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sexta-feira, 1 de outubro de 2021

A goteira, o chalé a expectativa (e um pot-au-feu vegetariano)


Tinha uma goteira no meio do meu telhado. No meio do meu telhado tinha uma goteira. Nunca mais vou esquecer de quanto vi aquele lustre cheio d’água, dois meses depois de assinar 25 anos de dívida pra comprar minha casa própria. Com goteira.

Isso é uma foto da luminária da minha cozinha cheia de água. Uhúuuu!

Foi depois de uma semana complicada, de chuva intensa e aquela luz cinza que tira a graça da vida, que descobrimos a infiltração. Um dia que já estava meio ruim, e que deu um jeito de ficar pior. Um dia antes de sairmos para uma viagem que ninguém queria fazer. Um chalé reservado dois anos antes, antes da pandemia e antes de cancelarem a corrida para o qual o chalé havia sido reservado. Uma reserva de improviso, “é o que tem, então vai isso mesmo”, olhando de nariz torcido para aquela foto do chalezim minúsculo, feiozinho e escuro, que parecia um pequenino coletivo de mofo e bed bugs. Uma viagem que, no afã da mudança de casa e cidade, esquecemos de cancelar. Ninguém queria ir, ninguém tinha saco ou vontade, mas ninguém queria perder as muitas doletas pagas por aquela cama pouco convidativa; ainda mais porque a previsão no parque era de chuva. Que é que se faz num parque com chuva? Fica-se trancado no chalezim porqueira, jogando jogo de tabuleiro de cara amarrada. Ieeeeei! Super afim. Mas não dá pra rasgar dinheiro. Não com mortgage pra pagar e telhado pra consertar. Mas como a semana ia de vento em popa, o aplicativo de tempo previa chuva para Ottawa também, e nem que a gente quisesse poderia ir viajar: tem que ficar em casa olhando o pinga-pinga pra trocar o balde e rezar pra deuses antigos pro teto da cozinha não encher d’água e despencar.  

“Amanhã a gente vê o que faz”, disse Allex, tentando fingir que havia alternativa.

A noite foi longa.

A manhã, no entanto, era azul. Surpreendentemente azul, secando rápido a grama encharcada e as poças nas ruas. O tempo virou durante a madrugada e, de repente, não havia mais a menor chance de chuva no fim de semana. Deuses antigos são milagreiros. O empreiteiro me telefonou e disse que viria na segunda-feira. A viagem estava de pé, e não perderíamos o depósito, afinal.

Mas o coração continuava pesado. O desgosto enevoava a vista, e os sinais se embaçavam. Fizemos as malas sem sorrisos, quando as crianças voltaram da escola, e enfiei qualquer coisa na térmica, sem expectativa de ter fome por dois dias, ou mesmos em acreditar que ficaríamos fora tanto tempo.

“Tô estranho”, ele disse. “Não sei dizer o quê. Você tá também com uma sensação esquisita dessa viagem? Tipo que não é pra ir? Sei lá. Qual é seu feeling?”

Respirei fundo. Havia sim uma estranheza, mas eu já não sabia dizer se eu encontrara conforto na miséria ou se pressentia perigo. Fechei os olhos. Quando me perguntei se deveríamos ir, a imagem na parte detrás de minhas pálpebras era um céu estrelado. Uma fogueira à beira do lago. Risadas. Abraços.

“Vamos. Se começar a parecer furada, a gente volta.”

A dez minutos de casa, cada um de nós lembrou que havia esquecido alguma coisa. “É sinal pra gente ficar em casa”, ele disse. “Não é não”, insisti. “A gente vai voltar e pegar tudo, e ficar feliz que a gente lembrou ainda perto de casa. Olha que sorte!”

Conforme nos afastávamos de Ottawa, as nuvens dissipavam e abriam espaço para um céu azul cremoso, esquentando os primeiros dias de outono, fazendo cintilarem as árvores ao longo da estrada que ousaram trocar de cor tão cedo, queimando vermelho, laranja e amarelo em meio à vegetação verde de saudade de verão.


Paramos em Renfrew, uma dessas cicadezinhas minúsculas do interior de Ontario, em que o centro comercial inteiro é só uma rua de três quarteirões, feito filme do velho oeste. A pizza que pedimos num botequim local demoraria 40 minutos para ficar pronta, e por isso nossos olhares se atraíram pela propaganda no café em frente, que dizia “Local Beers Only”.


O café, Ottawa Valley, era charmosinho daquele jeito hipster instagramável, e vendia diversos produtos de artesãos locais. Pedi uma Strawberry Chocolate Stout, Allex, uma BeaverTail Lager, e as crianças ganharam, cada uma, um cupcake. Enquanto elas conversavam com a barista do lado de dentro, Allex e eu curtíamos a luz rosa e amarela do por-do-sol, que desacelera o tempo e suspira sorrisos.

“Começou bem”, eu disse.

“Pensei a mesma coisa.”


Chegamos ao chalé já com noite escura e uma pizza ainda quente no porta-malas. A proprietária abriu uma casinha pequena imersa na noite, surpreendentemente limpa e aconchegante. Por essa eu não esperava.  O chalé mequetrefe da foto era bom na vida real. Normalmente é oposto que ocorre. Meu corpo se encheu de esperança.

Descarregamos logo as malas, e descemos o terreno até o deck onde podíamos acender o fogo, usando lanternas de cabeça para enxergar na noite. “Ainda bem que a gente voltou pra pegar o acendedor e a lenha, porque essa aqui tá molhada de chuva”, Allex dsse. “Tá vendo? Sorte”, lembrei.

O fogo acendeu rápido e iluminou nossos rostos. As crianças usaram seus canivetes para fazer pontas em galhos, onde espetariam marshmallows, dourados na brasa sob a fogueira. Abri uma cerveja trazida de casa, e sentei-me ao lado deles, ouvindo a ondulação do lago escuro contra as pedras, e os grilos tímidos que cantavam ao ritmo do crepitar do fogo. Ousei olhar para cima, relaxando os ombros, e sorri largo, gostoso, ao ver aquele céu tão estrelado, que era como se uma criança tivesse derrubado purpurina no chão. 


“A Ursa maior está lá. Aquele é o rabo dela”, apontei.

“Mas mamãe, urso não tem rabo comprido!”

“Ah, filho, não fui eu que dei nome pra isso.”

“Cadê a lua?”

“Escondida atrás das nuvens ali no horizonte.”

“Queria que a lua saísse.”

“Eu também.”

E os risos das crianças sopraram as nuvens devagar, e, meu peito foi ficando leve. E assistimos, de coração quente, o voo lento da lua detrás do escuro, até surgir inteira, redonda e brilhante. Ela refletiu nas águas do lago, que se tornou visível, e desenhou de prateado morros e árvores, iluminando alegria em nossos rostos.

O que eu havia visualizado estava ali.

Fomos acordados pelas crianças, ávidas para ir lá fora. Seus rostos, grudados à janela que embaçava com sua respiração, eram rosa e amarelo e lilás, como a bruma que cobria o lago no nascer do sol. Quando saí da casa, perdi o fôlego. Era como uma pintura de Turner, aquele sol disforme manchando as nuvens do céu e os vapores que se erguiam do imenso lago, em espectros de cor como o coração de um cristal. 

 Não havia o menor sinal de chuva.

Saímos de carro em busca de café, e foi aos risos nervosos que estacionamos numa loja de conveniência no meio do nada com lugar nenhum. Atrás de pilhas de revistas velhas, produtos de limpeza, chips e chicletes, havia um balcão que se dividia em duas diferentes redes de fast-food, com uma só pessoa atendendo os dois caixas. Ambas as redes cópias de segunda classe de redes de fastfood já de segunda classe. Entre locais que faziam seus pedidos matinais, levamos para casa copos descartáveis com café americano com gosto de cinzeiro, e sanduíches para o almoço que pareciam ter sido encontrados no bolso de trás da calça de alguém.

Mas o céu era azul e a refeição-depressão gerou assunto por todo o tempo que levamos para chegar ao parque e alugar uma canoa. 


A canoa era necessária para atravessarmos o lago Mazinaw em direção a uma ilha imensa, com formações rochosas altas e dramáticas, onde se vê pinturas rupestres. A canoa custava 40 dólares pelo dia todo. Fiquei me perguntando como organizavam a chegada e partida das canoas alugadas ali na ilha. “Custa 40 dólares pra pegar a canoa daqui até a ilha. Mas da ilha até o parque, a canoa custa 400”, brinquei. “É por isso que, lá na ilha, hoje, você encontra uma comunidade de turistas abandonados, que nunca voltaram à terra firme, porque não tinham dinheiro para a canoa de volta.”

Enquanto esperávamos nossa vez, Laura e Thomas apanharam galhos e folhas e pedras, e construíram fortes em volta de formigueiros, para protegê-las de ataques de predadores. Laura, no entanto, tocou qualquer coisa com xixi de gambá, e passou o resto do dia com as mãos fedendo a fossa séptica, não importava quanto álcool gel esfregássemos em seus dedos. Ai, Laura.

Todos esqueceram do fedor assim que entraram no barco. Allex à frente, crianças sentadas no meio, no fundo do barco, e eu na parte de trás. Era a segunda vez que remávamos juntos, e eu tinha certeza de que sabia o que fazer.

Só que não.

