes de servir.


Foi justo num fim de semana cansado, depois de muita correria, em que eu só queria parar e não pensar muito em nada enquanto tomava minha cerveja, que resolvi assistir a um programa do Jamie Oliver em que ele vai (de novo) para a Itália. Jamie já me deu um bode imenso, mas a proposta do programa era fofa: ir atrás das vovós italianas e suas receitas.

Pronto, eu estava apaixonada. Aquelas avós que eram iguais às minhas, cortando cebola na palma da mão com uma faquinha de fruta fizeram minha saudade explodir. Fiquei mais bodeada ainda com Jamie, pois depois de anos e anos enchendo todo mundo pra aprender a picar legume com faca de chef, cheio de técnica, agora ele estava ali, se debulhando em elogios à "técnica fantástica" de cortar batata com faca de bife na palma da mão, e de picar os legumes sem qualquer espécie de padrão de tamanho "porque dá mais textura para o prato".

😒



Sério?

Ok, então.

Eu assisti com deleite às senhorinhas preparando seus pratos regionais com carinho e dei um fast-foward nas adaptações escalafobéticas do Jamie Oliver. E quando terminei de ver todos os episódios, cheia de lembranças carinhosas de minhas avós e de minhas viagens à Itália, o YouTube me recomendou um canal italiano com videos de receitas de Nonna. E ali estava uma linda Ciambella, um bolo de furo no meio, e eu não resisti.

O video é uma delícia. A carinha da cozinha, os utensílios, a relação da Nonna com o Nonno que só senta lá pra dar palpite, a toalha de plástico, a Nonna esfriando bolo no chão da cozinha. (Se eu fizesse isso, o Gnocchi seria o primeiro a experimentar o bolo, com certeza!) E desse videozinho fui para vários outros, e descobri que depois de passar tantos anos da minha vida vendo Chefs de cozinha preparando comida com precisão científica e empilhando ingredientes no prato, dá um alívio infinito ver uma velhinha italiana sovando massa e batendo bolo até o glúten arrebentar. Ri muito quando uma das avós soltou em italiano a expressão "uma vez a cada morte de Papa", porque eu falo isso o tempo todo e não fazia ideia de onde eu tinha tirado.

Ver aquilo me fez pensar na minha avó paterna que me ensinou a fazer pasta fresca, na materna, que sempre preparava meus pratos favoritos, na avó do Allex que me ensinou a fazer seu Apfelstrudel, na avó da minha melhor amiga na infância, que sempre preparava arroz doce quando sabia que eu viria e fazia bolinhos de chuva para nosso lanche da tarde... Fez com que eu lembrasse que comecei esse blog dizendo que eu era uma Nonna em treinamento, e que, no fim, o objetivo era chegar nessa cozinha de amor, nutrição e conforto que as avós fazem tão bem. No mundo de hoje em que cozinha é de mostrar pros outros, de show, de exibição, lembrar da cozinha fria de azulejos azuis da minha avó paterna e de suas mãos pequenas sovando massa sobre a mesa de fórmica branca me trouxe um chão e um norte que eu vinha buscando com força há muitos anos e mais ainda desde que mudei de país.

Munida de amor por aquelas velhinhas, resolvi tentar me ater àquela cozinha simples e carinhosa, e com certeza meu prazer na cozinha se multiplicou.

O YouTube normalmente só me recomenda bizarrice, razão pela qual às vezes passo semanas sem nem abri-lo. Mas uma vez que volto a assistir Masterchef Brasil (que é o único Masterchef que gosto hoje em dia), abre-se a porteira novamente e lá vou eu ficar fuçando em video tonto ao invés de ler meus livros (foi justamente aí que caí na série do Jamie Oliver). Mas ás vezes ele acerta: acertou na Ciambella da Nonna e acertou numa pequena série de videos de um outro canal italiano chamado Italia Squisita. Trata-se de uma seriezinha de chefs italianos reagindo aos videos mais assistidos do mundo de receitas de seus pratos regionais. Então você tem três pizzaiolos napolitanos assistinto os videos mais famosos da internet sobre como fazer pizza napolitana. Achei que seria algo só muito metido a besta, mas ver os italianos reclamando dos crimes cometidos contra sua comida é hilário. De quebra, eles dão algumas dicas do preparo "correto" dos pratos. É melhor para quem fala italiano, mas as legendas em inglês estão bem adequadas.

Uma das dicas que os pizzaiolos de Napoli dão é a respeito da pizza em forno caseiro. Eles sugerem que se coloque o molho sobre a massa e leve a pizza ao forno pela maior parte do tempo, colocando o queijo apenas no final, para derreter por pouquíssimos minutos, sem dourar. Queijo dourado, para eles, é um defeito. Não vou entrar no mérito de certo e errado, aqui o que vale é o gosto pessoal: se você gosta do queijo dourado, faça a pizza com queijo dourado. (Até porque, pizza romana é crocante, e em Napoli pizza crocante é defeito. Então, cada um que faça o que gosta e seja feliz. Eu sou do time napolitano: pouco recheio, queijo suculento e não dourado e massa por baixo fina e macia com bordas pãozudinhas. É disso que eu gosto. Outra dica era colocar o queijo em pedaços maiores, para que não perdesse tanta umidade no forno.


Pizza depois de 12 minutos de forno a 225oC, apenas com molho de tomate, voltando para o forno com parmesão ralado, o queijo mozzarella em tiras, manjericão e um fio de azeite.
Eu tentei. Mas oito minutos para o queijo em pedaços teve o mesmo efeito que o queijo ralado e ele dourou mesmo assim.



Na próxima vez vou tentar deixar a pizza por uns 15-16 minutos e deixar o queijo apenas por 4-5 e ver o que acontece. :)

Os videos desse canal também mostram como abrir a pizza com as mãos, sem o rolo. Segundo eles, o segredo está em manipular a massa o menos possível. Vou dizer que minha pizza nunca saiu tão uniforme e redonda. :D

Depois de me esborrachar de rir com os italianos reclamando e aprender alguns truques novos, vi-me novamente sentada no sofá folheando meus livros de cozinha italiana. Vi-me comprando polenta de novo e arroz arbóreo novamente, ingredientes que andavam meio esquecidos nos últimos tempos.

