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sexta-feira, 1 de outubro de 2021

A goteira, o chalé a expectativa (e um pot-au-feu vegetariano)


Tinha uma goteira no meio do meu telhado. No meio do meu telhado tinha uma goteira. Nunca mais vou esquecer de quanto vi aquele lustre cheio d’água, dois meses depois de assinar 25 anos de dívida pra comprar minha casa própria. Com goteira.

Isso é uma foto da luminária da minha cozinha cheia de água. Uhúuuu!

Foi depois de uma semana complicada, de chuva intensa e aquela luz cinza que tira a graça da vida, que descobrimos a infiltração. Um dia que já estava meio ruim, e que deu um jeito de ficar pior. Um dia antes de sairmos para uma viagem que ninguém queria fazer. Um chalé reservado dois anos antes, antes da pandemia e antes de cancelarem a corrida para o qual o chalé havia sido reservado. Uma reserva de improviso, “é o que tem, então vai isso mesmo”, olhando de nariz torcido para aquela foto do chalezim minúsculo, feiozinho e escuro, que parecia um pequenino coletivo de mofo e bed bugs. Uma viagem que, no afã da mudança de casa e cidade, esquecemos de cancelar. Ninguém queria ir, ninguém tinha saco ou vontade, mas ninguém queria perder as muitas doletas pagas por aquela cama pouco convidativa; ainda mais porque a previsão no parque era de chuva. Que é que se faz num parque com chuva? Fica-se trancado no chalezim porqueira, jogando jogo de tabuleiro de cara amarrada. Ieeeeei! Super afim. Mas não dá pra rasgar dinheiro. Não com mortgage pra pagar e telhado pra consertar. Mas como a semana ia de vento em popa, o aplicativo de tempo previa chuva para Ottawa também, e nem que a gente quisesse poderia ir viajar: tem que ficar em casa olhando o pinga-pinga pra trocar o balde e rezar pra deuses antigos pro teto da cozinha não encher d’água e despencar.  

“Amanhã a gente vê o que faz”, disse Allex, tentando fingir que havia alternativa.

A noite foi longa.

A manhã, no entanto, era azul. Surpreendentemente azul, secando rápido a grama encharcada e as poças nas ruas. O tempo virou durante a madrugada e, de repente, não havia mais a menor chance de chuva no fim de semana. Deuses antigos são milagreiros. O empreiteiro me telefonou e disse que viria na segunda-feira. A viagem estava de pé, e não perderíamos o depósito, afinal.

Mas o coração continuava pesado. O desgosto enevoava a vista, e os sinais se embaçavam. Fizemos as malas sem sorrisos, quando as crianças voltaram da escola, e enfiei qualquer coisa na térmica, sem expectativa de ter fome por dois dias, ou mesmos em acreditar que ficaríamos fora tanto tempo.

“Tô estranho”, ele disse. “Não sei dizer o quê. Você tá também com uma sensação esquisita dessa viagem? Tipo que não é pra ir? Sei lá. Qual é seu feeling?”

Respirei fundo. Havia sim uma estranheza, mas eu já não sabia dizer se eu encontrara conforto na miséria ou se pressentia perigo. Fechei os olhos. Quando me perguntei se deveríamos ir, a imagem na parte detrás de minhas pálpebras era um céu estrelado. Uma fogueira à beira do lago. Risadas. Abraços.

“Vamos. Se começar a parecer furada, a gente volta.”

A dez minutos de casa, cada um de nós lembrou que havia esquecido alguma coisa. “É sinal pra gente ficar em casa”, ele disse. “Não é não”, insisti. “A gente vai voltar e pegar tudo, e ficar feliz que a gente lembrou ainda perto de casa. Olha que sorte!”

Conforme nos afastávamos de Ottawa, as nuvens dissipavam e abriam espaço para um céu azul cremoso, esquentando os primeiros dias de outono, fazendo cintilarem as árvores ao longo da estrada que ousaram trocar de cor tão cedo, queimando vermelho, laranja e amarelo em meio à vegetação verde de saudade de verão.


Paramos em Renfrew, uma dessas cicadezinhas minúsculas do interior de Ontario, em que o centro comercial inteiro é só uma rua de três quarteirões, feito filme do velho oeste. A pizza que pedimos num botequim local demoraria 40 minutos para ficar pronta, e por isso nossos olhares se atraíram pela propaganda no café em frente, que dizia “Local Beers Only”.


O café, Ottawa Valley, era charmosinho daquele jeito hipster instagramável, e vendia diversos produtos de artesãos locais. Pedi uma Strawberry Chocolate Stout, Allex, uma BeaverTail Lager, e as crianças ganharam, cada uma, um cupcake. Enquanto elas conversavam com a barista do lado de dentro, Allex e eu curtíamos a luz rosa e amarela do por-do-sol, que desacelera o tempo e suspira sorrisos.

“Começou bem”, eu disse.

“Pensei a mesma coisa.”


Chegamos ao chalé já com noite escura e uma pizza ainda quente no porta-malas. A proprietária abriu uma casinha pequena imersa na noite, surpreendentemente limpa e aconchegante. Por essa eu não esperava.  O chalé mequetrefe da foto era bom na vida real. Normalmente é oposto que ocorre. Meu corpo se encheu de esperança.

Descarregamos logo as malas, e descemos o terreno até o deck onde podíamos acender o fogo, usando lanternas de cabeça para enxergar na noite. “Ainda bem que a gente voltou pra pegar o acendedor e a lenha, porque essa aqui tá molhada de chuva”, Allex dsse. “Tá vendo? Sorte”, lembrei.

O fogo acendeu rápido e iluminou nossos rostos. As crianças usaram seus canivetes para fazer pontas em galhos, onde espetariam marshmallows, dourados na brasa sob a fogueira. Abri uma cerveja trazida de casa, e sentei-me ao lado deles, ouvindo a ondulação do lago escuro contra as pedras, e os grilos tímidos que cantavam ao ritmo do crepitar do fogo. Ousei olhar para cima, relaxando os ombros, e sorri largo, gostoso, ao ver aquele céu tão estrelado, que era como se uma criança tivesse derrubado purpurina no chão. 


“A Ursa maior está lá. Aquele é o rabo dela”, apontei.

“Mas mamãe, urso não tem rabo comprido!”

“Ah, filho, não fui eu que dei nome pra isso.”

“Cadê a lua?”

“Escondida atrás das nuvens ali no horizonte.”

“Queria que a lua saísse.”

“Eu também.”

E os risos das crianças sopraram as nuvens devagar, e, meu peito foi ficando leve. E assistimos, de coração quente, o voo lento da lua detrás do escuro, até surgir inteira, redonda e brilhante. Ela refletiu nas águas do lago, que se tornou visível, e desenhou de prateado morros e árvores, iluminando alegria em nossos rostos.

O que eu havia visualizado estava ali.

Fomos acordados pelas crianças, ávidas para ir lá fora. Seus rostos, grudados à janela que embaçava com sua respiração, eram rosa e amarelo e lilás, como a bruma que cobria o lago no nascer do sol. Quando saí da casa, perdi o fôlego. Era como uma pintura de Turner, aquele sol disforme manchando as nuvens do céu e os vapores que se erguiam do imenso lago, em espectros de cor como o coração de um cristal. 

 Não havia o menor sinal de chuva.

Saímos de carro em busca de café, e foi aos risos nervosos que estacionamos numa loja de conveniência no meio do nada com lugar nenhum. Atrás de pilhas de revistas velhas, produtos de limpeza, chips e chicletes, havia um balcão que se dividia em duas diferentes redes de fast-food, com uma só pessoa atendendo os dois caixas. Ambas as redes cópias de segunda classe de redes de fastfood já de segunda classe. Entre locais que faziam seus pedidos matinais, levamos para casa copos descartáveis com café americano com gosto de cinzeiro, e sanduíches para o almoço que pareciam ter sido encontrados no bolso de trás da calça de alguém.

Mas o céu era azul e a refeição-depressão gerou assunto por todo o tempo que levamos para chegar ao parque e alugar uma canoa. 


A canoa era necessária para atravessarmos o lago Mazinaw em direção a uma ilha imensa, com formações rochosas altas e dramáticas, onde se vê pinturas rupestres. A canoa custava 40 dólares pelo dia todo. Fiquei me perguntando como organizavam a chegada e partida das canoas alugadas ali na ilha. “Custa 40 dólares pra pegar a canoa daqui até a ilha. Mas da ilha até o parque, a canoa custa 400”, brinquei. “É por isso que, lá na ilha, hoje, você encontra uma comunidade de turistas abandonados, que nunca voltaram à terra firme, porque não tinham dinheiro para a canoa de volta.”

Enquanto esperávamos nossa vez, Laura e Thomas apanharam galhos e folhas e pedras, e construíram fortes em volta de formigueiros, para protegê-las de ataques de predadores. Laura, no entanto, tocou qualquer coisa com xixi de gambá, e passou o resto do dia com as mãos fedendo a fossa séptica, não importava quanto álcool gel esfregássemos em seus dedos. Ai, Laura.

Todos esqueceram do fedor assim que entraram no barco. Allex à frente, crianças sentadas no meio, no fundo do barco, e eu na parte de trás. Era a segunda vez que remávamos juntos, e eu tinha certeza de que sabia o que fazer.

Só que não.

Sair da baía de águas calmas foi fácil. Mas assim que entramos no lago, o vento forte começou a mudar a direção do barco, que chacoalhava por cima das ondas com jeito de corredeira. Eu que só tinha remado em descida de rio tranquilo, passei  uma hora e meia ouvindo os comandos desesperados de Allex, tentando me fazer remar pro lado certo. Eu ria. Muito. Mesmo quando uma das ondas bateu com força, entrou no barco, e molhou as calças das crianças e o fundo da minha mochila.

Remamos de forma ridícula pelo estreito raso e tormentoso até uma parte do lago um pouco mais calma, onde pudemos nos aproximar das rochas e ver as pinturas. “Mamãe! Alguém perdeu uma canoa!”, Laura apontou para uma canoazinha amarrada a uma pedra. “Não, filha, olha lá. Amarraram o barco, deixaram a mochila ali um pouco mais pra cima na pedra, e olha lá, bem pra cima, segue aquela corda: olha a moça doida escalando o paredão! Legal, né?”

Voltamos contra a corrente, rindo sem parar de nossa (minha inaptidão), até chegar ao píer da ilha: um deck estreito de metal, desses que balançam junto com a água, com tantas canoas amarradas, que parecia um cacho de bananas.

“Não tem ninguém do parque pra ajudar a gente a sair do barco??”, perguntei.

“Não, ué.”

“Allex! Como é que faz? Como é que a gente ESTACIONA essa geringonça?”

“A gente vai descobrir, ué.”

Meu cérebro estava em branco. Taí uma situação pela qual eu nunca tinha passado antes. A água bravia, o barco balançando e querendo ser levado embora, minha mochila com celular e máquina fotográfica (sem contar os sanduíches mequetrefes), nenhum espaço no píer, alto, na altura da minha testa, também balançando, e nenhum ser humano mais experiente pra dizer o que fazer.

“Pára de panicar, Ana. Rema até encostar aqui na lateral”.

“Mas tá escrito que é proibido docar aqui.”

“É proibido docar. Mas vocês vão sair do barco por aqui.” Eu imaginei a gente saindo do barco e a correnteza levando o barco embora com o Allex dentro, e eu e as crianças integrando a comunidade de turistas sem dinheiro nem barco que vivem no topo da ilha.