Sair da baía de águas calmas foi fácil. Mas assim que entramos no lago, o vento forte começou a mudar a direção do barco, que chacoalhava por cima das ondas com jeito de corredeira. Eu que só tinha remado em descida de rio tranquilo, passei  uma hora e meia ouvindo os comandos desesperados de Allex, tentando me fazer remar pro lado certo. Eu ria. Muito. Mesmo quando uma das ondas bateu com força, entrou no barco, e molhou as calças das crianças e o fundo da minha mochila.

Remamos de forma ridícula pelo estreito raso e tormentoso até uma parte do lago um pouco mais calma, onde pudemos nos aproximar das rochas e ver as pinturas. “Mamãe! Alguém perdeu uma canoa!”, Laura apontou para uma canoazinha amarrada a uma pedra. “Não, filha, olha lá. Amarraram o barco, deixaram a mochila ali um pouco mais pra cima na pedra, e olha lá, bem pra cima, segue aquela corda: olha a moça doida escalando o paredão! Legal, né?”

Voltamos contra a corrente, rindo sem parar de nossa (minha inaptidão), até chegar ao píer da ilha: um deck estreito de metal, desses que balançam junto com a água, com tantas canoas amarradas, que parecia um cacho de bananas.

“Não tem ninguém do parque pra ajudar a gente a sair do barco??”, perguntei.

“Não, ué.”

“Allex! Como é que faz? Como é que a gente ESTACIONA essa geringonça?”

“A gente vai descobrir, ué.”

Meu cérebro estava em branco. Taí uma situação pela qual eu nunca tinha passado antes. A água bravia, o barco balançando e querendo ser levado embora, minha mochila com celular e máquina fotográfica (sem contar os sanduíches mequetrefes), nenhum espaço no píer, alto, na altura da minha testa, também balançando, e nenhum ser humano mais experiente pra dizer o que fazer.

“Pára de panicar, Ana. Rema até encostar aqui na lateral”.

“Mas tá escrito que é proibido docar aqui.”

“É proibido docar. Mas vocês vão sair do barco por aqui.” Eu imaginei a gente saindo do barco e a correnteza levando o barco embora com o Allex dentro, e eu e as crianças integrando a comunidade de turistas sem dinheiro nem barco que vivem no topo da ilha.

“Vai, tô segurando o deck. Laura, sai”. Laura se dependurou no deck, ficou em pé no barco, e saiu. “Thomas, sai.” Thomas saiu. Eu vi meus filhos ali, e imaginei o barco indo embora e meus filhos sendo criados pela comunidade abandonada de turistas, ouvindo histórias de pais malvados que largam criancinhas na ilha e sobre a origem do rabo da Ursa Maior. “Vai, Ana, sai.” Taqueospariu, essa porra vai virar. Dei minha mochila pra Laura, e lá vou eu ficar de pé no barco e sair. Balança, mas não cai. Balança, mas não cai. “Boa. Agora segura a cordinha aqui e puxa o barco até aquela ponta ali, pra eu descer e amarrar.”

Santo Allex e sua habilidade de gerenciar equipes.

Puxo a corda, seguro o barco, ele sai, com muito mais elegância do que eu. Enquanto ele tenta uns três nós diferentes para amarrar nossa única garantia de saída da ilha com aquela cordinha de nylon desfiando, eu peço desculpas por estar no caminho de três canadenses de trinta e poucos anos, todos igualmente barbados e vestidos de camisas de flanela vermelha. Rio por dentro, e imagino que estou sendo recebida pelos nativos da ilha. Eles se entreolham, olham para a miríade de nós que Allex está fazendo, e discutem entre eles como colocar o barco deles na água.

“Pelamordadeusa, barco, não vai embora!”, eu digo, e saímos do caminho, subindo a trilha até o próximo mirante, para comermos nossos sanduíches-depressão. Só ali vejo a extensão da aguaceira do barco. As crianças estão tremendo de frio, depois de uma hora e meia sentados num barco de metal, de calças molhadas. Meus filhos são muito jóia. Não conheço muita gente que manteria o bom humor nessa situação. 


Subimos a trilha que um dia Allex quer fazer correndo (em teoria, ano que vem, se não for cancelada outra vez), até chegar em um mirante de onde víamos todo o parque, e toda a extensão de água que havíamos remado. Quando as crianças deram o primeiro sinal de cansaço – meu alarme apita quando Laura faz duas reclamações completamente sem cabimento uma em seguida da outra – sugeri que voltássemos. Afinal, ainda tínhamos que remar de volta. “E se o barco tiver soltado, mamãe?”

“Ai, filha, a gente vai morar aqui na ilha.”

“Mas a gente não tem comida!”, Thomas disse.

“Eu ainda tenho uma barrinha de cereal. A gente pode dividir. Haha.”

“Ai, mamãe.”

Não vou mentir que existia sim a possibilidade do barco ter saído pra dar uma volta sem a gente. Mas ele estava ali, bonitinho... só que em um lugar diferente. Estava na cara que aquele trio de hipsters canadenses achou que a gente 1. Estava  no meio do caminho do barco deles e 2. Tinha feito merda, e resolveu reamarrar nosso barco de um jeito mais apropriado.

Allex desamarrou o barco, e eu puxei a pontinha dele para perto do deck, no movimento contrário ao que havíamos feito para subir na ilha. Apanhei os coletes salva-vidas, vestimos, e eu fui a primeira a subir no barco, balança mas não cai, balança mas não cai, por favor, que eu não quero perder meu celular nessa aguaceira não. Vieram as crianças, uma a uma, e então Allex. E remamos para longe do píer, e por um minuto pelo menos, pareceu que a gente sabia o que estava fazendo. Vai, Ana, vê se rema pro lado certo.

Clarquenão.

“Cáspita Ana! Não é tão difícil!”, Allex ria.

“É a segunda vez na minha vida que eu tô fazendo isso, e acho que eu tô indo muito bem, obrigada!”

Um dois três turistas, quatro no pequeno barco. Iam navegando pelo lago chacoalhando, quando o vento forte se aproximou. A Ana remou errado quando veio a onda, e o barco quase, quase virou.

Só que não.


Sãos e salvos em terra firme, a gente mal acreditava quão divertido estava sendo aquele dia. Voltamos ao chalé com o dia ainda lindo e sol, apesar da temperatura de inverno brasileiro, e Laura e eu resolvemos nadar. Ela logo desanimou com a água gelada, e trocou minha companhia de sereia congelada pela do pai num caiaque. Que tinha isso que descobrimos, que o aluguel do chalé dava direito a usar canoas, caiaques e outros apetrechos deixados ali à disposição. Os dois foram longe, quase alcançando novamente a ilha que víamos do chalé, e voltaram para trocar Laura por Thomas, os dois felizes de poderem remar dessa vez.

O dia terminou como o anterior, com fogueira e marshmallows, e o chuvisco leve serviu para mandar as crianças para cama, mas não os adultos.  

Como cortar lenha sem cortar seu pé. Isso a escola não ensina.


A intenção era ir embora depois do café, mas o dia nasceu claro e convidativo outra vez, e fomos enrolando o mais possível. As crianças cortaram lenha com o machado, habilidade aprendida no fim da tarde anterior, e então quiseram navegar pelo lago de pedalinho. Eu bem achei que era hora de andar de caiaque pela primeira vez, e deslizei, remando, até me sentir perdida na água preta e funda lá no meio. De novo, quando as crianças cansaram de pedalar e começaram a se cutucar em seu barquinho, lancei mão de altos truques pedagógicos:

“Quem chegar primeiro no píer ganha a última barrinha de cereal!”

E as crianças foram campeãs da regata de alta velocidade, contra pai e mãe que se esforçaram para pegar a corrente e errada e não os alcançar a tempo. Ainda deu tempo de nadar de novo, e de Allex e Thomas tentarem stand-up paddle.

Voltamos tranquilamente, parando em uma cervejaria para almoçar e uma outra cidadezinha minúscula para tomar sorvete antes de chegarmos exaustos e moídos em casa, encontrando um balde vazio onde nenhuma goteira pingara.

A chuva veio assim que fechamos a porta, como se tivéssemos na sexta-feira atravessado, ida e volta, uma fenda espaço-temporal para um universo paralelo. Um universo que nos deu descanso e alegria inesperados, e mais “good old canadian fun” do que jamais imaginamos. Um dia e meio que pareceu uma semana, tanta coisa a gente fez, tanta risada que deu.

E a gente quase não foi.

Talvez a lição a ser aprendida seja sobre expectativas, ou a ausência delas. Talvez seja de não se deixar afundar tanto na sua miséria a ponto de não enxergar mais uma saída. Talvez seja sobre confiar na intuição, ou sobre nunca duvidar que o tempo pode virar de repente. Talvez seja sobre nunca esquecer o acendedor e a lenha seca, vai saber. Ou talvez seja que está todo mundo no mesmo barco, e que enquanto você souber rir da sua bunda molhada e falta de direção, sempre vai ter três hipsters canadenses pra refazer seu nó e não deixar seu barco sair vagando por aí. Vai saber. 

 

....

 Gente linda do meu coração. Só parando para avisar que muito em breve vou lançar uma campanha no Apoie-se, onde você vai poder colaborar não só para que esse espaço do blog continue existindo, como também vai poder receber no seu email outras crônicas inéditas e ilustrações, além de outras novidades. Fique de olho. Enquanto isso, lembre-se de que meu livro Brutta Figura continua à venda nas principais livrarias. Os links para comprá-lo estão lá em cima no blog. Minha loja Etsy está novamente com caricaturas e quadrinhos de maternidade para encomenda. 