Num dia em que eu tinha uma quantidade grande de cogumelos na geladeira, dourei-os todos com um pouco de alho e os cobri com o que restara do molho de tomate que eu fizera em dobro para um spaghetti de fim de semana. Esse "ragù" de cogumelos acompanhou polenta molinha e fumegante.

Ragù rápido de cogumelos com polenta.

O spaghetti al sugo que sobrara do fim de semana virou doze mini-frittate, feitas na forma de muffins muito bem untada de manteiga para nada grudar. Dividi o spaghetti (tinha bastante) entre as formas já untadas (o spaghetti retornado à temperatura ambiente fica molinho de novo e fácil de separar uns fios dos outros), e fiz uma mistura de 8 ovos, um splashzinho de leite, sal, noz mocada e pimenta-do reino, um punhado de parmesão, e dividi entre as formas, que devem ficar preenchidas algo entre metade e 3/4 da capacidade. Polvilhei cada uma com salsinha e mozzarella ralada e levei ao forno médio por uns 15-20 minutos, até que inflassem, dourassem e estivessem cozidas. Esperei que esfriassem um pouco antes de desenformar com a ajuda de uma faquinha. As frittate que não foram jantadas viraram lanche da escola no dia seguinte.


As melhores almôndegas que já fiz (ou comi) na vida.

Na semana seguinte não me aguentei e quando vi Grass Fed Beef em promoção, catei um pacote na gôndola. Porque aqui tem disso: tem carne de boi de pasto e carne de boi que come soja. O de pasto é claro que é mais caro. Então espero as promoções para poder comprar boi feliz pelo preço de boi triste. Como tivesse repolho crespo igualmente em promoção (repolho crespo = savoy cabbage), decidi preparar as almôndegas de inverno da Marcella Hazan. Tantas, tantas receitas maravilhosas que eu nunca havia feito, preocupada demais em me entulhar de livros da última moda culinária. Eita, se eu tivesse cabeça de 40 anos quando tinha corpo de 20...

Enfim. Claro que servi as almôndegas com polenta. Preparei as almôndegas com antecedência, num momento tranquilo da minha manhã, enquanto esperava a tinta da minha ilustração secar, e deixei para preparar o restante do molho no fim do dia, junto com a polenta. (Polenta, aliás, que depois que esfria, você corta em tirinhas e frita, ou tempera com azeite e coloca 18 minutos na Air Fryer até que fiquem crocantes por fora.)

O veredito da Laura para esse prato: "Mamãe, essa comida está SENSACIONAL!"

Adoro quando ela usa essas palavras, que parecem saídas da boca de um adulto e não de uma criança do Kindergarten. ;)

Elas são de fato absolutamente deliciosas, mesmo antes de acrescentar o molho de repolho e tomate. Muito suculentas e saborosas. As melhores que já preparei na vida e ouso dizer as melhores que já comi.

ALMÔNDEGAS DE INVERNO COM REPOLHO CRESPO (OU COUVE)
(Do livro Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana, de Marcella Hazan)

Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 1/3 xic. leite quente
  • 1 fatia de pão sem casca
  • 500g carne moída (de preferência de 1a)
  • 50g pancetta (usei bacon) picado pequenininho
  • 1 ovo
  • sal a gosto
  • pimenta-do-reino a gosto
  • 2 colh. (sopa) cebola picadinha
  • 3 colh. (sopa) queijo parmesão ralado
  • 1 colh. (sopa) salsinha picada
  • 1 xícara de farinha de rosca
  • Óleo ou azeite para fritar
  • 550-600g repolho crespo ou couve, em tiras de 0,6cm, sem o miolo (eu piquei o miolo junto, porque desperdiçar comida fazendo um prato italiano é um paradoxo)
  • 2 colh. (sopa) azeite
  • 2 colh. (sopa) alho picado
  • 2/3 xic. tomates pelados em lata (eu usei 1 xícara e meia, pois queria mais molho e meu repolho não soltou muita água)

Preparo:

  1. Coloque o pão no leite quente e deixe ali até que ele o absorva todo. Quando isso acontecer, amasse bem com um garfo até que vire uma papa.
  2. Junte a papa de pão à carne moída, bacon picado, o ovo, salsinha, queijo e cebola. Tempere com sal e pimenta e misture bem com as mãos até que dê liga e os temperos estejam distribuídos.
  3. Forme bolinhas de 3,5cm e passe-as ligeiramente na farinha de rosca.
  4. Aqueça cerca de meio centímetro de altura de óleo ou azeite numa frigideira. Frite as almôndegas, algumas de cada vez, até que dourem de todos os lados. Deixe-as secando num prato com papel toalha. (Eu fiz até aqui e deixei o prato em temperatura ambiente até a hora de preparar o restante do jantar.)
  5. Descarte adequadamente o óleo. Você vai precisar de uma frigideira ou panela grande o bastante para comportar todas as almôndegas em uma só camada. Aqueça o azeite nela e junte o alho picado, cozinhando até perfumar. Junte a couve ou repolho em tirinhas, tempere com um pouco de sal, mexa duas ou três vezes e tampe a panela. Passe para o fogo baixo.
  6. Cozinhe por cerca de 40 minutos (enquanto isso você faz a polenta, se quiser), mexendo de vez em quando. Experimente e corrija o tempero adicionando sal e pimenta-do-reino.
  7. Passe para fogo médio, destampe a panela e continue a cozinhar até que o repolho escureça um pouco. Junte os tomates, mexa bem e cozinhe por uns quinze minutos em fogo baixo.
  8. Junte as almôndegas, vire-as na panela algumas vezes, tampe e cozinhe por mais uns dez minutos. Sirva imediatamente.

E aquelas polpettine, aquele monte de polenta, claro que me mantiveram com a mente fixa em minhas avós. Fiquei pensando nas tradições familiares, nas lembranças. Em como meus filhos jpa pedem constantemente a canja de galinha da avó (que eu já prometi preparar diversas vezes mas ainda não fiz), que é o prato de que mais sentem falta desde que vieram para o Canadá.