“Vai, tô segurando o deck. Laura, sai”. Laura se dependurou no deck, ficou em pé no barco, e saiu. “Thomas, sai.” Thomas saiu. Eu vi meus filhos ali, e imaginei o barco indo embora e meus filhos sendo criados pela comunidade abandonada de turistas, ouvindo histórias de pais malvados que largam criancinhas na ilha e sobre a origem do rabo da Ursa Maior. “Vai, Ana, sai.” Taqueospariu, essa porra vai virar. Dei minha mochila pra Laura, e lá vou eu ficar de pé no barco e sair. Balança, mas não cai. Balança, mas não cai. “Boa. Agora segura a cordinha aqui e puxa o barco até aquela ponta ali, pra eu descer e amarrar.”

Santo Allex e sua habilidade de gerenciar equipes.

Puxo a corda, seguro o barco, ele sai, com muito mais elegância do que eu. Enquanto ele tenta uns três nós diferentes para amarrar nossa única garantia de saída da ilha com aquela cordinha de nylon desfiando, eu peço desculpas por estar no caminho de três canadenses de trinta e poucos anos, todos igualmente barbados e vestidos de camisas de flanela vermelha. Rio por dentro, e imagino que estou sendo recebida pelos nativos da ilha. Eles se entreolham, olham para a miríade de nós que Allex está fazendo, e discutem entre eles como colocar o barco deles na água.

“Pelamordadeusa, barco, não vai embora!”, eu digo, e saímos do caminho, subindo a trilha até o próximo mirante, para comermos nossos sanduíches-depressão. Só ali vejo a extensão da aguaceira do barco. As crianças estão tremendo de frio, depois de uma hora e meia sentados num barco de metal, de calças molhadas. Meus filhos são muito jóia. Não conheço muita gente que manteria o bom humor nessa situação. 


Subimos a trilha que um dia Allex quer fazer correndo (em teoria, ano que vem, se não for cancelada outra vez), até chegar em um mirante de onde víamos todo o parque, e toda a extensão de água que havíamos remado. Quando as crianças deram o primeiro sinal de cansaço – meu alarme apita quando Laura faz duas reclamações completamente sem cabimento uma em seguida da outra – sugeri que voltássemos. Afinal, ainda tínhamos que remar de volta. “E se o barco tiver soltado, mamãe?”

“Ai, filha, a gente vai morar aqui na ilha.”

“Mas a gente não tem comida!”, Thomas disse.

“Eu ainda tenho uma barrinha de cereal. A gente pode dividir. Haha.”

“Ai, mamãe.”

Não vou mentir que existia sim a possibilidade do barco ter saído pra dar uma volta sem a gente. Mas ele estava ali, bonitinho... só que em um lugar diferente. Estava na cara que aquele trio de hipsters canadenses achou que a gente 1. Estava  no meio do caminho do barco deles e 2. Tinha feito merda, e resolveu reamarrar nosso barco de um jeito mais apropriado.

Allex desamarrou o barco, e eu puxei a pontinha dele para perto do deck, no movimento contrário ao que havíamos feito para subir na ilha. Apanhei os coletes salva-vidas, vestimos, e eu fui a primeira a subir no barco, balança mas não cai, balança mas não cai, por favor, que eu não quero perder meu celular nessa aguaceira não. Vieram as crianças, uma a uma, e então Allex. E remamos para longe do píer, e por um minuto pelo menos, pareceu que a gente sabia o que estava fazendo. Vai, Ana, vê se rema pro lado certo.

Clarquenão.

“Cáspita Ana! Não é tão difícil!”, Allex ria.

“É a segunda vez na minha vida que eu tô fazendo isso, e acho que eu tô indo muito bem, obrigada!”

Um dois três turistas, quatro no pequeno barco. Iam navegando pelo lago chacoalhando, quando o vento forte se aproximou. A Ana remou errado quando veio a onda, e o barco quase, quase virou.

Só que não.


Sãos e salvos em terra firme, a gente mal acreditava quão divertido estava sendo aquele dia. Voltamos ao chalé com o dia ainda lindo e sol, apesar da temperatura de inverno brasileiro, e Laura e eu resolvemos nadar. Ela logo desanimou com a água gelada, e trocou minha companhia de sereia congelada pela do pai num caiaque. Que tinha isso que descobrimos, que o aluguel do chalé dava direito a usar canoas, caiaques e outros apetrechos deixados ali à disposição. Os dois foram longe, quase alcançando novamente a ilha que víamos do chalé, e voltaram para trocar Laura por Thomas, os dois felizes de poderem remar dessa vez.

O dia terminou como o anterior, com fogueira e marshmallows, e o chuvisco leve serviu para mandar as crianças para cama, mas não os adultos.  

Como cortar lenha sem cortar seu pé. Isso a escola não ensina.


A intenção era ir embora depois do café, mas o dia nasceu claro e convidativo outra vez, e fomos enrolando o mais possível. As crianças cortaram lenha com o machado, habilidade aprendida no fim da tarde anterior, e então quiseram navegar pelo lago de pedalinho. Eu bem achei que era hora de andar de caiaque pela primeira vez, e deslizei, remando, até me sentir perdida na água preta e funda lá no meio. De novo, quando as crianças cansaram de pedalar e começaram a se cutucar em seu barquinho, lancei mão de altos truques pedagógicos:

“Quem chegar primeiro no píer ganha a última barrinha de cereal!”

E as crianças foram campeãs da regata de alta velocidade, contra pai e mãe que se esforçaram para pegar a corrente e errada e não os alcançar a tempo. Ainda deu tempo de nadar de novo, e de Allex e Thomas tentarem stand-up paddle.

Voltamos tranquilamente, parando em uma cervejaria para almoçar e uma outra cidadezinha minúscula para tomar sorvete antes de chegarmos exaustos e moídos em casa, encontrando um balde vazio onde nenhuma goteira pingara.

A chuva veio assim que fechamos a porta, como se tivéssemos na sexta-feira atravessado, ida e volta, uma fenda espaço-temporal para um universo paralelo. Um universo que nos deu descanso e alegria inesperados, e mais “good old canadian fun” do que jamais imaginamos. Um dia e meio que pareceu uma semana, tanta coisa a gente fez, tanta risada que deu.

E a gente quase não foi.

Talvez a lição a ser aprendida seja sobre expectativas, ou a ausência delas. Talvez seja de não se deixar afundar tanto na sua miséria a ponto de não enxergar mais uma saída. Talvez seja sobre confiar na intuição, ou sobre nunca duvidar que o tempo pode virar de repente. Talvez seja sobre nunca esquecer o acendedor e a lenha seca, vai saber. Ou talvez seja que está todo mundo no mesmo barco, e que enquanto você souber rir da sua bunda molhada e falta de direção, sempre vai ter três hipsters canadenses pra refazer seu nó e não deixar seu barco sair vagando por aí. Vai saber. 

 

....

 Gente linda do meu coração. Só parando para avisar que muito em breve vou lançar uma campanha no Apoie-se, onde você vai poder colaborar não só para que esse espaço do blog continue existindo, como também vai poder receber no seu email outras crônicas inéditas e ilustrações, além de outras novidades. Fique de olho. Enquanto isso, lembre-se de que meu livro Brutta Figura continua à venda nas principais livrarias. Os links para comprá-lo estão lá em cima no blog. Minha loja Etsy está novamente com caricaturas e quadrinhos de maternidade para encomenda. 

Agora falando em expectativas. Eu tinha tão pouca expectativa com esse ensopado de legumes, que nem foto eu tirei. Mas ficou tão maravilhoso, é tão simples, e (em tempos de crise no Brasil) tão barato de fazer, que vou deixar aqui a receita mesmo sem ter fotografado nada. Fica a foto do livro, que eu peguei na biblioteca, só pra você ter uma ideia. O meu ficou bem parecido. Só troquei os aspargos por ervilhas congeladas, já que aqui no Canadá é outono e os aspargos agora estão fora de época. Gente, que ensopado delícia. Apesar do nome da receita original dizer que é um ensopado para clima quente, eu digo que é pra qualquer clima. 

Não se assuste com a quantidade de ingredientes e passos. É realmente simples.

 

Pena que eu não tirei foto do prato que eu fiz. Fora os aspargos, ficou bem com essa carinha mesmo.

POT-AU-FEU DE VEGETAIS para um dia de calor 

(Do livro Around My French Table, de Dorie Greenspan)

Ingredientes:

  • 2 colh (sopa) azeite
  • 2 dentes de alho, fatiados fino
  • 1 cebola, em meias luas finas
  • 1 folha de louro (isso é acréscimo meu, porque usei água ao invés de caldo)
  • 1 alho-poró, sem as partes escuras, cortado em quartos no sentido do comprimento, lavado e cortado em pedaços de 2-3cm
  • Sal e pimenta-do-reino (preta ou branca)
  • 6 batatas pequenas, do tamanho de ovos, em fatias de 1cm
  • 4 cenouras finas, descascadas e cortadas em diagonais de 1cm
  • 3 xic de caldo de legumes, frango ou água (usei água)
  • 1 tira grande de casca de limão, sem a parte branca (use uma faca afiada ou um descascador de legumes)
  • 8 aspargos, sem a parte lenhosa (ou 1 xic de ervilha congelada, que foi o que eu usei, ou vagens inteiras, ou abobrinhas em pedaços, o que você tiver)
  • 4 cogumelos shiitake frescos, grandes, sem o cabo e fatiados
  • 200g espinafre, sem os cabos, e lavado (uns 100g de folhas)
  • 4 ovos

(para o coulis)

  • 2 xic de manjericão, salsinha ou coentro, ou uma mistura dos três, picados grosseiramente
  • 1/2 xic azeite 


Preparo:

  1. Faça o coulis: você pode colocar as ervas e  o azeite no liquidificador, processador, ou mixer, e bater até obter um molho com cara de pesto ralo. OU pode fazer num pilão. Eu bati no liquidificador. Tempere com uma pitada de sal. Transfira para um potinho, tampe e deixe na geladeira até a hora de servir.
  2. Numa panela larga e não muito alta, ou uma frigideira de 30cm de paredes não muito baixas, tipo um wok, aqueça a primeira quantidade do azeite em fogo médio.
  3. Junte o alho, e cozinhe por 1 minuto, até perfumar, sem dourar. Junte a cebola e o alho-poró e o louro, mexendo e temperando com sal e pimenta. Cozinhe por uns 5 minutos, até ficarem bem macios e a cebola começar a pegar cor.
  4. Junte as batatas e as cenouras, misture, tempere com sal e pimenta, e junte a água ou caldo e a tira de casca de limão.
  5. Aumente o fogo pra levar à fervura, e então abaixe novamente, para manter uma fervura branda por uns 10 minutos, ou até que os legumes estejam macios mas ainda al dente, sem se desmancharem. (Quando o prato estiver pronto, você quer que os vegetais tenham textura, e não que vire uma sopa.)
  6. Você pode parar o cozimento agora e retomar algumas horas depois, se precisar.
  7. Enquanto os vegetais estão cozinhando, coloque uma panela de água para ferver. Você pode preparar seus ovos poché ou cozidos, com a gema mais para mole. Fica a seu critério. Lá no meu Instagram tem um destaque com video do ovo poché. Eu também tenho um post aqui no blog ensinando. A única coisa que faço de diferente hoje em dia é fazer um furinho na bunda do ovo com a ponta da faca ou agulha, e mergulhar ele inteiro, com casca, por uns 20 segundos na água que está borbulhando (fervura branda, não louca). Tiro, e aí sim quebro o ovo em cima da água, para que ele cozinhe por 3 minutos mais. Essa "pré-cozida" ajuda a clara a não espalhar na água, e você não precisa fazer o redemoinho, o que é ótimo quando você precisa fazer 4 ovos poché de uma vez.
  8. Reserve os ovos cozidos ou poché. (Você pode colocar os ovos poché em água fria e deixá-los lá até a hora de servir. Na hora de servir, mergulhe-os em água quente por alguns segundos, só pra reaquecer. Eu meio que fui doida e fiz os ovos na hora de servir o prato, tudo ao mesmo tempo. Funciona.)
  9. Na panela com os legumes, junte os aspargos, ervilhas ou qualquer outro legume, e cozinhe por mais 4 minutos. Junte o espinafre, revirando com a colher até ele murche. Acerte o tempero.
  10. Sirva os legumes em pratos fundos, com caldo. Colque um ovo no centro de cada prato, sobre os legumes, e distribua colheradas do coulis de ervas. Um pãozinho pra raspar o caldo no final vai muito bem.

