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terça-feira, 27 de abril de 2021

Os adultos que eles vão ser um dia. E popovers que, como crianças, eu fiz sem saber no que iam dar.


Até a primavera entendeu o feelling dessa quarentena.

Thomas, meu filho, tem dez anos, agora. Dez anos são duas mãos cheias, espalmadas, que, quando estiradas para os lados na ponta dos braços, formam um abraço comprido que me enlaça a cintura inteira. Como isso é possível? Lembro quando minhas mãos eram tão grandes que seguravam todo o seu corpo feito um saquinho de leite.

Ainda existem sacos de leite no Brasil? Aqui no Canadá compramos leite em sacos: um saco grande que comporta 3 sacos menores, totalizando 4 litros. Há um apetrecho de geladeira de 1 dólar e 99, que se usa para manter os sacos empilhados, e uma jarra de plástico de 1 dólar e 99, com uma vaquinha estampada em dourado, para acomodar o saco aberto, cortado com tesoura na pontinha, como era na minha infância. Gosto do leite em sacos. O que não gosto é de saber que são 4 litros de leite divididos em 3 sacos. Cada saco contém, portanto, 1,3333333333...ao infinito de leite. O que me faz pensar como diabos se mede infinitas partes de leite num saco. Ou que na verdade cada saco contém exatos 1,3 litros de leite e e eu fui roubada dos meus preciosos mililitros infinitos. Quem consegue dormir sabendo disso?

Enfim. Meu filho tem dez anos e é ele normalmente quem troca o saco de leite da jarra de plástico. Ele faz um corte pequeno demais na ponta com a tesoura da cozinha, e frequentemente o leite sai do saco num jato arqueado que erra a xícara. Mas eu fico feliz que meu filho de dez anos lembre de trocar o leite da jarra.

Dez anos é uma idade importante. Com dez anos, meu filho pode sair da escola sozinho. Com dez anos, ele pode andar pelas ruas da cidade, sem que ninguém olhe para trás procurando os pais da criança. Com dez anos, o governo diz que eu não sou uma mãe horrível se ele ficar sem supervisão em casa por algumas horas. 

Às vezes eu olho para esse menino de dez anos largado na minha poltrona amarela. Seu rosto sério enfiado num livro de dinossauros. O livro, por sua vez, apoiado às pernas de girafa dobradas à sua frente, como um muro que separa sua consciência do mundo acontecendo à sua volta. E eu me dou conta de que seu maxilar está mais largo, que seu corpo comprido ocupa todo o espaço da cadeira, que a massa de músculos entre seus ombros e sua cintura formam um perfeito trapézio, já distante das proporções infantis às quais me acostumei por uma década. Ele ergue os olhos das páginas para me olhar sob sobrancelhas pensativas, e eu vejo o homem que ele vai ser um dia. 

O encanto se quebra quando sua expressão relaxa, e ele me conta seus planos de ser um cientista, morando dentro de um vulcão, onde pretende criar um Indominus Rex de verdade. 

Meu filho de dez anos.

Então, numa manhã comum, enquanto cada um preparava o próprio café-da-manhã (Allex e seu smoothie, Laura e seu ovo frito com legumes, Thomas e seu mingau de aveia e eu ainda no meu cappuccino, esperando a fome aparecer), Thomas disse que queria ir ao mercado sozinho. 

"Qual mercado?", perguntei. Há um mercadinho vinte e quatro horas a 350 metros de casa, aonde Thomas já foi sozinho algumas vezes para comprar baguetes para o café.

"No NoFrills", ele disse.

NoFrills é uma rede de supermercados equivalente ao Extra, cuja loja mais próxima fica a exatamente um quilômetro de casa, subindo a avenida movimentada ao longo do parque. Esse ponto é um mercado razoavelmente pequeno, mas onde tenho evitado levar as crianças desde o início da quarentena. É onde faço metade das minhas compras semanais.

"Pra quê você quer ir lá?", perguntei, sentindo apitar no ouvido a vontade de dizer não. 

"Quero comprar um treat pra vocês", ele respondeu. Minha expressão deve ter sido de confusão, pois ele imediatamente começou a explicar: "Você e o papai andam muito sad. Vocês não have fun anymore."

"A gente quer fazer uma festa pra vocês!", Laura interrompeu, casualmente, como se o fato de estar de cabeça para baixo, sustentando o corpo sobre as mãos espalmadas e com os pés ao alto, levemente apoiados à parede, não tivesse nenhuma influência no tom da conversa.

"É. A gente quer fazer uma festa, para vocês pararem de trabalhar e have fun again."

Foi como um soco no estômago. Um soco carinhoso e bem intencionado, mas ainda assim um gancho de direita logo abaixo das costelas. Eles tinham razão. Nós estávamos "sad". Tristes. Nós estávamos trabalhando muito e not having fun anymore. Sabíamos disso. Eu havia já mencionado a Allex minha dificuldade em me abandonar a qualquer espécie de diversão genuína, sem sentir o peso do mundo lá fora e das preocupações espremendo meu peito como um torno. As duas semanas anteriores haviam sido particularmente complicadas: pincei um nervo no pescoço e comecei a sentir dores elétricas e dormentes em todo o meu lado direito. O fato de que as dores pioravam sempre que eu me deitasse me impedia de dormir ou mesmo ficar naquele tal repouso que recomendam para nervo pinçado. Passei madrugadas chorando de dor e exaustão, sem conseguir dormir mais de duas horas por noite. Depois da quinta madrugada, fui a um pronto-socorro, onde me deram uma dose cavalar de remédios e marcaram uma ressonância magnética para o dia seguinte. A ressonância confirmou o que já sabíamos: que meus nervos estavam pinçados entre algumas vértebras do pescoço, e que isso havia sido causado pela pressão dos músculos tensos e travados em volta. Ibuprofeno, Tylenol e quiropraxista para os músculos. E CBD para a ansiedade. 

As dores começavam a ir embora quando as crianças propuseram a festa. Eu já conseguia dormir, ainda que não noites inteiras.

Dor é uma coisa engraçada. Ela muda tudo. Sem dor, eu ia dormir desejando que a pandemia acabasse, que a quarentena tivesse fim, pré-requisito essencial para a reestruturação da minha felicidade. Com dor, eu rezava a deuses antigos para conseguir dormir. Dormir, esse desejo tão simples. Se eu puder dormir, serei feliz. 

E, dormindo, vi restaurada aquela alegria besta de quem ri à toa da piada do tio do pavê. 

Não sentir dor é lindo.

"Tá bom, filho", eu disse. "Quando você vai ao NoFrills?"

"Depois da escola. Mas eu também quero passar na biblioteca."

A biblioteca fica, em termos de esquinas, na diagonal oposta ao mercado. Apenas uma pessoa por vez tem permissão de entrar, se besuntar de álcool, mostrar a carteirinha para o bibliotecário e pedir o livro encomendado. Para facilitar as coisas, a biblioteca também tem "Grab And Go Bags" (sacolas pegue-e-vá): sacolas de papel pardo, cheias de livros que você leva para casa às cegas, apenas com base nas dicas que o bibliotecário escreveu nas sacolas: "Livros de 8-10 anos, aventura e dinossauros", "Romances ingleses do século XIX", "Livros infantis, 4-6anos, sobre amizade e diversidade".

"Tá bom. Então entre biblioteca e mercado, você deve ficar não mais que uma hora fora de casa. Se você demorar mais que uma hora, eu vou atrás de você", avisei, dando-me conta de que essa seria a maior quantidade de tempo que ele já passara sozinho na rua. Eram quinze minutos para ir e voltar do 24 horas. Eram oito minutos entre o parque e o nosso apartamento, quando ele precisava voltar correndo para usar o banheiro e o pai, trabalhando, me avisava por Whatsapp quando ele entrara e quando saíra para me encontrar no parque outra vez. 

Uma hora inteira.

"Tá", disse ele, assentindo firmemente com a cabeça, como um soldado recebendo uma missão.

Depois da escola, ele apanhou a mochila da escola, uma sacola de mercado, a chave de casa, seu porta-moedas de unicórnio e seu cartão da biblioteca. 

"Leva meu celular, só em caso de você precisar", eu disse, colocando meu telefone dentro de sua mochila. "E é SÓ mercado e biblioteca. Não é pra entrar em mais nenhum lugar. ESSE É O COMBINADO."

"Ok."

Fiquei observando o girar dos trincos da porta, quando ele usou as chaves para trancá-los pelo lado de fora. Trinco dourado. Trinco prateado. Cujas chaves, curiosamente, têm as cores trocadas. Laura deu duas estrelas, uma parada de mão e um salto dançante sobre o sofá, quando foi em direção à janela que dá vista para a avenida. Diz ela que avistou o irmão correndo na calçada, mochila azul e casaco azul avenida acima, até desaparecer por trás dos prédios que encobriam o caminho. Imediatamente, Laura cruzou os braços e as pernas e começou a reclamar. O irmão podia fazer tantas coisas. Ela não. Não via a hora de ter dez anos também.

Expliquei, tentando não tornar óbvio meu revirar de olhos, que não era a idade que dava a Thomas liberdade, mas a responsabilidade que ele havia demonstrado em outros momentos. O modo como atravessava as ruas, como respeitava os combinados, como cumpria com suas tarefas sem que eu precisasse lembrá-lo delas. "Quando você me mostrar que tem responsabilidade, você vai ter mais liberdade", eu disse. "Começa com você, filha. Não é a idade, ainda que alguma maturidade venha sim com a idade. Faz parte do desenvolvimento. Mas veja só: quantos amiguinhos seus de oito anos têm permissão pra usar o fogão sozinhos?"

"Ahn... nenhum. Mas eu tenho!"

"Sim, você tem. Porque você mostrou responsabilidade e maturidade lidando com facas e fogo e coisas fervendo, e eu sei que eu posso confiar em você na cozinha. Você não brinca com as facas e não faz nada perigoso perto do fogão. Você presta atenção e é cuidadosa. Você cumpre as regras e os combinados na cozinha. Então você pode cozinhar sozinha. Quando mostrar essa mesma responsabilidade em outras áreas, vai poder ir ao mercado sozinha também."

"Argh", resmungou, largando os braços e jogando a cabeça para trás, numa expressão aborrecida muito típica de desenhos animados. Pensei em como o fato de meus filhos emularem personagens de cartuns para comunicar suas emoções facilita meu trabalho na hora de desenhá-los.

Apesar de ter entendido a conversa, ela ainda fazia questão de demonstrar fisicamente seu aborrecimento. Eu poderia ter deixado quieto. Mas sabia que tudo o que ela queria era ter também algo de interessante para contar ao irmão depois.

"Laura, você quer fazer o jantar hoje? Enquanto a gente espera seu irmão voltar?", tentei.