Agora falando em expectativas. Eu tinha tão pouca expectativa com esse ensopado de legumes, que nem foto eu tirei. Mas ficou tão maravilhoso, é tão simples, e (em tempos de crise no Brasil) tão barato de fazer, que vou deixar aqui a receita mesmo sem ter fotografado nada. Fica a foto do livro, que eu peguei na biblioteca, só pra você ter uma ideia. O meu ficou bem parecido. Só troquei os aspargos por ervilhas congeladas, já que aqui no Canadá é outono e os aspargos agora estão fora de época. Gente, que ensopado delícia. Apesar do nome da receita original dizer que é um ensopado para clima quente, eu digo que é pra qualquer clima. 

Não se assuste com a quantidade de ingredientes e passos. É realmente simples.

 

Pena que eu não tirei foto do prato que eu fiz. Fora os aspargos, ficou bem com essa carinha mesmo.

POT-AU-FEU DE VEGETAIS para um dia de calor 

(Do livro Around My French Table, de Dorie Greenspan)

Ingredientes:

  • 2 colh (sopa) azeite
  • 2 dentes de alho, fatiados fino
  • 1 cebola, em meias luas finas
  • 1 folha de louro (isso é acréscimo meu, porque usei água ao invés de caldo)
  • 1 alho-poró, sem as partes escuras, cortado em quartos no sentido do comprimento, lavado e cortado em pedaços de 2-3cm
  • Sal e pimenta-do-reino (preta ou branca)
  • 6 batatas pequenas, do tamanho de ovos, em fatias de 1cm
  • 4 cenouras finas, descascadas e cortadas em diagonais de 1cm
  • 3 xic de caldo de legumes, frango ou água (usei água)
  • 1 tira grande de casca de limão, sem a parte branca (use uma faca afiada ou um descascador de legumes)
  • 8 aspargos, sem a parte lenhosa (ou 1 xic de ervilha congelada, que foi o que eu usei, ou vagens inteiras, ou abobrinhas em pedaços, o que você tiver)
  • 4 cogumelos shiitake frescos, grandes, sem o cabo e fatiados
  • 200g espinafre, sem os cabos, e lavado (uns 100g de folhas)
  • 4 ovos

(para o coulis)

  • 2 xic de manjericão, salsinha ou coentro, ou uma mistura dos três, picados grosseiramente
  • 1/2 xic azeite 


Preparo:

  1. Faça o coulis: você pode colocar as ervas e  o azeite no liquidificador, processador, ou mixer, e bater até obter um molho com cara de pesto ralo. OU pode fazer num pilão. Eu bati no liquidificador. Tempere com uma pitada de sal. Transfira para um potinho, tampe e deixe na geladeira até a hora de servir.
  2. Numa panela larga e não muito alta, ou uma frigideira de 30cm de paredes não muito baixas, tipo um wok, aqueça a primeira quantidade do azeite em fogo médio.
  3. Junte o alho, e cozinhe por 1 minuto, até perfumar, sem dourar. Junte a cebola e o alho-poró e o louro, mexendo e temperando com sal e pimenta. Cozinhe por uns 5 minutos, até ficarem bem macios e a cebola começar a pegar cor.
  4. Junte as batatas e as cenouras, misture, tempere com sal e pimenta, e junte a água ou caldo e a tira de casca de limão.
  5. Aumente o fogo pra levar à fervura, e então abaixe novamente, para manter uma fervura branda por uns 10 minutos, ou até que os legumes estejam macios mas ainda al dente, sem se desmancharem. (Quando o prato estiver pronto, você quer que os vegetais tenham textura, e não que vire uma sopa.)
  6. Você pode parar o cozimento agora e retomar algumas horas depois, se precisar.
  7. Enquanto os vegetais estão cozinhando, coloque uma panela de água para ferver. Você pode preparar seus ovos poché ou cozidos, com a gema mais para mole. Fica a seu critério. Lá no meu Instagram tem um destaque com video do ovo poché. Eu também tenho um post aqui no blog ensinando. A única coisa que faço de diferente hoje em dia é fazer um furinho na bunda do ovo com a ponta da faca ou agulha, e mergulhar ele inteiro, com casca, por uns 20 segundos na água que está borbulhando (fervura branda, não louca). Tiro, e aí sim quebro o ovo em cima da água, para que ele cozinhe por 3 minutos mais. Essa "pré-cozida" ajuda a clara a não espalhar na água, e você não precisa fazer o redemoinho, o que é ótimo quando você precisa fazer 4 ovos poché de uma vez.
  8. Reserve os ovos cozidos ou poché. (Você pode colocar os ovos poché em água fria e deixá-los lá até a hora de servir. Na hora de servir, mergulhe-os em água quente por alguns segundos, só pra reaquecer. Eu meio que fui doida e fiz os ovos na hora de servir o prato, tudo ao mesmo tempo. Funciona.)
  9. Na panela com os legumes, junte os aspargos, ervilhas ou qualquer outro legume, e cozinhe por mais 4 minutos. Junte o espinafre, revirando com a colher até ele murche. Acerte o tempero.
  10. Sirva os legumes em pratos fundos, com caldo. Colque um ovo no centro de cada prato, sobre os legumes, e distribua colheradas do coulis de ervas. Um pãozinho pra raspar o caldo no final vai muito bem.

 

 

 

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Uma cozinha que não é só minha, uma costela que não tem receita, e uma sopa de lentilha que não tem foto

 

Estou sentada em minha cadeira Muskoka de imitação (que eu queria muito que fosse de madeira, mas é de plástico), bebericando uma cerveja, e sentindo a última brisa morna do ano tentando virar as páginas do meu livro. "O cheiro do carvão em brasa parece incenso", diz minha vizinha, sempre simpática, ao descer as escadas de sua varanda para catar o gato velho e gordo de volta. Os galhos dos pinheiros se movem devagar. Allex desce os degraus de madeira, rangendo cada uma das tábuas que balançam para lá e para cá com seu movimento, e traz nas mãos um caixote plástico com pratos, facas, tábua de madeira, um pacote de linguiças frescas embaladas em papel de açougueiro, e um outro pacote, maior e mais delicado, contendo seu mais novo projeto de fim de semana.

Ele espalha tudo sobre a mesa com um sorriso concentrado, e vai cuidar do carvão aceso, que precisa ser reordenado na churrasqueira. Tento ler mais umas linhas, enquanto ele abre o pacote especial, revelando uma fileira de costelas de porco cruas, besuntadas em mostarda de Dijon e especiarias. 

"Tá se divertindo?", pergunto. 

Ele responde afirmativamente, e começa a me explicar seus planos para aquela peça. Ele apanha pedaços de madeira de molho em água e cobre o carvão quente, produzindo uma fumaça perfumada. Vou defumar a carne por uma hora, ele diz, e depois besuntar em Guinness e Maple Syrup e embrulhar em papel alumínio. 

"Parece bom. Era o que pedia a receita?"

"Uma delas."

"Eita. Você misturou mais de uma receita?'

"Confia em mim."

Eu resisto à tentação de opinar. Encho a boca de cerveja para engolir as palavras, e abro de novo meu livro, procurando um parágrafo perdido. Entre uma vírgula e outra, ergo a vista para observá-lo, em silêncio. 

Não é novo, esse interesse pela cozinha. O que é novo é minha não-interferência. Ele me pergunta de temos sementes de coentro, e que cara elas têm. Todos os potinhos da despensa têm sementes bege sem identificação. Fora isso, não me atrevo. Já aprendi que se eu dou sossego, ele cozinha mais. E se ele cozinha mais, eu tenho mais sossego. O ciclo Tostines da paz matrimonial. 

 

Antes da costela, foi o Chili con Carne. Minha única contribuição foi sugerir uma receita da Deb Perlman, sempre confiável. Ele passou o dia sendo babá da panela, e eu passei o dia tranquila, fazendo já nem me lembro o quê de tão importante. Para não dizer que não fiz nada, me propus a preparar os cheddar biscuits, dos quais ele não fazia questão no começo, mas que acabaram sendo um maravilhoso acompanhamento para um Chili delicioso.  

Antes ainda, veio o ragù bolognese, da Marcella Hazan, que ele já preparava em quantidades cavalares lá em Toronto, e tínhamos sempre molho congelado para comer com macarrão ou polenta durante o mês. Foi na época do ragù que o moço aprendeu a fazer Lasanha, a massa verde e tudo, e pegou gosto pelo processo de fazer massa fresca. Tanto, que no último ano, fez mais massa que eu.

Entre um festim carnívoro e outro, houve muitos hambúrgueres vegetarianos e pratos prontos e entregas, que resolveram meus dias atrapalhados e cansados sem que eu precisasse pedir. Tê-lo em casa em caráter permanente (pois a empresa manteve o home office), provocou uma mudança de ritmo e expectativas, e, de repente, a casa e o trabalho e as crianças têm um equilíbrio inusitado, mas muito desejado. A roupa aparece lavada, o chão aparece varrido. As crianças não chamam só a mamãe.

Pela primeira vez em muito tempo, eu tenho tempo de verdade para trabalhar. E descansar.


Ele corta uma pontinha da costela a pedido meu, e acha que é hora da fase dois. Pincela o molho sobre a carne dourada, e fecha o pacotinho de alumínio para ficar úmida e macia. "Corta essas linguiças fininho pra gente, e eu vou pegar outra cerveja. Qual você quer?"