 

 

 

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O pato e a truta

 

Às vezes me pego fantasiando com um cappuccino numa xícara que meus lábios não reconheçam, numa mesa frequentemente lustrada por repetidas passadas de pano com desinfetante, e sons de louças empilhadas, vapores de máquinas de espresso e vozes diferentes das de meus filhos. Suspiro pelo balcão estreito de um bar pequeno a setecentos metros de casa, que me traz lembranças queridas de um outro em Amsterdam, e cuja fachada visito toda semana, com o olhar de saudades imaginárias, através de uma porta de vidro temporariamente fechada. Imagino o cheiro da cerveja absorvida pelos veios da madeira, e a conversa com o canadense barbudo e amigável que eu escalaria para me servir uma caneca caso minha vida fosse um filme. Surpreendo-me sentindo falta de comprar meias numa loja, tocando o tecido sintético com as pontas dos dedos que cheiram a cebola picada e café. Sinto falta do cheiro dos meus dedos, que hoje fedem a diferentes qualidades de álcool.

Dezembro chega com uma estranheza familiar. Um desconforto que já faz parte, como um joanete encaixado num sapato velho. Tempo normaliza as mais incríveis aberrações, desde que repetidas com constância. Não é mais preciso lembrar as crianças de colocar máscaras ou lavar as mãos. Já não me surpreendo com filas à porta do mercado. Quando me disseram que é preciso reservar horário no rinque de patinação do parque, para evitar aglomerações, deixei escapar uma interjeição entediada de quem ouve obviedades. 

Noutro dia avistei no lago alguns patos do ártico. Patos do ártico, esse pássaro pequeno e bonito, manchado de preto e branco em linhas exatas, como se pintado por um artista gráfico obsessivo e minimalista. Gosto de acreditar que ele seja o resultado do caso de amor entre um pato de fazenda e um pinguim. Mas a lembrança de que não há pinguins no ártico frustra minhas fantasias. E então me dou conta de que o pato do ártico ali carrega com ele outras frustrações. Ele não acabou de partir? Não foi ontem, nas primeiras semanas de março, quando avistei os últimos patos do ártico flutuando no lago gelado, antes de sua partida para o verão no norte? Como pode ter passado o tempo? Como podem os patos do ártico terem retornado e nada ter mudado desde aqueles dias?

Suspiro. Digo oi aos patos do ártico. Aceito sua presença aqui, e a espiral cíclica e paradoxal de previsibilidade sem controle que ela significa. 

Abraço mentalmente os patos, o caos, o descontrole, o tempo.

O tempo traz também clareza. Acontecimentos erráticos entram em formação e, como o voo dos pombos que habitam os telhados das lojas do lado de casa, repentinamente fazem sentido. Como o rosto observado no espelho por tempo o bastante para perder conexão entre as partes, as partes, olhadas atentamente por tempo bastante, revelam uma conexão que beira a obviedade do rinque de patinação na pandemia.

De todos os padrões e ciclos visualizados nos últimos meses (anos?) o mais óbvio deles, e que por mais tempo passou desapercebido, foi a relação entre meu foco criativo e minha energia. E quando mencionei isso a Allex, ele riu, tamanha obviedade. Só eu não vi? Só eu não vi que quando minha energia criativa está ligada à pintura e à escrita, não resta nada para a cozinha? Que quando minha mente se engaja na exploração de novos caminhos pela pintura, na criação de textos e ilustrações, um arroz com ovo me basta? Que quando estou preocupada com processos e burocracias da minha arte, não quero fazer nada mais complexo que um bolo de liquidificador? 

E o contrário se aplica: quando mergulho com vontade nas práticas mais complexas da cozinha e da confeitaria, e me meto a ler e ver e ouvir e respirar comida, não sobra uma fagulha que atice o fogo criativo dos pincéis.

E enquanto me deixo consumir pelo calor do forno, as criações do fogão satisfazem o apetite da alma, e os outros projetos permanecem largados, incompletos e abandonados, esperando o completar da digestão e o retorno da fome criativa.

Dezembro, com suas costumeiras correrias pré-natalinas, trouxe a estranheza mais estranha de todas: a pausa. Fim do ano nunca é pausa. É festa, é gente, é planos. Mas este ano, estranhamente, a festa não tem gosto de comemoração, não há gente vindo visitar de longe, e mesmo quem está perto é proibido de vir, e planos? Bem, planos não se fazem em 2020. Um fim de ano sem pressão de ser fim de ano. Um fim de ano blasé, discreto, um fim de ano bebendo no canto do salão, observando de fora, sem fazer alarde, sem ser notado. 

Quando o furor do trabalho de escrever, publicar, pintar, vender, desenhar, divulgar, e entregar tudo no prazo, começa a rescindir, aquela vontade de folhear livros de cozinha surge tão de repente quanto o pato do ártico. E na estranha pausa de fim de ano que a pandemia me provê, dou-me conta de estar planejando receitas novas, explorações gastronômicas e aventuras de confeitaria novamente. 

Surpreendo-me com a vontade de preparar aquela truta com cogumelos do livro francês, e me dou conta de que minha vontade de desenhar desaparece no mesmo passo. Aconteceu de novo. E acontece sempre, esse cansaço, esse saco cheio, que torna meu interesse instável e pesa nos ossos,depois de uma fase inteira de atenção num só assunto, focado, obcecado, tenso, como um cabresto criativo.  

O ciclo fica claro, e mais claro fica o fato de que eu talvez mergulhe muito profundamente em cada uma de suas fases, como se minha criatividade fosse um lago profundo ao invés de um mar. O mergulho intenso em águas paradas me deixa sem ar: nado cada vez mais fundo, e volto à tona apenas quando exausta, surpresa por minha enfadada apatia pela atividade recém-explorada, esperando pelo próximo mergulho em águas diferentes, sem saber que nunca saí do lugar.

Como o pato do ártico, também me deixei enganar por um tempo por esse vasto lago que parece mar mas não é.

Se eu não nadar tão fundo e me deixar flutuar e relaxar de vez em quando, conseguirei manter a cabeça fora da água para enxergar as ondas vindo, deixar-me levar de jacaré por uma, atravessar outra por baixo num prender de respiração, e pular meu caminho de volta até o fundo, daquele jeito de criança que tenta furar a onda com o corpo reto e acaba tomando caldo, levantando com areia no cabelo e o maiô enfiado na bunda. Mas rindo.

Criar rindo.

Um pouco de escrita, um pouco de pintura, um pouco de cozinha, sem cansar de nenhuma delas. Como foi um dia, quando comecei a escrever aqui, antes de endurecer e acreditar no mito da produtividade. Nem só um, nem só outro. Equilíbrio. Tensão e relaxamento. Nem cá, nem lá, feito ave migratória. Um pouco de trabalho, um pouco de diversão. Criatividade na vida é feito sal no prato: mais gostosa quando bem distribuída.

Não quero mais esse um fogo criativo explosivo que se exaure, mas brasas duradouras por toda a parte. 

O pato do ártico trouxe à tona uma frustração, mas toda frustração, se observada com cuidado, traz com ela um aprendizado. O pato branco e preto de designer voltou ao lago que parece mar, como se os meses entre março e dezembro nunca tivessem acontecido. Mas fecho os olhos e suspiro um suspiro de esperança, de saudade de um futuro, pensando que um um dia também essas partes de 2020 vão se ligar numa imagem clara, que o que parece hoje confuso vai fazer sentido. Quando estiver outra vez escrevendo no café do bairro, ou bebendo uma cerveja com uma amiga no pequeno bar do balcão de madeira, esses meses estranhos terão sido uma fase num ciclo cuja imprevisibilidade caótica será óbvia e aceitável. O pato do ártico deixa o lago e retorna ao mar, repito a receita da truta com cogumelos numa terça-feira do ano que vem, e lembro desse baile de máscaras como quem vê uma fotografia de carnaval mas só consegue descrever a ressaca do dia seguinte.

...

TRUTA ARCO-ÍRIS (ou salmão) COM MOLHO DE CREME E COGUMELOS.

(do livro I Know How to Cook, de Ginette Mathiot)

Rendimento: 6 porções

Obs: Truta Arco-Íris (Rainbow trout, ou Steelhead Trout) é uma truta, parente do salmão, de rios gelados da América do Norte. Seu sabor e textura lembra um bocado salmão atlântico, ainda que seja mais suave. Caso não encontre truta, pode usar a mesma quantidade de salmão atlântico. 

Obs2: na primeira vez em que preparei esse prato, usei filés de peixe menores e servi com um gratin simples de batatas. Desta vez, usei arroz. O peixe tem bastante molho, que é delicioso, então sirva com algum acompanhamento que absorva um pouco do molho. 

Obs 3: A pele do peixe ajuda ele a não grudar, mas não se incomode em deixá-la crocante, uma vez que o molho fará com que a pele amoleça novamente. Corte a cebola ou echalota realmente pequenininho, porque ela vai apenas cozinhar um pouco no molho, e não dourar, e você não quer pedaços grandes de cebola crua. Na primeira vez, piquei os cogumelos em pedaços pequenos, desta vez, fatiei. Fica bom dos dois jeitos, e eu gosto de colocar mais cogumelos do que a receita pede. Fica a seu critério. Já fiz com crème fraîche e com  creme de leite fresco, e as duas versões ficam deliciosas.

Ingredientes:

  • 800g de filés de truta com pele (ou salmão),cortados em pedaços de 100-120g.
  • 1/4 xic. farinha de trigo
  • sal e pimenta-do-reino
  • 2 colh. (sopa) generosas de manteiga
  • 1/4 xic. vinho branco
  • 1 echalota pequena ou 1/4 de cebola branca picada BEM fininho
  • 100g de cogumelos picados (Paris, Cremini, o que quiser)
  • 2/3 xic. crème fraîche ou creme de leite fresco
  • Salsinha picada para finalizar (que eu sempre esqueço de colocar e é opcional)

Preparo:

  1. Passe os filés de peixe na farinha de trigo, para cobri-los bem, chacoalhe o excesso e tempere com sal e pimenta. (Importante: faça isso apenas na hora de cozinhar, ou o sal fará o peixe soltar umidade, o que, em contato com a farinha, vai produzir uma cola, e ao invés do peixe selar na frigideira, ele vai grudar.)
  2. Derreta a manteiga em uma frigideira grande, coloque lá o peixe, com a pele para baixo, e cozinhe em fogo baixo, virando uma vez, até que esteja ligeiramente dourado.
  3. Derrame o vinho e imediatamente polvilhe a frigideira com a echalota (ou cebola) e os cogumelos picados, espalhando de forma uniforme. Junte o creme e continue cozinhando em fogo baixo por 10 minutos, sem tampa. 
  4. Transfira o peixe para uma travessa, leve o molho à fervura, acerte o tempero e derrame-o às colheradas sobre o peixe. Polvilhe com salsinha, e sirva imediatamente.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Um mês sem (com menos) açúcar e mousse de chocolate, porque a coerência, né?!