A resposta foi o sim explosivo que eu esperava.

"Tá. Vou te ensinar a fazer risotto, então."

"Aaaaaargh. Mas eu não queria fazer risotto. Pode ser sopa?"

"Sopa?? Tá bom."

Eu não queria jantar sopa. Mas achei que jantar com paz familiar seria mais apetitoso do que um risotto emburrado.

Enquanto Thomas se aventurava no mercado, Laura descascou e picou fininho uma cebola, duas cenouras, um talo de salsão, um punhado de salsinha, quatro batatas e umas tiras de bacon. "Pô, ela pica legume mais rápido que eu", disse Allex, enquanto apanhava seu chá para voltar a mais uma reunião. "Ela pratica bastante", eu disse. Laura pica legumes melhor que a maior parte dos adultos que eu conheço. "Laura é uma máquina de picar".

Tendo a mãe ao lado, dando dicas dos próximos passos, Laura dourou o bacon, carregou os legumes picados com a lâmina da faca até a panela, refogou tudo, mexendo com uma colher na mão direita, enquanto casualmente apoiava a mão esquerda à cintura. Ela acrescentou o caldo, a casca de parmesão para dar sabor, e ficou de olho no ponto da batata como sinal de que era pra juntar o arroz. Acertou o fogo, experimentou o tempero. Decidiu quando estava tudo bom o bastante para servir, e, na hora do jantar, serviu, cheia de orgulho, duas conchas grandes de sopa para cada um, sem derrubar uma gota na mesa.

A sopa da Laura.

Quando o irmão abriu a porta de casa, ela correu não para saber dele, mas para contar como ela tinha preparado o jantar sozinha. O som daquelas chaves virando outra vez os trinco de cores diferentes foi um alívio imenso. Ele estava de volta em casa dez minutos antes da uma hora combinada.

Thomas tirou os sapatos, lavou as mãos, guardou a máscara, e veio nos mostrar o resultado de sua empreitada.

"Eu comprei isso para a festa", disse, colocando sobre a bancada da cozinha um tubo de batatas Pringle's sabor Barbecue. "É do Halo!", explicou, empolgado, apontando para o desenho do soldado de video-game na embalagem. "E eu comprei isso para mim, e isso para a Laura." Ele segurava, em cada uma de suas grandes mãos de dez anos, um saco com um quilo de balas de uma marca genérica de supermercado. "E eu fui na biblioteca e peguei esses aqui!" Ao lado de sua mochila, estavam duas sacolas Grab And Go de papel pardo: "Histórias em quadrinhos, 10-12 anos, Batman e SpiderMan" e "Ficção, 8-10 anos, com mensagens positivas". 

"Thomas foi sozinho ao mercado e voltou com doces e histórias em quadrinhos", disse a Allex, quando ele saiu do quarto-escritório. "Já é praticamente um homem de quarenta anos", brinquei.

"Ha. Ha. Ha. Engraçadinha", ele retrucou.

As compras do Thomas.


"E como você se sentiu indo sozinho no mercado, Thomas?", perguntei, fingindo tranquilidade. Tentava conter meu impulso de reclamar da quantidade colossal de jujubas e balas de goma que ele havia comprado. Como na vez em que nos comunicamos mal e ele, aos 8 anos, voltou para casa da escola sozinho de bicicleta. Ele estava tão feliz com a aventura, sem a menor ideia do que havia feito de errado, que respirei fundo e me forcei a primeiro perguntar sobre a experiência, para depois pedir que não saísse pedalando sozinho por aí sem me avisar.

Maternidade zen. Pelo menos de vez em quando.

"Eu em senti confiante", ele disse, com um sorriso que ocupava toda a largura daquele maxilar de gente grande. "Eu fiquei muito feliz porque você confiou em mim. Eu tô muito proud of myself."

Tudo o que uma mãe quer ouvir.

Naquela noite, jantamos a maravilhosa sopa da Laura, tivemos jujubas de sobremesa, e as crianças leram gibis do Homem Aranha até a hora de dormir.

Ao longo da semana, eles continuaram falando da festa, criando convites, planejando músicas e decorações, e dividindo tarefas entre eles. No domingo, Allex e eu observamos, positivamente impressionados, enquanto as crianças arrumavam o quarto, passavam pano nos móveis, e aspirador no chão. Eles penduraram bandeirinhas e cartazes. Colocaram na bancada do quarto uma pilha de pratos, guardanapos de papel e os copos vermelhos descartáveis que guardamos para festas. Arrumaram os chips e os doces em potinhos ao lado de jarras de água e suco de maracujá. 

Quando o relógio deu cinco horas, a música começou: Alestorm. Alestorm é uma banda de metal-farofa que só faz músicas de pirata. Thomas fechou a porta do quarto atrás de nós, ofereceu chips e anotou nossos nomes nos copos descartáveis com uma caneta Sharpie preta de ponta grossa, "pra gente saber de quem é o copo".

"Aqui é o Chill-Out Spot", explicou Laura, apontando para o cobertor vermelho esticado sobre sua cama bem feita como nunca, e a pilha de almofadas peludas formando um canto aconchegante para relaxar, caso a festa ficasse muito louca. 

"Bom, nossos filhos já estão prontos pra faculdade",comentei com Allex por trás do meu copo de suco. "Eles já sabem fazer festa em dormitório", eu ri. 

Dançar com eles aliviou a tensão em meu pescoço. Ri deles e com eles, e a festa terminou com um filme em família, pizza pedida pelo pai, e uma torta de limão que Laura havia ajudado a preparar. 

"Você gostou da festa, mamãe?", perguntou Laura, me abraçando o pescoço com cuidado, já deitada na cama. 

"Foi a melhor festa que vocês já fizeram!", respondi, honestamente. "Eu fiquei muito impressionada com o empenho de vocês."

"Que bom."

"Obrigada pela festa, e obrigada pelo feedback. Eu gostei muito que vocês vieram falar com a gente, tá?"

"Tá."

"Só lembra que não tem nada a ver com vocês. A gente só tá cansado dessa quarentena. Só isso."

"Vai passar, mamãe. Não é pra sempre. Você e o papai só precisam trabalhar menos e se divertir um pouco". 

"Você tem razão". 

"Na próxima vez, eu que vou buscar a pizza", Thomas disse, com os ombros já enfiados embaixo das cobertas. 

"Ok. Tô muito orgulhosa de vocês dois", eu disse, cobrindo os dois de beijos estalados. Thomas esticou os dois braços compridos para fora da cama, pedindo um abraço. E aquele abraço longo de dez anos me cercou inteira. Quando fechei a porta do quarto já escuro, vi os dois deitados, cada um em sua parte do beliche, ansiosos para serem deixados em paz para conversarem até caírem no sono. E vi os adultos que eles vão ser um dia. 

 

.....


Naquela semana, depois da bronca das crianças, eu resolvi me divertir um pouco. As dores melhoraram, e eu quis preparar algo diferente para o café da manhã. Algo que eu nunca havia feito antes. Apanhei o livro que eu emprestara da biblioteca e decidi preparar Popovers.

"Popovers?",perguntou Laura. "O que é isso??"

"Eu não sei", respondi, honestamente. "A gente vai descobrir quando ficar pronto". 

Como crianças, que você decide fazer sem saber no que vai dar, os popovers também apresentaram imprevistos: 

"Droga. A massa precisa descansar meia hora antes de ir pro forno", resmunguei.

"O que isso quer dizer?", Laura perguntou.

"Quer dizer que o café-da-manhã vai demorar mais um pouco."

"Aaaaargh."

"Sim. Argh."

Quando ficaram prontos, descobri que eles são a versão individual e salgada daquelas German Pancakes ou Dutch-Baby pancakes. Acho que era esse o nome. A versão familiar é uma massa rala de panqueca, que você despeja na frigideira já bem quente e com gordura, e enfia no forno. A massa cresce como um souflé, e desinfla assim que sai do forno, e você polvilha com açúcar antes de servir. Os popovers, por sua vez, são uma massa rala de paqueca, que você despeja nas forminhas de muffin já bem quentes e com gordura. Os popovers crescem como soufflés, e desinflam assim que são tirados do forno. E você os come com manteiga e geleia.

CORNMEAL POPOVERS

(do livro One Good Dish, de David Tanis)

Rendimento: 12 unidades, ou 4 pessoas

 

Ingredientes:

  • 2 colh. (sopa) manteiga sem sal, em temperatura ambiente, para untar as formas
  • 3 ovos grandes
  • 1 xíc.leite
  • 1/3xic. buttermilk (ou leite com uma colherinha de vinagre)
  • 1/3 xic. água
  • 3/4 xic. farinha de trigo
  • 1/4 xic. farinha de fubá
  • 1/2 colh (chá) sal
  • 2 colh (sopa) manteiga, derretida

 

Preparo: 

  1. Pré-aqueça o forno a 190oC. Unte generosamente com a manteiga as 12 cavidades de uma forma de muffins. 
  2. Numa tigela, bata com um fouet os ovos, leite, buttermilk e água, até que fique homogêneo.
  3. Junte a farinha fubá e sal para fazer uma massa rala.
  4. Junte a manteiga derretida e misture com o fouet até que fique homogêneo. 
  5. Deixe descansar por pelo menos 30 minutos. Quando faltarem 5 minutos para colocar assar os popovers, coloque a forma de muffins preparada no forno, para que esquente bem.
  6. Retire a forma quente e, rapidamente, coloque 1/4 xic. de massa em cada cavidade. A massa vai ser bem líquida ainda. Leve imediatamente ao forno e asse por 25-30minutos, até que estejam bem dourados e inflados.Sirva imediatamente.

sábado, 21 de março de 2020

Quarentena, PFs veganos, divisão de tarefas e chocolate chip cookies

Uma foto bonita para tempos estranhos

Esta noite sonhei que me empurravam para dentro de um compactador de lixo e fechavam as portas. Era noite, e me haviam pego de surpresa. Imediatamente após a aniquilação de meu corpo em meio a outros resíduos, eu me refazia, magicamente, e ainda formada apenas de ossos e uma intensa luz azul, abria as portas num movimento explosivo, como quem busca ar depois de muito tempo submerso, e tinha então meus ímpetos de vida e liberdade empurrados de volta  ao compactador de lixo pelas mesmas mãos masculinas que me haviam colocado ali em primeiro lugar. Portas fechadas. Corpo destruído. Renascimento. Libertação. Mãos me empurrando de volta. Durante toda a noite, a mesma cena repetida, até finalmente conseguir despertar no meio da noite para a realização de que o sonho descrevera em imagens exatamente como me sinto nesse momento.