"Me surpreenda", é a resposta padrão, quando estou bem humorada. 

Ele sobe a passos felizes para dentro de casa, e eu relaxo contra o espaldar da cadeira. Perna cruzada feito o número 4, os cotovelos apoiados aos braços da cadeira, as mãos segurando o livro aberto, como se eu fosse um homem velho e barrigudo lendo o jornal de domingo na poltrona. Rio alto de uma tirada de Bourdain, no capítulo em que ele está num cruzeiro de luxo. A descrição dos seus bifes e risotos me dão vontade de cozinhar. Mas a vontade passa quando preenchem meu copo vazio com uma cerveja tipo belga do Quebec, e recebo um beijo estalado na boca. Sua cerveja, amor. Obrigada. 

Uma hora, muita conversa, e uns dois capítulos lidos depois, a costela se desmancha à volta dos ossos. Lambo meus dedos como uma criança. Minhas crianças fazem o mesmo. Não há sobras. Faço minha parte, quando o vento esfria e o fim da tarde nos expulsa do quintal, e recolho pratos e copos e condimentos até a cozinha. Ninguém janta. 

"Me passa a receita que você usou pra costela pra eu postar no blog?"

"Vixe, eu inventei tudo. São umas cinco receitas, maior bagunça. Faria tudo diferente."

"Que coisa."

Nas últimas conversas, eu ouço, interessada, seus próximos planos culinários. De repente um curry de legumes, para variar. Divirto-me com sua empolgação. Quisera eu ter sido menos chata e lhe ter dado espaço na cozinha anos atrás. Ele tem jeito para a coisa. Menos controle, menos crítica, e como teria sido ter jantar pronto no fim do dia? Agora eu sei. É bom. É muito bom.

No dia seguinte, enquanto ele leva as crianças ao treino de Jiu-jitsu, preparo no silêncio da casa que interrompo com minha música favorita, uma sopa de lentilhas vegetariana da Alice Waters. Tão boa, que Laura, que não gosta de lentilhas, e Allex, que não gosta de sopa, repetem. 

Se eu estava em busca dos mistérios dessa cozinha nova, encontrei. Reencontrei o prazer da cozinha, compartilhada. 

....


Se eu soubesse que essa sopa faria tanto sucesso, teria fotografado. Fazer o quê? Antes de ir para a receita, lembro você de que meu livro, Brutta Figura, continua à venda nas principais livrarias do Brasil, e para envio internacional, no site da editora, Chiado Books. Você encontra todos os links na lateral do blog. Minha loja Etsy continua funcionando, e lá, além de poder comprar originais e versões para download das minhas artes, você também pode encomendar caricaturas em preto-e-branco, e aquarelas para quarto de bebê. Além disso, se você quiser simplesmente colaborar como quiser para que esse blog continue funcionando, pode contribuir no meu PayPal (me pergunte como). Muita coisa legal vem por aí. Meu novo livro, cheio de histórias e, quem sabe, ilustrações também, está terminando de ser escrito, e já estou montando o tão pedido livro do Diário Ilustrado. Isso será possível com tempo, tranquilidade, e, claro, dinheiro de trabalhos realizados, livros vendidos e colaborações. Agora, sopa.

DELICIOSA SOPA DE LENTILHAS COM ESPECIARIAS

(do livro My Pantry, da Alice Waters)

Rendimento: 4 pessoas

Ingredientes:

  • 1 1/2 xic. lentilhas
  • 2 colh (sopa) azeite
  • 1 cebola pequena, picada
  • 1 cenoura pequena, picada
  • 1 talo de salsão pequeno, picado
  • Sal e pimenta do reino
  • 2 ou 3 dentes de alho, fatiados fino
  • 1 colh (chá) sementes de cominho
  • 3/4 colh (chá) sementes de coentro
  • 1/4 colh (chá) pimenta caiena
  • 2 litros de caldo de legumes, frango, carne ou água (usei água)
  • 1 maço de espinafre, apenas as folhas, grosseiramente rasgadas
  • Limão, para espremer
  • 1/2 xic coentro picado grosseiramente
  • Iogurte, para servir


Preparo:

  1. Aqueça uma frigideira e coloque as sementes de cominho e coentro, mexendo até que tostem ligeiramente e fiquem perfumadas, sem queimarem. Passe para um pilão e moa. Reserve.
  2. Numa panela grande, aqueça o azeite e junte a cebola, cenoura e salsão. Tempere com sal e pimenta e cozinhe em fogo médio, mexendo, por cinco a dez minutos, até que estejam macios. 
  3. Junte as especiarias e o alho e misture, até sentir o perfume do alho. 
  4. Junte as lentilhas, o caldo ou água, e mais uma pitada de sal. Leve à fervura, abaixe o fogo e cozinhe por 25-40 minutos, retirando a espuma da superfície com uma escumadeira. Quando as lentilhas estiverem macias e desmanchando, está pronto.
  5. Junte o espinafre, mexa, e cozinhe apenas até que as folhas murchem na sopa. Desligue o fogo, ajuste o tempero, e apenas antes de servir, esprema um pouco de limão a gosto, polvilhe com o coentro, e sirva com uma colher de iogurte no centro do prato. 



segunda-feira, 8 de junho de 2020

Mudanças de olhar, aprender sem escola, focaccia de panela.


A pandemia por aqui anda um bocado esquisita. O governo faz finta de relaxar algumas políticas, mas quando o povo relaxa também, ele volta atrás. Os parques urbanos andam cheios. Não tão cheios quanto estariam nesse junho lindo de céu azul e temperaturas veranis, mas indubitavelmente cheios, quando nos lembramos de que deveríamos ficar distantes uns dos outros. Tentamos. Chamo a atenção das crianças para não se aproximarem de outras pessoas, vamos ao parque em horários mais tranquilos, onde não fico estressada por uma pessoa sem noção estar perto demais na hora de atravessar a rua. Nos fins de semana, quando a cidade inteira parece esquecer a quarentena em nome de um banho de sol, fugimos para o mato, para os parques provinciais que estão abertos para quem gosta de andar em trilhas na solidão da natureza.

Os números aqui no Canadá começam a dar esperanças de que logo (espero!) algumas coisas cheguem a uma nova realidade menos surreal, e que possamos, se não marcar um piquenique com os amigos, pelo menos programar um acampamento em família.

Mas o governo tem sido cauteloso, e há grandes chances de que a escola não volte (ao menos não em sua integralidade) a funcionar em Setembro, quando as crianças começam um novo ano letivo. Sinceramente, já não espero mais. Não espero, de verdade, coisa alguma. Desde o início dessa bizarrice toda, o mundo tem me ensinado a não esperar nada, a viver um dia de cada vez, sem grandes planos. Ou mesmo pequenos. Esse foi o tema das conversas desse fim de semana, quando dividimos um com o outro, Allex e eu, a coleção de pequenas, médias e grandes frutrações dos últimos meses, que parecem terem ficado ainda mais intensas em frequencia e variedade desde que Gnocchi morreu. Como uma aceleração do karma, eu disse. Ele concordou.

Mas desde Março, quando a escola fechou,eu já repetia: não sei quanto tempo isso vai durar, não sei o que vai acontecer amanhã, então não espero nada e sigo o fluxo; e se tiver perrengue, e se der tudo errado, e se o universo me tropeçar de novo, dou risada, aceito, e trabalho com o que tenho.

Porque no fim é isso. A gente faz o que pode com o que tem. E se a gente tira o olhar da falta que gera a frustração e o dirige para aquilo que está presente, descobre que tem um bocado, e que está tudo bem. Ou que tem apenas um pouco, mas esse pouco é o bastante para segurar a onda enquanto a onda não quebra na praia e vira marolinha.

Não ando focando na falta da escola. Ando olhando para a curiosidade natural das crianças, para a oportunidade de tomar um pouco as rédeas da educação deles, para reafirmar alguns valores e hábitos que andavam se perdendo no estressante ambinte escolar.

Nem que seja o hábito de almoçar. Eles estão felizes por poder almoçar todos os dias num ambiente sem pressa nem gritaria, ainda que a mãe, na TPM, às vezes solte um grito apressado.

Ando lendo um bocado a respeito de Unschooling, ou Desescolarização, não porque pretenda tirar as crianças definitivamente da escola, mas porque os diferentes processos de aprendizagem das crianças fora da escola, quando bem estimulados, tormam-me uma mãe mais tranquila e menos preocupada com pressões acadêmicas. Principalmente num momento em que a principal preocupação deveria ser o bem estar mental e físico das crianças (e dos adultos).



Um exemplo simples. Thomas e Laura aprenderam frações cozinhando. Medindo ingredientes com xícaras e colheres-medida. Tentando descobrir como obter 1/8colh(chá) de sal tendo em mãos apenas uma colher que comporta 1/4. Fazendo contas mentais para saber quantas vezes precisam usar o medidor de 1/3xic para obter 1 xícara e 2/3 de leite. Quando enfim precisaram sentar na frente do computador e fazer suas lições de fração, bastou lembrá-los dos bolos que haviam preparado, e não foi precisa mais nenhuma explicação.