O Inverno de verdade demorou para chegar, mas quando chegou, chegou chegando.
Sabe resolução de ano novo? Eu detesto resolução de ano novo, e não me invento uma desde a minha adolescência. Porque, né? eu gosto de ser do contra. Foi meio sem querer que Janeiro acabou virando um mês que teve feeling de resolução de ano novo, mas foi engraçado por isso mesmo: porque não foi uma resolução de ano novo. Muitas transformações aconteceram, no meio do clima louco que despencou dos 5 graus positivos para os 36 negativos durante duas semanas, inclusive minha primeira exposição em Toronto, no Starving Artist Café, que exibiu minhas aquarelas durante 8 semanas. :)



Acordei no dia primeiro do ano incomodada. Muita coisa passara pela minha cabeça durante o mês de dezembro, e quando me levantei da cama para tomar o primeiro cappuccino do ano, conseguia sentir minhas caraminholas se movendo no meu cérebro.

Mamãe, quer waffle? perguntaram as crianças. Não, respondi. Acho que quero dar um tempo do açúcar. Quero ver o que acontece.

Não era dieta, não era modismo, era mera curiosidade. Eu achava que era uma pessoa que já não consumia lá muito açúcar mesmo (vide o post do que como num dia normal), mas fiquei curiosa em saber se eu conseguiria ficar sem o pouco que a que eu me acostumara. Sabia que o ponto fraco era o goró, meu tipo de açúcar preferido, e eu acreditava que a experiência me ajudaria a ter mais clareza dos gatilhos emocionais e circunstanciais que me faziam comer uma fatia de bolo ou abrir uma cerveja.

Minha pele andava mais manchada do que o normal, sentia meu corpo inchado, e meu padrão de sono havia um tempo parecia errático, e intuí que deveria ter a ver com o quanto de álcool e açúcar que andava ingerindo (não a quantidade, porque não sou de exagerar há já uns anos, mas a frequência). Pois ainda que a "regra" aqui em casa seja de não beber durante a semana (até porque bebida alcoólica aqui em Ontario é cara), eu pareço sair do eixo toda vez que temos visitas, pois a visita está de férias e você entra no ritmo do convidado mesmo que sem se dar conta, aproveita para relaxar também... e nós tivemos um bocado de visitas no segundo semestre de 2018, e eu claramente não conseguira voltar a meu ponto de equilíbrio desde então.

Além disso, numa terça-feira em que as crianças perguntaram se havia sorvete de sobremesa do jantar, surpreendi-me com a resposta contundente de meu marido: "Ué, por que teria? É terça-feira!", E naquele momento me dei conta de que por boa parte da vidinha dos meus filhos, essa fora a regra de casa: podia até ter um bolo ou biscoito indo de lanche da escola, mas o conceito de "sobremesa", de "doce depois das refeições", sempre foi meio que coisa de fim de semana apenas. Sobremesa durante a semana é fruta. Ponto. Se quiser. Se não quiser fruta, vai escovar os dentes e xô.

Acontece que durante o verão, com a Saga-do-Sorvete-de-Fruta-Para-Fazer-Thomas-Comer-Mais-Fruta, continuei o embalo e quando me dei conta, todo mundo estava terminando o dia com sorvete. Mas agora de chocolate, de baunilha, de iogurte, de cheesecake, do que fosse.

"Ok, papai tem razão. Acabou a festa do doce e estamos voltando à normalidade. Sobremesa é só de fim de semana."

Antes que alguém revire os olhos e me xingue nos comentários, as crianças reclamaram no primeiro dia. Perguntaram da sobremesa no módulo automático no segundo dia. No terceiro já pediram licença da mesa e foram escovar os dentes e brincar. E quando chegou a sexta-feira, vieram felizes da vida perguntar qual era a sobremesa do fim de semana e está todo mundo contente e tranquilo. Esperar faz bem. (Tempo de tela é a mesma coisa aqui em casa: tv e video-game é só de fim de semana, e ninguém está sofrendo por isso.) E os dois sempre foram acostumados com uma casa que não tinha um monte de biscoito e chocolate dentro do armário.

Enfim.

No mesmo dia em que decidi cortar o açúcar (ou pelo menos diminuir, sabendo que o aniversário da Laura viria e que eu me permitiria alguma bebida durante os eventos já marcados com amigos, só pra evitar encheção de saco), também foi o dia em que propus a meu marido que começássemos a exercitar melhor nossa frugalidade. Sentei com nossas finanças e esmiucei todas os gastos do último ano, que agora finalmente haviam entrado num ritmo estável depois da mudança de país,e poderiam ser melhor avaliados. Saímos fazendo cortes onde podíamos, e estabelecemos algumas novas metas. Cortar cabelo em casa (um corte besta de máquina no barbeiro por aqui sai bem uns 50 dólares com gorjeta!! - e sim, cortei meu próprio cabelo e ficou muito bom, diga-se de passagem), ficar de olho nos horários mais baratos da companhia elétrica (aqui você tem horários e dias em que o preço da energia cai quase que pela metade), e mais várias outras pequenas e grandes mudanças, inclusive... tentar pela primeira vez realmente se manter dentro da meta de supermercado, que em muitos meses estourava em uns 20 a 30%, principalmente por aquelas autoindulgências típicas da nossa geração "eu mereço (item), porque...(insira seu motivo aqui)". Ou porque esquecíamos de deixar guardado aquele tanto para gastar no produto de limpeza que estava acabando, ou na ração do cachorro, que incluímos na categoria Groceries para simplificar nosso orçamento.
A comida do cachorro entra na nossa lista de comida porque, né? cachorro também é gente.
Um site que me ajudou um bocado nesse pensamento frugal esse mês foi o https://www.frugalwoods.com/ . Recomendo.

E lá fui eu.

Como mostrei no post anterior, sobre as compras de mercado, a primeira coisa que fiz foi verificar meu inventário: tudo o que havia de comida, bebida, ingredientes, produtos de limpeza, comida de cachorro, para verificar o que de imprescindível precisaria ser comprado aquele mês e para o qual eu teria de deixar uma "verba alocada". Montei na minha lousa da geladeira a maior quantidade possível de refeições com o que eu tinha em casa, indo de coisas bonitas como "quiche de abóbora e salada verde com rabanetes" até pratos tão absurdamente simples que pareciam saídos de uma verdadeira economia de guerra, como o dia da "Sopa Daquilo Que Sobrou", das fotos aqui em baixo. O objetivo era usar a criatividade para de fato esmiuçar a despensa e a geladeira até o último ingrediente disponível. E aproveitar para colocar à prova aquela minha teoria do último post de que você aprende a cozinhar de verdade com os ingredientes básicos, e não com com ingredientes caros.

Como transformar uma cenoura, uma cebola, um talo de salsão, um ramo de salsinha, borda de pizza de ontem, uma casca de parmesão e 1/4 xic de arroz para risotto em uma refeição para quatro pessoas?
Faça uma SOPA.
A sopa é simples e intuitiva: refogue em azeite a cebola, a cenoura e o salsão picadinhos, junte o arroz como se fosse fazer um risotto, tempere com sal  e a salsinha picada, e cubra com o dobro de água quente que você usaria para fazer um risotto (no caso, eu usei a água do cozimento do grão de bico, pois usara o grão de bico para fazer hommus e guardei o caldo no freezer - eu guardo água de cozimento de QUALQUER coisa no freezer pra incrementar sopas ou tornar um arroz simplesinho em algo mais nutritivo). Junte a casca de queijo, que vai cozinhar junto, e dar sabor e complexidade à sopinha e deixe cozinhar até o arroz estar macio. Não tem problema se passar do ponto. Se o arroz tiver absorvido muita água, junte mais e acerte o tempero. Doure a borda da pizza ou pão velho em cubinhos em azeite com uma pitada de sal e sirva com a sopa. Ficou com fome depois do jantar leve? Come uma fruta. Aqui, ninguém ficou com fome. Estava uma delícia e alimentou todo mundo muito bem. ;)

Enquanto isso, lá ia eu sem açúcar.

A manhã começou bem: eu nunca coloco açúcar no meu cappuccino, pois gosto de sentir a doçura da gordura do leite e o amargo do café. Para mim, açúcar adicionado só atrapalha. E prefiro um pão com manteiga e sal a qualquer outra coisa doce quando acordo. Foi no lanche das dez que a coisa entornou um pouco. Voltei da corrida, e quando fui montar meu potinho de iogurte e fruta, percebi que não usaria o mel de sempre. O iogurte que eu comprara aquele mês, mais barato que o meu habitual, era também mais ácido, e a fruta cortada em pedaços não foi um contraponto doce o bastante. Mas logo percebi que se RALASSE a fruta dentro do iogurte, ela soltaria seus sucos, distribuindo doçura mais uniformemente e tornando o mel desnecessário. #ficaadica.

O almoço, por sua vez, manteve-se igual.

Pão caseiro, abacate, o queijo feta que sobrara do reveillon, salsinha, cebolinha, azeite, limão e sal. Clementinas de sobremesa. Tudo, como sempre, no prato lindo da minha amiga Marina, do @ateliegaroa
Foi de novo no lanche que eu me vi mudando hábitos. Onde antes eu cataria um pedaço de bolo, ou uma das goiabinhas que minha mãe trouxe do Brasil, e correria para fora para buscar as crianças em mais uma deliciosa (note o sarcasmo) nevasca de janeiro, eu me vi catando uma banana.

 *** Aliás, uma curiosidade: não sei por que cargas d'água, mas é impossível separar as bananas canadenses do cacho com as mãos. As cascas são tão fortes, que preciso de uma faca para cortar a banana fora do cacho, como se estivesse tirando o cacho inteiro da bananeira. BIZARRO. Fim da curiosidade. De volta ao post. ***

Hora do jantar. Tudo corre normalmente, apenas evitando receitas cujo tempero envolvesse açúcar ou mel no preparo.

E aí veio o snack da noite. Aquele, que eu andava querendo evitar. Num dia uma banana bastou. Em outro, que desejava algo salgado, me vali dos legumes com hommus, que sempre tenho na geladeira. Mas meu snack da noite favorito, descobri, são fatias de maçã mergulhas em manteiga de amendoim e um bocado de canela. Parece estranho mas é na verdade delicioso e muito satisfatório.

Então quer dizer que foi muito fácil ficar sem açúcar e deu tudo muito certo?

Sim e não.

Como eu já comia pouco açúcar e eu já tinha um mindset de tentar buscar coisas mais saudáveis para beliscar, não foi difícil mudar o HÁBITO, porque foram poucos os momentos do meu dia em que eu precisei buscar uma alternativa. Eu nunca como sobremesas logo depois das refeições, então eu não me vi em momento nenhum "procurando um docinho".

O que eu vi foram algumas "condições de temperatura e pressão" em que eu ficava sim buscando desculpa para terminar o dia com alguma coisinha alcoólica. Não todos os dias. Eram alguns específicos. Normalmente no fim dos dias difíceis. Ou nas sextas-feiras, por exemplo, quando eu começava a preparar a pizza. Foi quando senti falta do meu vinhozim. Mas muito rapidamente, e aí foi a parte interessante, percebi que não era do gosto ou do buzz que eu sentia falta. Era de ter o copo na mão. Então assim como fiz durante aquele um ano e meio em que fiz dieta com nutricionista antes de engravidar, troquei o copo de vinho por uma xícara de chá. E tudo correu bastante bem.

Então foi tudo tranquilo e maravilhoso?

Não.