Não posso reclamar. Penso nisso o tempo todo, como não posso reclamar. O governo canadense tomou medidas duras mas preventivas, garantindo que a situação no país nunca chegue aos extremos da Itália, por exemplo. Estamos em segurança e o Canadá tem sido considerado modelo de gestão da crise. O pânico inicial que fez com que a população corresse aos mercados e esvaziasse as gôndolas foi subitamente substituído por alguma solidariedade. Meu prédio tem uma lista na porta de moradores que se disponibilizaram para fazer as compras de mercado para os residentes mais vulneráveis. Há muito pouca gente desacreditando o vírus ou se comportando de forma irresponsável.

As escolas foram as primeiras a fecharem. Então os museus e casas de show. Depois bares e restaurantes. Agora, andar na rua parece um eterno domingo de manhã: todas as lojas estão fechadas. Há pouca gente na rua. Mas ao contrário dos domingos de manhã de café devagar e alívio promovido pela promessa de morosidade, há um silêncio pouco reconfortante vindo do lado de fora.

Não posso reclamar. Ainda posso sair para correr. Correndo, vejo os primeiros sinais da primavera. Vejo um coelho. Os Robins, meus sabiás-laranjeira canadenses, retornando às árvores à nossa volta. As primeiras florzinhas minúsculas, cor de leite fresco pingando de estames verdes e frágeis que destoam dos castanhos e cinzas secos restantes do longo inverno.

Ainda posso levar as crianças pelas trilhas do parque. Santo parque. Abençoado parque. Laura me pergunta se pode encostar nas árvores. Pode, pode sim. Vejo-nos abraçando árvores e tocando a terra gelada com os dedos, como que pedindo ajuda, uma luz, uma solução. Que a natureza se arranje, se reequilibre, traga a harmonia que talvez não temos tido há tempos.

Não posso reclamar. Podemos trabalhar de casa. Ele se enfia no quarto, no computador, e tem reuniões e manda emails e faz seu trabalho muito bem. Numa quarta-feira, ouço o marido explicando a Thomas de que é um dia normal, e que papai está trabalhando. Um dia normal. Não é um dia normal. Meu dia correria de uma forma completamente diferente se fosse um dia normal. Acostumadas ao ocasional home office do pai antes da quarentena, as crianças não ousam interrompê-lo, e mesmo quando lhes explico que mamãe precisa de uns minutinhos para descansar a cabeça ou para trabalhar, seus gritos sempre soletram MÃE em letras garrafais, o som esticado como uma corneta alta diretamente em meu ouvido. Uma, duas, quatro, oito, setenta e duas vezes em uma hora, interrompendo minhas ideias, meus pensamentos, meus impulsos, minha criação, minhas pinceladas.

O que foi? O que você precisa?
O Thomas não quer me emprestar o lápis.

Suspiro.

Sinto falta dos meus pequenos rituais solitários que mantinham minha cabeça no lugar, que me ajudavam a repor minha energia. Pequenas coisas da minha rotina que eram só minhas, que não tinham nada a ver com o restante da família, que não tinham absolutamente nenhum impacto neles, e que, portanto, mantinham em minha mente essa imagem clara de quem eu sou, independente de ser mãe, de ser esposa, de ser filha, de ser irmã.

Pensar "isso vai passar" e esperar pelo retorno da "vida normal" me causa mais ansiedades. Tenho tentado enxergar a situação atual como definitiva. E se fosse assim para sempre? E se essa for sua vida até o fim dela? Como eu posso tornar isso melhor e conviver de forma mais saudável com uma quarentena que não tem data para terminar?

Como recriar meus rituais?
Como me reinventar?
Como me resguardar e me preservar num momento que pede tanta doação principalmente das mulheres?

PF delícia: arroz, feijão preto, saladinha de tomate cereja e abóbora e couve-flor que foram assados na mesma assadeira.


Assim que anunciaram o fechamento das escolas e todas as famílias correram aos mercados em pânico, um pânico quase justificado, considerando que a maior parte da comida consumida no Canadá vem de outros países, caí na mesma armadilha de sempre. Acuada feito um bicho, ameaçada por sombras desconhecidas e dominada por um medo estranho, juntei minha família sob minhas asas e me recolhi em minha domesticidade.

Em poucos dias meus rituais desapareceram. Vi-me sublimada pelo cozinhar, limpar, cuidar. Em menos de uma semana minha insônia voltou e eu sumi. E se meu corpo inteiro tremia de raiva do vírus que provocara aquilo, minha mente foi categórica: olha para as suas escolhas.

Conversando com minha amiga no Brasil, ouvindo meu próprio falar, dei-me conta das desculpas que me inventava, de novo e de novo, para me manter no papel de vítima, culpando o patriarcado mas sem olhar para aquilo que era minha inteira responsabilidade.

Refiz minhas escolhas. Pequenas, pequenas escolhas. Assim, sem DR, sem grandes alardes, sem braveza, sem raiva, sem ser passivo-agressiva nem manipuladora.

Continuei acordando cedo para meditar e correr. Porque Toronto tem a densidade populacional de um sítio com galinhas caipiras, e a gente consegue sair na rua sem ficar se esbarrando nem respirando no cangote um do outro. Então saio para correr. Correr até suar para fora toda a raiva e tensão. E se isso me deixar exausta no meio do dia (e eu com sono viro um monstro), tudo bem: marido está em casa e eu POSSO parar e descansar. 

Marido em casa. Não, não é um dia normal. Num dia normal de home office, eu estaria trabalhando e fazendo minhas coisas e as crianças estariam na escola. Não é um dia normal. As crianças estão aqui o dia todo, e cuidar de criança em tempo integral CANSA, mesmo quando você está se divertindo com eles. Cada pequena briga, cada birra, cada interação exige atenção total de sua parte para não simplesmente cair no lugar de reação não-pensada. Ele sabe disso. Ele reconhece isso. Ele fala para os colegas homens como nós mulheres nos lascamos de verde e amarelo com essa quarentena, e como isso não é justo. Ele me conta de reuniões por skype sendo interrompidas por crianças pulando em cima dos pais ou pedindo para a mãe limpar seus bumbuns no banheiro, e como ele consegue ver através das telas quem está dividindo essa carga com o parceiro e quem não. Estamos todos no mesmo barco. Ao menos todos nós, classe média, brancos, de trabalhos estáveis que permitem home office. Tenhamos noção que nosso barco é pequeno e comporta bem pouca gente do mundo. Que sorte temos. Não é? Não posso reclamar.

Mas ouvi-lo a respeito dos outros pais e mães me fez relaxar os ombros. A gente que foi criada em país latino e machista tem disso de síndrome de super-mulher-Martha-Stewart-toda-poderosa, que, dentro de sua posição submissa, encontra uma sensação de falsa superioridade ao taxar os homens de incompetentes no trato dos filhos e da casa. "Ah, sem mim ele não acha uma meia!" Veneno, veneno puro. Ele acha sim. Se você deixar, ele acha a meia. E se não achar, ele é um homem adulto com cartão de crédito e pode mandar entregar um pacote de meia comprado na internet. Essa ideia de nos sentirmos indispensáveis mantendo homens adultos dependentes e infantilizados é a chave que tranca nossas próprias correntes.

Quando estou cansada, cansada mesmo, precisando de uns minutos de silêncio que meus filhos, por mais amor que tenhamos uns pelos outros, não podem me dar, sem a menor culpa eu cato o cachorro para um passeio longo no parque e deixo as crianças ao cargo do pai, independente da reunião por skype em que ele esteja metido. E sabe o que descobri? Que ele é plenamente capaz de lidar com essa situação.

Pense nas suas pausas como a "pausa do café" ou a antiga "pausa do cigarro" nos escritórios. Uma vez trabalhei numa agência em que quase todos eram fumantes menos eu. Todos faziam pausas de cigarro e continuava eu lá, tonta, trabalhando. Revoltada que sou,  resolvi que sempre que meus colegas levantassem da cadeira para sua pausa de cigarro, eu faria minha pausa do café. Justo.

Mãe também precisa de pausa do café. Ok? Dê-se uma pausa do café. 

Como sou eu quem cozinha, eu decidi, assim, de supetão, que não sou mais responsável pela louça. Eu nunca achei que a louça era MINHA responsabilidade, mas era algo que eu fazia no automático: terminar de comer, tirar os pratos, guardar os restos. Dei-me conta de que todo mundo levantava da mesa e ficava eu lá, tonta, fazendo tudo sozinha, depois de já ter passado a última hora e meia do meu dia fazendo jantar.

Agora levanto da mesa sem culpa. Peço com educação para que deem um jeito nos pratos e guardem a comida. E tento não ficar irritada se isso não acontece imediatamente. E se ninguém tirar a louça limpa da lava-louça imediatamente, não vou sair guardando daquele jeito passivo-agressivo bufante que a gente bem conhece. Vai ficar lá e ponto. Até alguém (que não sou eu) fazer.

E sabe o que descobri? Que as coisas tem sido feitas. Talvez não perfeitamente e COM CERTEZA não do MEU jeito. Mas são feitas. E que se eu peço com leveza e educação, todo mundo é super capaz de tirar o lixo ou dar comida para o cachorro.

No tempo de desenho ou video-game das crianças, tenho sentado à minha mesa para pintar e desenhar. Tento, sento, pinto, desenho, escrevo no meu caderno a letras tortas, sentindo falta do meu tempo no computador, pois só temos um, irritada com a lentidão com que meus dedos arrastam o lápis sobre o papel. Tento, apesar da sensação acachapante de que isso não faz o menor sentido, de que todos os meus projetos perderam importância diante das circunstâncias.

Ainda assim faço. Sempre gostei de trabalhar em silêncio, mas agora, acompanhada do batuque incessante dos dedos do marido no teclado do computador ao meu lado, tenho colocado uma música no celular, ou um podcast, e, isolada em meus fones de ouvido, consigo produzir. As crianças começaram, devagar, a entender que porta fechada quer dizer que papai e mamãe estão trabalhando e só devem ser interrompidos por coisas importantes. Quando desperto do meu transe criativo, desligo a tv das crianças e podemos fazer alguma coisa juntos com mais tranquilidade, pois mamãe botou para fora tudo aquilo que borbulhava dentro dela.

Cevadinha com grão-de-bico, tomate cereja e salsinha, espinafre refogadinho, abacate.

Estou tentando não me refugiar à cozinha como fiz durante tantos anos. Não usar bolos e tortas e pães como desculpa para não lidar com meus problemas. Decidi cozinhar apenas uma refeição por dia. Seja almoço ou jantar, o que for necessário, mas apenas uma. E manter simples. Um cereal, uma leguminosa, e tantos vegetais quanto puder cozinhar ao mesmo tempo e rapidamente. E na refeição seguinte, a não ser que eu realmente tenha vontade de comer uma reinvenção específica, cada um monta seu prato com o que quiser do que sobrou e esquenta no microondas.
Isso pode parecer besta, mas essa configuração é completamente nova em minha casa. Eu SEMPRE reinventei as sobras, pois não gosto de simplesmente requentar comida. Mas em nome de minha sanidade mental e meu tempo, abri mão da minha frescura. Requentamos comida. Completamos com saladas.