Fiquei buscando nos livros receitas que me lembrassem das minhas avós, algo que reproduzisse aqueles gostos de infância, aquelas histórias de cozinha, já que minhas avós não me deixaram praticamente receita nenhuma.

E então liguei para minha mãe e lhe pedi todas as suas.

"Mas minha comida é simples", disse ela. " É alho e cebola, não tem nada de muita invenção."
"Eu sei, e é isso o que eu quero. Não quero que aconteça com a sua comida a mesma coisa que aconteceu com a da vovó, que ninguém sabe preparar igual. Tô com saudade do estrogonofe, do couscous, daquele frango com pimentão e batata, a sopa de frango com legumes, da Braciola, daquela carne de panela que você botava tomate e azeitona..."
"Carne lessa?"
"É esse o nome?"
"É."
"Carne lessa". Carne cozida. Fui procurar no tio Google. Bolito di manzo. A carne bovina que se cozinha em muita água por muito tempo até ficar macia. Que quando pronta, é separada do caldo, resfriada e transformada em salada de carne (com tomates e azeitonas, por exemplo) ou desfiada para virar bolinhos ou é misturada a molho de tomate para um macarrão. E o caldo vira outra coisa: vai para uma sopa, um ensopado, um risotto, exatamente como faziam minhas avós. Um prato que vira dois. Cozinha esperta.

Essa carne fria com tomates e azeitonas foi um ícone da minha infância, tantas vezes que comemos sanduíches dela. Minha pergunta gerou histórias. Quem fazia, aprendeu com quem, como servia. Juntar as informações da família com as dos livros e mesmo as da internet, explicaram melhor aquele prato simples que, antes de ser típico da Itália, era típico da minha mãe, que é avó dos meus filhos. Comida de Nonna.

Essa semana ela começou a me mandar as fotos do passo-a-passo de suas receitas, começando com a tal Carne Lessa.

....

Agora, apesar da brincadeira dos videos de chefs italianos, levanta a mão quem está meio cansada de comida de chef.

o/

Foi divertido aprender por todos esses anos todas as técnicas de corte, de cozimento, as combinações clássicas e as escalafobéticas, os modismos de ingredientes, o vegetariano, o vegan, o cru, o natureba, o pode, o não-pode, o típico e o bastardo, o autêntico e a adaptação.

Certamente parte do meu prazer em cozinhar todo dia advém do fato de eu ter aprendido a picar uma cebola inteira em trinta segundos ou conhecer o preparo de molhos básicos sem ter que ficar olhando receita.

E isso é muito bom e sou grata pela curiosidade (e pretensão e preciosismo, digamos de passagem) que me fez correr atrás de tanta informação ao longo desses anos. Sinto que posso explicar melhor a meus filhos hoje porque mamãe faz isso ou aquilo. Como ontem, quando acabou o fermento que Thomas tinha de acrescentar ao bolo e eu disse que estava tudo bem, pois havia muito suco de limão na massa (ácido) e se usássemos bicarbonato de sódio (sal), a massa cresceria mesmo assim (e cresceu).

Mas agora eu meio que cansei. Agora que eu já sei tudo isso, só tenho vontade de voltar às origens. Ao arroz com feijão e creme de espinafre, à farofa de ovo com azeitona e à canja que comi toda semana quando criança na casa de minha mãe; ao frango com batatas de minha avó materna, ao tagliatelle fresco de minha avó paterna; aos bolos simples de café da manhã e aos torcidinhos de lanche da tarde. Alguém lembra dos torcidinhos? Era uma receita do livro da Dona Benta. Um biscoito salgado com sementes de erva-doce,comprido e torcido, que minha avó fez todos os domingos durante os quinze anos em que minha vida e a dela se intercalaram. É uma receita que todo mundo tem, mas é a quintessência de minha relação com minha avó.

Está na hora de preparar torcidinhos.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Ansiedade em Junho, Marcella Hazan, e bolo


Bolo delicioso e fácil da Dorie Greenspan. Vanilla and Browned Butter Weekend Cake.

Lembrei-me de quando era criança, do esforço de meus pais em tentar me arrancar da cama para ir à escola, levando pão e café na cama (minha mãe), espirrando água em minha testa (meu pai), ligando o rádio na Jovem Pan AM alto o bastante para o vizinho dezesseis andares abaixo escutar (meu pai de novo). Lembrei-me da frustração dos dois, pois todo aquele cansaço que usávamos como justificativa para uns minutos a mais sob os lençóis desaparecia aos sábados e domingos, quando pulávamos da cama antes das seis e começávamos a despejar o Lego de suas caixas e brigar pelas bonecas em nosso quarto, enquanto os adultos nos maldiziam por termos arruinado sua soneca de fim de semana.

Lembrei-me disso quando comecei a ver meus filhos fazendo o mesmo.

Junho foi o último mês de aulas. Último mês do ano letivo. Meus filhos haviam passado por seu primeiro ano letivo no Canadá. Sentia algo entre surpresa e orgulho. Laura empolgada em ser do Senior Kindergarten, Thomas preocupado em ter um professor diferente no Second Grade. Ambos ansiosos ao pensar em ficar dois meses sem ver os amigos que custaram a fazer. Frustrados porque muitos colegas viajariam para seus países de origem. Mas nós não.

Ansiedade tornou-se sinônimo de Junho.

Ansiosos para terminarem as aulas. Via em Thomas olhos cansados. Ele atropelava sua lição de casa para poder descansar. Enquanto lia um dos livros da escola em voz alta, adiantado já para quem chegou há onze meses sem falar uma palavra de inglês, Laura, sentada ao seu lado, ouvindo a história, despencava num sono pesado nos ombros do irmão. Não foram poucas as vezes em que a carreguei direto para a cama, seu corpo abandonado ao sono em meus braços, sem a capacidade sequer para jantar.

O calor nos exaure.