Um exemplo complexo. Thomas e Laura adoram bichos. Começou com os dinossauros de Thomas, há muito tempo. Todos os livros que ele pegava na biblioteca eram de dinossauros. Na primeira série, ele tinha preguiça de ler os livros da escola, mas conseguia ler sem dificuldades os nomes científicos mais escalafobéticos de seus dinossauros. E os dinossauros o transformaram num leitor. Os dinossauros levaram, por conta do Mosassauro, seu dinossauro aquático favorito, aos animais marinhos. E lá foi ele ler em letras miúdas, palavras multissilábicas, medidas, nomes científicos, comparando quem é maior que quem, quem come quem, quem mora onde. Por causa dos dinossauros e dos animais marinhos, ele logo se interessou pelos nomes dos continentes e dos oceanos. Seu livro favorito de animais marinhos também mostrava pássaros, que ele logo relacionou aos dinossauros com penas e quadris de aves, e quando ele ouviu falar de Evolução e Seleção Natural pela primeira vez, aquilo tudo já fazia sentido.

Por conta de Thomas, Laura hoje tem a mesma paixão por bichos.Quando saímos para passear no mato, eles me explicam que libélulas são mais antigas que dinossauros, Laura me pergunta se as amoras do nosso snack são da mesma família do milho, por terem estrutura parecida, e pesquiso no celular sobre a estranha pedra que vemos por toda parte no rio que cruza o parque em Scarborough, e que descobrimos que é ardósia, e conversamos sobre os tipos de formações rochosas que vimos no museu de História Natural em Ottawa. Laura pergunta se pode usar uma lâmina de ardósia como faca, e quando acha uma fogueira, descobre que carvão serve para escrever, e que se ela esmagá-lo e misturá-lo com água do lago, faz uma tinta preta que ela pode usar para desenhar com os dedos nas pedras. Explico pinturas rupestres e tinta azul feita com lapis-lazuli (a pedra que carrego em meu anel favorito) e tinta vermelha feita com cochonilhas, aqueles mesmos bichinhos que Laura se lembra de ver sob as folhagens de nossa horta no Brasil, e que as joaninhas adoram comer.\


Quando encontramos uma toupeira morta no meio da trilha, paramos para examiná-la, e eles ficam fascinados pelo formato das patas, pelas unhas fortes, e pelo fato de que ela é de fato tão cega que não conseguimos encontrar seus olhos em meio aos pelos. Falamos sobre o processo de decomposição. Isso eles já sabem bem. No Brasil, uma vez, encontramos um gambazinho que fora morto por uma pedra de gelo durante uma geada forte. Todos os dias íamos ao terreno baldio onde ele estava para vermos em que estágio o bicho se encontrava: formigas primeiro, moscas depois, então larvas, então o corpo parecia desaparecer sob a pele que afundava, como um balão desinflando, e num belo dia, encontramos apenas o esqueleto, perfeito, branco como se tivesse sido polido em laboratório, e tufos de pelos espalhados pelo vento. No crâniozinho dele, uma rachadura feia marcando onde a pedra de gelo o acertara. Ninguém nunca esqueceu daquela lição de como a morte alimenta a vida de tantos outros seres, de como todos voltamos à terra para alimentá-la e prosseguir num ciclo infinito de vida-morte-vida tão maior do que qualquer indivíduo. Laura lembrou do gambazinho e de tudo o que conversamos naquela época para me consolar quando Gnocchi morreu: "Ele virou terra de novo, mamãe, ele vai alimentar as plantas e as plantas vão florir e vão ter frutas por causa dele. E a energia dele desmanchou e voltou pro Universo, ele está no ar, mamãe, então ele está em todo lugar agora. Se você respirar agora, ele está com você."



Quando paramos para descansar na trilha ao lado de um rio, as crianças, enfiadas até os bumbuns no leito gelado, de roupa e sapatos, embaixo do sol forte, procuram bichos embaixo da água. Girinos, pequenos peixes, caracóis. Thomas grita, de repente, que viram uma lagosta, e por um momento me assusto, achando que se tratava de um escorpião. Mas vejo Laura de cócoras no rio, concentrada, dando patadas rápidas na água como um urso, e de repente os dois voltam gritando de alegria, correndo em nossa direção, Laura com as mãos fechadas em concha. Ela abre as palmas como uma ostra, e me mostra o que parece um lagostim bem pequeno e escuro. E depois de passada a fascinação, eles devolvem o bicho ao rio, são e salvo, enquanto pesquiso que bicho era aquele. Crayfish!, exclamo feliz.
Laura pergunta se o Crayfish é um inseto como as aranhas e explico que nem um nem outro é inseto, e passamos uns bons minutos na trilha brincando de descobrir quem é inseto e quem é aracnídeo pelo número de patas, pelas divisões do corpo.


Um dia no mato com os dois me obriga a buscar na memória as coisas que aprendi na escola e, quando a mente falha, buscar no Google. Passar tempo com eles me faz querer ver o mundo com olhos frescos também. E ao invés de olhar um passarinho e só dizer "que passarinho bonito", volto a fazer perguntas como eles fazem. Qual é o nome dele? Onde ele faz ninho? Ele migra como os gansos ou fica por aqui no inverno como o Chickadee? O que é que ele come? De que cor são seus ovos? Será que ele é da época dos dinossauros? Ok, essa última pergunta seria mais do Thomas mesmo.

Minha própria curiosidade às vezes quebra silêncios, e gera de novo conversa interessada. E criança é um bicho que gosta de pergunta, e às vezes basta a gente fazer uma para eles criarem mais vinte. E se eles tiverem liberdade de explorar, experimentar, mexer, quebrar, construir, e tempo para criar, tempo para ler o que lhes interessa de fato, eles aprendem tanto que a gente às vezes cai sentado de susto.

E mesmo quando a informação é demais, é difícil, eles tiram algo daquilo. Assistimos à série Cosmos, e de repente Laura vira para mim e diz: "Mamãe, não tô entendendo nada do que esse moço tá explicando, mas tá divertido mesmo assim." E apanhou seu caderno e começou a desenhar. "Ó, mamãe, eu tô desenhando as coisas do filme: isso é uma nebulosa! Esse é um buraco negro! E essa é uma cadeia de DNA!"

Ela não faz ideia do que de fato seja uma cadeia de DNA nem tem condições ainda de entender. Mas desenhou aquilo que seu cérebro conseguiiu compreender daquelas imagens, e quando ela de fato quiser estudar a respeito, o conceito está ali, aquela imagem presa à memória, gravada permanentemente pelo processo daquele desenho expontâneo. No dia seguinte ela me pediu para ter um livro sobre o espaço. "Um que você consiga ler sozinha ou um que eu precise ler pra você?', perguntei para alinhar expectativas. "Um pra eu ler sozinha." Apanhei um livro da National Geographic chamado "My Fisrt Space Book". Junto desse, aproveitei para comprar um lindíssimo chamado Maps, com mapas do mundo inteiro ilustrados de forma divertida e cheio de informações sobre cada país (muito útil já as crianças têm amigos de todas as partes do mundo, na escola daqui) e um outro livrão ilustrado chamado Curiositree Natural World, que é uma espécie de enciclopédia da natureza, com lições simples de biologia, botânica, ecologia, e curiosidades sobre animais. Laura já me pediu um outro sobre elementos. Ela tem um de pedras preciosas, mas queria um que mostrasse todos os elementos em seus estados naturais, porque ela quer encontrá-los na floresta.

Tenho tentado ampliar a biblioteca dos dois, que até então tinha mais livros de histórias, para livros de consulta. Os dois passam muito tempo no sofá ou no tapete, folheando os livros informativos, discutindo sobre as figuras, comparando com outras coisas que aprenderam. Acho que o livro folheado sem pressa é uma experiência diferente de buscar informação na Wikipedia. Ainda que tenha ensinado Thomas a pesquisar seus assuntos de interesse nela e registrar sua pesquisa em forma de perguntas e respostas.

Quando paro de pensar nas pequenas e nas grandes frustrações da quarentena e da pandemia, olho para os tesouros encontrados à minha frente.Ver o modo como as crianças aprendem (todas elas, não apenas meus filhos, porque ninguém aqui é especial), e o quanto eles de fato aprendem quando estão genuinamente interessados num assunto e podem explorá-lo do seu jeito e no seu ritmo, sou invadida por essa tranquilidade a respeito das lições da escola, do passar de ano, do desinteresse que a criança mostra ao ter de escrever uma redação sobre a Primavera ou calcular perímetros e áreas quando na verdade queria estar lendo sobre dinossauros e nebulosas.

Durante todas as semanas de escola ã distância, Thomas fez drama para fazer redação. Reclamações, pequenas revoltas, bufadas e cadernos ao chão. "Ele não gosta de escrever", repeti a mim mesma e às outras mães inúmeras vezes, revirando os olhos. Então, cansada de colocar a falha nele, resolvi colocar a falha no método e tentei algo novo: "Seguinte, gente, eu acho as redações da escola uma chatice. Então eu quero o seguinte: todo dia, eu quero uma redação, caprichada, letra pequena, com data, mínimo de cinco frases, SOBRE O QUE VOCÊS QUISEREM. Inclusive se quiserem escrever como a mamãe é chata porque ela está obrigando vocês a escrever, pode. Desde que usem cinco frases para reclamar. Tá bom?"

Thomas tinha que fazer UMA redação por semana para a escola, e era sempre aquele teatro, aquela briga, aquela frustração. Das redações diárias de tema livre ele reclamou só da primeira. Tentou ainda roubar no jogo, e copiou um trecho inteiro de um de seus livros favoritos. "Você copiou?", perguntei. "Sim, desse livro aqui.", ele respondeu, com um sorriso espertalhão. Devolvi o caderno para ele. "Tá muito caprichado. Gostei que você escolheu um trecho com palavras bem difíceis. Muito bem."

