Uma das coisas que eu mais ouço de quem está aprendendo a cozinhar é sobre o desânimo de se cozinhar apenas para si. Durante anos tentei convencer essas pessoas sobre as vantagens de fazê-lo, mas ao mesmo tempo pensava como era de fato bom cozinhar para os outros. Por muito tempo fantasiei com o dia em que tivesse filhos e pudesse preparar coisas gostosas para eles, e imaginei como seria bom ter companhia para o almoço.
Até que...
Tive filhos.
É gostoso preparar um bolo para eles, ou ouvi-los correndo para a cozinha gritando "Oba! Hora de comer!" Mas não vou mentir para ninguém. Não é um momento fofo e relaxante como em minhas fantasias. É uma boa hora e meia de muito...
"senta direito",
"não coma com as mãos",
"não limpe a boca na camiseta",
"pare de enrolar e coma logo que já esfriou tudo",
"não é pra tirar a salsinha",
"não fale com a boca cheia",
"você gosta sim de couve-flor",
"pare de bater o garfo na mesa",
"isso é uma batata, não um dinossauro",
"tira o pé da mesa." (Esse é especial pra Madame Bochechas, que cisma de tirar o sapato e começa a querer me mostrar a sola do pé, que ela machucou mês passado ao pisar descalça numa pinha.)
Quando você percebe, engoliu seu prato sem nem sentir o gosto, para poder cortar as vagens, enrolar o spaghetti, enxugar o copo d'água derramado por um cotovelo desastrado, mandar todo mundo usar a droga do guardanapo e mandar sua filha de castigo por ter se recusado a tirar pé sujo de cima da porcaria da mesa. E enquanto todo mundo come / derruba a sobremesa, você lava a louça, de costas para as crianças, suspirando fundo e pensando que enquanto não vir a bagunça acontecendo atrás de você, é como se ela não existisse.
Acontece. Nem tudo são flores com crianças de 2 e 4 anos. Principalmente quando a de 2 anos está justamente naquela fase enlouquecedora de dizer não pra tudo e o mais velho, que até então era uma coisa fofa e comportada, resolve achar que também tem certas liberdades, e começa a me dar uma prévia do que será ter um adolescente respondão em casa.
Pronto. Para quem achava que o fato de seus filhos comerem escarola fosse garantia de paz, sossego, amor e felicidade o dia todo, acabei de estourar a bolha da doce ilusão. Há almoços sossegados em que eles querem experimentar tudo, em que damos risada e acho que tenho os filhos mais fofos do mundo, e há jantares arranca-rabo, quando as crianças estão cansadas (e a mãe também) e ninguém colabora. Como em toda a família. Mas como você nunca, NUNCA, sabe quando vai acontecer um ou outro, a tensão na base da nuca toda vez que você termina de cozinhar a refeição e chama a pimpolhada pra comer é inegável. Há sempre aquela esperança tímida de ter um almoço-propaganda-de-margarina, mas algo no fundo do seu estômago sempre traz você de volta à realidade com a quase certeza de que sim, você vai passar quase toda a próxima hora tentando ensinar bons modos à mesa para crianças que parecem sempre esperar que um dia eu sirva bolo de chocolate de jantar enquanto eles pulam nas cadeiras e fingem que os pratos são naves espaciais.
Então, há aquele dia em que eu tenho tanto trabalho para entregar, que deixo as crianças na minha mãe, para poder sentar na prancheta por doze horas ininterruptas e não perder meu prazo. E nesses momentos, algo estranho acontece: redescubro o prazer de cozinhar apenas para mim. Mesmo que seja às pressas, para comer ao lado do teclado do computador.
Poder escolher o que você quer comer sem a tensão da expectativa é libertador. Depois de quatro anos apenas cozinhando para o apetite dos outros, de vez em quando é bom poder olhar para as beterrabas na geladeira e decidir que VOCÊ QUER jantar salada de beterrabas com agrião e vinaigrette de laranja, sem precisar pensar se as crianças vão morrer de fome caso decidam que não estão afim de beterraba e que o agrião está muito fibroso, muito picante ou simplesmente muito verde aquele dia.
Quando terminei meu trabalho, naquela noite, eram quase oito. Olhei para a geladeira e decidi que queria uma quesadilla de espinafre. Pensei em comprar pão pita para acelerar as coisas, mas a preguiça de ir ao mercado foi maior do que a de fazer minhas próprias tortillas.
Misturei a farinha à àgua, óleo e sal, sovei, cobri e deixei que descansasse por meia hora. Cozinhar sem horário era bom também. Cozinhar quando EU tenho fome.
Enquanto a massa descansava, refoguei o espinafre em alho e cebola. Desliguei o fogo e fui passear o cachorro. A noite estava silenciosa, como fora todo o meu dia. Sempre gostei de silêncio. Saí de São Paulo para ter silêncio. Hoje aprecio o silêncio de quando as crianças estão na escola. À tarde, silêncio quer dizer duas coisas: ou estão cochilando, ou estão aprontando alguma coisa. Respiro fundo, o ruído aveludado do ar passando por minhas narinas é alto e reconfortante. Está escuro lá fora, e só há meu cachorro e eu na rua. Solto-o da coleira um pouco para que corra no terreno baldio ao lado de casa, pisando na grama fofa e espantando os quero-queros, que saem em assustada revoada, quebrando o silêncio com seus cacá-cacá.
Volto, aqueço a grelha até que cheire a ferro queimado, e começo a abrir uma por uma as tortillas, tão finas que podia ver meus dedos através delas, e as deito na grelha esturricante, vendo-as inflarem em bolhas e criarem círculos carbonizados aqui e e ali. Guardo-as num guardanapo de linho.