E me sobra vontade de entrar na cozinha com amor, não rancor, para fazer uma torta de maçã ou biscoitos de chocolate. Se eu quiser.
Arroz cateto integral com legumes refogados em óleo de gergelim, alho e gengibre, e temperados com shoyu, cebolinha e gergelim. Ao lado, falafel de feijão moyashi. Ficaram uma delícia, mas só no dia em que foram feitos: depois, não importava o jeito de requentar, ficaram borrachudos.

Manter a maioria das refeições veganas tem ajudado um bocado no meu planejamento. Tem sido muito mais fácil cozinhar assim. E o mais engraçado é que ninguém percebeu que eu não ando botando mais queijo e ovos nas coisas. De quebra, o mercado está um pouco mais em conta, já que queijos aqui custam caro.

O fim de semana agora é o mais diferente. Já tinha um tempo que eu praticamente parara de cozinhar aos fins de semana. É a vez dele. Se ele quiser preparar waffles de manhã, se quiser fazer macarrão de almoço, ótimo. Se quiser pedir comida ou comprar algo pronto, a escolha é dele. Eu não digo nada nem torço o nariz. Afinal, ele não reclama quando faço sopa de abóbora de jantar, que as crianças adoram mas que ele come apenas por respeito e educação, profundo inimigo da abóbora como sempre foi. Hoje ele pediu Lámen de almoço. Eu não estava super afim de comer porco, tenho preferido a leveza do vegetariano, mas alguém botou um prato de comida quente na minha frente que eu não tive de preparar, então obrigada pela refeição, come e volta ao computador.

Arroz cateto integral que refoguei com folhas de beterraba, batata-doce assada com alecrim e ervilhas refogadas em cebola e tomilho e salsinha.

A diferença é que agora reclamo o tempo do fim de semana completamente para mim. É minha vez no computador. Minha vez de sentar e escrever por horas a fio, digitalizar ilustrações ou resolver pendências de trabalho. Trabalhar no fim de semana? Sim, pois não pude fazer isso durante a semana. Reclamo para mim meu silêncio e minha paz, pois no fim de semana papai está totalmente disponível para criar as brincadeiras, apartar as brigas, passear cachorro e resolver o almoço. Nesse momento estou ao computador enfim escrevendo, jazz nos ouvidos, vinho num copo, cachorro dormindo aos meus pés. A porta do quarto está fechada e eu não faço A MENOR IDEIA do que está acontecendo na sala ou do que meus filhos e meu marido estão fazendo. Pedi que ele lavasse roupa e pendurasse o que não pode ir na secadora, e acredito que ele tenha feito. Hoje é responsabilidade dele, não minha, então não vou perder meu tempo gerenciando os outros. Estou tendo um "dia de homem", contei a uma amiga, rindo. Não é um dia de homem. É um dia de pessoa adulta que compartilha responsabilidades domésticas com outra pessoa adulta.
Arroz integral misturadinho com feijão Apache e coentro, farofa de banana da terra, couve-flor e abóbora assada e couve refogada em alho e cebola.

Não posso reclamar. Meu marido sempre fez sua parte. Aí é que entra a minha responsabilidade. Esse controle louco que faz a gente criar na nossa cabeça o "jeito certo de fazer as coisas" e não botar homem para fazer nada porque "eles não sabem fazer direito". Bom, eles sabem. E se não sabem, veja só, aprendem. Que nem criança: se você não deixar fazer com desapego ao resultado, a criança não aprende. Bom, homem também. Por muito tempo me sabotei puxando todas as atividades domésticas para mim com essa desculpa de querer "fazer do meu jeito", e fazendo direito, só fiquei sobrecarregada e ressentida. Totalmente à toa, porque tenho do meu lado um cara que sempre esteve disposto a dividir essa carga.

De novo, não posso reclamar. Outro dia estava mostrando às crianças um video do papai ninando Thomas e passando aspirador de pó na sala ao mesmo tempo. Bebê num braço, aspirador no outro. E a gente diz que só mulher sabe fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo.

Eu decidi não ser vítima da quarentena nem mais vítima de coisa nenhuma. Decidi parar de ter raiva, tanta raiva do que foi, do que é, do que pode ser que eu não gosto e não quero. Minha rotina virou de pernas para o ar, então tenho de encontrar uma nova. Sem raiva, sem rancor. Com leveza, amor, educação. Uma rotina que seja boa para meus filhos, para minha família, mas também boa para mim, que mãe triste cria filhos tristes.

São tempos estranhos, estranhíssimos, e um bocado pesados. Temos família no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália, e nos preocupamos o dia todo com eles. Mas isso está completamente fora do meu controle. Só posso controlar minhas escolhas aqui e como elas afetam minha vida e a de meus filhos. As crianças ainda não têm uma rotina certa, e isso eu vejo que as tem atrapalhado um pouco, e a mim também. Ainda preciso entender melhor essa parte, o que tem melhor efeito no humor deles e no meu e rearranjar tudo. 

Aqui a primavera começou enfim. Tempos de renovação. Que renove. Que a quarentena seja essa lua nova, esse momento de introspecção e meditação para cozinhar revoluções internas e externas. Renovações. Não tem para onde fugir. Nossos problemas estão espalhados no nosso chão, grudados em nossas paredes, pendurados pelo teto, em toda a parte, escancarados na nossa cara e não há outra coisa a fazer senão olhá-los, aceitá-los e fazer algo com eles. Nem vinte e quatro horas por dia de Netflix vai impedir você de encarar seus problemas.

Vamos pensar em começar na quarentena pequenas mudanças internas para espalhar lá fora depois, mais rápido que qualquer vírus, para que a vida não volte ao normal, pois aquele normal ninguém mais quer de volta. Inventemos uma norma nova. Um normal que seja melhor para todos.

Vai ter muito perrengue me puxando de volta para baixo para tentar me destruir durante esses tempos. Eu não vou deixar. Vou continuar me reinventando quantas vezes forem necessárias. 


CHOCOLATE CHIP COOKIES DO DAVID LEBOVITZ
Rendimento: UM MONTÃO, mas acaba rápido, que são muito bons

Ingredientes:
  • 2 1/2 cups (350 g) farinha
  • 3/4 colh (chá) bicarbonato de sódio
  • 1/8 colh (chá) sal
  • 1 xic (225 g) manteiga sem sal, em temperatura ambiente
  • 1 xic(215 g) açúcar mascavo
  • 3/4 xic(150 g) açúcar cristal orgânico
  • 1 colh (chá) extrato de baunilha
  • 2ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 2 xic(cerca de 225 g) nozes ou castanhas de sua escolha, tostadas e picadas
  • 400 g chocolate amargo ou meio-amargo, picado em pedaços de 1.5 a 3cm ou 3 xic(340 g) gotas de chocolate
Preparo:

  1. NUma tigela, misture a farinha, bicarbonato e sal. 
  2. Na batedeira, bata a manteiga, os açúcares e a baunilha em velocidade média apenas até que fique homogêneo.
  3. Junte os ovos, um a um, batendo bem a cada adição, e então misture a farinha, seguida das nozes e do chocolate. 
  4. Numa superfície ligeiramente enfarinhada, divida a massa em quartos. Forme com cada uma um cilindro de 23cm de comprimento. Embrulhe os cilindros com filme plástico e leve à geladeira até que fiquem firmes, de preferência de um dia para o outro. 
  5. Posicione as grades do forno nos terços inferior e superior e aqueça o forno a 180oC. Forre duas assadeiras com papel manteiga ou silpat.
  6. Fatie os cilindros de massa em fatias de 2cm de espessura e coloque os discos na assadeira com 8cm de distância entre eles. Se algum chocolate ou noz se desprender, grude de volta no biscoito. 
  7. Asse, trocando as assadeiras de lugar no meio do cozimento, por 10 minutos, ou até que estejam ligeiramente dourados por cima. 
  8. Deixe que esfriem ligeiramente na assadeira antes de retirá-los para esfriarem sobre uma grade. Repita a operação com o restante da massa.
  9. Os biscoitos de mantém frescos por vários dias num pote fechado. 

 Em tempo: pois é, eu tenho feito a maior parte das refeições da casa veganas, e sempre que posso, evito produtos animais. Tem sido engraçado que as crianças curtiram isso de colocar levedura de cerveja no macarrão no lugar do parmesão e Thomas virou o maior fã de manteigas de castanhas na torrada de manhã. Mas a pizza do fim de semana continua tendo queijo e faço ovos quentes para eles sempre que pedem no café. E sim, meus chocolate chip cookies são tradicionais e comi um montão deles, que estão deliciosos. Ninguém virou vegano nem vegetariano. Mas essa diminuída nos produtos animais tem sido boa para todo mundo aqui em casa.

quarta-feira, 27 de março de 2019

Caindo do cavalo, levantando de novo, um frango, um croquete, uma torta de maçã, um funcho e sei lá o que mais

Passeando sobre o lago congelado. Tão congelado, que fiz até anjinho de neve, bem no meio dele, deitadona olhando pra cima, a uns 30 metros de distância da beirada.
Gnocchi se diverte horrores no inverno. Mas estou feliz que é Primavera de novo.

 Fevereiro e Março foram meses estranhos. Cansaço generalizado do inverno que nunca tem fim, com direito a palavrões e bufadas a cada abrir de janela de manhã, revelando uma nova nevasca. Chega! Chega de neve! Chega de gelo na calçada! Chega de slush, neve suja, derretida, tornando a rua (e o parque) um pântano! Vejo fotos da Europa primaveril com verde e flores e casacos leves, e a carranca de todo mundo aqui aumenta. Nos poucos dias que surgem com temperaturas positivas, 4 graus, 8 graus, saímos sem gorro e sem luvas, casaco aberto, e Laura diz contente: "parece Verão, mamãe!" Seres humanos se apinham sob os raios de sol, esquentando o rosto e fingindo que o Inverno acabou.

Depois de passar os últimos dois meses resolvendo um momento bastante turbulento relativo a trabalho, a família parece ter voltado à rotina no mesmo momento em que a última (espero) neve se foi e os primeiros pássaros retornam à cidade. A Primavera chegou enfim, ainda que apenas no calendário.