E as batalhas para escrever terminaram. Tem dia que ele transforma a redação em história em quadrinhos, fazendo os textos no meio de desenhos. Tem dia que é sobre batalhas entre super heróis que ele inventa. Tem dia que é a descrição dos poderes de um dragão. Laura escreve, ainda sem acertar muito a ortografia, em adivinhações fonéticas, sobre a casa na floresta em que vai morar, sobre um livro do aplicativo da escola que mostrava bolos de formatos divertidos, sobre gostar de cozinhar e sobre seus desenhos favoritos.

O governo de Ontario estabeleceu que as escolas daqui não vão avaliar as crianças do ensino elementar durante o período da pandemia. Até porque só se repete ano a partir dos dez anos e mesmo assim só se for muito necessário, já que até o ensino médio espera-se que as crianças cheguem no resultado esperado em seu próprio ritmo. Valho-me disso para relaxar um pouco e não obrigar as crianças a fazer todas as atividades propostas pelos professores. Mas tenho plena consciência de que essa abordagem do governo é condição sine-qua-non para que eu possa levar com leveza o assunto escola ã distância por aqui. Eu já tentava ensinar meus filhos dessa forma no Brasil e não levar a escola tradicional tão a sério, mas era muito, muito mais difícil, e eu sentia que tanto as crianças quanto os pais sofriam muito mais cobranças por resultados não condizentes com a maturidade emocional dos pequenos alunos. Justamente por me lembrar dessa pressão, tento não soltar as rédeas assim de um vez, porque eu não sou tonta nem nada e olho o curriculum da semana e saio propondo brincadeiras e questões relativas ao assunto, para mantê-los razoavelmente alinhados com o sistema, mas não subjugados por ele. Foi assim com as frações. Agora tenho que sacar da estante os jogos de tabuleiro e RPG que envolvem dados, porque Thomas vai começar a estudar Probabilidade.

Enfim.


É bom sentir menos pressão sobre os ombros, menos pressão pelo resultado, pelo "sucesso", pelo desempenho, pelas notas do boletim. Tem sido enriquescedor mergulhar com as crianças no processo, no desenvolvimento, na exploração, no imprevisível, no aleatório, no caos desenfreado da curiosidade. Tem sido importante parar de pensar em enfiar informações em suas cabeças "na ordem certa" e, ao invés disso, ensiná-los a gostar de aprender, ensiná-los a não terem medo de perguntar nem vergonha de propor uma solução. E principalmente, ensiná-los a pensar, a juntar informações que na escola são ensinadas separadas uma da outra mas que no mundo de verdade são inseparavelmente conectadas.

Num dia cheio de pequenos perrengues, Thomas quis fazer a salada do jantar enquanto eu preparava uma torta de verduras. Pensei em voz alta meu estranhamento de a tal "Focaccia" de  panela não levar fermento biológico. Ele me fez algumas perguntas, e comecei a explicar os tipos de fermento. Como o biológico é um ser vivo minúsculo comendo açúcares e soltando pum na massa (isso sempre faz as crianças rirem), e como o fermento químico é feito de um sal e um ácido que se transformam quando você os dissolve em líquido, produzindo gases. Ficamos falando sobre outros tipos de sal e outros tipos de ácido, e o fiz lembrar do dia em que fizemos um vulcão de massinha e enchemos ele de vinagre e bicarbonato de sódio.

Cozinha aliás, foi um hobby que durante anos alimentou também minha curiosidade infantil, e vorazmente estudei como eram os processos químicos por trás das transformações dos alimentos. Até hoje me pergunto porque a cozinha não é usada nas escolas como ponto central para todas as matérias. (Só fui entender botânica de verdade quando aprendi a fazer cerveja e tivemos de estudar a fisiologia do grão de cevada. Imaginei uma classe cheia de adolescentes aprendendo a fazer cerveja.) Na comida estuda-se química, biologia, matemática, história, geografia...

A gente nunca para de aprender enquanto for curioso.


E nessa cozinha a gente aprende a fazer torta na frigideira.Taí uma coisa que eu nunca fizera antes, mas passarinho que tem medo de novidade nunca sai do ninho. Fiz essa torta, que Benedetta chama de focaccia recheada, mas que nada tem a ver com a focaccia genovesa que nos vem à mente, pela primeira vez há um mês atrás e mais duas vezes depois e considero ela um clássico instantêno. Verdadeiramenre instantâneo, pois é a torta mais rápida do mundo: uns dez minutos para preparar, dez minutos na frigideira e pimba! Jantar. Como a massa não leva ovo, leite nem manteiga, se rechada apenas de verduras e legumes ainda por cima é vegana. Isso tem sido meio importante pra mim, pois tenho tentado manter a cozinha plant-based durante a semana. (Fiz isso por pura curiosidade, e no fim das contas, tem sido muito bom para mim.) Até hoje fiz com recheio de verduras com queijo, mas quero fazer umas versões só de verduras a partir de agora. Allex já imaginou a torta recheada com queijo, presunto e tomate, como um bauru. Enfim, o recheio é livre, só não coloque nada muito úmido, pois a massa ainda crua pode rasgar ao ser transferida para a frigideira. Divirta-se. Aproveite para clicar no link da receita para ver Benedetta preparando a focaccia, mesmo que você não fale italiano.


FOCACCIA RIPIENA IN PADELLA
Rendimento: 4 porçoes fartas para acompanhar uma saladinha ou 6 como parte de uma refeição mais completa

Ingredientes:
  • 400g farinha de trigo
  • 250ml água
  • 3 colh(sopa) azeite de oliva
  • 1 colh (chá) sal
  • 1 colh. (chá) bicarbonato de sódio
(recheio)
  • 350g verdura da sua escolha (escarola, espinafre, almeirão...), refogada do modo que preferir
  • 150g queijo de sua escolha (mozzarella, provolone, queijo prato...)

Preparo:
  1. Misture todos os ingredientes da massa numa tigela grande, usando os dedos, e então transfira para a bancada e sove até que fique lisa. Cubra com um pano para não ressecar, e prepare o recheio de sua escolha.
  2. Coloque a frigideira em fogo médio. Benedetta usa uma frigideira antiaderente de 30cm. A minha tem 25cm e é de inox. Costumo untar a frigideira toda por dentro com um fio de azeite e a torta nunca grudou. O fato de minha frigideira ser menor quer dizer que a torta fica com bordas mais grossas, mas ninguém nunca reclamou.
  3. Divida a massa em duas partes iguais e abra com um rolo em uma bancada enfarinhada até ficar um pouco maior que a frigideira. Esopalhe o queijo e então a verdura e depois mais queijo sobre uma das massas e cubra com a outra. Dobre as bordas das massas uma sobre a outra, apertando para o selar bem.
  4. Quando a frigideira estiver bem quente, transfira a torta para a frigideira com cuidado. Tampe e deixe cozinhar por cinco minutos, até sentir cheiro de farinha tostando. Tire a frigideira do fogo e, sem destampar, num movimento rápido, vire a frigideira de cabeça para baixo para que a torta fique apoiada na tampa. Deslize a torta agora invertida de volta para a frigideira,tampe novamente e cozinhe por mias cinco minutos.
  5. Desenforme a torta em uma tábua e deixe descansar alguns minutos antes de cortar e servir.


sábado, 21 de março de 2020

Quarentena, PFs veganos, divisão de tarefas e chocolate chip cookies

Uma foto bonita para tempos estranhos

Esta noite sonhei que me empurravam para dentro de um compactador de lixo e fechavam as portas. Era noite, e me haviam pego de surpresa. Imediatamente após a aniquilação de meu corpo em meio a outros resíduos, eu me refazia, magicamente, e ainda formada apenas de ossos e uma intensa luz azul, abria as portas num movimento explosivo, como quem busca ar depois de muito tempo submerso, e tinha então meus ímpetos de vida e liberdade empurrados de volta  ao compactador de lixo pelas mesmas mãos masculinas que me haviam colocado ali em primeiro lugar. Portas fechadas. Corpo destruído. Renascimento. Libertação. Mãos me empurrando de volta. Durante toda a noite, a mesma cena repetida, até finalmente conseguir despertar no meio da noite para a realização de que o sonho descrevera em imagens exatamente como me sinto nesse momento.

Não posso reclamar. Penso nisso o tempo todo, como não posso reclamar. O governo canadense tomou medidas duras mas preventivas, garantindo que a situação no país nunca chegue aos extremos da Itália, por exemplo. Estamos em segurança e o Canadá tem sido considerado modelo de gestão da crise. O pânico inicial que fez com que a população corresse aos mercados e esvaziasse as gôndolas foi subitamente substituído por alguma solidariedade. Meu prédio tem uma lista na porta de moradores que se disponibilizaram para fazer as compras de mercado para os residentes mais vulneráveis. Há muito pouca gente desacreditando o vírus ou se comportando de forma irresponsável.

As escolas foram as primeiras a fecharem. Então os museus e casas de show. Depois bares e restaurantes. Agora, andar na rua parece um eterno domingo de manhã: todas as lojas estão fechadas. Há pouca gente na rua. Mas ao contrário dos domingos de manhã de café devagar e alívio promovido pela promessa de morosidade, há um silêncio pouco reconfortante vindo do lado de fora.