Assim como eu havia pesquisado, no terceiro dia sem açúcar minha energia e meu humor foram para o buraco. Eu queria gritar com todo mundo, tudo parecia difícil e horrível, todos estavam no meu caminho, e minha cabeça doía, não pela falta de açúcar, mas pela quantidade de tempo que mantive o cenho franzido, cultivando o ranço dentro mim. Esse foi o único dia em que não comi um snack da noite: porque fui dormir às oito e meia, enfurecida e exausta com o universo.

Um amigo do Allex, que fizera essa mesma desintoxicação de açúcar na época em que tentava descobrir a que diabos tinha alergia (a fermentos, no final ele descobriu), explicou a ele: Ih, o terceiro e o sétimo dia são os piores, e depois passa.

Dito e feito. No sétimo dia eu parecia igualmente confusa e mal humorada. Mas o que se seguiu depois foi sensacional.

"Minha cabeça está funcionando!", eu disse a Allex, que me olhou sem entender. "Sério, é como se tivessem passado um limpa-vidros no meu para-brisa sujo pela primeira vez."

O que eu sentia era clareza mental. Andava acordando mais facilmente e com muito mais foco. Eu sabia o que precisava ser feito e estava fazendo. Foi nesse momento, inclusive, que corri atrás e consegui minha primeira exposição de arte em Toronto. Foi quando voltei a produzir mais. Foi quando comecei a enxergar melhor algumas coisas acontecendo no meu dia-a-dia que poderiam ser melhoradas.

E meu corpo?
Ao final de duas semanas eu havia desinchado visivelmente e as manchas vermelhas em meu rosto haviam sumido. E a melhor parte de tudo, e que mais me chamou a atenção, é que pela primeira vez em minha vida, eu não tive NENHUMA TPM. Há dois dias por mês em que eu viro um monstro descontrolado, em que grito com as crianças sem motivo e fico procurando pêlo em ovo para arrumar briga: o da ovulação e o dia antes da menstruação descer. É tão certeiro, que uso isso até como guia para saber quando as duas coisas estão acontecendo ou vão acontecer. Nesse mês... não teve... NADA.

Outros efeitos interessantes:

- a partir da segunda semana, eu parei de ter vontade de beber. Quando Allex me perguntou se queria uma cerveja, respondi que SIM, mas logo em seguida mudei de ideia, porque me dei conta de que respondera automaticamente, e não de fato porque tinha vontade.
- nos momentos em que bebi, foi muito mais fácil parar ainda na primeira ou segunda, sem me sentir sequestrada emocionalmente por qualquer espécie de pressão social.
- os efeitos da bebida (mesmo que tão pouca) no dia seguinte ficaram MUITO mais evidentes, principalmente a quantidade de tempo que meu corpo levou para voltar ao normal depois. Essa velocidade de reparação parecia sempre mascarada pelo consumo de outros açúcares no meu dia-a-dia e não me permitia entender meu corpo.
- a vontade de comer doce sumiu. Mas quando eu comi açúcar, tive os mesmos sintomas de uma ressaca. No fim de semana do aniversário da Laura, em que tive 2 eventos em que bebi (pouco) e comi bolo, toda aquela clareza mental DESAPARECEU por uns 3 dias e meu humor voltou a ficar instável.

Era aniversário da Laura, e como ela pedira para chamar umas amiguinhas em casa no sábado, disse a ela que haveria bolo apenas no dia da festa, ao que ela concordou. No entanto, sem que ela soubesse, preparei esse bolo simplíssimo de baunilha da Alice Medrich, apanhei as framboesas congeladas, e fiz uma geleia rápida e azedinha. Depois da escola, enquanto Laura tomava seu banho compriiiiido de banheira, Thomas me ajudou a cortar o bolo ao meio, recheá-lo, e cobri-lo com chantilly recém-batido. Ele decorou com mais algumas framboesas e posicionou as velas. E Laura ficou felicíssima depois do jantar, quando anunciamos que, apesar de ser uma quarta-feira, teríamos sobremesa.

Thomas recheou e decorou o bolo-surpresa da Laura, que achava que só cantaria Parabéns no dia em que as amigas viessem.

Foi unânime que esse tem que ser o novo bolo oficial de aniversário, pois ficou infinitamente mais gostoso que o de chocolate.
O bolo estava delicioso. Leve e fresco. As crianças adoraram, Allex que não gosta de bolos se serviu mais de uma vez, e eu comi uma fatia gordinha e satisfatória.

O jantar também fora especial: pão de queijo e pastel, a pedido da aniversariante. Usei a receita da massa da Rita Lobo. A receita diz para abrir a massa até a espessura 3 da máquina de macarrão, mas o pastel acabou saindo mais com textura de panzerotti que de pastel de feira. Tive de abrir novamente toda a massa depois do primeiro teste, até uma espessura quase transparente, se não me engano, no nível 8. Preparei o dobro e deixei guardado o que sobrou para fazermos mais pastel no fim de semana.



O sabor escolhido pela aniversariante foi Pastel de Pizza. Essa foto foi da massa teste, que saiu muito grossa.
No sábado, preparei o bolo de aniversário clássico de chocolate, que nunca me parecera excessivamente doce até aquele momento. Quando também Laura e Thomas comentaram que preferiam o de baunilha. Metade de uma fatia bastou para mim, e deixei o restante para as crianças comerem de sobremesa durante o fim de semana.

E no fim de semana seguinte, quando Allex resolveu preparar sozinho um pudim de leite, e pesquisou uma receita do "melhor pudim de leite do Brasil", que levava uma tonelada de leite condensado e uma quantidade brutal de gemas de ovos, também um pedaço para mim bastou. Estava uma delícia. Mas depois de uma colherada gorda, eu sentia REALMENTE que eu já tinha matado a vontade.
Tudo isso me fez pensar a respeito da minha relação com açúcar, seja em forma de doce ou de álcool. Desde como somos ensinadas a enfiar o pé no doce para compensar nossas frustrações (pense na cena clássica da mulher rejeitada, chorando, comendo um pote inteiro de sorvete, ou na frase também clássica "ai, estou de TPM, tô precisando de um chocolatinho"), até na minha relação a cozinha.

Porque se eu não como doce, eu não faço doce (exceto pelo aniversário da Laura). E se eu não faço doce, ninguém em casa come doce. De novo, a não ser pela uma goiabinha que mando no lanche da escola e pelas sobremesa do fim de semana, todo mundo aqui em casa começou a comer MUITO MAIS FRUTAS. Inteiras, in natura. Não dentro de sorvete, pudim ou bolo. Dá pra contar nos dedos das mãos quantos doces a família toda comeu esse mês. E eu não enchi o saco de ninguém, nunca falei que era para a família inteira cortar doce, eu deixei bem claro que era uma experiência MINHA.

Mas acabou sendo melhor para todo mundo.

O que sobrou da quantidade BRUTAL e bananas, maçãs e clementinas que eu comprara no começo da semana.

 Na minha busca por uma vida tranquila, tem entrado muito a MME: Maternidade do Mínimo Esforço. Um termo que vou acabar cunhando, marca registrada, fui eu que inventei (hahaha), porque me deu um bode geral de soluções complicadas para problemas simples. Comida simples. Direta ao ponto. Fruta de sobremesa. Tem sido meu novo lema. Agora, mais ainda.

Maaaas...na minha primeira semana sem açúcar, saí correndo internet afora atrás de receitas de sobremesa sem açúcar para toda a família. Comprei chia para fazer geleia sem açúcar para as crianças. Compilei receitas usando bananas e abacates e tâmaras. DE NOVO.

DE

NOVO

AFE

*Suspiro*.

Cara, eu já fiz isso quantas vezes? QUANTAS??

Benzadeus pela clareza mental.

Parei. Apaguei tudo.

Quero mesmo passar meu dia fazendo bolinha de tâmara? Eu quero ficar preparando mousse de abacate com cacau quando posso só morder uma pera?

Qual é a solução mais simples? Se você não quer comer açúcar mas quer comer algo doce, QUAL É A SOLUÇÃO MAIS SIMPLES? Um mousse de abacate com tâmara e cacau... ou uma maçã?

Uma maçã basta. E que o mais complicado seja uma polvilhada de canela.

No meu mês frugal, o arroz e feijão voltou com tudo. Jantar de ontem foi arroz integral, feijão preto, brócolis refogado e abóbora assada, e o prato estava tão lindo que me arrependi de não ter fotografado. Assim, simples. Sem temperos complicados. Laura resolveu ontem que gosta de abóbora (então agora são 3 contra 1 aqui em casa! hahaha!). Simples. Comida boa e gostosa. Com cara de casa, não de restaurante.

Quando Allex me disse que queria dar um tempo da carne novamente e voltar a fazer hambúrguer vegetariano, a primeira coisa que fiz foi pegar na bilioteca de novo todos os livros do Green Kitchen Stories e aqueles vegetarianos que eu tinha no Brasil. E depois de folheá-los extensamente, suspirei e me dei conta de que não queria fazer nada daquilo. Não queria criar de novo aquela despensa imensa que eu tivera no Brasil. Não queria de novo ficar seguindo receitas para combinar vinte e sete ingredientes. Sabe o que é vegetariano? Arroz, feijão, legumes deliciosamente refogados em azeite e uma salada muito bem temperada. E lá vinha o bode outra vez. Bode desse hábito de se complicar, bode do FOMO que faz com que eu acredite que preciso tentar coisas novas O TEMPO TODO.

Bode, bode, bode. 

O resultado do mês é que passei menos tempo na cozinha. Eu voltei a fazer pães com regularidade, mas não fiquei me sentindo pressionada a fazer bolo ou biscoito toda semana para as crianças levarem para a escola. A comida mais simples e mais previsível é mais fácil de preparar e de reaproveitar. Cortei as idas semanais no supermercado e comecei a ir realmente apenas quando itens imprescindíveis acabassem (como leite, ovos e farinha), ou quando não conseguisse mais produzir nenhuma refeição com o que havia na despensa. O que quer dizer que também passei menos tempo indo a supermercados.

Ainda que eu continue encucada com a nutrição das crianças na escola, principalmente nesse ambiente norte-americano meio trash, confesso que fiquei menos paranoica com o valor nutricional dos pratos que cozinhei. Se é comida de verdade e compõe uma refeição decente, tá bom, obrigada. Hoje em dia sou feliz com essa cozinha simples de dia-a-dia. Sou feliz com banana com canela, sou feliz com o mesmo bom e velho bolinho de iogurte, com minha torrada de abacate e com spaghetti com molho de tomate. Sou feliz com brócolis no alho e azeite e com batatas assadas com alecrim. Com feijão e ovo frito e com tapioca com queijo.

Se um dia eu me fartei de cozinhar panquecas de todos os jeitos e scones e biscuits e toda sorte de itens diversos de café da manhã, minha felicidade hoje reside em pão com manteiga e café quente.

Simples.

Eu tenho certeza que essas pessoas que a gente acaba seguindo internet afora devem ser muito felizes com as soluções que elas encontraram para a vida delas. Que dão certo no contexto delas. Mas para mim o diagnóstico é sempre o mesmo: basta desligar a internet um pouco para a paz de espírito retornar.

Cada vez mais, todas as soluções complicadas são as soluções erradas para mim, para o meu contexto, para minha vida e para minha família.

.....

No último fim de semana do mês, comemorei o fato de ter ficado, PELA PRIMEIRA VEZ desde que chegamos ao Canadá (ou pela primeira vez desde que saí da casa dos meus pais) ABAIXO da meta de supermercado (e de bebida alcoólica!). A comemoração veio de uma forma bastante frugal: usando todas as claras de ovos não utilizadas no pudim de leite do Allex para produzir um Mousse de Chocolate. Porque meu filho disse que não sabia o que era mousse, e isso me desconcertou. Mousse de chocolate era minha sobremesa favorita de infância. E eu fiz tanta sobremesa complicada ao longo dos meus anos, e tantas sobremesas com substituições "saudáveis", e tantas sobremesas com ingredientes exóticos, que eu sequer tinha uma receita "oficial" de mousse de chocolate, daquelas testadas e aprovadas repetidamente.