Foram dois meses de bastante... economia. De colocar à prova aquilo que havia tempos eu exercitava pelo mero prazer criativo: gastar pouco e fazer refeições renderem, coisa que nesses meses precisei fazer por necessidade e não escolha. Abri mão de muitos itens orgânicos em detrimento dos comuns, evitei repor qualquer item que não fosse absolutamente necessário (como tahini, ou azeitonas, por exemplo), e eliminei completamente as carnes, que são o elemento mais caro de qualquer cardápio. Baseando nossos pratos no bom e velho arroz e feijão, no entanto, que comprados em sacos grandes saem muito baratos, e evitando preparar sobremesas, mantive a família toda maravilhosamente bem alimentada e dentro do budget emergencial.

Arroz integral, feijão preto, abóbora assada e espinafre refogado. Uma combinação deliciosa, que fez Laura começar a gostar de abóbora E de espinafre.
Em tempo, porque acho que nunca mencionei isso antes: eu nunca refogo o feijão com bacon; o que uso para trazer defumado e complexidade é um pouco de sementes de cominho, refogadas junto com a cebola e o alho, e, recentemente, uma polvilhada de páprica picante. Logo antes de servir, tempero com uma colher de vinagre (cuja acidez aviva o sabor do feijão) e misturo a salsinha ou coentro picado, se houver.

Essa mistura de arroz integral, feijão preto, espinafre refogado com cebola e manteiga e abóbora assada (com casca ou sem, fatiada, temperada com azeite, sal, pimenta, dentes de alho e folhas de sálvia ou alecrim, e levada ao forno médio até dourar dos dois lados) virou uma de minhas favoritas de todos os tempos, e já preparei de novo umas quatro vezes desde a primeira. Allex continua torcendo o nariz para a abóbora, mas come na frente das crianças, que dão um show e raspam o prato com gosto. "Não precisa gostar, papai", diz Laura. "Só precisa experimentar."

Em momentos como esse, foi muito bom já ter no automático o hábito de comprar as frutas e verduras da promoção e de saber reaproveitar as sobras.

A foto é feia mas o sabor é muito bom.

A couve-flor, que estava baratíssima e foi cortada, temperada com sal, azeite, pimenta-do-reino e espalhada numa assadeira, para ir ao forno a 180oC e cozinhar e dourar até chamuscar as pontinhas (uns dez, quinze minutos?) Dourada, misturei  a cebolas fatiadas bem fininhas, que eu deixara marinando em vinagre e sal, e cuja marinada entrou também como tempero dessa salada quente. Eu tinha coentro, então ele entrou na dança, mas poderia ter sido salsinha. Se tivesse azeitonas pretas, teriam ficado deliciosas ali.

Num dia, essa salada quente de couve-flor acompanhou o arroz e feijão. No outro, foi jogada crua e temperada com sal e azeite sobre a massa da pizza com molho de tomates e levada para assar. No meio do cozimento acrescentei o queijo e as azeitonas pretas (que tinha poucas e escolhera não usar na salada, para complementarem a pizza), e enquanto o queijo derretia, elas terminaram de chamuscar e amaciar. Adoro pizza de couve-flor! (E às vezes substituo metade da farinha branca da pizza por integral, porque acho que fica saborosa.)

Quando há batatas (com alho e cebolas, se houver), sempre dou um jeito de preparar alguma versão desse tray bake, cujo processo já descrevi inúmeras vezes aqui: as batatas foram primeiro, a 190oC, e quando já estavam quase perfeitamente douradas, vieram os brócolis, tudo sempre previamente temperado com sal e azeite. Quando esses ficaram prontos, vieram os ovos. E quando as claras estavam já opacas, as ervilhas congeladas entraram apenas para se aquecerem. Coloco a assadeira inteira na mesa, às vezes com um vidro de mostarda ao lado, e o jantar está servido. O trabalho foi de cortar batatas e os brócolis e só, pois o forno fez todo o resto, e com o timer apitando sempre que era hora de acrescentar mais um elemento, tive tempo de cuidar de outras coisas ou mesmo sentar e ler enquanto as crianças tomavam banho. (Vantagem de deixar a pimpolhada se virar sozinha de vez em quando: criança independente é sinônimo de menos ocupações para pai a mãe.)


O que restou do tray bake entrou nessa torta. Esta é uma versão com iogurte do Mark Bittman, que resolvi testar, mas que achei muito seca em relação à de minha mãe, que continua campeã. Talvez ficasse melhor com o recheio original pretendido por Bittman, pois as verduras soltam mais líquido e a massa ficaria mais úmida. A de minha mãe é ótima para aproveitar legumes que já fora cozidos ou assados.



Uma receita, no entanto, que também veio de Mark Bittman, e valeu a pena ser anotada, foram os hambúrgueres de feijão. Eu já havia feito anteriormente pequenos hambúrgueres de grão de bico e abóbora assada que haviam sobrado do jantar anterior, mas sempre preparei tudo muito no olho, mesmo naquela época em que era de fato vegetariana. Gostei de ter uma receita básica com as proporções "corretas", para não ter que ficar brincando de cientista maluca enquanto misturo os ingredientes. 

Hambúrgueres empanados de feijão preto, com queijo derretido por cima e saladinha. Almocinho danado de bom!
HAMBÚRGUERES DE FEIJÃO E AVEIA
(Do livro How to Cook Everything Vegetarian, de Mark Bittman)
Rendimento: 4 hamburgueres grandes oi 8 pequenos

Ingredientes:
  • 2 xíc de qualquer tipo de feijão já cozido (sem o caldo - reserve para outro uso)
  • 1 cebola picada
  • 1/2 xic de aveia laminada
  • sal e pimenta-do-reino
  • (qualquer outra erva, tempero, verduras ou legumes cozidos que queira acrescentar)

Preparo:
  1. Bata o feijão e a cebola no processador até que vire um purê grosseiro. Junte a aveia (e qualquer outro tempero) e pulse algumas vezes até que vire uma maçaroca que você consegue tirar com uma colher de forma razoavelmente firme. Se estiver muito seco, junte um pouco do caldo dos feijões. Se estiver muito molenga, junte mais aveia. Acerte o tempero. 
  2. Forme hambúrgueres do tamanho que quiser (os do tamanho de sua palma, com 2cm de altura são ideais) e coloque em uma assadeira untada de azeite, para que não grudem. Você também pode empaná-los em farinha de rosca  e colocá-los na assadeira sem untar. Leve à geladeira por umas duas horas para que firmem bem antes de fritar. 
  3. Frite os dois lados por 1-2 minutos cada em um pouco de azeite e sirva quente.


Na corrida do simples, foi momento de relembrar uns clássicos de muito tempo atrás, de um livrinho que vendi há muito muito tempo (acho que se chamava As Ervas do Sítio, ou algo assim). É uma massa com molho de espinafre, simplíssima, mas que na minha parca experiência, sempre virava uma sopa rala láaaaa quando eu ainda tinha acabado de mudar para meu apartamentinho com meu então namorado. Acontece que eu nunca deixava a água do espinafre evaporar o suficiente e, ainda influenciada pelo macarrão nadando em molho dos restaurantes de São Paulo até então, sempre colocava mais creme de leite do que o necessário na receita, achando que não havia molho o bastante. Isso fazia com que o molho ficasse todo no fundo da panela e o macarrão totalmente pelado na hora de servir.

Eu tinha uma porçãozinha pequena de espinafre congelado (o equivalente a 1 xícara de espinafre congelado bem apertado na xícara) e um restinho de creme de leite fresco, restinho mesmo, acho que nem meia xícara. Refoguei cebola picada em manteiga até dourar, juntei o espinafre descongelado (que já vinha picado), temperei com sal e pimenta e mexi com uma colher de pau até que ele tivesse sequinho de toda aquela água que ele solta e tivesse absorvido bem a manteiga e o gostinho da cebola. Juntei o creme de leite, misturei bem e deixei apenas levantar fervura, o bastante para o molho engrossar levemente, e desliguei o fogo. Se o creme estiver muito líquido, ele simplesmente não vai aderir ao macarrão. Taí o pulo do gato que eu não sabia quando era jovenzinha. (Fica a dica: molho de macarrão não pode sobrar, aguado, no fundo da panela. Se sobrou, é porque tinha que ter reduzido mais. Bem reduzido, ele adere à massa corretamente e a tempera direito.)

Acertei o tempero. Escorri o macarrão (linguini funciona bem nesse caso), juntei à panela do molho com mais um naco de manteiga e um punhado de parmesão e voi là: linguini ao molho de espinafre. Sucesso geral.

Lembrei com certa alegria e saudades daquela época em que comecei a cozinhar de fato todo dia, recém saída da casa de meus pais, e como um fettuccine com molho de tomates crus parecia o ápice da sofisticação. Logo antes de eu começar o blog, há tantos anos atrás, havia uma inocência deliciosa na cozinha, pois ela era exclusivamente para mim e para quem comia comigo. Eu tinha pouquíssimos livros de cozinha e assistia aos programas do Jamie Oliver, e aquela comida pseudo-italiana simples era o o que havia de mais complexo a que meu ego aspirava. Não havia encontrado blogs e sites de cozinha, eu era a única pessoa da minha idade de meu círculo social que gostava de cozinhar, e a aventura de testar uma receita ou uma técnica nova era uma jornada individual cujo prazer não se equipara a essa estranha ansiedade gerada pela postagem de uma foto e uma receita nas redes sociais. Às vezes simplesmente paro e volto àquela época, e cozinho para mim, e esqueço os ingredientes que usei e como preparei, e o prato fica lindo e colorido, mas o celular está desligado, e sinto um prazer imenso naquela beleza fugaz desaparecendo aos poucos a cada garfada até nunca ter existido, a não ser no sabor no fundo da língua, que se demora antes de dissolver-se para sempre.

O prazer do particular que nossa sociedade começa a desconhecer, ao transformar todo privado em público. (Sim, a ironia de escrever isso num blog a respeito de minha vida e minha comida.)

.....

Quando vieram as boas notícias e pudemos todos relaxar novamente, logo antes do Carnaval, as maçãs que eu havia comprado em promoção foram transformadas num bolo. Ou torta. Ou bolo-torta, porque "torta" em italiano quer dizer bolo, de qualquer forma. Essa receita da Tessa Kiros é facílima e deliciosa. Num primeiro momento achei até que levava pouco açúcar, mas ela é doce o bastante e acho inclusive que pode ser preparada com um pouco menos de açúcar na massa sem nenhum prejuízo. O resultado me lembrou demais os Apfelkuchen (acho que era esse o nome) que eu costumava comer na casa da avó do Allex, e eu não duvidaria se as receitas fossem de fato parecidas. A torta, ou bolo de maçã da avó alemã era maior e mais fina, baixinha, não sei se de propósito ou por razões circunstanciais. Acabamos saboreando a torta no café da manhã de um dia particularmente frio e sem graça, e as maçãs envolvidas nessa massinha macia com certeza foram bom acompanhamento para o cappuccino.