Não posso reclamar. Ainda posso sair para correr. Correndo, vejo os primeiros sinais da primavera. Vejo um coelho. Os Robins, meus sabiás-laranjeira canadenses, retornando às árvores à nossa volta. As primeiras florzinhas minúsculas, cor de leite fresco pingando de estames verdes e frágeis que destoam dos castanhos e cinzas secos restantes do longo inverno.

Ainda posso levar as crianças pelas trilhas do parque. Santo parque. Abençoado parque. Laura me pergunta se pode encostar nas árvores. Pode, pode sim. Vejo-nos abraçando árvores e tocando a terra gelada com os dedos, como que pedindo ajuda, uma luz, uma solução. Que a natureza se arranje, se reequilibre, traga a harmonia que talvez não temos tido há tempos.

Não posso reclamar. Podemos trabalhar de casa. Ele se enfia no quarto, no computador, e tem reuniões e manda emails e faz seu trabalho muito bem. Numa quarta-feira, ouço o marido explicando a Thomas de que é um dia normal, e que papai está trabalhando. Um dia normal. Não é um dia normal. Meu dia correria de uma forma completamente diferente se fosse um dia normal. Acostumadas ao ocasional home office do pai antes da quarentena, as crianças não ousam interrompê-lo, e mesmo quando lhes explico que mamãe precisa de uns minutinhos para descansar a cabeça ou para trabalhar, seus gritos sempre soletram MÃE em letras garrafais, o som esticado como uma corneta alta diretamente em meu ouvido. Uma, duas, quatro, oito, setenta e duas vezes em uma hora, interrompendo minhas ideias, meus pensamentos, meus impulsos, minha criação, minhas pinceladas.

O que foi? O que você precisa?
O Thomas não quer me emprestar o lápis.

Suspiro.

Sinto falta dos meus pequenos rituais solitários que mantinham minha cabeça no lugar, que me ajudavam a repor minha energia. Pequenas coisas da minha rotina que eram só minhas, que não tinham nada a ver com o restante da família, que não tinham absolutamente nenhum impacto neles, e que, portanto, mantinham em minha mente essa imagem clara de quem eu sou, independente de ser mãe, de ser esposa, de ser filha, de ser irmã.

Pensar "isso vai passar" e esperar pelo retorno da "vida normal" me causa mais ansiedades. Tenho tentado enxergar a situação atual como definitiva. E se fosse assim para sempre? E se essa for sua vida até o fim dela? Como eu posso tornar isso melhor e conviver de forma mais saudável com uma quarentena que não tem data para terminar?

Como recriar meus rituais?
Como me reinventar?
Como me resguardar e me preservar num momento que pede tanta doação principalmente das mulheres?

PF delícia: arroz, feijão preto, saladinha de tomate cereja e abóbora e couve-flor que foram assados na mesma assadeira.


Assim que anunciaram o fechamento das escolas e todas as famílias correram aos mercados em pânico, um pânico quase justificado, considerando que a maior parte da comida consumida no Canadá vem de outros países, caí na mesma armadilha de sempre. Acuada feito um bicho, ameaçada por sombras desconhecidas e dominada por um medo estranho, juntei minha família sob minhas asas e me recolhi em minha domesticidade.

Em poucos dias meus rituais desapareceram. Vi-me sublimada pelo cozinhar, limpar, cuidar. Em menos de uma semana minha insônia voltou e eu sumi. E se meu corpo inteiro tremia de raiva do vírus que provocara aquilo, minha mente foi categórica: olha para as suas escolhas.

Conversando com minha amiga no Brasil, ouvindo meu próprio falar, dei-me conta das desculpas que me inventava, de novo e de novo, para me manter no papel de vítima, culpando o patriarcado mas sem olhar para aquilo que era minha inteira responsabilidade.

Refiz minhas escolhas. Pequenas, pequenas escolhas. Assim, sem DR, sem grandes alardes, sem braveza, sem raiva, sem ser passivo-agressiva nem manipuladora.

Continuei acordando cedo para meditar e correr. Porque Toronto tem a densidade populacional de um sítio com galinhas caipiras, e a gente consegue sair na rua sem ficar se esbarrando nem respirando no cangote um do outro. Então saio para correr. Correr até suar para fora toda a raiva e tensão. E se isso me deixar exausta no meio do dia (e eu com sono viro um monstro), tudo bem: marido está em casa e eu POSSO parar e descansar. 

Marido em casa. Não, não é um dia normal. Num dia normal de home office, eu estaria trabalhando e fazendo minhas coisas e as crianças estariam na escola. Não é um dia normal. As crianças estão aqui o dia todo, e cuidar de criança em tempo integral CANSA, mesmo quando você está se divertindo com eles. Cada pequena briga, cada birra, cada interação exige atenção total de sua parte para não simplesmente cair no lugar de reação não-pensada. Ele sabe disso. Ele reconhece isso. Ele fala para os colegas homens como nós mulheres nos lascamos de verde e amarelo com essa quarentena, e como isso não é justo. Ele me conta de reuniões por skype sendo interrompidas por crianças pulando em cima dos pais ou pedindo para a mãe limpar seus bumbuns no banheiro, e como ele consegue ver através das telas quem está dividindo essa carga com o parceiro e quem não. Estamos todos no mesmo barco. Ao menos todos nós, classe média, brancos, de trabalhos estáveis que permitem home office. Tenhamos noção que nosso barco é pequeno e comporta bem pouca gente do mundo. Que sorte temos. Não é? Não posso reclamar.

Mas ouvi-lo a respeito dos outros pais e mães me fez relaxar os ombros. A gente que foi criada em país latino e machista tem disso de síndrome de super-mulher-Martha-Stewart-toda-poderosa, que, dentro de sua posição submissa, encontra uma sensação de falsa superioridade ao taxar os homens de incompetentes no trato dos filhos e da casa. "Ah, sem mim ele não acha uma meia!" Veneno, veneno puro. Ele acha sim. Se você deixar, ele acha a meia. E se não achar, ele é um homem adulto com cartão de crédito e pode mandar entregar um pacote de meia comprado na internet. Essa ideia de nos sentirmos indispensáveis mantendo homens adultos dependentes e infantilizados é a chave que tranca nossas próprias correntes.

Quando estou cansada, cansada mesmo, precisando de uns minutos de silêncio que meus filhos, por mais amor que tenhamos uns pelos outros, não podem me dar, sem a menor culpa eu cato o cachorro para um passeio longo no parque e deixo as crianças ao cargo do pai, independente da reunião por skype em que ele esteja metido. E sabe o que descobri? Que ele é plenamente capaz de lidar com essa situação.

Pense nas suas pausas como a "pausa do café" ou a antiga "pausa do cigarro" nos escritórios. Uma vez trabalhei numa agência em que quase todos eram fumantes menos eu. Todos faziam pausas de cigarro e continuava eu lá, tonta, trabalhando. Revoltada que sou,  resolvi que sempre que meus colegas levantassem da cadeira para sua pausa de cigarro, eu faria minha pausa do café. Justo.

Mãe também precisa de pausa do café. Ok? Dê-se uma pausa do café. 

Como sou eu quem cozinha, eu decidi, assim, de supetão, que não sou mais responsável pela louça. Eu nunca achei que a louça era MINHA responsabilidade, mas era algo que eu fazia no automático: terminar de comer, tirar os pratos, guardar os restos. Dei-me conta de que todo mundo levantava da mesa e ficava eu lá, tonta, fazendo tudo sozinha, depois de já ter passado a última hora e meia do meu dia fazendo jantar.

Agora levanto da mesa sem culpa. Peço com educação para que deem um jeito nos pratos e guardem a comida. E tento não ficar irritada se isso não acontece imediatamente. E se ninguém tirar a louça limpa da lava-louça imediatamente, não vou sair guardando daquele jeito passivo-agressivo bufante que a gente bem conhece. Vai ficar lá e ponto. Até alguém (que não sou eu) fazer.

E sabe o que descobri? Que as coisas tem sido feitas. Talvez não perfeitamente e COM CERTEZA não do MEU jeito. Mas são feitas. E que se eu peço com leveza e educação, todo mundo é super capaz de tirar o lixo ou dar comida para o cachorro.

No tempo de desenho ou video-game das crianças, tenho sentado à minha mesa para pintar e desenhar. Tento, sento, pinto, desenho, escrevo no meu caderno a letras tortas, sentindo falta do meu tempo no computador, pois só temos um, irritada com a lentidão com que meus dedos arrastam o lápis sobre o papel. Tento, apesar da sensação acachapante de que isso não faz o menor sentido, de que todos os meus projetos perderam importância diante das circunstâncias.

Ainda assim faço. Sempre gostei de trabalhar em silêncio, mas agora, acompanhada do batuque incessante dos dedos do marido no teclado do computador ao meu lado, tenho colocado uma música no celular, ou um podcast, e, isolada em meus fones de ouvido, consigo produzir. As crianças começaram, devagar, a entender que porta fechada quer dizer que papai e mamãe estão trabalhando e só devem ser interrompidos por coisas importantes. Quando desperto do meu transe criativo, desligo a tv das crianças e podemos fazer alguma coisa juntos com mais tranquilidade, pois mamãe botou para fora tudo aquilo que borbulhava dentro dela.

Cevadinha com grão-de-bico, tomate cereja e salsinha, espinafre refogadinho, abacate.