Depois de uma primavera praticamente inexistente, tendo nevado pela última vez em Abril (!!!), o Verão veio como um meteoro para cima da cidade, rápido, incandescente, brutal. De um dia para o outro, calças e malhas finas foram arremessadas ao fundo do armário e substituídas por shorts e regatas. Havia avisos de excesso de calor vindo do Comitê de Educação por email, e pais reclamando das altas temperaturas na sala do Kindergarten. Splash Pads e Wading Pools foram acionadas nos parques. O cão arfava a caminho da escola e buscava uma sombra para andar. O sol começou a se por às dez da noite, e as vespas, moscas, bumblebees e besouros finalmente surgiram. Num apartamento preparado para um frio ártico, o calor entra e não sai, e em noites sem vento, deitamos abandonados em nosso próprio suor sobre lençóis empapados, membros estendidos como estrelas-marinhas ressecando ao sol, e a mente, sem sossego, atordoada pelo excesso de luz, excesso de calor, excesso de movimento durante o dia, excesso de tarefas a completar, não adormece.

Não se dorme.

Não durmo.

O dia está claro antes das cinco da manhã e a luz entra cortante por entre as persianas.

Há de se aproveitar o Verão que dura tão pouco. As estações definidas fazem o tempo passar mais rápido e provocam uma ansiedade estranha, um medo de aquela semana de calor passar e você ter de esperar até o ano que vem para nadar no lago outra vez. Thomas, que ficou um ano sem bicicleta, agora precisa tirar as rodinhas até o fim do outono, ou terá de esperar até o ano que vem. Ansiedade.

As crianças vão para a escola de bicicleta. Corro atrás, lancheiras e cadeado numa mão, cachorro na outra. Estamos atrasados. Há uma série de eventos escolares esse mês. Os últimos eventos para arrecadar dinheiro para a escola. As festas de classe. O teatrinho do Kindergarten.

Quando uma mãe envia a lista de pratos da festa de fim de ano de Laura, imediatamente me candidato a levar os legumes. São mais rápidos de se preparar e mais baratos que as frutas. Preciso colocar imensos avisos por toda a casa e em minha agenda e meu celular, para me lembrar de comprar tudo, lavar, cortar e levar no dia correto. A semana toda é atravancada de consultas médicas, dentistas, passeio de escola que eu me comprometera a acompanhar no mês anterior, reunião de professores. Allex me cobra a carteira de motorista, que ainda não fui tirar. Não dá tempo, explico. Na vez da festinha de sala de Thomas, não havia lista para os pais. Teria mandado legumes também, mas ele veio cheio de carinho perdir-me um bolo, e às nove da noite, cansada, com poucos ingredientes na despensa, tentei adaptar um bolo que eu fizera uma vez há anos atrás e adorara, mas que desta vez acabou falhando miseravelmente, ficando com gosto de omelete e textura borrachosa, e foi direto para o lixo. Expliquei isso a ele no dia seguinte, e sua resposta "Tudo bem, mamãe, isso acontece!" me tranquilizou. Passamos no mercadinho vinte-e-quatro-horas a caminho da escola, com cachorro e bicicletas, atrasados para a natação do primeiro período e comprei um saco de pipocas de caramelo e queijo para que não fosse de mãos vazias. No meio da manhã me dei conta de que não checara se as pipocas eram Nut-Free. Passei a manhã toda ansiosa pensando se alguma criança fora parar no hospital por conta desse descuido ou se eu tomaria bronca da escola por mandar um lanche inadequado. 

Crianças na escola, bicicletas com cadeado, corro com o cão para o parque em frente para que ele possa ao menos encontrar seus coleguinhas caninos. Dez minutos no parque, uma conversa apressada, e meu corpo inteiro parece atraído para o caminho de casa. A força imensa que me arranca daquela rotina matinal de que tanto gosto e que normalmente cumpro com calma é o trabalho.

Em Junho meu trabalho voltou de verdade, com força, múltiplos projetos ao mesmo tempo, prazos todos iguais: para ontem. Olhei minha agenda, aquela miríade de compromissos interrompendo minha manhã, e tentei encaixar meu trabalho da melhor forma possível sem interferir muito na dinâmica familiar.

Volto do passeio do cão às pressas, atropelo meu ritual de iogurte com fruta, ignoro minha necessidade de fazer algum exercício, ou de meditar, e me atiro ao computador e à prancheta, onde fico debruçada sem pausa, até a hora de buscar as crianças. Esqueço de almoçar algumas vezes. Em outras, preparo minha torrada com abacate, mas peco comendo sem proveito e sem prazer em frente ao computador. O cão choraminga. Esqueci seu passeio do meio-dia. Desculpe-me, cãozinho, mas preciso entregar tudo isso enquanto as crianças estão na escola. Nas Férias tudo será melhor.

Ergo-me da cadeira com dificuldade, depois de cinco horas corcunda e torta. Tanto tempo olhando sem piscar para a tela, pintando detalhes, que lágrimas gordas começam a escorrer por meu rosto. Os olhos ardem. Sinto-me ridícula. Não estou chorando. Apenas meus olhos entrando em estado de emergência, mandando que eu olhe para fora, para o lago, que pelamorededeus PISQUE uma mísera vez durante toda a manhã, só uma. Não precisa ser assim. Mas precisa. Preciso entregar tudo antes que as férias comecem. Preciso aproveitar essas duas horas para trabalhar, pois daqui a pouco preciso ir na apresentação da Laura e depois tenho que pegar as crianças. É isso? É e não é. A verdade é que quero entregar logo todos os trabalhos contratados para poder voltar a meus projetos pessoais e todos aqueles planos mirabolantes que eu fizera para mim.
Feijões brancos com couve e lascas de parmesão, feitos do jeito que Marcella ensina a fazer com brócolis, e salada de tomares, aipo e ovos cozidos. "Que bonito isso, mamãe! Parece uma flor!", disse Thomas.