TORTA-BOLO DE MAÇÃS
(Do livro Recipes and Dreams from an Italian Kitchen, de Tessa Kiros)

Ingredientes:
  • 9 colh. (sopa) manteiga em temperatura ambiente (cerca de 130g)
  • 2/3 xic. açúcar demerara
  • 1 ovo
  • 1 2/3 xic. farinha de trigo
  • 1/2 colh(chá) fermento químico em pó
  • 1/2 colh(chá) bicarbonato de sódio
  • 1/2 colh (chá) extrato de baunilha
  • 4 maçãs (de preferência com alguma acidez) - cerca de 450g
  • açúcar de confeiteiro para polvilhar

Preparo: 
  1. Pré-aqueça o forno a 160oC. Unte com manteiga e farinha uma forma de 22-24cm de diâmetro, de mola ou fundo falso.
  2. Na batedeira, bata a manteiga com o açúcar até que fique bem cremosa.
  3. Junte o ovo e misture bem.
  4. Junte a farinha, o fermento, o bicarbonato e a baunilha e misture em velocidade baixa até que comece a ficar firme demais para o batedor. Pare e termine de sovar ligeiramente com as mãos, apenas até que todos os ingredientes estejam bem incorporados. 
  5. Ponha 2/3 da massa na forma. Pressione firmemente com as mãos a massa no fundo, empurrando-a paredes acima, até que a massa ocupe todo o fundo e cerca de 2/3 da altura da forma, mais ou menos. Pode parecer que está muito fina, mas está tudo bem. 
  6. Descasque as maçãs, retire as sementes e descarte (não jogue no lixo, guarde para fazer geleia!). Pique as maçãs e cubos de 1,5-2cm. 
  7. Distribua os cubos sobre a massa de forma uniforme, checando para não deixar nenhum espaço sem maçãs. 
  8. Esfarele o restante da massa entre os dedos, em pedaços de tamanhos variados, e espalhe esses pedacinhos de massa por sobre a maçã. 
  9. Asse por 55-60 minutos, ou até que a massa esteja dourada e firme. Lá pelo fim do tempo, cubra a massa com uma folha de papel-alumínio se estiver com cara de que começa a queimar.
  10. Remova do forno e deixe esfriar. Polvilhe com açúcar de confeiteiro. O bolo/torta se mantém em temperatura ambiente de um dia para o outro, e depois disso deve ir à geladeira.


Vida de volta ao normal, e marido viajando para o treinamento de seu novo emprego. E daí que resolvi fazer a vontade das crianças e preparar um frango assado, assim numa terça-feira, porque as crianças sempre pedem, e como Allex não gosta, nunca faço. (Também porque frango aqui não é lá muito barato, ainda mais orgânico.)

A receita que escolhi era da Marcella Hazan, simplíssima. Você apanha um limão siciliano, rola ele entre a palma e a bancada para soltar bem os sucos, e espeta todo ele diversas vezes com um palito. O limão vai assim, furado e inteiro, para dentro do frango já bem temperado com sal  e pimenta. Fecha-se a cavidade do frango com linha ou palitos de dente, e ele é colocado na assadeira, sem óleo nem nada, de peito para baixo. Assa-se no forno a 180oC por meia hora, e então com cuidado ele é virado de peito para cima e volta ao forno por mais meia hora. Aumenta-se a temperatura para 200oC e ele fica ali mais meia hora até dourar e e os sucos saírem claros quando a carne é espetada com um garfo na junção da sobrecoxa com o corpo. (Calcula-se uns 25 minutos para cada meio quilo de frango.)

Junto do frango ainda cru, coloquei batatas cortadas e temperadas com sal e azeite, para assarem junto, absorvendo os sucos que o frango libera. Nos últimos quinze minutos, acrescentei os brócolis temperados para assarem e chamuscarem também.

O frango acabou ficando super suculento, ainda que não suficientemente dourado (a pele do peito, no entanto, estava crocante), porque eu esqueci de aumentar a temperatura do forno naquela última meia hora, e ele acabou assando a 200 graus apenas nos quinze minutos finais. Mas priorizei carne suculenta à pele crocante. Frango seco é uma desgraça.

O frango já cortado em pedaços, como foi servido à mesa.

A refeição foi uma alegria, seguida de sorvete de amêndoas com cerejas em calda, que eu preparara do livro The Perfect Scoop. O sorvete ficou gostoso sim, mas também mais doce e mais intenso do que eu imaginava (Laura não gostou, porque não gosta de nada muito doce). Eu provara um sorvete de missô com cerejas em calda na Bang Bang, minha sorveteria favorita em Toronto (porque é a única que não coloca um quilo de açúcar no sorvete), e era isso o que eu tinha em mente: um sabor e uma textura mais delicada. Todo o mini-banquete de frango assado com sorvete de terça-feira acabou servindo para comemorar a queda do primeiro dentinho da Laura. Foi mesmo uma comemoração, pois depois de ter de levar Thomas duas vezes ao dentista para arrancar os dentes de leite teimosos que se recusavam a dar espaço para o permanente já nascido atrás, foi um alívio ver Laura correndo para a sala com minúsculo dente na mão, feliz, contente, e de boca sangrando. ;) A animação dela foi tanta que, no dia seguinte, ela chacoalhou tanto o dente do lado, que também estava mole, que conseguiu fazê-lo cair também, ao que ela teve uma visita dupla da fada do dente, e agora, ao invés de uma janelinha, exibe um janelão com vista pro lago. A gente brinca e pede para ela "fazer o Ogro", ao que ela empurra o maxilar pra frente, com os dentes laterais por sobre o lábio superior e envesga os olhos, meu mini-ogro que sai correndo atrás do irmão com uma espada na mão, fazendo sons de monstro.

"Laura, o que você quer ser quando crescer?" 
"Uma guerreira, mamãe."

Como eu adoro transformar tudo em bolinho, o que sobrou do frango virou croquete. Claro. Tessa Kiros ao resgate, como sempre. Já disse o quanto amo os livros dela? Claro que sim.

Do frango inteiro, eu comera uma sobrecoxa, e as crianças haviam dado cabo das duas coxas, uma sobrecoxa, as duas asinhas e meio peito. Daí que havia sobrado um peito e meio e todo aquele frango desfiado que a gente consegue esmiuçando a carcaça com os dedos, nos lugares em que a lâmina da faca não tira um corte limpo e bonito para apresentar no prato. Depois de dar uns naquinhos de frango pro Gnocchi, que estava aguando do meu lado o tempo todo em que eu mexia na carcaça, considerei que se tratava de meio frango, assim no olho, e, como a receita da Tessa pedisse um frango inteiro, fiz meia receita. Trata-se de um croquete tradicional: carne com molho bechamel grosso, empanado e frito. Renderam bem uns seis ou sete croquetes para cada um de nós, que servi com uma salada simples de cenoura e bok choy (acelga chinesa, a verdura em promoção), fatiada, refogada em alho e óleo de gergelim e temperada com shoyu. 

A parte especial foi ter Laura como ajudante, que moldou e empanou metade dos croquetes comigo. 

CROQUETE DE FRANGO
(ligeiramente adaptado do Livro Apples for Jam)
Faz cerca de 25-30 croquetes, dependendo do tamanho.
 
Ingredientes:
  • carne de 1 frango inteiro, picada
  • 3 colh. (sopa) manteiga
  • 1 cebola pequena, picada
  • 1 1/2 colh (sopa) folhas de salsão, picadas (eu não tinha salsão e usei um talinho de erva-doce)
  • 1 1/2 colh (sopa) folhas de salsinha, picadas
  • 2 dentes de alho pequenos, picados
  • 1 tomate, picado
  • 1 1/2 colh. (sopa) farinha de trigo
  • 1 xic. leite
  • 1 ovo
  • sal
  • farinha de rosca
  • óleo para fritar

Preparo:
  1. Derreta metade da manteiga numa frigideira e junte a cebola e uma pitada de sal, mexendo até começar a dourar. 
  2. Junte o salsão, salsinha e alho e misture bem, até que sentir o aroma do alho.
  3. Junte o tomate, amassando bem com a colher e misturando, até que ele se dissolva bem.
  4. Junte o frango picado, misture muito bem, acerte o tempero e transfira para uma tigela. 
  5. Em outra panela, derreta o resto da manteiga. 
  6. Junte a farinha, misturando bem, e então o leite, aos poucos, misturando com um fouet, até formar um molho branco, espesso e liso. Tempere com sal e pimenta e transfira para a tigela com o frango.
  7. Junte o ovo, misture bem, acerte o tempero e leve a tigela à geladeira por pelo menos meia hora, até que tudo firme o bastante para que você consiga formar os croquetes. 
  8. Se ainda estiver mole demais, junte um pouco de farinha à mistura. 
  9. Apanhe colheradas da mistura, e forme os croquetes, do comprimento do seu dedão e com não mais que dois dedos de espessura (achei esse tamanho fácil de manusear - até a Laura conseguiu). Passe o croquete na farinha de rosca, e deixe num prato. Repita com o restante da mistura até ter todos os croquetes estejam formados. Leve à geladeira enquanto esquenta o óleo (uns 2 dedos de óleo na panela). 
  10. Frite os croquetes até que dourem por igual, alguns por vez, em óleo a 180oC. Deixe escorrer sobre papel-toalha e sirva ainda quente.
 

Só eu achei isso lindo?

No dia seguinte, eu ainda tinha farinha de rosca e óleo de fritura, e resolvi dar cabo de tudo com esse funcho empanado da Marcella Hazan. Taí uma vantagem de ter menos livros de cozinha: tantos anos na minha estante, e eu NUNCA preparara essa lindeza. Você coloca o bulbo em pé e corta dele fatias de 1,5cm de espessura, tentando manter a raiz firme para que as camadas não se soltem. Como meu funcho era bem grande, cortei também ao meio, para facilitar na hora de empanar e fritar. Cozinhe as fatias de funcho na água fervente com sal por alguns minutinhos, apenas até o miolo próximo à raiz pareça macio, mas ainda resistente, ao ser espetado por um garfo. Escorra bem, passe as fatias cozidas em ovo batido, depois farinha de rosca, apertando para que os farelos de pão grudem, e frite normalmente, até dourar dos dois lados. 

As crianças e eu comemos o bulbo de funcho frito inteirinho, e houve até briga pelos dois últimos pedaços, que consegui guardar para meu almoço do dia seguinte. Para acompanhar, no jantar, arroz cozido com talos de brócolis e temperado com salsinha, e uma saladinha simples de tomates.  No dia seguinte, em meu almoço solitário, cobri os dois pedaços de funcho empanado com fatias grossas de tomate, orégano e mozzarella, e esquentei no forno minha parmiggiana vegetariana, que acompanhei com uma saladinha de alface.
Meu prato.
Prato to Thomas, que me pediu para fotografar a montagem sua montagem super criativa.