Fui direto ao meu livrão de todas as coisas francesas, o I Know How to Cook, da Ginette Mathiot.

Esse mousse de chocolate é muito leve e muito fácil, e foi unanimemente aprovado na família. Além de tudo, é simples e doce na medida, e me deixou felicíssima em saber que finalmente tenho outra coisa para fazer com o mar de claras congeladas que sempre tenho no freezer, além de Angel Food Cake.

 
A receita pede apenas 2 colheres de sopa de açúcar e não especifica o teor de cacau do chocolate. Usei 70% da Callebaut, que é mais suave do que o Lindt, que tem um final mais amargo. Mas, temendo que as duas colheres somente produzissem um mousse muito "francês" e "adulto" (porque Allex disse que gosta muito do meu pudim de leite, mas que é muito "adulto", e que o dele alimentava a criança gordinha dentro dele. Hahaha), acabei aumentando a quantidade aos poucos, e usando 4 colheres de sopa (ou seja, 1/4 xic.). Mas pretendo fazer novamente apenas com duas. O mousse não ficou muito doce, o chocolate amargo ainda era o principal sabor. Aliás, para esse chocolate, acho que ficou perfeito. Mas recomendo que você experimente o seu chocolate e decida se prefere a quantidade original de açúcar ou um pouco mais.

Enfim.

O mês com menos açúcar foi uma experiência excelente. Eu descobri que me sinto infinitamente melhor com nenhum açúcar durante a semana, inclusive álcool. Descobri que continuo precisando do meu snack à noite, não para acompanhar a cerveja ou porque quero açúcar, mas porque de fato TENHO FOME. Descobri que consigo ficar sem beber álcool tranquilamente, e agora sei quando realmente quero e quando é meu emocional pedindo compensação, quando nesse caso, volto pro meu chá e tento de fato resolver meu problema ao invés de entorpecê-lo de açúcar. Descobri que a família toda se beneficia dos caminhos mais simples. Redescobri meu amor pelas frutas. Descobri que consigo sim economizar no supermercado sem fazer ninguém sofrer por isso. Descobri que esse desafio foi fácil não porque eu já não comia muito açúcar, mas porque eu não entrei nele com uma mentalidade de restrição: eu nunca disse EU NÃO POSSO comer açúcar, mas EU NÃO QUERO. Entrei nessa com curiosidade científica, com vontade de explorar minhas possibilidades, e não querendo me punir. E com isso, consegui o presente de me entender melhor.

Vou continuar fazendo sobremesas com açúcar. Quando eu tiver vontade. Para o fim de semana. Porque esperar o fim de semana para ver seu desenho e comer mousse de chocolate é gostoso. Assim como sei que é gostoso esperar o domingo para sentar no sofá com uma caipirinha. Assim como esperamos a pizza de sexta-feira. E da mesma forma como faço a pizza de forma relaxada, porque está inserida como algo bom na minha rotina, começo a ficar contente pensando qual será o doce da vez. E é só ele, e não precisa ser complicado. Não precisa ter cara de especial, porque por ser raro, é especial em si mesmo.

Mas nesse mundo internetístico em que as pessoas querem ver receitas mais gourmet, preparos mais complexos, pratos com temperos exóticos, saladas nutricionalmente perfeitas, novidades incríveis para seu paladar, variação infinita... fico me perguntando qual será o futuro desse blog. Com os legumes refogadinhos e os mesmo bolo de sempre. No espaço virtual, há espaço para uma cozinha simples? Quão instagramável é uma clementina?

MOUSSE DE CHOCOLATE
(do livro I Know How to Cook, de Ginette Mathiot)

Ingredientes:
  • 200g de chocolate amargo
  • 6 claras de ovo
  • 2 colh (sopa) de açúcar

Preparo:
  1. Em banho-maria, derreta o chocolate picado, misturado a 2 colheres (sopa) de água, mexendo de vem em quando com uma colher para que derreta uniformemente. 
  2. Enquanto isso, bata as claras até picos moles. Junte o açúcar e continue a bater até que fiquem bem firmes (mais do que você faria para um bolo). 
  3. Junte 1/3 das claras ao chocolate e misture energicamente, para que fique homogêneo e o chocolate misture mais fácil ao restante das claras. 
  4. Incorpore o restante das claras, agora com delicadeza, e, quando o creme estiver homogêneo, coloque em uma tigela ou potinhos individuais, cubra com filme plástico e deixe firmar por várias horas, no mínimo quatro.



 


   


sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Outubro, planejamento às avessas, sopas econômicas, molhos franceses




Caminho pelo parque com o cachorro, segurando a coleira enrolada na mão enluvada, afundando os pés em pilhas de folhas multicoloridas que craquelam e farfalham ao serem pisoteadas e movimentadas, sentindo o vento gelado na ponta do nariz, nas bochechas que se avermelham, nos cabelos ainda livres dos futuros gorros de lã. E nem acredito que o Outono já chegou novamente.

Depois de um veranico nas últimas semanas, que nos possibilitou andar por aí de camiseta e até suar um bocado durante as corridas matinais, as temperaturas despencaram outra vez e prometem continuar em queda livre pelos próximos meses.

De um dia para o outro, os caixotes de melancias nos mercados foram substituídos por caixotes de variados tipos de abóbora, as abobrinhas e os pêssegos dobraram de preço, e as peras e as romãs ressurgiram das cinzas.

OUTONO!
Voltamos de fato à velha rotina dos lanches escolares, e da eterna busca pela boa alimentação das crianças na escola, tentando não enlouquecer muito quando seu filho passa o verão inteiro pedindo por maçãs, e quando elas chegam, ele diz que não gosta de comer maçã na escola.

Dai-me paciência.

Quem passa por aqui desde os primórdios desse inglório blog já acostumou com meus infindáveis posts falando que estou buscando (ainda mais) um jeito de diminuir a conta do mercado e tornar a vida na cozinha mais fácil. Fazer o quê? Eu sou assim mesmo, estou sempre buscando um jeito novo de fazer as coisas e procurando melhorar como ser humano-pessoa-mãe-mulher-indivíduo-sujeito-transeunte.

Em tempo: quem lê pode achar que estamos sempre endividados com a conta do mercado, com essa minha nóia de diminuir a conta. A verdade é que sempre estivemos bem abaixo da média de consumo de mercado de uma família de quatro pessoas de classe média, tanto em São Paulo quanto aqui em Toronto, mas principalmente aqui, onde a média é de 200 dólares canadenses por semana SÓ em comida, segundo pesquisa do governo. Gasto menos do que isso, incluindo produtos de limpeza e comida do cachorro. Só bebida alcoólica que não entra na conta, pois como aqui só se compra bebida em loja especializada, fica fácil dividir a categoria no orçamento. (Alguém tem interesse em post sobre supermercado e da transformação da compra em refeições? Se sim, levanta a mão).

Enfim.

O ponto é que acredito que sempre haja espaço para melhorias.

E na minha infindável pesquisa internet afora por ideias para variar a lancheira da criançada (meu marido rola de rir de ver meu histórico de YouTube cheio de video de lancheira), caí nos videos de Meal Planning. Meu Eu Curioso e Filha de Engenheiro imediatamente pensou: ok, por que não?

Eu gosto de planejar bem as compras, e tenho uma lista no Keep com todos os itens de consumo regular mensal com os preços médios ao lado, devidamente compartilhada com o marido para que nenhum dos dois compre a mais coisa que não precisa ou compre mais caro do que o preço usual. Lembra? Filha de engenheiro e casada com homem de marketing. É muita planilha à minha volta me influenciando.

Enfim, de novo.

Como dizia, gosto de planejar, mas não a ponto de ter porcionado até o lanchinho da meia-noite depois da cerveja, e por isso mesmo resolvi testar o método mais hard core. Vai que funciona!

Fui lá feliz e contente, avaliei o conteúdo da despensa e da geladeira, e escolhi os jantares da semana, os almoços das crianças, os snacks deles, e meus almoços e snacks, fiz a lista e fui às compras. Naquele início de outono, com os últimos tomates em promoção, os últimos pêssegos, foi uma luta brutal contra minha vontade de encher o carrinho com tudo aquilo que eu não veria de novo pelos próximos seis meses e de fato me ater à lista. Mas consegui. Pelo menos naquela semana.

Os snacks foram todos fáceis, pois eu vario os lanches das crianças sempre pensando em algo doce, algo salgado, um legume, uma fruta, e eu meio que como sempre a mesma coisa todo dia quando estou sozinha. (Alguém tem interesse numa versão escrita de um daqueles videos de you tube "o que eu como em um dia?" hahaha, se sim, levanta a mão de novo.)

E os jantares escolhidos, considerando que nos fins de semana normalmente improvisamos, comemos fora ou fazemos alguma espécie de sanduíche, foram:
  • Pimentões recheados, porque eu tinha arroz já pronto e uns pimentões que já começavam a querer murchar. 
  • Curry de lentilhas com couve e arroz, porque eu tinha lentilhas congeladas, leite de coco, e um maço de couve precisando ser preparado. 
  • Risotto de alho-poró
  • Farfalle al pesto, porque eu tinha CERTEZA ABSOLUTA de que havia uma porção de pesto ainda congelada.
  • Pizza, porque toda sexta-feira tem pizza
 Deixei a lista das receitas na geladeira, e me senti muito virtuosa com minha diminuta lista de compras. E então a semana começou.

Calhou que durante o fim de semana sobrara pizza e não me lembro mais o quê, e acabei não preparando os pimentões recheados. O arroz e os pimentões continuavam sobrando ali, murchando e implorando uso. No dia que eu reservara para fazer o curry de lentilhas, resolvi que ao invés de colocar a couve no curry, colocaria os pimentões que precisavam ser usados, mas considerei que eles não combinariam tão bem com as lentilhas e, de supetão, voltei as lentilhas ao congelador e tirei para bancada o pote de grão-de-bico. O arroz que eu tinha na geladeira não era o bastante para acompanhar o curry, e já que teria de preparar mais, resolvi já de cara preparar bastante outra vez e dar outro uso para o arroz velho.

E a primeira refeição da semana foi um panelão imenso de curry de grão-de-bico e pimentão, preparado com a refoga de cebola, alho e gengibre no azeite, com canela, cardamomo, pimenta-calabresa, pimenta-do-reino, cúrcuma, grãos de cominho, de coentro, de mostarda, folha de louro, tudo até dourar. Entra o pimentão em cubos até amaciar, e então o grão de bico com seu caldo, cozinhando até reduzir o caldo um pouco. Entra o leite de coco e cozinha até apurar. Um punhado generoso de coentro cobre tudo e sirvo com arroz e uma colherada de iogurte, que as crianças adoram colocar em tudo o que é apimentado para aliviar o ardor. Já falei sobre meus curries AQUI.

O que sobrou do curry com arroz já deixei em potes, garantindo a marmita do marido pela semana toda.

Vai comer curry até enjoar.

Ok, o planejamento começou mal.

O dia seguinte era o dia do Risotto de Alho-poró. Que no frigir dos ovos me deu uma preguiça, porque já havíamos comido arroz no dia anterior e eu ainda tinha arroz velho na geladeira esperando um destino. Suspirei, joguei fora aquela ideia e resolvi preparar uma sopa francesa de alho-poró, ervilhas (que sempre tenho no freezer) e alface (que eu comprara para preparar uma salada de almoço mas que acabara não usando ainda).