Monto minha quesadilla com um pouco de queijo e espinafre e tosto na frigideira quente, derretendo o queijo. Quando coloco a quesadilla na tábua, sorrio ao cortá-la em cunhas com minha grande faca de chef, satisfeita com o som da massa crocante se partindo, com a sensação dela afundando sob o queijo derretido. Fatio um pouco de abacate para acompanhar, uma colherada de iogurte bem gordo e firme, e muito tabasco.
O jantar era exatamente o que eu queria. Sento-me à mesa e aprecio cada mordida, montando meu garfo com calma com um pedaço de cada elemento do prato. Decido que preciso fazer quesadillas para as crianças, mas me pergunto se elas vão topar o espinafre. Meneio a cabeça, dispersando os pensamentos, e volto a me ater ao prato de comida fumegante à minha frente.
O prazer de se cozinhar para si. Há de se aprender a tê-lo.
Tentei encontrar receitas de tortilla de farinha de trigo aqui no blog, mas não encontrei. Se estou repetindo receita, peço desculpas. Mas vale a repetição, de qualquer forma. Tortillas assim são mais fáceis de fazer do que se comprar, e se conservam maravilhosamente por alguns dias embaladas em guardanapos ou panos de prato. Elas ficarão rígidas, mas voltarão a amaciar e ficar maleáveis tão logo toquem uma frigideira quente.
Como eu disse, essas quesadillas valem repetição, e enquanto havia tortillas na cozinha, eu continuei preparando e comendo. Aaaah, repetição. Como mandar seus filhos tirarem os cotovelos da mesa. Alguém uma vez me disse que eu iria repetir isso até os dezoito anos deles ou até o comportamento entrar no automático. O que vier primeiro.
QUESADILLAS DE ESPINAFRE
(Tortillas do livro Vegetarian Cooking for Everyone, de Deborah Madison)
Rendimenro: 4 quesadillas
Ingredientes:
(Tortillas)
- 2 xic. de farinha de trigo branca ou integral (se integral, a mais fininha que encontrar) - e mais para polvilhar a bancada
- 1 1/2 colh (chá) fermento químico em pó
- 1 colh. (chá) sal
- 2 colh. (chá) óleo vegetal (ou azeite)
- 3/4 xic. de água
(Recheio)
- azeite
- folhas de um maço de espinafre, picadas grosseiramente
- 2 dentes de alho, fatiados
- 1 cebola pequena, picada
- sal e pimenta-do-reino
queijo amarelo que derreta fácil (Prato, Gruyère, Cheddar, o que preferir)
(acompanhamentos)
- abacate maduro em fatias
- iogurte ou sour cream
- tabasco
Preparo:
- Misture a farinha, o sal e o fermento numa tigela e junte o óleo, esfregando com os dedos até perceber que a farinha mudou de textura e criou gruminhos como uma farofa. Será uma farofa mais sutil do que quando se faz massa de torta.
- Junte a água, misture bem com um garfo até formar uma massa, e então sove um pouco dentro da tigela, e depois na bancada, sem acrescentar mais farinha, vigorosamente, até a massa parecer uniforme e macia. Não coloque mais farinha na massa do que o necessário. Depois de sovar por um minuto ou dois, a massa ganhará liga e grudará menos. E é essa umidade que permitirá que você abra a tortilla bem fina. Ela pode continuar grudando um pouco, mas você precisa ser capaz de formar uma bola uniforme. Só acrescente mais farinha se o dia estiver MUITO úmido e você não conseguir manipular a massa de modo nenhum.
- Forme uma bola, cubra com a tigela e deixe descansando por meia hora para relaxar o glúten, ou a massa resistirá quando você tentar abri-la.
- Divida a massa em 8 bolinhas iguais. Na bancada enfarinhada, abra cada uma com o rolo, puxando do centro para as extremidades, ajudando com a mão para manter o outro lado da tortilla parada na bancada. Você quer 8 discos (não tem problema se ficarem irregulares em formato) de cerca de 20cm, tão finos que pareçam que vão rasgar.
- Aqueça uma grelha de ferro ou uma frigideira SEM ÓLEO até quase começar a soltar fumaça, e coloque cuidadosamente uma tortilla sobre ela, estirada. Cozinhe por 40-60 segundos de cada lado, ou até que comece a criar pontos pretos do lado em contato com a panela. Retire e mantenha embrulhada em um guardanapo ou pano de prato.
- Em uma panela média, aqueça o azeite em fogo baixo e junte a cebola, o alho picado e uma pitada de sal. Cozinhe devagar, até que a cebola amacie e comece a dourar, e então junte o espinafre e mais uma pitada de sal, misturando bem e trazendo as folhas debaixo para cima, para que todas cozinhem por igual. Quando as folhas estiverem bem murchas mas ainda não muito secas, desligue o fogo e acerte o tempero.
- Numa frigideira seca e bem quente, coloque uma das tortillas. Espalhe um pouco de queijo por cima (se o queijo for fatiado fino, pense cerca de 6 fatias por tortilla; se for ralado grosso, pense um punhado generoso).
- Espalhe 1/4 do espinafre sobre o queijo, cubra com outra tortilla e pressione para manter tudo no lugar. Conforme o queijo for derretendo, vá pressionando, para garantir que as tortillas ficarão grudadas.
- Depois de cerca de 1 minuto, vire a quesadilla com cuidado e cozinhe por mais 30-40 segundos, até que esteja tudo quente e derretido, mas sem queimar as tortillas. Remova para uma tábua e corte em cunhas com uma faca afiada.
- Sirva quente, acompanhado de abacate, iogurte ou sour cream e muito tabasco.