Estou tentando não me refugiar à cozinha como fiz durante tantos anos. Não usar bolos e tortas e pães como desculpa para não lidar com meus problemas. Decidi cozinhar apenas uma refeição por dia. Seja almoço ou jantar, o que for necessário, mas apenas uma. E manter simples. Um cereal, uma leguminosa, e tantos vegetais quanto puder cozinhar ao mesmo tempo e rapidamente. E na refeição seguinte, a não ser que eu realmente tenha vontade de comer uma reinvenção específica, cada um monta seu prato com o que quiser do que sobrou e esquenta no microondas.
Isso pode parecer besta, mas essa configuração é completamente nova em minha casa. Eu SEMPRE reinventei as sobras, pois não gosto de simplesmente requentar comida. Mas em nome de minha sanidade mental e meu tempo, abri mão da minha frescura. Requentamos comida. Completamos com saladas.

E me sobra vontade de entrar na cozinha com amor, não rancor, para fazer uma torta de maçã ou biscoitos de chocolate. Se eu quiser.
Arroz cateto integral com legumes refogados em óleo de gergelim, alho e gengibre, e temperados com shoyu, cebolinha e gergelim. Ao lado, falafel de feijão moyashi. Ficaram uma delícia, mas só no dia em que foram feitos: depois, não importava o jeito de requentar, ficaram borrachudos.

Manter a maioria das refeições veganas tem ajudado um bocado no meu planejamento. Tem sido muito mais fácil cozinhar assim. E o mais engraçado é que ninguém percebeu que eu não ando botando mais queijo e ovos nas coisas. De quebra, o mercado está um pouco mais em conta, já que queijos aqui custam caro.

O fim de semana agora é o mais diferente. Já tinha um tempo que eu praticamente parara de cozinhar aos fins de semana. É a vez dele. Se ele quiser preparar waffles de manhã, se quiser fazer macarrão de almoço, ótimo. Se quiser pedir comida ou comprar algo pronto, a escolha é dele. Eu não digo nada nem torço o nariz. Afinal, ele não reclama quando faço sopa de abóbora de jantar, que as crianças adoram mas que ele come apenas por respeito e educação, profundo inimigo da abóbora como sempre foi. Hoje ele pediu Lámen de almoço. Eu não estava super afim de comer porco, tenho preferido a leveza do vegetariano, mas alguém botou um prato de comida quente na minha frente que eu não tive de preparar, então obrigada pela refeição, come e volta ao computador.

Arroz cateto integral que refoguei com folhas de beterraba, batata-doce assada com alecrim e ervilhas refogadas em cebola e tomilho e salsinha.

A diferença é que agora reclamo o tempo do fim de semana completamente para mim. É minha vez no computador. Minha vez de sentar e escrever por horas a fio, digitalizar ilustrações ou resolver pendências de trabalho. Trabalhar no fim de semana? Sim, pois não pude fazer isso durante a semana. Reclamo para mim meu silêncio e minha paz, pois no fim de semana papai está totalmente disponível para criar as brincadeiras, apartar as brigas, passear cachorro e resolver o almoço. Nesse momento estou ao computador enfim escrevendo, jazz nos ouvidos, vinho num copo, cachorro dormindo aos meus pés. A porta do quarto está fechada e eu não faço A MENOR IDEIA do que está acontecendo na sala ou do que meus filhos e meu marido estão fazendo. Pedi que ele lavasse roupa e pendurasse o que não pode ir na secadora, e acredito que ele tenha feito. Hoje é responsabilidade dele, não minha, então não vou perder meu tempo gerenciando os outros. Estou tendo um "dia de homem", contei a uma amiga, rindo. Não é um dia de homem. É um dia de pessoa adulta que compartilha responsabilidades domésticas com outra pessoa adulta.
Arroz integral misturadinho com feijão Apache e coentro, farofa de banana da terra, couve-flor e abóbora assada e couve refogada em alho e cebola.

Não posso reclamar. Meu marido sempre fez sua parte. Aí é que entra a minha responsabilidade. Esse controle louco que faz a gente criar na nossa cabeça o "jeito certo de fazer as coisas" e não botar homem para fazer nada porque "eles não sabem fazer direito". Bom, eles sabem. E se não sabem, veja só, aprendem. Que nem criança: se você não deixar fazer com desapego ao resultado, a criança não aprende. Bom, homem também. Por muito tempo me sabotei puxando todas as atividades domésticas para mim com essa desculpa de querer "fazer do meu jeito", e fazendo direito, só fiquei sobrecarregada e ressentida. Totalmente à toa, porque tenho do meu lado um cara que sempre esteve disposto a dividir essa carga.

De novo, não posso reclamar. Outro dia estava mostrando às crianças um video do papai ninando Thomas e passando aspirador de pó na sala ao mesmo tempo. Bebê num braço, aspirador no outro. E a gente diz que só mulher sabe fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo.

Eu decidi não ser vítima da quarentena nem mais vítima de coisa nenhuma. Decidi parar de ter raiva, tanta raiva do que foi, do que é, do que pode ser que eu não gosto e não quero. Minha rotina virou de pernas para o ar, então tenho de encontrar uma nova. Sem raiva, sem rancor. Com leveza, amor, educação. Uma rotina que seja boa para meus filhos, para minha família, mas também boa para mim, que mãe triste cria filhos tristes.

São tempos estranhos, estranhíssimos, e um bocado pesados. Temos família no Brasil, nos Estados Unidos e na Itália, e nos preocupamos o dia todo com eles. Mas isso está completamente fora do meu controle. Só posso controlar minhas escolhas aqui e como elas afetam minha vida e a de meus filhos. As crianças ainda não têm uma rotina certa, e isso eu vejo que as tem atrapalhado um pouco, e a mim também. Ainda preciso entender melhor essa parte, o que tem melhor efeito no humor deles e no meu e rearranjar tudo. 

Aqui a primavera começou enfim. Tempos de renovação. Que renove. Que a quarentena seja essa lua nova, esse momento de introspecção e meditação para cozinhar revoluções internas e externas. Renovações. Não tem para onde fugir. Nossos problemas estão espalhados no nosso chão, grudados em nossas paredes, pendurados pelo teto, em toda a parte, escancarados na nossa cara e não há outra coisa a fazer senão olhá-los, aceitá-los e fazer algo com eles. Nem vinte e quatro horas por dia de Netflix vai impedir você de encarar seus problemas.

Vamos pensar em começar na quarentena pequenas mudanças internas para espalhar lá fora depois, mais rápido que qualquer vírus, para que a vida não volte ao normal, pois aquele normal ninguém mais quer de volta. Inventemos uma norma nova. Um normal que seja melhor para todos.

Vai ter muito perrengue me puxando de volta para baixo para tentar me destruir durante esses tempos. Eu não vou deixar. Vou continuar me reinventando quantas vezes forem necessárias. 


CHOCOLATE CHIP COOKIES DO DAVID LEBOVITZ
Rendimento: UM MONTÃO, mas acaba rápido, que são muito bons

Ingredientes:
  • 2 1/2 cups (350 g) farinha
  • 3/4 colh (chá) bicarbonato de sódio
  • 1/8 colh (chá) sal
  • 1 xic (225 g) manteiga sem sal, em temperatura ambiente
  • 1 xic(215 g) açúcar mascavo
  • 3/4 xic(150 g) açúcar cristal orgânico
  • 1 colh (chá) extrato de baunilha
  • 2ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 2 xic(cerca de 225 g) nozes ou castanhas de sua escolha, tostadas e picadas
  • 400 g chocolate amargo ou meio-amargo, picado em pedaços de 1.5 a 3cm ou 3 xic(340 g) gotas de chocolate
Preparo:

  1. NUma tigela, misture a farinha, bicarbonato e sal. 
  2. Na batedeira, bata a manteiga, os açúcares e a baunilha em velocidade média apenas até que fique homogêneo.
  3. Junte os ovos, um a um, batendo bem a cada adição, e então misture a farinha, seguida das nozes e do chocolate. 
  4. Numa superfície ligeiramente enfarinhada, divida a massa em quartos. Forme com cada uma um cilindro de 23cm de comprimento. Embrulhe os cilindros com filme plástico e leve à geladeira até que fiquem firmes, de preferência de um dia para o outro. 
  5. Posicione as grades do forno nos terços inferior e superior e aqueça o forno a 180oC. Forre duas assadeiras com papel manteiga ou silpat.
  6. Fatie os cilindros de massa em fatias de 2cm de espessura e coloque os discos na assadeira com 8cm de distância entre eles. Se algum chocolate ou noz se desprender, grude de volta no biscoito. 
  7. Asse, trocando as assadeiras de lugar no meio do cozimento, por 10 minutos, ou até que estejam ligeiramente dourados por cima. 
  8. Deixe que esfriem ligeiramente na assadeira antes de retirá-los para esfriarem sobre uma grade. Repita a operação com o restante da massa.
  9. Os biscoitos de mantém frescos por vários dias num pote fechado. 

 Em tempo: pois é, eu tenho feito a maior parte das refeições da casa veganas, e sempre que posso, evito produtos animais. Tem sido engraçado que as crianças curtiram isso de colocar levedura de cerveja no macarrão no lugar do parmesão e Thomas virou o maior fã de manteigas de castanhas na torrada de manhã. Mas a pizza do fim de semana continua tendo queijo e faço ovos quentes para eles sempre que pedem no café. E sim, meus chocolate chip cookies são tradicionais e comi um montão deles, que estão deliciosos. Ninguém virou vegano nem vegetariano. Mas essa diminuída nos produtos animais tem sido boa para todo mundo aqui em casa.

Cozinhe isso também!

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