Agora, de volta à vida normal, que depois de dois meses de incertezas, visitas durante o Carnaval (que não existe aqui, by the way), March Break (uma semana de férias escolares) e uma semana com marido fora de casa, eu preciso literalmente sair correndo, e retomar minha rotina: minha meditação, meus exercícios físicos, minha escrita, minha pintura... e veja só: semana que vem meu Matador de Dragões faz 8 anos e eu ainda tenho que descobrir que bolo ele vai querer. :)



terça-feira, 21 de agosto de 2018

Agosto e sorvete, sorvete, sorvete

Precisa de receita? Dá para usar qualquer biscoito e qualquer sorvete de baunilha? CLARO QUE DÁ. Mas se tem receita, ótimo, não é?
 O Verão que dava sinais de terminar voltou, contrariando as previsões do tempo. Uma onda de calor varreu Toronto este mês e os dias foram quentes, úmidos, pegajosos, de ar espesso no pulmão e peso nas pernas. Voltam os parques, os Splash Pads, os mergulhos no lago, a grama, a lama, as abelhas, as pedras, os galhos, o pula, salta, escala, escorrega, corre, pega, empurra, anda de bicicleta, voltam os piqueniques, a melancia, o pão de queijo, a toalha no chão, o pé na terra, o livro na mão.

Almoço.
Novamente, lembro dos meus pais, com duas filhas confinadas num apartamento pouco maior que o meu, sem clube, sem playground nas redondezas. Eles me contavam contos de liberdade infantil em suas infâncias soltas na rua, e eu sonhava acordada com a possibilidade de ter aquilo para mim. Lembro do parquinho do prédio, única opção para gastar a energia borbulhante das crianças, e como a cada ano um brinquedo desaparecia, retirado prontamente sempre que uma criança do prédio se machucava. Foi-se a gangorra, foi-se o trepa-trepa, foi-se o gira-gira, foi-se o escorregador. Nenhuma criança no meu prédio tinha uma segunda chance de aprender a não cair. Caiu, perdeu. Para sempre confinada a seu trauma. Num dia de férias, descemos para o parquinho e só restara o tanque de areia. Única opção considerada segura o suficiente para brincar, até o dia em que ele também foi embora, restando apenas um pátio árido com dois bancos, onde velhinhos e babás sentavam-se para conversar e mandavam as crianças pararem de correr e fazer barulho. Não pode correr, não pode gritar, não pode pisar na grama, não pode subir na árvore, não pode jogar bola, não pode andar de bicicleta, só pode ficar em casa, pode ver tv, tv isso pode, que aí a gente fica quieto e não atrapalha ninguém.

Lembro disso todas as vezes que me dá preguiça (preguiça-monstro) de levá-los ao parquinho. Só meia hora, digo a mim mesma. Ás vezes são eles que estão com preguiça. Só meia hora, digo a eles. E é sempre igual. Chegamos, e meia hora vira uma e vira duas, e todo mundo se diverte, e todos voltam relaxados e cansados e temos um jantar calmo depois de um banho gostoso. A gente tem mais fome quando correu a tarde toda, e criança com fome simplesmente senta e come qualquer coisa. Paz e sossego à mesa.

Esse mês que o papai conseguiu chegar mais cedo, pegamos o hábito de jogar algum jogo de tabuleiro ou de cartas antes de ler história e ir dormir. Não todos os dias, depende do horário da janta, mas quando dá, fazemos, que as crianças ficam contentíssimas e nós damos boas risadas. Os maiores sucessos aqui em casa são Zombie Dice, Dungeon Roll, Exploding Kittens, Uno, Trouble (Ludo, no Brasil) e Dominó.

Eles vão dormir e o sol começa a se por num horário mais razoável. Talvez por isso às nove da noite já venha o sono, influenciado pela luz que desaparece lá fora. Os dias longos nos mantiveram despertos e ativos por mais tempo que o que considerávamos normais durante nossos quase quarenta anos no Brasil. Estico as pernas no sofá ao lado de Allex. Afe, quão louca eu sou de ter saudades do Inverno?, pergunto. Não muito, ele responde. Também pensei outro dia como dormi bem durante os meses de frio.
O cão, morrendo de calor, quer ficar na água.
O calor começa a cansar. Aquele cansaço de quem não dorme direito há um mês, o calor de quem não quer andar no sol esturricante até o mercado, o calor de quem sabe que vai terminar o dia varrendo areia da casa toda. Eu que reclamara da lama da neve derretida, não pensara na areia dos parquinhos no verão. O cão já não quer passeios tão longos a não ser que haja um grande suprimento de água ou um lago onde se refrescar. As crianças pedem parquinho na mesma medida em que pedem para ficarem em casa brincando de Lego. Há dias em que arrasto os dois para fora, quando começam a se espezinhar. Vai, gente, meia hora no parquinho, assim vocês param de se provocar e gastam toda essa vontade de se bater (Não seria bom resolver os problemas entre adultos dessa forma? Vou começar a mandar os adultos que me aporrinham darem uma corridinha ou subirem numa árvore por aí.Vai ver que a chatice passa com um pouco de exercício.) 

Mas não é só o calor que cobra pedágio.

Veja bem. Não tenho nem coragem de reclamar desse Verão. Poder deixá-los mais independentes nos parquinhos e simplesmente sentar e colocar a leitura em dia foi uma bênção com a qual sonhei desde que entendi o trampo louco que é ser mãe vinte e quatro horas por dia. O cansaço não vem do preparo dos piqueniques ou das caminhadas de seis quilômetros, da busca por parquinhos ou de ficar ensinando criança a andar de bicicleta sem rodinha. Isso eu realmente gosto e era o que eu queria desses meses. Adoro ficar ao ar livre. Os piqueniques facilitaram minha vida ao não ter de pensar em almoço. Gosto de andar bastante (o exercício faz a MINHA chatice passar) e me dá uma alegria imensa ver esses dois brincando do lado de fora e aprendendo coisas novas. É a parte de ser mãe que eu mais gosto.

Mas aí.. Vem uma dorzinha de cabeça diferente no fim do dia, uma irritaçãozinha chata que parece sem motivo, que você só entende a origem quando, no fim de semana, leva o cão para passear sozinha enquanto as crianças brincam com o pai. Você se dá conta de que está ouvindo os pássaros. E as cigarras. Quando encontra um adulto, tem uma conversa inteira sem interrupções. UAU! O que está faltando? Falta o alto e sonoro MÃAAAAE! que costuma acompanhar as férias todas num ritmo preciso de um relógio suíço: de cinco em cinco minutos, vem a badalada. E os segundos entre uma e outra são preenchidos com...

...aranhas têm cérebros?
...por que os esquilos têm cores diferentes?
...por que não tem grilos no inverno?
...o Thomas me bateu!
...é nada!
...a gente pode ver desenho?
...compra sorvete?
...a Laura me chamou de cocô!
...mas se os grilos dormem, como eles sabem que chegou a primavera?
...mas você trouxe dinheiro pra comprar sorvete?
...por que você não trouxe dinheiro pra comprar sorvete?
...quero água!
...mas se o besouro se enterrou, o que acontece se ele cavar fundo até chegar na lava?
...quero água!
...o Thomas não quer devolver minha espada!
...quero água!
...a gente pode ver desenho?
...deixa eu terminar de falar Thomas!
...eu é que tava falando primeiro!
...tava nada!
...por que o sorvete de ameixa é rosa se a ameixa é azul e amarela?
...a Laura destruiu o robô que eu fiz com o Lego!
...mas o Thomas não quer me emprestar a peça azul!
...a peça azul é do meu robô! Eu vi primeiro!
...é nada!
...não é verdade que chuva é xixi de nuvem?
...claro que não, Laura!
...é sim! Não é, mamãe?
...seu cocô!
...a Laura me chamou de cocô de novo!
...chamei nada!
...se o caminhão de sorvete aparecer você compra sorvete?
...quero água!
...como o Gnocchi aprendeu a nadar?
...a gente pode ver desenho?
...por que só o papai sabe comprar sorvete?
...por que as meninas tiram os pelos das pernas?
...a gente pode ver desenho? 
...e quando a gente chegar em casa, a gente vai poder ver desenho tomando sorvete?

É muito amor pelo cérebro desses dois, mas quando minhas têmporas começam a zumbir é sinal de que mamãe precisa de meia horinha de silêncio. Assim como começo a ansiar por um ventinho frio e um agasalho, uma panela de ragù cozido por três horas e um vinho tinto, também começo a pensar naquelas horinhas em que os pimpolhos estão na escola e posso sair para correr, posso trabalhar sem interrupções, resolver com calma pendências de banco e governo sem precisar arrastar criança junto, que, claro, prossegue com toda a verborragia aí em cima em português enquanto tenho explicar para o funcionário do banco em inglês que meu cartão foi clonado, cancelado, refeito, mas quando refizeram, fizeram no nome do meu marido, e  cancelaram o dele, e quando ele foi refazer o dele, cancelaram o meu de novo, e eu preciso PELAMORDETODOSOSSANTOS de uma droga de um cartão funcionando para poder comprar o macarrão do jantar, P*RRA!

Quando chegam os fins de semana, me escondo um pouquinho. Levo o cão para um passeio longo sozinha. Vou à biblioteca sem pressa apanhar um livro novo. Ofereço-me para ir ao mercado sozinha pegar o que precisamos para que Allex prepare o jantar.

Podemos ir todos juntos, diz ele.

Neh, tá sussa, deixa que eu vou sozinha, respondo. ;)

Deixa a mamãe descansar, pede ele, puxando os dois para brincar, passear, comprar uma pizza pra jantar, tomar um sorvete.

Afinal, papai sabe comprar sorvete. ;)

Cansou. Na falta de um selfie nas mesmas condições, vai o cão mesmo.

Os dias seguem, e começo devagar a eliminar o piquenique. Os almoços são sempre leves, pois saímos logo em seguida para o parque para encontrar os amigos da escola que voltaram de suas viagens e vão sempre ao playground à tarde. 

Torrada com manteiga, queijo e pepinos e salada de tomate e melancia. Um MONTE de sorvete de sobremesa.

Uma omelete com salada verde, uma tartine de algum legume e queijo. Uma das coisas boas do verão são as espigas de milho. Imensas e dulcíssimas, grelhadas até chamuscarem, são almoço acompanhadas de salada. As refeições vão saindo sempre no improviso, pois nunca sei quanto tempo ficarei em casa ou fora, e quando estou de fato em casa às vezes adianto algumas coisas como massas de torta ou feijão, para usar em outro dia. Já duas vezes preparei essa torta de dente de leão do New York Times, mas sem os cogumelos. 