Saí todos os dias atrasada para pegar Laura no Kindergarten, sempre a última criança dando a mão para a professora. Estava trabalhando e perdi a noção do tempo, querida, desculpe, eu dizia. Ela saía correndo para o pátio da escola elementar para brincar com as amigas e buscar o irmão. O sol das três e meia estava a pino como se fosse meio do dia. Meu corpo ainda lembrava da luz esmaecida das curtas tardes de inverno, e meu peito continuava a palpitar. Preciso aproveitar o verão. AS CRIANÇAS precisam aproveitar o Verão. Precisam ir ao parque, precisam nadar no lago, precisam tomar sorvete, precisam andar de bicicleta, precisam acampar, precisam fazer trilha, precisam... ah. Não sei. E todas as tardes corríamos da escola para o parque em frente, onde eu me sentava sobre a grama (sentar-se sobre a grama! essa ação tão simples que fora impossível durante seis meses!), abria um livro e tentava não prestar muita atenção às peripécias infantis. Deixe-os correr e se pendurarem onde quiserem, pois fazem isso na escola com abandono e eu nunca estou lá para mandá-los descer. Tento não incutir neles os meus medos. Eles são capazes. Tive mãe que me avisou o tempo todo de que forma eu poderia quebrar partes do meu corpo caindo de lugares altos, e hoje me apavoro de subir em cadeira, uma miríade de acidentes potenciais surgindo em meu cérebro como desastre em forma de fogos de artifício. Eles dão cambalhotas no Monkey Bar e sobem nos telhados da casinha do Playground. Eu enfio meus olhos nas letras do livro e levanto a vista apenas de vez em quando, para ter certeza de que ninguém sumiu. Tendo meus filhos se machucado das piores formas ao brincarem comigo, sob minha vigília, desenvolvi essa teoria de que criança brincando é como o barulho que a árvore faz numa floresta sem ninguém para ouvir. Se a criança está no trepa-trepa e nenhum adulto está olhando, ela se machuca?

Piadas à parte, manter minha atenção na leitura aplaca um pouco minha ansiedade, pois os fogos de artifício do desastre continuam provocando arrepios em minha nuca e tensionando o meio da minha coluna todas as vezes que meus filhos sobem em uma pedra.

E eu sei que o problema sou eu, não eles.
 
Então tiro os sapatos, sinto a grama hirsuta por entre os dedos dos pés, e leio através de meus óculos escuros, protegida pela sombra balouçante de uma árvore. Gritos e risos e pássaros se sobrepõem ao ruído dos carros na avenida ao lado. Leio Marcella Hazan. Amarcord. "Eu me lembro". Um livro delicioso sobre uma vida interessantíssima. Um relato de alguém que passou por uma guerra, que teve um companheiro cheio de amor por toda uma vida, que encontrou na comida e na cultura um conforto sem fim e um trabalho digno.

Quando termino o livro, há uma tristeza em mim. Ler suas palavras foi como falar com minhas avós. Saudades.

Meus pais terem me trazido meus livros de Marcella de volta causou uma revolução positiva em minha cozinha. Eu me lembro. Eu me lembro de uma dezena de suas receitas que preparara, do amor que sentia ao cozinhar aquela comida, da saudades que me dava dos meus trinta dias na Itália e de minha infância inteira com minhas avós, e minha vontade de ver um pouquinho daquela senhorinha que fora tão importante para mim (seu livro Cucina foi o primeiro livro de culinária que comprei na vida) foi tamanha que fiz uma busca na Internet para encontrar algum video em que ela aparecesse cozinhando. E foi por conta deste, em que ela ensina Martha Stewart a preparar Tortellini, que pedi sua biografia na biblioteca.

O video imediatamente lembrou-me da vez em que preparara essa mesma receita, uma década antes, no Brasil. Usando espinafre, o presunto que encontrei no mercado, a ricotta ressecada disponível, e errando totalmente o tamanho das bolinhas de recheio e dos tortellini. Ver aquela senhorinha brava preparando os bocadinhos de massa, me encheu de amor no coração e decidi que era hora de tirar minha máquina de macarrão da gaveta. Havia anos que não preparava massa recheada para meus filhos.
Os tortellini tortinhos, cada um de um tamanho. O tempo estava quente e a massa começou a secar rápido, e a pressa é inimiga da perfeição.

Ainda assim, nenhum dos tortellini abriu, e todos cozinharam maravilhosamente.

Laura fez frescura para experimentar, mas todos rasparam o prato. Foi uma das coisas mais gostosas que preparei no último ano.
Atribulada com o trabalho e sabendo que voltaria do parque com as crianças perto das cinco da tarde para que Thomas fizesse a lição de casa antes do jantar, precisei de um certo nível profissional de planejamento para continuar preparando boas refeições. Como faço pizza toda sexta-feira, e as latas de tomates aqui são bem grandes, sempre faço uma quantidade grande de molho, já usando uma receita de molho de tomate que eu queira colocar sobre um macarrão na semana que segue. O molho fica bem durante uns cinco dias na geladeira, então sempre posso me valer dele para uma refeição rápida na semana seguinte. Logo, eu já tinha o molho para os tortellini, só precisando acrescentar creme de leite. Preparei o recheio dos tortellini na noite anterior, e naquele fim de tarde, enquanto Thomas fazia lição e Laura cochilava no sofá, só precisei preparar a massa, rechear e cozinhar os travesseirinhos.

Parece muito trabalhoso para uma refeição no meio da semana, mas sovar a massa é muito rápido, e a meia hora em que ela descansa antes de ser aberta, me possibilitou ajudar Thomas com a lição e responder alguns emails de clientes. Abrir a massa na máquina, pelo menos para mim, é um processo relaxante. Mas eu sou o tipo de pessoa que relaxa debulhando feijões.

Quando Allex chegou do trabalho, eu acabara de escorrer os tortellini e misturá-los a seu molho cremoso, e o resultado foi de lamber o prato. Um pouco de paz de espírito em meu peito.



 (Eu asso as pizzas sobre papel-alumínio untado de azeite, nas costas da assadeira, o que facilita transferir a massa para o forno, e assar mais de uma pizza uma depois da outra, não importa quão fina e grudenta a massa esteja. Primeira foto, massa crua com o molho de tomate. Segunda foto, massa assada por doze minutos a 250oC. Terceira foto, vai a cobertura. Quarta foto, pizza pronta, depois de mais 8 minutos de forno. O papel alumínio destaca facilmente da base da pizza.)