 

A sopa não poderia ser mais simples, pois basta colocar tudo na panela de uma vez, cozinhar e bater no liquidificador. Gostosa e leve, ótima para aquele friozinho que vinha e não vinha.

POTAGE SAINT-GERMAIN
(Do livro I Know How to Cook, the Ginette Mathiot)
Rendimento: 6 porções

Ingredientes:
  • 60g alho poró fatiado (cerca de metade de um pequeno)
  • 1 pé de alface, rasgado em pedaços pequenos ou fatiado grosso
  • sal
  • 500g ervilhas (pode ser congelada)
  • 1 gema de ovo
  • 4 colh. (sopa) de creme de leite ou sour cream
  • 2 colh. (sopa) generosas de manteiga

Preparo:
  1. Coloque na panela o alho poró e o alface e cubra com 6 1/3 xic. de água. Tempere com uma pitada de sal e leve à fervura, fervendo em fogo baixo por 10 minutos, sem tampa.
  2. Junte as ervilhas e cozinhe por mais 10 minutos.
  3. Num potinho, misture a gema ao creme e reserve. 
  4. Na hora de servir, bata a sopa num liquidificador ou com hand blender até a consistência desejada (pode ser lisa ou pedaçuda - fiz lisa desta vez, mas acho que deixaria mais pedaçuda na próxima). Desligue o fogo, junte o creme reservado e a manteiga, acerte o sal e sirva imediatamente.   

Os croûtons, acredite ou não, foram feitos com as bordas da pizza que minha filha e meu marido nunca comem. Ao invés de jogar fora, corto, torro e guardo num pote. Na eventualidade de uma sopa ou de uma salada, basta dourar em azeite e alho. Afinal, como diz minha filha, pizza é só um pão com cobertura. A borda, que não tem cobertura, é só pão e ponto. Vira croûton e dos bons.

Já que eu ia fatiar alho-poró e lavá-los para a sopa, pois eles vieram bem cheios de terra, achei que seria inteligente já fatiá-los e lavar todos os três logo de uma vez, apesar de usar apenas metade de um para aquele jantar. Enquanto a sopa fervia, botei o restante do alho-poró fatiado na panela com azeite, manteiga e tomilho, e deixei ali, até quase desmanchar, deglaceando a panela com um pouco de água, tampando e deixando que cozinhasse até quase virar purê. Então guardei num pote para que virasse recheio de torta depois. Na empolgação, resolvi fazer o mesmo com a maior parte do enorme pé de couve crespa que eu comprara, antes que começasse a murchar e melar. Refogadinha com alho, foi também para um pote.


E pronto, mais uma refeição do meu planejamento fora para a cucuia.

No dia seguinte, é claro, como eu já tinha o recheio para uma torta pronto, resolvi fazer a massa para estrear a forma de quiche, que não aguentei e acabei comprando na Ikea. Confesso, eu poderia continuar usando a assadeira retangular, mas eu ficava doida na hora de servir os pedaços e ver que os pedaços dos cantos tinham mais bordinha (parte favorita das crianças, ao contrário da borda da pizza) do que os das retas. Pet Peeve novo revelado: quiche tem que ser redondo pra todo mundo ter a mesma quantidade de borda e recheio. Egalité na quiche francesa, CLARO!

Para acompanhar o quiche de alho-poró, uma salada de alface, salsão e o último tomate da geladeira.


  
 E o que fazer com aquela couve preparada e aquele arroz fazendo aniversário? Coloquei no processador com ovos, parmesão, mozzarella ralada, salsinha, cebola picada, e um pouco de farinha para dar liga, temperei e pulsei umas duas ou três vezes, só para misturar e triturar uma parte do arroz, bem pouco, apenas para que os grãos grudassem e eu conseguisse transformá-las em bolinhas. Temperei-as com um fio de azeite e levei-as à AirFryer (marido continua na Philips e trouxe uma para casa, e hoje mordo a língua, pois a danada é ótima para fazer bolinhos como esse).

Os bolinhos da foto são de outra semana, que eu preparara usando talos de dente de leão. Como as crianças adoraram, apesar do amargor dos talos, escondidinho sob a doçura do queijo, achei que com couve também iriam bem, e o que havia de arroz e couve foi o bastante para que os dois levassem de almoço escolar cinco bolinhos cada por dois dias seguidos, para chuchar no ketchup.


Vou sentir saudades desses tomates. Tchau, tomates!!
Mas nem tudo estava perdido. Havia ainda UMA refeição para cumprir à risca e acreditar que meu Meal Planning funcionara afinal:o macarrão com pesto. Abro meu freezer contente apenas para constatar que... tipo... não. Não era pesto, era clara de ovo congelada. 

F*ck.

Cato os tomates-cereja que eu comprara para Laura levar de lanche e transformo em molho, refogando em azeite e um punhado de cebolinhas picadas (que também sempre tenho no freezer), incrementando com ervilhas no final. 

 

A única coisa que ficou no lugar foi a pizza mesmo.

Nos almoços das crianças ainda consegui me manter mais ou menos dentro do planejado, mas os snacks acabaram sofrendo imensa influência dos quereres de cada um e do que tinha disponível no fim das contas, Laura comera no café da manhã todos os kiwis que eu reservara para o lanche, eu usara os tomates-cereja no jantar, nenhum dos dois quis levar hommus com salsão, e foi isso aí. Eu queria ter feito crepes para mandar enroladinho em bananas e uma "Nutella" de sementes que achei no mercado (porque as crianças não podem levar Nutella de verdade para a escola, já que é uma Nut-Free School - meus olhos rolando enquanto escrevo isso, que eu sei que povo aqui tem alergias, mas isso de Nut Free me atrapalha horrores). Mas, claro, não fiz, não deu tempo, porque estávamos com visitas em casa, e acabei transformando as bananas em bolo - um bolo MUITO bom, por sinal, e esse canal também foi responsável pela nova receita de pão de queijo que ando fazendo, já que é uma bela adaptação com ingredientes canadenses. 



O que foi que nós aprendemos essa semana, amiguinhos?

Que meu negócio é mesmo o improviso, e que na minha cozinha a comida sai mais gostosa quando eu preparo o que quero comer aquele dia. Que sim, é MUITO prático você deixar já prontos os ingredientes que você sabe que se preparam sempre da mesma forma, como a couve e o alho-poró, ou ter leguminosas cozidas no freezer, ou preparar arroz de batelada, até como comentei no último post. Mas que é muito difícil, sem saber como vai ser seu dia durante a semana, se comprometer a um determinado cardápio assim, sem arredar pé. Já fiz isso na minha vida, e sempre me lasquei, pois ficava estressada por querer preparar um cozido de três horas nos quarenta minutos que haviam sobrado, ou me frustrava quando todo mundo queria pedir pizza em dia que eu planejara fazer torta.

Cada cozinheiro, no fim, tem um ritmo e um jeito diferente, e TÁ TUDO BEM. Eu, aparentemente, faço mais o estilo Rapa de Geladeira. Sou ótima de planejar, mas péssima pra implementar o plano (na cozinha e na vida, aliás). Mas me dá uma geladeira cheia de resto que parece não ter lé com cré, e eu crio uma refeição para quatro pessoas. E eu adoro isso! :)

No fim, foi uma semana divertida, mas descobri que meal planning rígido assim não é mesmo para mim.

Em contra partida, o que ficou evidente, com minha diminuta lista de compras para essas refeições da semana, é o quanto tendemos a overbuy. Seja por FOMO (Fear of Missing Out), que nos faz querer ter aquele ingrediente "pro caso de...", ou seja por falta de conhecimento detalhado de seu próprio padrão de consumo... toda vez que uma fruta estraga na fruteira ou uma garrafa de creme de leite vence na geladeira, pode não ser fruto de sua inabilidade de cozinhar ou reaproveitar alimentos, mas simplesmente porque você não precisava ter comprado aquilo aquela semana. O fato de eu saber que toda semana teremos duas noites de macarrão e uma noite de pizza, que uma noite pelo menos arroz será o acompanhamento, coisa que era impensável para meu estilo de cozinha no Brasil, me ajuda a não comprar a mais, salvo naquela semana louca de verão em que fui hipnotizada pela abundância e variedade do mercado. E esse semana de planejamento, mesmo não tendo seguido à risca NENHUM prato planejado, me fez ver que, de fato, é preciso MUITO POUCA comida por semana para manter minha família. Bem menos do que eu comprava no Brasil.

Lembro principalmente da minha época confeiteira-louca, em que passava os fins de semana preparando bolos e biscoitos e pães e tortas e sorvetes, e achava que tinha de ter sempre na despensa diversas farinhas e chocolates e toda sorte de ingredientes especiais...

Meu deus, como eu comprava mais do que precisava! E COZINHAVA mais do que precisava. Consequentemente, todo mundo comia a mais também.

Hoje, NUNCA tenho chocolate em casa. Quando quero um doce com chocolate, coloco na lista da semana e compro a quantidade exata de chocolate quando for o dia de mercado.
Tipo meu bolo de aniversário de sempre. O clássico.

De novo, menos opções em casa baixam minha ansiedade, menos comida estraga, é mais fácil decidir o que preparar no dia.Vamos então voltar para o que estava funcionando. Eu adoro mexer em time que está ganhando, mas não tenho nenhum problema em admitir que fiz porcaria e voltar atrás. Seja gerenciando cozinha ou criando filho, não existe solução mágica nem fórmula única: você sabe o que funciona para você, e se não estiver funcionando, tem toda a liberdade de tentar outros caminhos.

E O QUE MAIS SAIU DESSA COZINHA ESSE MÊS?

Tenho feito muitos poucos doces merecedores de um post. Desde que me mudei sinto que uma das coisas das quais me desapeguei foi da Ana-Confeiteira-Louca-Obcessiva. Principalmente porque as crianças estão fora o dia todo, prefiro mandar um bolo com frutas do que um bolo de chocolate para a escola, e durante o verão meio que tentei mandar apenas frutas mesmo, sem nenhum doce. Ninguém fica chateado se não tem sobremesa depois do jantar, e de fim de semana costumávamos levar as crianças para tomar sorvete, então parece que não teria muito bem motivo para ficar fazendo bolos e biscoitos e tortas e pudins dia sim, dia não, como era no Brasil. Converso sempre com uma amiga que acredita na influencia do ambiente: uma cozinha te dá mais vontade de cozinhar isso ou aquilo do que outra. E acho que ela tem razão. Tudo aqui me impele à praticidade. Não sinto falta de preparações complexas, nem no fazer, nem no paladar. É estranho, mas é bom. O bolo de sempre está bom. Às vezes faço algo diferente, mas desde que seja super simples, e de preferência que as crianças possam fazer junto.

No entanto, tenho me arriscado a voltar a algumas técnicas básicas que eu sentia que não havia dominado completamente ainda. O ventinho gelado no rosto e nas mãos me joga de volta às carnes. Mas mesmo elas acabo não preparando muito. Primeiro porque carnes boas são caras. Segundo, porque não tenho tempo de preparar um assado durante a semana, ou os pratos que realmente gostaria de tentar, e durante o fim de semana minha vontade de ir para a cozinha desaparece. Nesse momento, o marido que aprendeu a fazer waffles e é o responsável pelos cachorros-quentes de linguiça e pelos hambúrgueres caseiros, toma conta. Eu entro na cozinha para tomar meu café e bater uma porção de maionese fresquinha para os sanduíches.