Uma constante em todas as refeições de Agosto tem sido, contudo, o sorvete. Mamãe não sabe comprar sorvete mas sabe FAZER sorvete. Há! :D

Dois dias depois que publiquei o post anterior, minha tia, que mora aqui na América do Norte, escreveu-me dizendo que lera o texto e queria me dar uma sorveteira. E é claro que aceitei o presente. Alguns dias depois, dias longos em que a criançada me perguntou todo santo dia se ela tinha chegado e se eu faria sorvete, a máquina foi entregue na minha casa.

No dia em que ela chegou, no entanto, eu estava fora de casa, resolvendo o pepino de um cartão de débito clonado. Porque sim, tem disso aqui no Canadá. Tem crime no mundo todo, e você nunca deve desligar completamente o paulistano dentro de você. (Tem uma reportagem ótima da Vice sobre clonagem de cartão, ao qual, ironicamente, eu assisti dois dias antes do meu cartão ser bloqueado pelo banco.) Achei que o entregador da Amazon, ao bater na porta e não encontrar ninguém, voltaria outro dia. Quando a mercadoria é entregue pelos correios, o carteiro deixa um aviso na sua porta para que você vá buscar a caixa na agência mais próxima. Mas eu estava do outro lado da cidade, e a caixa estava marcada como entregue pelo próprio funcionário da Amazon.

Passei o resto do dia encafifada, pensando como haviam entregado a sorveteira se não havia ninguém em casa. Talvez minha vizinha da frente tenha recebido, como já aconteceu. Tentei voltar o mais rápido possível para casa, e qual não foi minha surpresa ao encontrar a caixa da Cuisinart, assim, lacrada, foto do produto exposta, totalmente solta e solitária, sem nem um papelzinho pardo em volta, na frente da minha porta.

Prédios canadenses não têm porteiros, e em geral a segurança é bem precária, quando comparada com a justificada paranoia dos prédios paulistanos. Suspirei aliviada por aparentemente ter vizinhos honestos, principalmente depois de ouvir histórias de mercadorias roubadas no prédio. Sim, como disse, aqui também tem disso. Canadá não é essa bolha cor de rosa que a mídia pinta.

Fica a dica, para quem mora aqui e não sabe disso: você pode e deve mandar entregar suas compras nas agências de correio para que você busque quando for conveniente. É mais seguro.

De qualquer forma, a chegada da sorveteira foi uma alegria generalizada aqui em casa. Havia meses que as crianças me pediam para fazer sorvete.

Antes que perguntem, esse é o modelo básico da Cuisinart. Apesar do motor ser trambolhoso em relação àquela que eu tinha da Hamiltom Beach, o balde é maior, gela mais rápido e achei o motor mais potente. Achei ótima e recomendo. O sorvete batendo é o de ameixas (Blue Plums, aqui).
Comecei com um de chocolate. Não sei por que cargas d´água, inventei de fazer de novo aquele primeiro gelato de chocolate do blog, mas usando a receita original, que levava unswetened chocolate. O chocolate talhou na mistura e ficou muito forte. Thomas e eu comemos, mas não foi um sucesso imediato com a famíla toda. Em seguida, claro, veio o sorvete de morango, que é um clássico aqui em casa e sempre foi o mais pedido de todos. Esse sim foi sucesso retumbante e acabou em poucos dias. Nem deu tempo de tirar foto.


Frozen Yogurt de Pêssego e o que sobrou do Sorvete de Morango
Decidi que duramte esses dias de calor aproveitaria para fazer os sorvetes mais simples e refrescantes, de frutas, e que deixaria os pesados, baseados em custards, para quando o tempo começasse a esfriar. (Também porque eu não estava nem um pouco afim de ficar mexendo custard quente dia sim, dia não, nesse calor do inferno.) Peguei na biblioteca a versão nova do livro The Perfect Scoop (já declarei amor eterno à biblioteca de Toronto?) e as crianças me ajudaram a escolher algumas receitas.

Sorbet de Amora Preta e Frozen Yogurt de Pêssego (uma coisa que eu não tenho ainda é uma colher de sorvete. Blog da vida real - aqui o sorvete não é servido em bolas perfeitas. hahaha  Mas a textura dos sorvetes estava excelente, apesar da carinha de bloco de gelo que têm aqui.)
Quero aproveitar o fato de que as frutas da estação aqui não são exorbitantemente caras (apesar de também não serem baratas), como era um saquinho de cerejas ou uma caixa de pêssegos lá em São Paulo. Sempre tinha dó de usar as frutas em doces quando morava no Brasil, e tanto os pimpolhos quanto o marido pareciam gravitar sempre à volta de sorvete de baunilha, enquanto eu era a única que dava conta sozinha de um litro de sorbet de abacaxi. Isso mudou agora que as crianças cresceram, e eles andam empolgados com os sabores diferentes, o que me deu vontade de comprar outra vez o livro do David Lebovitz, que está ainda mais bonito na nova edição.

Dele, fizemos Frozen Yogurt de Pêssego, sorvete de Ameixas frescas, Sorbet de Amora Preta (que ficou parecendo sorvete de açaí, por algum motivo - delicioso! - basta bater no liquidificador 450g de amoras congeladas, 1 xíc. de água, 2/3 xic. de açúcar e 2 colh. (chá) de suco de limão, passar na peneira para tirar as sementes e colocar na sorveteira), sorbet de banana e mirtilos, e eu ainda tenho planos de preparar vários outros sorvetes de frutas sazonais, bem refrescantes.

Então, olhando o livro, as crianças encontraram a foto da contra-capa, com uma pilha de Ice Cream Sandwiches, polvilhados de granulados coloridos. Vieram os dois correndo, o livro em riste nas mãozinhas, pedir POR FAVOR MÃE FAZ ISSO HOJE!!!

Lá fui.

Preparei o sorvete, preparei os chocolate chip cookies, e foi tudo muito fácil. Achei apenas que os cookies espalharam mais do que deviam e ficaram finos. Talvez eu tenha usado pouca farinha, no momento de medir (sempre usei a equivalência de 1 xic de farinha = 125g, mas ele pede 140g. Não sei se é o bastante para fazer diferença, mas enfim,). O resultado é que ficaram grandes, e a camada de sorvete, consequentemente, ficou mais fina. Eu faria os biscoitos com metade do tamanho da próxima vez, pois no fim, acabamos cortando todos ao meio na hora de comer, pois inteiros, eles eram imensos. Aqui em casa gostamos que a sobremesa seja MENOR que o almoço. ;) Mas entendo como esses Ice Cream Sandwiches podem ser considerados uma porção normal norte-americana. Tudo aqui é sempre gigante.

O calor tornou um pouco difícil a montagem. O sorvete começou a derreter enquanto eu cobria as laterais de granulados, e tudo já estava desmilinguindo antes de chegar ao freezer. Acabei colocando todos os sanduíches numa assadeira no freezer até que endurecessem e eu pudesse transferi-los para um pote fechado.

O resultado foi excelente, e não tive um momento de paz ou silêncio até enfim colocar os biscoitos na mesa. Laura reclamou das nozes no biscoito, mas depois comeu e lambeu os dedos. Thomas só ficou triste por a receita render tão pouco: só dois Ice Cream Sandwiches para cada um.

No ritmo que vamos, acho que vai demorar até a novidade do sorvete passar. Há toda uma série de receitas com frutas de outono a serem feitas e mais um punhado de outras que ficarão maravilhosas com bolos e tortas de inverno.

A novidade do Verão em Toronto com certeza passou. Agora que até a brincadeira virou rotina, que o verde e o calor lá fora parecem eternos, resta a espera pelas mudanças por vir. Laura pergunta: Mamãe, falta muito para a neve voltar?

Logo as férias acabam. Falta pouco para as aulas recomeçarem. Já sei mais ou menos o que me espera com Laura no Senior Kindergarten, mas confesso estar empolgada e ansiosa por ver Thomas no Grade 2.

Hoje chove. Acho que o dia todo.

Thomas acordou cedo, seis e meia, olhou para fora enquanto o pai fazia o café, e perguntou: Por que está escuro lá fora?

.....................

Em tempo: OBRIGADA TIAAAAAAAAAA!!! 💓💓💓💓💓💓💓💓

ICE CREAM SANDWICHES
(Do livro The Perfect Scoop, de David Lebovitz)
Rendimento: 8 porções

BISCOITOS
Ingredientes:
  • 115g manteiga sem sal em temp. ambiente
  • 1/4xic. açúcar
  • 1/3xic. açúcar mascavo
  • 1 ovo grande
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 1 xic. (140g) farinha de trigo
  • 1/4 colh. (chá) baicarbonato de sódio
  • 1/4 colh. (chá) sal
  • 3/4 xic. chocolate chips
  • 1/2 xic. nozes picadas

Preparo:
  1. Bata a manteiga e os açucares até que fique cremoso. Junte o ovo e a baunilha e bata até incorporar. 
  2. Junte a farinha, bicarbonato e sal e misture apenas até que a farinha desapareça. Incorpore os chips e as nozes. 
  3. Forme um disco largo com a massa, embrulhe em filme plástico e leve à geladeira por 1 hora. 
  4. Pré-aqueça o forno a 180oC e posicione as grades no terço inferior e superior. Divida a massa em dezesseis partes. Forme bolas com elas e disponha metade delas em cada assadeira. pressione as bolas para formar discos mais finos e leve ao forno por 15 minutos, trocando as assadeiras de lugar no meio do cozimento. 
  5. Deixe que esfriem na assadeira por 1 minuto antes de retirar com uma espátula e deixar que esfriem completamente sobre uma grade. 

SORVETE DE BAUNILHA
Ingredientes:
  • 2 xic. creme de leite fresco
  • 1 xic. leite
  • 3/4 xic. açúcar
  • 1 pitada de sal
  • 3/4 colh (chá) extrato de baunilha

Preparo:
  1. Leve 1 xic. de creme e o açúcar e o sal em uma panela pequena ao fogo médio, mexendo sempre, até que o açúcar dissolva completamente.
  2. Remova do fogo, misture o restante do creme e do leite e o extrato de baunilha. 
  3. Leve à geladeira por algumas horas até ficar bem frio e então coloque na sorveteira. 

MONTAGEM
Simplesmente coloque uma ou duas bolas de sorvete entre dois biscoitos, pressionando ligeiramente. Talvez você não usei todo o sorvete de baunilha. Não tem problema, é a gosto. Se quiser, role as laterais do sanduíche de sorvete em granulados, castanhas picadas ou mini chocolate chips, antes de levar ao freezer. Mantenha-os embrulhados, depois de firmes, em potes fechados, para evitar formação de gelo na superfície do sorvete ou dos cookies.   

Cozinhe isso também!

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