 Marcella acabou sendo uma forte influência durante todo o mês depois do sucesso dos tortellini, e a cozinha foi meu oásis de tranquilidade na tempestuosa rotina do último mês de aulas.

Crianças no parque, pés na grama, livro nas mãos, eu respirava. Tentava não checar o horário. Mas eu sabia que ainda precisaria continuar trabalhando depois. Era importante para mim não fazê-las sofrer por minhas responsabilidades. Daria tempo. Daria tempo de tudo. Eu também precisava daquela pausa.

Respirava. Tentava não me aborrecer com as crianças pedindo para que eu entrasse na fila quilométrica para comprar sorvete soft-serve porcaria do caminhão de sorvetes estacionado na calçada. Como nos filmes da sessão da tarde, as crianças são atraídas por uma musiquinha metálica e dissonante que se ouve a um quarteirão de distância, e todas largam suas brincadeiras, gritando ICE CREAM! ICE CREAM! e correm para o caminhão, como ratos atrás do flautista.  Ansiedade? Ansiedade é esse comportamento louco, de pais e crianças num parque numa tarde de sol, parados por trinta minutos numa fila na calçada ESPERANDO o caminhão de sorvete chegar e estacionar no local de sempre. "Eu só vou comprar sorvete quando a fila diminuir", explico às crianças. "É um desperdício de vida ficar ali em pé. Nem sabemos se o caminhão vai chegar." E de fato, houve tardes em que ele nunca veio, e a fila dissolvia-se depois de quarenta minutos, mas mesmo depois de uma hora ainda havia duas ou três pessoas agarradas à ideia de que ele viria, ali, em pé na calçada.

Lia Bukoxwsky.

Bukowsky, Ham on Rye, On Wrtitting, você me deprimiu. Deprimiu porque me identifico muito com você, e isso foi inesperado. Lembranças de questionamentos de infância e de juventude que até hoje não se resolveram, impressões da humanidade, desapego dos valores do mundo, sensação de isolamento, desencaixe. Olhar meu trabalho, olhar o trabalho dos outros, a motivação dos outros, o processo e o resultado dos outros e me dar conta de que jamais serei assim porque minhas premissas são tão diversas, meu mundo é tão outro, minha mente sonha num universo paralelo em que tenho permissão para a apenas ser e fazer, mas sou constantemente cutucada por sombras à minha volta que me despertam para esse entorno que me diz que é preciso ganhar, ter, parecer.

Enquanto ocupo meu tempo com os projetos que trarão um pequeno incremento à conta bancária, vejo meu blog, meu livro, minhas pinturas e ilustrações pessoais ali à deriva, tomando pó (literalmente), e meu coração se amarga. Apesar de ter trabalho, sinto-me mal por interromper aqueles outros processos. Sinto-me mal por não conseguir prosseguir com eles madrugada adentro. Não dar os passeios longos de que o cão precisa me aborrece. Sinto-me mal novamente, uma amiga ruim do meu companheiro peludo. Sei que deveria catar as crianças e voltar correndo para casa para continuar meu trabalho, mas isso faz com que me sinta uma mãe ruim, depositando neles o ônus do meu trabalho. Quando terão dias assim para brincar de novo, se o frio chega tão rápido novamente? Meu coração aperta um pouco. Eles são mais importantes. Eu me viro, eu sei que me viro, eu sei que vai dar tempo de tudo. Eu sei que os trabalhos serão entregues, as crianças terão brincado, o cão estará contente e eu hei de terminar meu livro e minhas ilustrações. Sei, racionalmente sei, que tudo a seu tempo será feito e que tudo vai ficar bem. Mas havia essa ansiedade. Essa angústia. Essa sensação de não estar fazendo o suficiente.

Voltava para casa. Tentava não ter pressa. Isso é mais importante que qualquer coisa, eu repetia. E eu sentia. Sabia que estava feliz com meus filhos e que eles estavam felizes também, por poderem viver a seu tempo. As crianças em suas bicicletas, o sol da tarde por entre as árvores, a fome doendo no estômago depois de um dia todo de escola e mais um par de horas no parquinho. Eu sempre consciente da minha respiração, na tentativa de acalamar aquela palpitação constante, aquele verme da ansiedade que pulava num canto escuro do meu cérebro, sussurrando com maldade que nada disso era o bastante, que não daria tempo de nada.

Em casa, preparava aspargos, o novo legume favorito das crianças. Barato agora que é época e ele é local, faço cozido com ovos pochés e lascas de parmesão, e me felicito por fazer três ovos pochés ao mesmo tempo pela primeira vez. Depois me valho de Marcella para esse prato incrível, que as crianças ajudaram a montar: fiz a primeira trouxinha de aspargo, queijo, prosciutto e manteiga como exemplo, e eles fizeram o resto. Usei a água do cozimento dos aspargos para preparar o arroz, perfumado de ervas e manteiga. Salada verde simples para acompanhar.



Noutro dia, boto as crianças para preparar Pici. Essa massa fácil, que não requer máquina de macarrão nem habilidades maiores do que uma criança de três anos tem ao brincar de massinha. E o majericão genovês de verão perfuma novamente o molho feito com antecedência. 600g de farinha, 300ml de água, 1 colh (sopa de azeite). Basta sovar como qualquer massa, embrulhar e deixar descansar por meia hora. Então abrir como um retângulo pequeno, cortar pedaços e abrir como minhoquinhas o mais finas que conseguir, como um fio de spaghetti grosso. Cozinhe normalmente e sirva com um bom molho de tomate ou ragù.


Você sabe que passou por um longo inverno do hemisfério norte quando dá um grito de alegria ao ver abobrinhas novamente. Como senti falta de abobrinhas. E berinjelas. E pimentões. E tomates frescos. E vagens. Laura clama por vagens. Tenho colocado abobrinhas em tudo, mas essas em especial, recheadas das próprias abobrinhas refogadas em cebola e prosciutto até seu total colapso, e misturadas a um béchamel simples, ficaram deliciosas.

Vou ao mercado e a ansiedade se instala, no entanto. Quero aproveitar os aspargos. Quero aproveitar as abobrinhas. E as cerejas, e os morangos, e os tomates. Logo eles se vão de novo e lá vem mais seis meses de batata, couve e maçã. 