Isso de voltar a fazer maionese começou a me empolgar, no entanto. Vi um episódio de Mind of a Chef, com a chef Gabrielle Hamilton, em que ela preparava meu café da manhã favorito, Eggs Benedict, e dizia: o que faz esse molho funcionar é a acidez; tem acidez suficiente no início para estabilizar as gemas para receberem toda essa manteiga. E seu método para molho Hollandaise era completamente diferente de tudo o que eu vira até então. Primeiro, tentei aplicar isso à maionese, que andara talhando miseravelmente nas últimas trinta e duas vezes que eu a preparara. Eu achava que era o tipo de óleo, que era o ovo gelado de geladeira... nunca pensei que fosse simplesmente pouca mostarda. Olhei para a gema na tigela e coloquei uma colher de sopa de mostarda de Dijon, quase do tamanho da gema, ainda gelada de geladeira. E comecei a incorporar o óleo (3/4 xic - 1 xic, dependendo do tamanho da gema), uma colher de sopa por vez. E foi assim que comecei a acertar a maionese SEMPRE. Tenho feito toda semana e fica sempre perfeita. Limão para temperar, sal e pimenta do reino e NHAM! Enquanto havia tomates, meu almoço foi uma fatia de pão dourada no azeite, uma passadela generosa de maionese caseira e fatias de tomate bem maduro e doce, temperado com sal e pimenta. Perfeição.

Isso me animou a tentar seu Hollandaise. Eis um molho que eu NUNCA conseguira acertar, principalmente porque todo mundo dizia que só funcionava em grande quantidade. Nada de fazer só uma xícara de hollandaise, como faço com a maionese. Afe. Mas O MÉTODO DELA parecia ótimo para pequenas porções, além de ser menos cheio de fricote, sem bater tigela em banho-maria e afins. Numa manhã de sábado em que o marido fora viajar a trabalho, resolvi me aventurar e preparar eggs benedict para as crianças. Ok, eu não tinha english muffins nem bacon canadense (ironicamente), então usei metades de bagels e Black Forest Ham. Há um tempo já que tenho me aperfeiçoado na arte do ovo poché, e descobri que o ovo grudado no fundo e espalhado era mera culpa da água em temperatura errada. Ela tem que estar realmente quase naquele ponto de começar fervura brava, quando as bolhas começam a fazer pequenas torres finas subindo à superfície. Se as bolinhas no fundo da panela estiverem muito pequeninas, a água não está quente o bastante e o ovo vai espalhar no fundo. Na temperatura certa, ele não encosta no fundo e o próprio movimento de ebulição leve da água envelopa o ovo na própria clara. Não precisa nem fazer o redemoinho. Uso uma caçarola larga, e coloco vários ovos ali, em sentido horário para saber qual tirar primeiro, e todos saem perfeitos.


Fiz um terço da receita do Hollandaise, que achei suficiente para nós três, com um pouco de sobra. E funcionou tão maravilhosamente bem, o molho ficou tão incrivelmente sedoso e saboroso, que as crianças acharam graça dos meus pulinhos e minha risada. Os bagels, no fim, ficaram muito grandes para esse preparo, mas as crianças pediram o resto do molho e chucharam não apenas o resto de seus bagels mas os outros que surrupiaram de cima da bancada, até que não houvesse mais molho. 

Por conta desse sucesso, num almoço solitário, resolvi fazer ainda um ovo que eu nunca preparara antes, e que de tanto aparecer nos últimos Masterchefs, me causara curiosidade: o ovo Mollet. Lembrei na hora de uma receita do livro da Heloísa Bacellar, de ovo mollet com molho Meurette, que na época em que eu comprei o livro (há mais de dez anos) me parecia tão trabalhoso, que nunca me aventurei a tentar. Como não tinha mais o da Heloísa, catei meu livro francês I Know How to Cook, dividi mentalmente a receita de sauce Meurette para compor apenas meu prato, e pus-me ao trabalho. E trabalho que nada! Você coloca a água dos ovos para ferver em uma panela e o molho em outra. Enquanto o molho cozinha, você descasca os ovos e doura os pães, e em quinze a vinte minutos o prato está pronto, dependendo de quantos ovos está fazendo e da sua destreza na cozinha.


Servi meu sauce Meurette sobre o ovo Mollet e cogumelos refogados sobre uma torrada integral esfregada com alho, e digo que foi uma refeição simples e sensacional. Meu molho não ficou vermelho porque o único vinho que tinha em casa naquele  momento era o Marsala. É o tipo de prato que quero preparar para as crianças, que amam ovos moles e cogumelos. Nham, nham, nham.

OEUF MOLLET EN MEURETTE 
(Ligeiramente adaptado do livro I Know How to Cook, de Ginette Mathiot)
Rendimento: 6 porções

Ingredientes:
  • 6 ovos
  • 3 xic. vinho tinto 
  • 1 cebola pequena, picada
  • 1 galho de tomilho
  • 1 folha de louro
  • 2 ramos de salsinha
  • 1/3 xic. manteiga em temperatura ambiente, mais um pouco para dourar o pão
  • 1 1/2 colh. (sopa) farinha de trigo
  • sal e pimenta do reino
  • 6 fatias de pão
  • 1/2 dente de alho

Preparo:
  1. Cozinhe os ovos: leve uma panela pequena com água bastante para cobrir os ovos à fervura, tempere com uma pitada de sal, e deixe uma tigela com água gelada reservada ao lado. Coloque os ovos na água com uma escumadeira e cozinhe por 5 minutos. Retire com a escumadeira e coloque imediatamente os ovos na água gelada, para parar o cozimento. Quando estiverem frios o bastante para tocá-los, descasque CUIDADOSAMENTE, pois eles estarão bem mais moles do que um ovo cozido normal. Reserve num prato. 
  2. Numa frigideira, coloque o vinho, cebola e as ervas e leve à fervura. Abaixe o fogo e cozinhe até que reduza pela metade (se estiver fazendo uma quantidade menor do que a receita, isso acontece MUITO rápido).
  3. Misture 2 colh. (sopa) da manteiga com a farinha para formar uma pastinha e junte ao molho, misturando com um fouet para incorporar e não formar bolotas. Ferva por 1 minuto até que engrosse.
  4. Com o fouet, misture o restante da manteiga e passe por uma peneira para uma tigela, descartando os sólidos. (Eu apenas tirei as ervas e servi com as cebolas, porque, convenhamos, eu queria comê-las.) Tempere com sal e pimenta e reserve.
  5. Em outra frigideira, derreta um pouco de manteiga e e doure os pães. Esfregue o dente de alho nas fatias douradas, e coloque uma em cada prato. Coloque o ovo descascado cuidadosamente por cima e cubra com o molho.(Salsinha picada por cima foi fricote meu.)

E o que mais?

Teve ESSE PÃO integral com aveia da Deb do Smitten Kitchen que foi devorado sumariamente, tão bom. Pense num pão macio.
Também para quem não gosta de desperdiçar nada... Havia comprado um saco imenso de peras, pois elas surgem e vão embora tão rápido quanto o sol do inverno Norueguês. As peras daqui são super doces e saborosas, mas por algum motivo, Laura decidiu que não gosta de pera e Thomas... bem, Thomas não gosta de fruta. Ê fase. Quem lembra de foto do Thomas se esbaldando com tudo quanto é fruta quando pequeno não reconheceria o menino hoje. 

Como já tinha bolo pronto e eu não queria desperdiçar as peras, transformei-as nessa compota da Alice Medrich, e agora a criançada tem colocado pera em calda no mingau, no sorvete, e, principalmente, no iogurte, pois o contraste do doce melífero e perfumado da compota e o azedinho do iogurte faz com que isso pareça sobremesa de restaurante cinco estrelas. Um abuso de bom. Tanto, que quando as peras acabaram mas o caldo ainda era abundante, voltei-o para a panela e cozinhei mais peras frescas nele. E todo mundo ficou contente por ter mais peras em calda pra comer. Vai entender.


PERAS EM CALDA
(Do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, de Alice Medrich) 

Ingredientes:
  • 1/2 colh. (chá) sementes de erva-doce
  • 1 1/3 xic. água
  • 2/3 xic. suco de limão siciliano
  • 1 3/4 xic. açúcar
  • 4-5 peras maduras mas ainda firmes, cortadas em quartos e com as sementes removidas

Preparo:
  1. Combine a água, o suco de limão, as sementes e o açúcar numa panela e leve à fervura em fogo alto. Abaixe o fogo e cozinhe por cinco minutos. 
  2. Junte as peras, cubra com uma tigela ou pires de diâmetro pouco menor que a panela, para mantê-las afundadas na calda, e cozinhe em fogo baixo por 3-5 minutos, dependendo da firmeza das frutas.
  3. Remova a panela do fogo. Deixe que esfriem, sem remover o pires, por 1 hora. Então passe para um recipiente com tampa e leve à geladeira até a hora de servir. A compota dura cerca de uma semana, e se melhora conforme os dias passam. 
 Nisso de reaproveitamento, acompanhei um passeio de escola de Thomas a uma fazenda, onde as crianças colheram diversos vegetais que os professores então decidiram cozinhar para que as crianças experimentassem. Quando comentei com a professora sobre não esquecer de usar as folhas dos nabos e da erva-doce, ela disse: "Não teremos tempo de consumir tudo isso, eu acho. Quer as folhas para você?"

Ieeeei! Claro!

No mesmo dia as folhas de nabo, com seus talos, foram branqueadas até amaciarem, e então refogadas em nacos generosos de manteiga e alho. Acompanharam batatas-doce assadas e um arroz de forno em que usei as partes externas da erva-doce, machucadinhas, que a professora havia descartado com as folhagens. Fatiei essas partes fino e caramelizei com cebolas, incorporando ao arroz de transantontem com ovo, parmesão, salsinha e folhas de erva-doce. Parmesão polvilhado por cima e nacos de manteiga, e forno nele até dourar. 


O resto das folhas de erva-doce (que eram MUITAS) viraram um pesto sem queijo, apenas com alho, pinolis e azeite, que bati no processador e congelei, para usar em massas, legumes e para esfregar num peixe da próxima vez.

Falando em economia doméstica, a sopa abaixo parece pouca coisa mas é deliciosa e fez muito sucesso com as crianças. Também do livro francês. Chama-se, justamente, Soupe Économique! Você leva à fervura 6 1/2 xic. de caldo caseiro (qualquer caldo! usei o meu de legumes, mas um de carne ou galinha deve ficar sensacional!) junta 500g de batatas raladas com casca (raladas na parte grossa do ralador) e cozinha por 10 minutos ou até que a batata esteja macia e quase desmanchando no caldo, que automaticamente engrossa com o amido da batata. Na hora de servir, basta juntar 2 generosas colheres (sopa) manteiga e acertar o sal e a pimenta. Servi com o que restara da focaccia al rosmarino que eu preparara no dia anterior, pois ter algo para chuchar na sopa sempre foi o segredo para as crianças experimentarem a sopa e começarem a comê-la sem queimarem as bocas com o caldo muito quente.

(As fotos dos jantares tendem a ficar mais feias agora com a luz artificial, já que o sol anda se pondo mais cedo.)


Por último, a família que veio visitar também trouxe junto um presente de minha amiga querida do coração lá do Brasil, que é ceramista e tem um talento incrível. Já tomo meus cafés de meio da manhã numa xícara sua, minhas frutas ficam dispostas sobre um prato seu, azul e branco, e ela agora fez para mim um prato para minhas torradas de almoço, para que estejamos mais juntas, de alguma forma, e não tenhamos tantas saudades de nossos extensos chás com bolo, cheios de boa conversa. 

Dêem uma olhada no trabalho dela e do ATELIÊ GAROA, na sua loja e em seu Instagram: @ateliegaroa


Cozinhe isso também!

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