As abobrinhas haviam sido cozidas antes. Usei a água das abobrinhas para cozinhar o arroz, e servi com uma simples salada de cenoura com muito azeite.

As crianças vão dormir contentes e exaustas, eu desço o cão para o último passeio, trabalho mais um pouco e então desabo no sofá com o celular e uma cerveja nas mãos. Quando Allex pergunta, o dia foi bom. Deu tudo certo. Brincamos, cozinhamos, comemos, as crianças vão bem na escola, o cão está fofo, os trabalhos estão nos prazos. Apesar da correria, consegui terminar de ler mais um livro e fui catar outro na biblioteca. Sento e desenho mais um cartoon do meu #The100Day Project, e parece que tudo se encaixa mais ou menos bem.

Então por que me sinto consumida? Incapaz? Insuficiente? Bukowsky me deprimiu, explico ao marido. Mas não é isso. Usando aquela expressão boa em inglês, I can't quite put my finger on it. Não consigo identificar exatamente o que é.

Passo o resto da noite vendo o Instagram de outros ilustradores, trabalhos lindos e carreiras brilhantes e consistentes. Traço mil planos na minha cabeça. As direções são tantas que me perco.

Não durmo.

O dia seguinte é igual. Termino com o celular na mão, vendo as férias dos outros, e sentindo que sou uma mãe ruim por não viajar com meus filhos nesse verão.

Não durmo.

Então, no dia seguinte, quem não quer levantar da cama sou eu. Laura é quem me traz meu café. E se antes eu achava isso fofo, agora me pego amarga, pensando que queria ter dormido mais. Saio da cama já cansada, tomo meu café, não tenho apetite. Apanho o celular, e fico metida nele, tentando distrair a cabeça da avalanche de pensamentos. Minha mente é como os letreiros de um luminoso financeiro, mas as informações que correm nele são todas as tarefas do dia, todos os planos que fiz durante a noite insone, todos os pratos que quero fazer com os ingredientes sazonais que logo vão sumir. Uma briga das crianças por espaço para escovar os dentes me irrita e me pego explodindo com eles. Minha cabeça parece suspensa numa névoa.

O que era simples de repente parece complicado.

Saímos correndo para a escola, bicicleta, lancheiras, cachorro. Brigo com eles por todo o caminho por bobagens. Não vou ao parque com o cão. Voltamos da escola direto para a casa, trabalho, e olhar para o arquivo aberto de meu livro pela metade ou as aquarelas incompletas sobre a prancheta me enche de rancor.

Depois da escola, está quente, o cão não passeou o suficiente, eu não terminei o jantar. Mas queremos ir ao parque! Tá bem, tá bem, só um pouco. Sento na grama. Não consigo me concentrar no livro. Apanho o celular. Gente feliz em cidades européias espalhando aos quatro ventos como seus filhos não fazem birras porque eles usam disciplina positiva e todos crescerão para serem adultos absolutamente fantásticos que curarão o câncer, instituirão paz mundial e reviverão os unicórnios.

Minha vida é boa mas não é. Será que estou feliz aqui ou poderia estar melhor em outro lugar? Será que dou  bastantes oportunidades aos meus filhos? Será que estou aproveitando todo o potencial de vida plena que essa nova morada me oferece? Deveria ir a mais cafés? Deveria comprar um sapato novo? Deveria começar a fazer cartões postais dos meus desenhos? Deveria começar a pintar com guache? Deveria tentar fazer concept art, apesar de odiar ilustrar digitalmente?

Vejo meu dia como um mar de rabugice pontilhado de ilhotas de contentamento. Sirvo o jantar com farofa e as crianças acham lindo e delicioso e elogiam, e isso me enche de amor e calor. Então Laura começa a segurar o garfo torto para fazer o irmão rir e derrubar toneladas de farofa no chão, e Thomas levanta o tempo todo da mesa para fazer outra coisa, e há uma parte minha, uma parte ruim e mal resolvida, que parece se sentir ofendida porque as crianças arruinaram aquele momento bom, aquele momento que eu acabara de fotografar para compartilhar com mil pessoas. Tento conversar e ser civilizada e carinhosa e disciplinar positivamente, como se aquelas mil pessoas estivessem assistindo à cena e pudessem me cobrar qualquer outra atitude, mas eles estão cansados e agitados, e acham graça de minhas reprimendas. Explodo. E um milissegundo depois me arrependo. Sinto-me uma mãe ruim. O dia desanda, boto no lugar, desanda de novo, corrijo outra vez. 

No fim, quando paro e lembro, já na cama, o dia foi ótimo. Quase nenhuma bronca minha fizera sentido de fato. Elas tinham mais a ver com minhas expectativas do que de fato com alguma má intenção das crianças. O dia foi ótimo e eu poderia tê-lo aproveitado. Mas continuo me sentindo ansiosa e rancorosa. Sinto-me uma farsa.

Todos se esbaldando na farofa feita com a farinha de mandioca trazida pela vovó. Na outra panela, batatas-doces com ervilhas e queijo Haloumi (que parece queijo coalho), feitas daquele jeito que ensinei com salsichas no post anterior, mas agora versão vegetariana.
Converso com Allex. Minhas ansiedades com relação ao trabalho, à carreira, aos filhos, à vida de imigrante, são todas justas. Mas de alguma forma também desmedidas. Nada parece grande o bastante para me fazer sentir constantemente assim, sem ar. Essa sensação de estar fazendo tanto e que esse tanto não basta.

Então minha querida amiga me telefona. Ela que parece sempre alinhada comigo, que sempre diz exatamente o que preciso ouvir.

Ana.

Larga o Instagram.

Está te fazendo mal.

Você exagerou e agora está simplesmente sofrendo de F.O.M.O. (Feat of missing out) e excesso de comparação com os outros.

...

Hmmm...

Será?

Tentei ser racional a respeito. De fato, quando analisava as coisas, não havia nada de realmente errado na minha vida. Tudo andava, inclusive, muito bom. Minha vida tranquila. Ainda que corrida de vez em quando. Ainda que com contratempos. Ainda que absolutamente vida real. Vida de birra de criança, vida de dia cansado em que a gente dá uma bronca desmedida, vida em que não dá tempo de dar um passeio de quarenta minutos com o cachorro todo dia, vida de bolo que vai pro lixo, vida de pepino com documentos. Mas essencialmente uma vida boa. Uma vida de ler sentada na grama, vida com trabalho remunerado, vida de criança saudável brincando no parque, vida de tagliatelle fresco com molho de abobrinha e biscoito recheado de geleia feita em casa. Vida de apanhar amoras nas árvores do parque e ganhar alfaces de um senhor português cuidando de seu jardim.


Unfollow, unclutter.

Desliga o Instagram um pouco. Um dia, dois. Uma semana. Posta a ilustração nova e desliga, Ana, diz minha amiga.

Tagliatelle com molho de abobrinha frita, de Marcella Hazan.
Três dias depois meu coração batia novamente, no ritmo do vento, do sol, das crianças subindo nas árvores, do cão latindo na rua, no ritmo da luz da manhã na cadeira da varanda, no ritmo da máquina de café.

Agradeci à minha amiga. Expliquei ao meu marido. Tão simples, tão óbvio. Essa ansiedade dos novos tempos. Essa avalanche de informação e vida dos outros que nos faz achar que não somos o bastante, que não nos esforçamos tudo o que podemos, que não atingimos nosso potencial, que não usamos bem todo o nosso tempo, que não moramos no melhor lugar possível, que não criamos nosso filho da melhor forma, que não sabemos o suficiente sobre um assunto, e que não importa o que façamos, estamos sempre atrás, sempre perdendo, sempre insuficientes.




Já postei tantas receitas do livro Apples for Jam, de Tessa Kiros, aqui, que sinto que já passei da cota da infração de direitos autorais. Esses biscoitos recheados de geleia são facílimos, e dão certo mesmo quando parecem que não vão dar. Deixo o link para a receita que encontrei internet afora

Foi como desligar uma luz estroboscópica que piscava na minha cara enquanto tentava dormir.

Senti-me estúpida por cair nessa de novo, sendo justamente aquela pessoa que abandonara o Facebook pelos mesmos motivos, sendo alguém que se vê como tão atenta a essas armadilhas modernas. Mas muito rapidamente parei de me sentir estúpida. Todo mundo cai nessa. Eu não sou melhor que ninguém. Não sou especial. Basta um segundo de desatenção. Basta dar voz ao verme que nos manda "ver o que está acontecendo para não ficar por fora".

Agora conheço bem meus gatilhos, e isso me ajuda a evitar o tiro no pé. Foi assim com a comida, quando descobri qual era a emoção que me fazia comer além da conta, há anos atrás. Conhecendo meu gatilho ele fica evidente como um elefante no meio da sala, e assim basta enxotá-lo antes que faça estrago. Já sei que o primeiro sinal de que devo desligar o celular é quando penso que "preciso" ver o novo Stories da fulana antes que seja apagado. Ansiedade no nível máximo, e com besteiras sem absolutamente nenhum significado real.

Não preciso nada.

Não preciso ver Stories, não preciso dar like, não preciso comentar. Preciso tirar os sapatos e pisar na grama. Preciso ver meu cachorro correndo com seus colegas caninos, latindo feliz ao tentar juntar todos os cães no centro da clareira, como se fossem um rebanho. Preciso ver meus filhos desenhando e correndo em trilhas no mato. Preciso sentar na cadeira de plástico mequetrefe da varanda e ler Bukowsky. Bukowsky que primeiro me deprimiu, mas que depois me libertou. Que me permite escrever do jeito que escrevo, pintar do jeito que eu pinto, me relacionar do jeito que me relaciono e ser quem eu sou sem pedir desculpas nem dar explicações.

Também preciso de bolo. Nunca se esqueça do bolo.
Este, de Dorie Greenspan, é fácil e exatamente o tipo de bolo de que gosto: textura fechada, miolo macio, fácil de fatiar, casquinha úmida e doce, um sabor delicioso de manteiga queimada e baunilha.

BOLO DE MANTEIGA QUEIMADA E BAUNILHA
(do Livro Chez Moi, de Dorie Greenspan)

Ingredientes:
  • 115g manteiga sem sal
  • 1 3/4 farinha de trigo
  • 1 1/2 colh (chá) fermento
  • 1/4 colh. (chá) sal    
  • 1 1/2 xic. açúcar
  • 4 colh (chá) extrato de baunilha (ou uma fava de baunilha)
  • 4 ovos
  • 1/3 xic. creme de leite fresco
  • 2 colh. (sopa) rum (opcional)

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte com manteiga uma forma de bolo inglês de 22cm e polvilhe com farinha. Coloque a forma sobre uma assadeira.
  2. Derreta a manteiga numa frigideira em fogo médio até que comece a dourar, espumar e exalar um perfume de avelã. Deslique o fogo, e cuidado pois a manteiga continua escurecendo e queima muito fácil
  3. Numa tigela, junte a farinha, o fermento e o sal. 
  4. Se estiver usando a fava, retire as sementes e esfregue-as no açúcar. Se estiver usando o extrato, coloque-o depois que os ovos estiverem batidos. 
  5. Bata os ovos e o açúcar com um fouet por cerca de um minuto até que esteja homogêneo. Junte a baunilha, o rum, se estiver usando, e o creme de leite, misturando bem
  6. Junte os ingredientes secos em três adições, misturando com uma espátula apenas até que estejam incorporados. Junte por último a manteiga, aos poucos, misturando com a espátula até que ela suma. 
  7. Despeje a mistura na forma sobre a assadeira e leve tudo ao forno por 55-65 minutos, olhando um pouco antes para que não esteja escurecendo muito rápido. Se isso acontecer, cubra com um papel alumínio solto. O bolo está pronto quando estiver dourado e um palito inserido no meio sair limpo. 
  8. Retire do forno e aguarde uns dez minutos antes de passar uma faquinha nas laterais e desenformar. Deixe esfriar sobre uma grade.

Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails