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quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Cena de um casal no shopping e uma sopa picante com queijo

Um casal passeia despreocupadamente no shopping, quando, de repente, a mulher agarra seu companheiro pelo braço e o puxa em direção a uma loja de cozinha em liquidação. O homem, acostumado já aos rompantes consumistas de sua esposa, não faz caso e se deixa levar. Ela aponta para uma travessinha cor de tomate maduro, apanha a peça nas mãos e solta um longo, dengoso e inapropriado-para-sua-idade: "onhonhóoooooooh, que butitchiiiinhu.... cutchi-cutchi..." O marido, sem saber onde enfiar a cara, concorda discretamente, na tentativa de acalmar a mulher maluca, e observa que há já muitas travessas em casa.

"Mas essa é piquinininha...!", tenta a mulher, com olhos pidões.
"E o que você faria nela?", perguntou ele, resistindo, buscando um furo em sua estratégia.
"Aaaaaaaah... um monte de coisa...! Um clafoutizinhozinhoinho, por exemplo... porção para dois!", retrucou, com uma cara de pamonha que sempre fazia seu marido rir. "Eu sei que não tem mais espaço", continuou ela, mostrando ainda estar em pleno domínio de suas faculdades. "Mas é tãaaaaaaao bonitinho... Eu vou levar, vai! Fica aí, que vou no caixa."

Ele apanha a peça de suas mãos, e, num menear de cabeça, sorri e diz: "Dá aqui. Vou te dar de presente, porque sei que você fica toda feliz quando tem coisa bonita onde fotografar sua comida."

: )

O mais incrível é que, na verdade, não fazia idéia do que faria com a tal travessa quando a ganhei. Mas desde que ela chegou à cozinha, foi usada praticamente todos os dias, justamente por ser pequena o suficiente para comportar porções para um casal. E, desta vez, com poucos ingredientes para uma sopa para dois, não foi diferente.

Queria uma sopa de legumes que pudesse ser feita com o que havia em casa, e sem nenhum grão ou cereal. Admito: é muito difícil pensar em uma sopa que não leve nenhum feijão, ervilha, pão ou batata, ou que não seja engrossada com farinha. Quando encontrei essa receita no livro de Heidi Swanson, sabia que teria um jantar delicioso. A sopa é mais rala, por não ter nenhum agente espessante (leia-se ingrediente com amido), então a quantidade de caldo é crucial para determinar sua consistência. Vá acrescentando aos poucos até chegar no ponto desejado. Aviso: ela é bem picante, mas o queijo equilibra bem a força da pimenta.

SOPA DE PIMENTÕES ASSADOS E TOMATE
(Adaptado do livro Super Natural Cooking, de Heidi Swanson)
Tempo de preparo: 40 minutos
Rendimento: 2 porções


Ingredientes:
  • 1/2 lata de tomates italianos pelados, com seu suco
  • 1/2 pimentão vermelho sem as sementes
  • 1/2 pimentão amarelo sem as sementes
  • 1 cebola pequena cortada em quartos
  • 1 dente de alho grande inteiro, com casca
  • 1/2 pimenta dedo-de-moça, sem as sementes
  • 3 colh. (chá) de azeite de oliva extra-virgem
  • 1 1/2 - 2 xíc. de caldo de legumes
  • 1/4 colh. (chá) de páprica picante
  • sal e pimenta-do-reino moída na hora
  • 2 bolas grandes de mozzarella de búfala
  • folhas de manjericão para decorar (opcional)

Preparo:
  1. Aqueça o forno a 180ºC. Disponha os pimentões, a cebola, o alho e a pimenta em uma travessa refratária pequena. Tempere com sal, pimenta e 1 colh. (chá) de azeite e leve ao forno já quente por meia hora, ou até que as pontas dos vegetais estejam chamuscadas. Vire-os no meio do cozimento.
  2. Retire do forno. Exprema o alho para fora da casca, descartando-a. Bata os legumes no liquidificador junto com o caldo e os tomates.
  3. Coloque a sopa em uma panela pequena e reaqueça em fogo baixo. Junte a páprica e acerte o sal e a consistência.
  4. Abra as mozzarelle com os dedos e coloque uma no centro de cada tigela. Despeje a sopa à volta do queijo, derrame o resto do azeite em fio sobre ele e sirva imediatamente.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Porque somos todos humanos

Dezembro de 2005.

Ainda havia caixas fechadas na sala. O apartamento tinha um cheiro forte de produtos de limpeza, tinta fresca e pessoas que não éramos nós, que haviam habitado aquele lugar por sabe Deus lá quanto tempo. Eu sabia que demoraria um bocado para que aquela sala tivesse nosso cheiro e nossa cara. A cozinha possuía apenas fogão, geladeira e uma mesa de madeira, que eventualmente iria para a sala. Por enquanto, ela era minha bancada de trabalho. A louça branca continuava empilhada dentro de um caixote plástico, no quarto, enquanto não decidíamos onde guardá-la.

Apanhei minha bolsa e fui pela primeira vez ao supermercado com intenções de abastecer minha inexistente despensa. Preciso de sal. E açúcar orgânico. É, eu já consumia açúcar orgânico naquela época. E farinha. E lentilhas, pois era Dezembro e logo viria o Ano Novo, e eu não poderia pensar num Ano Novo sem lentilhas. E óleo. E azeite. E arroz. E feijão. Dois tipos. Não, três. E milho para pipoca, pois eu posso querer comer pipoca, e o Allex adora pipoca. E caldo de legumes. O de cubinho. Qual? Parece tudo igual. Ah, o que tiver embalagem mais bonitinha. Que tiver mais legumes desenhados. Tá bom. A arroz para risotto. Nossa, que caro... E geléia, para o café da manhã. E manteiga. Com sal e sem sal. E suco. E groselha. E macarrão: fusilli, spaghetti, penne, rigatoni, tortellini de queijo... E orégano, pimenta, mostarda em pó, mostarda de Dijon, mostarda alemã, ketchup, maionese... Ah, e sorvete de creme, porque o Allex é doido por sorvete de creme, e precisamos ter sempre sorvete de creme na despensa, porque é muito versátil. Qual que ele gosta mesmo: N. ou K.? Uh, olha só: ervilhas congeladas. E brócolis congelado. Que mão na roda! Espinafre também! E favas! Ai, vou comprar aquele quibe vegetariano congelado que parece quibe de verdade. E pão de queijo. Para comer com requeijão.

Voltei para casa carregando comida suficiente para oitenta e três pessoas, e comecei a quebrar a cabeça para encaixar todos os itens nas duas pequenas prateleiras da área de serviço e no meu diminuto freezer tinindo de novo.

Tudo acertado, agora era hora de comprar os itens frescos para nosso primeiro almoço em nossa primeira casa. Saí a passos firmes em direção à feira. Minha mãe nunca fora fã de feira. Ela não gostava do barulho, da sujeira na rua e do método de venda ligeiramente agressivo e impaciente que alguns feirantes podem adotar. No entanto, não fazia um ano que eu voltara de minha viagem à Itália, e eu ainda tinha fresco na memória um estilo de vida quase bucólico, do qual as feiras faziam uma importante parte. Na minha mente, eu encontraria produtos maravilhosos e orgânicos, e faria amizade com os feirantes, trocando receitas e histórias. Ao chegar lá, no entanto, fui atendida às pressas depois de escorregar em uma pilha de folhas de alface murchas, e acabei levando ao menos sete tipos de frutas e legumes caros e fora de temporada que eu na verdade não queria. Voltei para casa atordoada e frustrada, mas empolgada por ter encontrado o que eu então só conhecia pelo nome italiano: feijões Borlotti.

Em casa, comecei a preparar a primeira de muitas refeições naquela cozinha. Tinha firme em minha mente o sucesso certo daquele almoço e de muitos outros. Imaginava meus amigos todos passeando pelo pequenino apartamento, com taças de vinho em uma mão e crostini na outra, esperando que eu terminasse de servir o primeiro dos três elaborados pratos daquele encontro, que seria então coroado com alguma sobremesa que seria "a melhor que eles já haviam provado", segundo todos me diriam.

O fato de até então nunca ter preparado mais de um prato de cada vez, quando na casa de meus pais, não parecia importar muito naquela minha fantasia.

Resolvi começar simples, àquele dia. Apenas arroz, feijão, quibe vegetariano e uma saladinha. O arroz era fácil. Vira minha mãe preparando arroz branco durante toda a minha vida. Pica cebola, refoga no óleo, junta o arroz, mexe, mexe, mexe, junta a água fervendo, tampa. O quibe era também fácil, vinha com instruções na embalagem. Não vou fritá-lo, pensei. Vou fazer no forno, que é mais saudável. Os feijões Borlotti já haviam sido debulhados, e, seguindo o livro de cozinha toscana, estavam na panela com água, azeite, louro e alecrim. Lindos, brancos e salpicados de rosa.

Quando tudo parecia pronto, Allex já se sentara à mesa, esperando por mim. Queria colocar tudo em travessinhas à mesa, mas quando fui transferir o arroz, veio a primeira surpresa: estava empapado.

"Não tem problema, eu gosto de arroz empapado", tentou Allex, lendo a decepção em meu rosto.

Servi os quibes, que pareciam bons, mas à primeira mordida, mostraram-se queimados por fora e ainda congelados por dentro.

"Não tem problema", tentou ele novamente, "a gente bota ketchup em cima e tá bom".

E quando todas as minhas esperanças se depositavam em meu lindo feijão cor-de-rosa, ele se revelou cinza. Ninguém nunca me dissera que feijão corado fica cinza depois de cozido, e muito menos que ele não faz caldo! Não é à toa que todas as fotos dos livros de culinária só mostram os feijões ANTES. Olhar para aquelas bolinhas cinzentas nadando em água cristalina foi no mínimo triste. Não sabia o que fazer, e comecei a amassá-los, na tentativa de criar um caldinho. Provei. Sem sal. Mas a receita não mandava colocar sal. Seriam comidos assim? Coloquei sal. Mas ele se dissolvia na água e não parecia atingir os feijões de fato.

"Tudo bem, não dá para acertar sempre", disse Allex, ainda em tom conciliatório.

Comi triste aquela que é considerada até hoje a pior refeição já preparada por minhas mãos, quase superada apenas pela torta de pé.

Conforme o tempo foi passando, fui acertando o arroz branco, mas continuava errando feio no arroz integral, que hoje, finalmente, comecei a acertar. O quibe vegetariano ficou na história, conforme fui parando de comprar comida pronta. Os feijões Borlotti continuaram um desastre por muito tempo até entender que seu segredo está no tempero pós-cozimento. Depois de cozinhá-los com alguns dentes de alho inteiros, alecrim, sálvia, louro, azeite, pimenta e um tomate (que os torna menos acinzentados), eles devem ser escorridos e temperados com sal, pimenta, salsinha fresca, um fio generoso de azeite e um nadinha de vinagre. E só então você entende a paixão dos toscanos por feijões, pois eles são, de fato, uma perdição. A água deliciosamente aromática em que eles foram cozidos pode e deve ser usada em sua próxima sopa de legumes.

E o que aconteceu àquela lentilha de Ano Novo? Ficou na prateleira, fechada, até um dia, um ano depois, em que tentei preparar um prato árabe de arroz, lentilhas e cebolas caramelizadas, que resultou em lentilhas duras sobre arroz empapado e cebolas queimadas.

sábado, 11 de abril de 2009

Il mio minestrone autunnale

Algumas atividades culinárias muito simples melhoram surpreendentemente meu humor; e uma delas é debulhar feijões. Não sei se porque a memória dá um salto para minha infância na já extinta chácara de meus pais, onde minha mãe me colocava para debulhar ervilhas, ou se porque me parece um ato extremamente meditativo. Não importa, realmente. A satisfação que sinto em abrir as vagens num estalo [Pop!] e passar a ponta do polegar pela base dos feijões coloridos, empurrando-os gentilmente em direção à tigela de metal [tereléntentein!] não tem preço, e por isso, sempre que encontro feijões frescos à venda, ignoro deliberadamente todas as variedades secas em minha despensa.

Quem leu o post anterior viu que feijões borlotti (ou corados, em português) são uma antiga obsessão minha. Dei pequenos pulinhos internos [ok, a quem estou querendo enganar? Pulei de verdade, mesmo.] quando vi que o mês de abril é sua época. Todas as bancas da feira têm pilhas dessas lindas vagens cor-de-rosa que me encantaram desde o dia em que soube de sua existência. Mesmo que os feirantes ofereçam bandejinhas de feijões já debulhados, não penso duas vezes e peço pelas vagens, não apenas pelo prazer de estourá-las eu mesma, como também porque assim na vagem duram cerca de uma semana se estiverem fresquinhos. Quinta-feira voltei feliz e contente, carregando meio quilo de feijão borlotti e um quilo inteiro de feijão-de-corda, que estava sendo vendido por um senhor simpático e de forte sotaque nordestino na barraca em frente à minha favorita, que sempre me chama a atenção pela variedade de pimentas e temperos. Sinceramente, nem mesmo sei se os feijões-de-corda estão na época, mas, sendo humana e tudo o mais, não resisti.

Os feijões borlotti são deliciosos cozidos com muito tempero, escorridos e retemperados com um fio de azeite, um nada de vinagre e salsinha fresca. Mas também ficam sensacionais em uma de minhas sopas favoritas, com catalogna (devidamente comprada hoje para exatamente esse fim). Mas os feijões da última feira ainda estavam na geladeira, cozidos, imersos em seu caldo ralo e aromático, tendo eu consumido apenas 2/3 deles com legumes e salada. Ontem viraram um minestrone de outono, com batatas, repolho crespo, cebola e tomate, sobre uma bela fatia de pão de centeio, polvilhado com um generoso punhado de Grana Padano e um fio de azeite. Deliciosamente reconfortante agora que as noites começam a ficar mais frias.

É difícil falar em quantidades exatas quando falamos de minestrone, que costuma ser uma sopa "svuota frigo". Mas vamos lá...

MINESTRONE AUTUNNALE
Rendimento: 3 porções
Tempo de preparo: 1h-1h20m (se feita toda em um dia só)


Ingredientes:
(feijões)
  • 250-300g feijões borlotti frescos (peso incluindo a vagem), ou 1 xíc. cheia de feijões cozidos
  • 2 dentes de alho inteiros, sem casca
  • 1 galhinho pequeno de alecrim fresco
  • 3-4 folhas de sálvia fresca
  • 1 folha de louro
  • 1 batata pequenininha, cortada ao meio, com ou sem casca
  • 2 colh. (sopa) azeite
  • 1 pitada de pimenta calabreza seca
  • pimenta-do-reino a gosto
(minestrone)
  • 2-3 batatas pequenas, cortadas em cubos (com casca mesmo)
  • 7-8 folhas de repolho crespo (cuidado ao substituir pelo repolho comum, que tem um gosto muito mais forte)
  • 1/3 de lata de tomates pelados (cerca de 2 tomates)
  • 1/2 cebola pequena picada
  • queijo parmesão ralado grosso
  • azeite de oliva extra-virgem
  • pão de centeio (opcional)

Preparo:
  1. Coloque todos os ingredientes do feijão em uma panela, cubra com o dobro de volume em água e leve à fervura. Abaixe o fogo e deixe cozinhando por 20-30 minutos, dependendo do frescor dos feijões. Quando estiver pronto (os feijões estarão macios), retire com uma colher a batata e o alho e esmague em um pratinho, até virar um purê. Retorne ao caldo e misture bem. Se possível, faça os feijões de véspera e guarde-os num tupperware bem vedado na geladeira (com o caldo) durante a noite, período em que o sabor do caldo ficará mais acentuado.
  2. Aqueça um fio de azeite em uma outra panela e refogue a cebola em fogo baixo até que fique macia e ligeiramente dourada. Junte o tomate, mexa bem para despedaçá-los, e deixe apurar um pouco, como um molho. Junte as batatas em cubos, uma pitada de sal e mexa bem.
  3. Junte os feijões com seu caldo. Corte o repolho crespo em fatias de 1cm e junte à sopa. Se achar necessário, acrescente mais 1 xícara de água, mas lembre-se de que muita água pode diluir o sabor do caldo. Misture, leve à fervura e abaixe o fogo, deixando que cozinhe por cerca de 30 minutos, parcialmente tampado.
  4. Quando a sopa tiver apurado um pouco e as batatas estiverem se desmanchando, experimente. Tempere com sal e pimenta-do-reino a gosto. Coloque uma fatia de pão em cada prato (se estiver usando) e sirva a sopa. Polvilhe com uma generosa quantidade de queijo parmesão e um fio de azeite. A sopa pode ser reaquecida sem problemas, desde que o queijo só seja acrescentado na hora de servir.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Orzetto alla Trentina

Um dia eu encontro uma sopa italiana que fotografe bem. :P
O dia estava cinzento e chuvoso, pisos de pedra molhada refletindo o céu prateado, e Trento era linda e calma. Minha cunhada e seu marido foram nos buscar na estação de trem e haviam reservado um almoço em um restaurante típico trentino. É sempre um bom sinal dar de cara com o dono do restaurante terminando um enorme prato de spaghetti no balcão do restaurante.
 Minha cunhada nos avisou que comprara uma seleção de antipasti para a noite (maravilhoso Speck, Prosciutto, deliciosa Sopressa Veneta e uma Mozzarella e Ricotta fresquíssimas, de chorar de boas*); e por isso fomos direto ao prato principal.

Tão bom antipasto, que me lembrei de fotografar apenas quando já havíamos comido metade.
Quando pedi pelo Orzetto alla Trentina, o marido de minha cunhada ficou inconformado: "Mas é comida de dieta!" E eu, pensando apenas na cevada (orzo), dei de ombros e pedi mesmo assim. Não sei exatamente o que esperava que fosse. Apenas sei que quando o prato de sopa de cevada com batatas e cenouras foi colocado à minha frente, senti aquela espécie de vergonha que se sente quando se dá conta de que você foi o idiota que pediu a pior coisa do cardápio.

Veja bem: eu ADORO sopa de cevada com legumes. Mas essa me parecia familiar demais, do tipo "faço em casa todo dia", e me soou como um desperdício de refeição de férias, principalmente ao olhar o apetitoso Strangolapretti do Allex: pequenas almôndegas de pão, queijo e verdura cozidas e banhadas num mar de manteiga.

Essa coisa linda de ver montanhas em torno da cidade...
Quando provei de minha sopa, ela estava gostosa. Mas confirmou meu temor: tinha gosto de sopa feita em casa; particularmente na MINHA casa. Já estava olhando com olhos gulosos os pratos ao meu lado, quando, de repente, o senhor comedor de spaghetti aproximou-se de mim, para ralar uma comedida mas certeira porção de queijo sobre minha sopa. Experimentei de novo.

Era outra sopa. Completamente outra. E de repente eu estava feliz novamente com meu prato, e pensando como um único ingrediente pode trazer todos os outros para um mesmo coro harmônico. E como era bom aquele queijo. E raspei meu prato com a ajuda de belos nacos de pão. Tão focada, esqueci-me de perguntar que queijo era.

E fiquei com aquilo na cabeça, aquilo do bom ingrediente, e como um queijo de pacote, pura serragem, não teria feito absolutamente nada por aquele prato. No fim, no entanto, era um conjunto de bons indivíduos: um caldo que tinha gosto de caseiro, cenouras doces, batatas com gosto de batatas (e só quem come batatas com gosto de batatas pode saber quão não-batatas algumas batatas são), grãos de cevada macios mas al dente, um perfume de ervas aromáticas, uma base de cebola dourada em azeite. Não consegui sentir qualquer nuance de carne, no entanto, então me surpreendi ao vê-la na receita de Marcella Hazan, ao pesquisar em casa, e não me senti menos autêntica ao omiti-la na versão que preparei em casa.

A sopa repetida agora em São Paulo ficou igualzinha àquela, e ainda que o parmesão uruguaio não tenha a complexidade de sabor e a doçura do queijo que foi esparsamente polvilhado sobre meu prato em Trento, o efeito de comunhão com os outros sabores foi o mesmo.

Vinha evitando preparar sopas para o pequeno caçador de perigos, pois querendo comer sozinho, pressentia o caos abominável. Mas ele adorou seu orzetto alla trentina, e raspou o prato, comendo boa parte dela quase sozinho, com mamãe ajudando a levar a colher para o lado certo.

ORZETTO ALLA TRENTINA
(Adaptado do ótimo Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica, de Marcella Hazan)
Tempo de preparo: cerca de 1 hora
Rendimento: 4 porções

Ingredientes:
  • 1 1/4 xic. cevadinha
  • 500ml caldo de legumes caseiro
  • 1/4 xic. + 2 colh. (sopa) azeite de oliva extravirgem
  • 1/2 xic. cebola picada
  • 1/2 colh. (chá) alecrim seco ou 1 colh. (chá) alecrim fresco picado
  • 1 colh. (chá) salsinha picada
  • 1 batata média
  • 2 cenouras pequenas ou 1 grande
  • sal e pimenta-do-reino a gosto
  • queijo parmesão de boa qualidade (do tipo saboroso o suficiente para comer pedacinhos depois da refeição)

Preparo:
  1. Coloque a cevada e o caldo em uma panela grande e termine de completar com água até que haja uns 7-8cm de líquido por cima da cevada. Leve à fervura branda e cozinhe por cerca de meia hora, ou até que a cevada esteja cozida mas não empapada.
  2. Enquanto isso, numa frigideira pequena, aqueça todo o azeite e refogue a cebola em fogo médio, até que doure, sem queimar. Junte o alecrim e a salsa, mexa bem e depois de um minuto, desligue o fogo. 
  3. Descasque a batata e a cenoura, lave em água fria, seque e corte em cubinhos pequenos (para que cozinhem rápido). Cada um deve render cerca de 2/3 xícara.
  4. Quando a cevada estiver no ponto, junte a batata, a cenoura e o conteúdo da frigideira, temperando com sal e pimenta a gosto. Seja generoso com a pimenta, mas vá acrescentando o sal aos poucos, para que a sopa não continue reduzindo e acabe salgada demais. 
  5. Continue cozinhando por mais trinta minutos, ou até que as batatas e as cenouras estejam macias, acrescentando mais água se a sopa parecer muito seca. Ela não deve ficar nem muito grossa, nem muito rala.
  6. Sirva imediatamente, polvilhada com parmesão e mais um fio de azeite. (A sopa pode ser preparada com um ou dois dias de antecedência e reaquecida, mas o parmesão só deve ir ao prato na hora de servir.)

* Que eu não sou vegetariana propriamente dita todo mundo sabe, pois vira-e-mexe aparecem receitas de peixe por aqui. Mas como até hoje eu me torturava por, durante minha primeira viagem à Itália, ter ido a Parma e não ter comido Prosciutto, resolvi mandar minha "dieta 90% vegetariana" (acho que esse é um termo mais correto) e me esbaldar com os emutidos italianos. Estava tudo uma delícia, mas com certeza me deu uma base de comparação de como meu corpo funciona – ou NÃO funciona – com consumo diário de carne, mesmo em pequenas porções.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Às vezes nada dá certo, mas de vez em quando a salada de batatas compensa o pão porqueira

Ontem, no mesmo fatídico domingo em que, pela primeira vez, não produzi um pão ciabatta semi-decente, saiu de minha cozinha uma salada de batatas de repetir até não sobrar nem molho no fundo da travessa. Ainda bem que aqui em casa todo mundo é (mais ou menos) comedido. Essa salada ficou sensacional comida direto da geladeira, hoje no almoço.

Se quiser, pode descascar as batatas, antes ou depois do cozimento. Eu acho um desperdício de sabor e nutrientes. Com certeza perde-se na apresentação, mas quem se importa com isso num almoço de domingo?

SALADA DE BATATAS E VAGENS ESTILO EUROPEU
(Adaptado do livro Professional Baking)
Tempo de preparo: 40 minutos + 20-60 minutos de espera
Rendimento: 4 porções


Ingredientes:
  • 500g de batatas
  • 400g de vagem macarrão
  • 1/2 cebola picada
  • 2 colh. (sopa) de vinagre de vinho tinto
  • 80ml de caldo de legumes
  • 1 colh. (sopa) de mostarda de Dijon
  • 2 colh. (sopa) de azeite de oliva extra-virgem
  • 1/4 colh. (chá) de açúcar orgânico claro
  • sal
  • pimenta-do-reino
  • 2-3 cebolinhas picadas
  • 1 punhado de salsinha picada

Preparo:
  1. Cozinhe as batatas inteiras e com casca, em água suficiente para cobri-las mais 5cm, até que um garfo as perfure facilmente mas não as desmanche.
  2. Enquanto isso, corte as duas extremidades das vagens, jogando-as fora, e corte as vagens em pedaços de cerca de 3cm. Coloque uma panela com água para ferver e, quando a água estiver em ebulição, junte as vagens e cozinhe até que fiquem macias.
  3. Escorra as batatas e volte-as à panela em fogo muito baixo, para que terminem de secar, até que nenhum vapor saia delas (menos de 1 minuto). Assim que conseguir manuseá-las, mas tendo-as ainda bem quentes (ou não absorverão o tempero), corte-as em fatias grossas ou quartos. Misture às vagens numa travessa.
  4. Em uma panela pequena, aqueça o vinagre, a cebola picada e o caldo de legumes, até que abra fervura. Desligue e misture a mostarda, o açúcar e sal e pimenta a gosto. Junte o óleo e bata de leve com um garfo ou fouet, para que o preparado emulsione bem e fique homogêneo.
  5. Junte o molho às batatas e vagens ainda quentes, misturando muito bem. Deixe descansando em temperatura ambiente por 20 minutos a 1 hora. Na hora de servir, misture a salsinha e cebolinha.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Comendo direito: 1º dia

Apesar da pilha de trabalho que me esperava hoje, comecei meu dia cedo, assando um pão. Depois que se pega o jeito da coisa, percebe-se que não são gastos mais de 30 minutos no processo. As 2-3 horas de fermentação e forno, você usa trabalhando em outra coisa (no meu caso, no design de uma mala-direta para um cliente).

Confesso que o calor me deixa intensamente preguiçosa, e só pensar em ficar em frente ao fogão ou sair na rua para abastecer a geladeira em pleno meio-dia me dá fastídio. Então o desafio: que refeição "light" pode ser preparada sem ingredientes frescos?

Eccola: Sopa de Milho. Parece estranha, mas é de fato saborosa, e tem pouco mais de 200 calorias, se tudo isso. E sendo o milho adocicado e a consistência, cremosa, a sopa satisfaz rápido com uma porção pequena e ainda evita sua vontade por um doce depois. Se achá-la simples demais, tente picar um tomate redondo, tirando as sementes e a parte aguada, e salpicar esse tomate por cima na hora de servir. Ou guarneça com torradas de pão Pitta esmigalhadas, menos calóricas que croûtons. Também pode temperá-la com ervas frescas como salsinha ou tomilho.

SOPA CREMOSA DE MILHO
Rendimento: 1 porção
Tempo de preparo: 15 minutos


Ingredientes:
  • 1 lata de milho verde
  • 1/2 tablete de caldo de legumes
  • 1 dente de alho grande picado
  • 1 colher (sopa) de azeite de oliva extra-virgem
  • pimenta-do-reino moída na hora a gosto
  • 1 pitada minúscula de pimenta caiena ou chilli em pó

Preparo:
  1. Aqueça o azeite em uma panela pequena, em fogo médio-baixo, e refogue o alho até que doure ligeiramente, sem queimar. Junte o milho e mexa bem, até que comece a soltar um perfume de milho cozido (1 minutinho).
  2. Desligue o fogo e passe o conteúdo da panela para um liquidificador. Junte o tablete de caldo e 1 xícara de água e bata até que fique cremoso e homogêneo.
  3. Passe por uma peneira, amassando com uma colher, para que todo o creme seja expremido. Jogue fora a massa de fiapos que ficou na peneira. Aqueça o creme novamente e prove. Tempere com as pimentas. Como o milho já é conservado em sal e o caldo também o tem em grande quantidade, provavelmente não será preciso salgar. Se achar muito espesso, junte mais água. Se achar muito ralo, cozinhe em fogo baixo, mexendo sempre, por mais alguns minutos até que engrosse. Guarneça como quiser e sirva.
Para o jantar (depois de uma passada no mercado), numa hora mais fresquinha), uma saladinha bastante conhecida e muito distorcida: Ceasar Salad. Um pouco mais calórica, mas por isso mesmo perfeita para um prato principal. Use ovos de origem confiável, no entanto, pois ele será usado praticamente cru. Se fizer 4 porções, use 1 pé inteiro de alface e 4 filés de anchova, e o restante do molho permanece o mesmo. Não guarde de um dia para o outro, pois fica horroroso.

CEASAR SALAD
Rendimento: 2 porções (não recomendo fazer menos de 2, pois a salada pode ficar enxarcada demais de molho)
Tempo de preparo: 15 minutos


Ingredientes:
  • 1/2 pé de alface Romana
  • 1/2 xíc. de croûtons de alho comprados prontos ou feitos em casa
  • 1 ovo orgânico
  • 2 filés de anchova amassados com um garfo
  • 1/4 xíc. de queijo parmesão ralado grosso ou em fatias finas
  • 1/2 colh. (chá) de molho inglês Worcestershie
  • suco de 1/2 limão
  • 1/4 xíc. de azeite de oliva extra-virgem
  • 1 dente de alho pequeno
  • sal e pimenta-do-reino a gosto

Preparo:
  1. Esquente água numa panelinha até ferver. Coloque dentro o ovo com cuidado e ferva por 1 minuto exatamente. Retire da água com cuidado e reserve.
  2. Descasque, pique e amasse o alho no fundo de uma tigela.
  3. Lave bem o alface e seque as folhas. Rasgue em pedaços pequenos com as mãos e coloque na tigela.
  4. Junte o azeite e mexa bem, para que todas as folhas fiquem cobertas. Faça o mesmo com o molho inglês, o sal e a pimenta.
  5. Quebre o ovo e junte a clara e a gema mole à salada, mexendo bem, até que as folhas fiquem reluzentes. Junte o suco, mexendo, e você verá o molho ficando cremoso. Junte as anchovas amassadas. Experimente e veja se é preciso mais azeite, mais limão ou sal e pimenta.
  6. Jogue os croûtons e o queijo por cima e sirva imediatamente.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

A goteira, o chalé a expectativa (e um pot-au-feu vegetariano)


Tinha uma goteira no meio do meu telhado. No meio do meu telhado tinha uma goteira. Nunca mais vou esquecer de quanto vi aquele lustre cheio d’água, dois meses depois de assinar 25 anos de dívida pra comprar minha casa própria. Com goteira.

Isso é uma foto da luminária da minha cozinha cheia de água. Uhúuuu!

Foi depois de uma semana complicada, de chuva intensa e aquela luz cinza que tira a graça da vida, que descobrimos a infiltração. Um dia que já estava meio ruim, e que deu um jeito de ficar pior. Um dia antes de sairmos para uma viagem que ninguém queria fazer. Um chalé reservado dois anos antes, antes da pandemia e antes de cancelarem a corrida para o qual o chalé havia sido reservado. Uma reserva de improviso, “é o que tem, então vai isso mesmo”, olhando de nariz torcido para aquela foto do chalezim minúsculo, feiozinho e escuro, que parecia um pequenino coletivo de mofo e bed bugs. Uma viagem que, no afã da mudança de casa e cidade, esquecemos de cancelar. Ninguém queria ir, ninguém tinha saco ou vontade, mas ninguém queria perder as muitas doletas pagas por aquela cama pouco convidativa; ainda mais porque a previsão no parque era de chuva. Que é que se faz num parque com chuva? Fica-se trancado no chalezim porqueira, jogando jogo de tabuleiro de cara amarrada. Ieeeeei! Super afim. Mas não dá pra rasgar dinheiro. Não com mortgage pra pagar e telhado pra consertar. Mas como a semana ia de vento em popa, o aplicativo de tempo previa chuva para Ottawa também, e nem que a gente quisesse poderia ir viajar: tem que ficar em casa olhando o pinga-pinga pra trocar o balde e rezar pra deuses antigos pro teto da cozinha não encher d’água e despencar.  

“Amanhã a gente vê o que faz”, disse Allex, tentando fingir que havia alternativa.

A noite foi longa.

A manhã, no entanto, era azul. Surpreendentemente azul, secando rápido a grama encharcada e as poças nas ruas. O tempo virou durante a madrugada e, de repente, não havia mais a menor chance de chuva no fim de semana. Deuses antigos são milagreiros. O empreiteiro me telefonou e disse que viria na segunda-feira. A viagem estava de pé, e não perderíamos o depósito, afinal.

Mas o coração continuava pesado. O desgosto enevoava a vista, e os sinais se embaçavam. Fizemos as malas sem sorrisos, quando as crianças voltaram da escola, e enfiei qualquer coisa na térmica, sem expectativa de ter fome por dois dias, ou mesmos em acreditar que ficaríamos fora tanto tempo.

“Tô estranho”, ele disse. “Não sei dizer o quê. Você tá também com uma sensação esquisita dessa viagem? Tipo que não é pra ir? Sei lá. Qual é seu feeling?”

Respirei fundo. Havia sim uma estranheza, mas eu já não sabia dizer se eu encontrara conforto na miséria ou se pressentia perigo. Fechei os olhos. Quando me perguntei se deveríamos ir, a imagem na parte detrás de minhas pálpebras era um céu estrelado. Uma fogueira à beira do lago. Risadas. Abraços.

“Vamos. Se começar a parecer furada, a gente volta.”

A dez minutos de casa, cada um de nós lembrou que havia esquecido alguma coisa. “É sinal pra gente ficar em casa”, ele disse. “Não é não”, insisti. “A gente vai voltar e pegar tudo, e ficar feliz que a gente lembrou ainda perto de casa. Olha que sorte!”

Conforme nos afastávamos de Ottawa, as nuvens dissipavam e abriam espaço para um céu azul cremoso, esquentando os primeiros dias de outono, fazendo cintilarem as árvores ao longo da estrada que ousaram trocar de cor tão cedo, queimando vermelho, laranja e amarelo em meio à vegetação verde de saudade de verão.


Paramos em Renfrew, uma dessas cicadezinhas minúsculas do interior de Ontario, em que o centro comercial inteiro é só uma rua de três quarteirões, feito filme do velho oeste. A pizza que pedimos num botequim local demoraria 40 minutos para ficar pronta, e por isso nossos olhares se atraíram pela propaganda no café em frente, que dizia “Local Beers Only”.


O café, Ottawa Valley, era charmosinho daquele jeito hipster instagramável, e vendia diversos produtos de artesãos locais. Pedi uma Strawberry Chocolate Stout, Allex, uma BeaverTail Lager, e as crianças ganharam, cada uma, um cupcake. Enquanto elas conversavam com a barista do lado de dentro, Allex e eu curtíamos a luz rosa e amarela do por-do-sol, que desacelera o tempo e suspira sorrisos.

“Começou bem”, eu disse.

“Pensei a mesma coisa.”


Chegamos ao chalé já com noite escura e uma pizza ainda quente no porta-malas. A proprietária abriu uma casinha pequena imersa na noite, surpreendentemente limpa e aconchegante. Por essa eu não esperava.  O chalé mequetrefe da foto era bom na vida real. Normalmente é oposto que ocorre. Meu corpo se encheu de esperança.

Descarregamos logo as malas, e descemos o terreno até o deck onde podíamos acender o fogo, usando lanternas de cabeça para enxergar na noite. “Ainda bem que a gente voltou pra pegar o acendedor e a lenha, porque essa aqui tá molhada de chuva”, Allex dsse. “Tá vendo? Sorte”, lembrei.

O fogo acendeu rápido e iluminou nossos rostos. As crianças usaram seus canivetes para fazer pontas em galhos, onde espetariam marshmallows, dourados na brasa sob a fogueira. Abri uma cerveja trazida de casa, e sentei-me ao lado deles, ouvindo a ondulação do lago escuro contra as pedras, e os grilos tímidos que cantavam ao ritmo do crepitar do fogo. Ousei olhar para cima, relaxando os ombros, e sorri largo, gostoso, ao ver aquele céu tão estrelado, que era como se uma criança tivesse derrubado purpurina no chão. 


“A Ursa maior está lá. Aquele é o rabo dela”, apontei.

“Mas mamãe, urso não tem rabo comprido!”

“Ah, filho, não fui eu que dei nome pra isso.”

“Cadê a lua?”

“Escondida atrás das nuvens ali no horizonte.”

“Queria que a lua saísse.”

“Eu também.”

E os risos das crianças sopraram as nuvens devagar, e, meu peito foi ficando leve. E assistimos, de coração quente, o voo lento da lua detrás do escuro, até surgir inteira, redonda e brilhante. Ela refletiu nas águas do lago, que se tornou visível, e desenhou de prateado morros e árvores, iluminando alegria em nossos rostos.

O que eu havia visualizado estava ali.

Fomos acordados pelas crianças, ávidas para ir lá fora. Seus rostos, grudados à janela que embaçava com sua respiração, eram rosa e amarelo e lilás, como a bruma que cobria o lago no nascer do sol. Quando saí da casa, perdi o fôlego. Era como uma pintura de Turner, aquele sol disforme manchando as nuvens do céu e os vapores que se erguiam do imenso lago, em espectros de cor como o coração de um cristal. 

 Não havia o menor sinal de chuva.

Saímos de carro em busca de café, e foi aos risos nervosos que estacionamos numa loja de conveniência no meio do nada com lugar nenhum. Atrás de pilhas de revistas velhas, produtos de limpeza, chips e chicletes, havia um balcão que se dividia em duas diferentes redes de fast-food, com uma só pessoa atendendo os dois caixas. Ambas as redes cópias de segunda classe de redes de fastfood já de segunda classe. Entre locais que faziam seus pedidos matinais, levamos para casa copos descartáveis com café americano com gosto de cinzeiro, e sanduíches para o almoço que pareciam ter sido encontrados no bolso de trás da calça de alguém.

Mas o céu era azul e a refeição-depressão gerou assunto por todo o tempo que levamos para chegar ao parque e alugar uma canoa. 


A canoa era necessária para atravessarmos o lago Mazinaw em direção a uma ilha imensa, com formações rochosas altas e dramáticas, onde se vê pinturas rupestres. A canoa custava 40 dólares pelo dia todo. Fiquei me perguntando como organizavam a chegada e partida das canoas alugadas ali na ilha. “Custa 40 dólares pra pegar a canoa daqui até a ilha. Mas da ilha até o parque, a canoa custa 400”, brinquei. “É por isso que, lá na ilha, hoje, você encontra uma comunidade de turistas abandonados, que nunca voltaram à terra firme, porque não tinham dinheiro para a canoa de volta.”

Enquanto esperávamos nossa vez, Laura e Thomas apanharam galhos e folhas e pedras, e construíram fortes em volta de formigueiros, para protegê-las de ataques de predadores. Laura, no entanto, tocou qualquer coisa com xixi de gambá, e passou o resto do dia com as mãos fedendo a fossa séptica, não importava quanto álcool gel esfregássemos em seus dedos. Ai, Laura.

Todos esqueceram do fedor assim que entraram no barco. Allex à frente, crianças sentadas no meio, no fundo do barco, e eu na parte de trás. Era a segunda vez que remávamos juntos, e eu tinha certeza de que sabia o que fazer.

Só que não.

Sair da baía de águas calmas foi fácil. Mas assim que entramos no lago, o vento forte começou a mudar a direção do barco, que chacoalhava por cima das ondas com jeito de corredeira. Eu que só tinha remado em descida de rio tranquilo, passei  uma hora e meia ouvindo os comandos desesperados de Allex, tentando me fazer remar pro lado certo. Eu ria. Muito. Mesmo quando uma das ondas bateu com força, entrou no barco, e molhou as calças das crianças e o fundo da minha mochila.

Remamos de forma ridícula pelo estreito raso e tormentoso até uma parte do lago um pouco mais calma, onde pudemos nos aproximar das rochas e ver as pinturas. “Mamãe! Alguém perdeu uma canoa!”, Laura apontou para uma canoazinha amarrada a uma pedra. “Não, filha, olha lá. Amarraram o barco, deixaram a mochila ali um pouco mais pra cima na pedra, e olha lá, bem pra cima, segue aquela corda: olha a moça doida escalando o paredão! Legal, né?”

Voltamos contra a corrente, rindo sem parar de nossa (minha inaptidão), até chegar ao píer da ilha: um deck estreito de metal, desses que balançam junto com a água, com tantas canoas amarradas, que parecia um cacho de bananas.

“Não tem ninguém do parque pra ajudar a gente a sair do barco??”, perguntei.

“Não, ué.”

“Allex! Como é que faz? Como é que a gente ESTACIONA essa geringonça?”

“A gente vai descobrir, ué.”

Meu cérebro estava em branco. Taí uma situação pela qual eu nunca tinha passado antes. A água bravia, o barco balançando e querendo ser levado embora, minha mochila com celular e máquina fotográfica (sem contar os sanduíches mequetrefes), nenhum espaço no píer, alto, na altura da minha testa, também balançando, e nenhum ser humano mais experiente pra dizer o que fazer.

“Pára de panicar, Ana. Rema até encostar aqui na lateral”.

“Mas tá escrito que é proibido docar aqui.”

“É proibido docar. Mas vocês vão sair do barco por aqui.” Eu imaginei a gente saindo do barco e a correnteza levando o barco embora com o Allex dentro, e eu e as crianças integrando a comunidade de turistas sem dinheiro nem barco que vivem no topo da ilha.

“Vai, tô segurando o deck. Laura, sai”. Laura se dependurou no deck, ficou em pé no barco, e saiu. “Thomas, sai.” Thomas saiu. Eu vi meus filhos ali, e imaginei o barco indo embora e meus filhos sendo criados pela comunidade abandonada de turistas, ouvindo histórias de pais malvados que largam criancinhas na ilha e sobre a origem do rabo da Ursa Maior. “Vai, Ana, sai.” Taqueospariu, essa porra vai virar. Dei minha mochila pra Laura, e lá vou eu ficar de pé no barco e sair. Balança, mas não cai. Balança, mas não cai. “Boa. Agora segura a cordinha aqui e puxa o barco até aquela ponta ali, pra eu descer e amarrar.”

Santo Allex e sua habilidade de gerenciar equipes.

Puxo a corda, seguro o barco, ele sai, com muito mais elegância do que eu. Enquanto ele tenta uns três nós diferentes para amarrar nossa única garantia de saída da ilha com aquela cordinha de nylon desfiando, eu peço desculpas por estar no caminho de três canadenses de trinta e poucos anos, todos igualmente barbados e vestidos de camisas de flanela vermelha. Rio por dentro, e imagino que estou sendo recebida pelos nativos da ilha. Eles se entreolham, olham para a miríade de nós que Allex está fazendo, e discutem entre eles como colocar o barco deles na água.

“Pelamordadeusa, barco, não vai embora!”, eu digo, e saímos do caminho, subindo a trilha até o próximo mirante, para comermos nossos sanduíches-depressão. Só ali vejo a extensão da aguaceira do barco. As crianças estão tremendo de frio, depois de uma hora e meia sentados num barco de metal, de calças molhadas. Meus filhos são muito jóia. Não conheço muita gente que manteria o bom humor nessa situação. 


Subimos a trilha que um dia Allex quer fazer correndo (em teoria, ano que vem, se não for cancelada outra vez), até chegar em um mirante de onde víamos todo o parque, e toda a extensão de água que havíamos remado. Quando as crianças deram o primeiro sinal de cansaço – meu alarme apita quando Laura faz duas reclamações completamente sem cabimento uma em seguida da outra – sugeri que voltássemos. Afinal, ainda tínhamos que remar de volta. “E se o barco tiver soltado, mamãe?”

“Ai, filha, a gente vai morar aqui na ilha.”

“Mas a gente não tem comida!”, Thomas disse.

“Eu ainda tenho uma barrinha de cereal. A gente pode dividir. Haha.”

“Ai, mamãe.”

Não vou mentir que existia sim a possibilidade do barco ter saído pra dar uma volta sem a gente. Mas ele estava ali, bonitinho... só que em um lugar diferente. Estava na cara que aquele trio de hipsters canadenses achou que a gente 1. Estava  no meio do caminho do barco deles e 2. Tinha feito merda, e resolveu reamarrar nosso barco de um jeito mais apropriado.

Allex desamarrou o barco, e eu puxei a pontinha dele para perto do deck, no movimento contrário ao que havíamos feito para subir na ilha. Apanhei os coletes salva-vidas, vestimos, e eu fui a primeira a subir no barco, balança mas não cai, balança mas não cai, por favor, que eu não quero perder meu celular nessa aguaceira não. Vieram as crianças, uma a uma, e então Allex. E remamos para longe do píer, e por um minuto pelo menos, pareceu que a gente sabia o que estava fazendo. Vai, Ana, vê se rema pro lado certo.

Clarquenão.

“Cáspita Ana! Não é tão difícil!”, Allex ria.

“É a segunda vez na minha vida que eu tô fazendo isso, e acho que eu tô indo muito bem, obrigada!”

Um dois três turistas, quatro no pequeno barco. Iam navegando pelo lago chacoalhando, quando o vento forte se aproximou. A Ana remou errado quando veio a onda, e o barco quase, quase virou.

Só que não.


Sãos e salvos em terra firme, a gente mal acreditava quão divertido estava sendo aquele dia. Voltamos ao chalé com o dia ainda lindo e sol, apesar da temperatura de inverno brasileiro, e Laura e eu resolvemos nadar. Ela logo desanimou com a água gelada, e trocou minha companhia de sereia congelada pela do pai num caiaque. Que tinha isso que descobrimos, que o aluguel do chalé dava direito a usar canoas, caiaques e outros apetrechos deixados ali à disposição. Os dois foram longe, quase alcançando novamente a ilha que víamos do chalé, e voltaram para trocar Laura por Thomas, os dois felizes de poderem remar dessa vez.

O dia terminou como o anterior, com fogueira e marshmallows, e o chuvisco leve serviu para mandar as crianças para cama, mas não os adultos.  

Como cortar lenha sem cortar seu pé. Isso a escola não ensina.


A intenção era ir embora depois do café, mas o dia nasceu claro e convidativo outra vez, e fomos enrolando o mais possível. As crianças cortaram lenha com o machado, habilidade aprendida no fim da tarde anterior, e então quiseram navegar pelo lago de pedalinho. Eu bem achei que era hora de andar de caiaque pela primeira vez, e deslizei, remando, até me sentir perdida na água preta e funda lá no meio. De novo, quando as crianças cansaram de pedalar e começaram a se cutucar em seu barquinho, lancei mão de altos truques pedagógicos:

“Quem chegar primeiro no píer ganha a última barrinha de cereal!”

E as crianças foram campeãs da regata de alta velocidade, contra pai e mãe que se esforçaram para pegar a corrente e errada e não os alcançar a tempo. Ainda deu tempo de nadar de novo, e de Allex e Thomas tentarem stand-up paddle.

Voltamos tranquilamente, parando em uma cervejaria para almoçar e uma outra cidadezinha minúscula para tomar sorvete antes de chegarmos exaustos e moídos em casa, encontrando um balde vazio onde nenhuma goteira pingara.

A chuva veio assim que fechamos a porta, como se tivéssemos na sexta-feira atravessado, ida e volta, uma fenda espaço-temporal para um universo paralelo. Um universo que nos deu descanso e alegria inesperados, e mais “good old canadian fun” do que jamais imaginamos. Um dia e meio que pareceu uma semana, tanta coisa a gente fez, tanta risada que deu.

E a gente quase não foi.

Talvez a lição a ser aprendida seja sobre expectativas, ou a ausência delas. Talvez seja de não se deixar afundar tanto na sua miséria a ponto de não enxergar mais uma saída. Talvez seja sobre confiar na intuição, ou sobre nunca duvidar que o tempo pode virar de repente. Talvez seja sobre nunca esquecer o acendedor e a lenha seca, vai saber. Ou talvez seja que está todo mundo no mesmo barco, e que enquanto você souber rir da sua bunda molhada e falta de direção, sempre vai ter três hipsters canadenses pra refazer seu nó e não deixar seu barco sair vagando por aí. Vai saber. 

 

....

 Gente linda do meu coração. Só parando para avisar que muito em breve vou lançar uma campanha no Apoie-se, onde você vai poder colaborar não só para que esse espaço do blog continue existindo, como também vai poder receber no seu email outras crônicas inéditas e ilustrações, além de outras novidades. Fique de olho. Enquanto isso, lembre-se de que meu livro Brutta Figura continua à venda nas principais livrarias. Os links para comprá-lo estão lá em cima no blog. Minha loja Etsy está novamente com caricaturas e quadrinhos de maternidade para encomenda. 

Agora falando em expectativas. Eu tinha tão pouca expectativa com esse ensopado de legumes, que nem foto eu tirei. Mas ficou tão maravilhoso, é tão simples, e (em tempos de crise no Brasil) tão barato de fazer, que vou deixar aqui a receita mesmo sem ter fotografado nada. Fica a foto do livro, que eu peguei na biblioteca, só pra você ter uma ideia. O meu ficou bem parecido. Só troquei os aspargos por ervilhas congeladas, já que aqui no Canadá é outono e os aspargos agora estão fora de época. Gente, que ensopado delícia. Apesar do nome da receita original dizer que é um ensopado para clima quente, eu digo que é pra qualquer clima. 

Não se assuste com a quantidade de ingredientes e passos. É realmente simples.

 

Pena que eu não tirei foto do prato que eu fiz. Fora os aspargos, ficou bem com essa carinha mesmo.

POT-AU-FEU DE VEGETAIS para um dia de calor 

(Do livro Around My French Table, de Dorie Greenspan)

Ingredientes:

  • 2 colh (sopa) azeite
  • 2 dentes de alho, fatiados fino
  • 1 cebola, em meias luas finas
  • 1 folha de louro (isso é acréscimo meu, porque usei água ao invés de caldo)
  • 1 alho-poró, sem as partes escuras, cortado em quartos no sentido do comprimento, lavado e cortado em pedaços de 2-3cm
  • Sal e pimenta-do-reino (preta ou branca)
  • 6 batatas pequenas, do tamanho de ovos, em fatias de 1cm
  • 4 cenouras finas, descascadas e cortadas em diagonais de 1cm
  • 3 xic de caldo de legumes, frango ou água (usei água)
  • 1 tira grande de casca de limão, sem a parte branca (use uma faca afiada ou um descascador de legumes)
  • 8 aspargos, sem a parte lenhosa (ou 1 xic de ervilha congelada, que foi o que eu usei, ou vagens inteiras, ou abobrinhas em pedaços, o que você tiver)
  • 4 cogumelos shiitake frescos, grandes, sem o cabo e fatiados
  • 200g espinafre, sem os cabos, e lavado (uns 100g de folhas)
  • 4 ovos

(para o coulis)

  • 2 xic de manjericão, salsinha ou coentro, ou uma mistura dos três, picados grosseiramente
  • 1/2 xic azeite 


Preparo:

  1. Faça o coulis: você pode colocar as ervas e  o azeite no liquidificador, processador, ou mixer, e bater até obter um molho com cara de pesto ralo. OU pode fazer num pilão. Eu bati no liquidificador. Tempere com uma pitada de sal. Transfira para um potinho, tampe e deixe na geladeira até a hora de servir.
  2. Numa panela larga e não muito alta, ou uma frigideira de 30cm de paredes não muito baixas, tipo um wok, aqueça a primeira quantidade do azeite em fogo médio.
  3. Junte o alho, e cozinhe por 1 minuto, até perfumar, sem dourar. Junte a cebola e o alho-poró e o louro, mexendo e temperando com sal e pimenta. Cozinhe por uns 5 minutos, até ficarem bem macios e a cebola começar a pegar cor.
  4. Junte as batatas e as cenouras, misture, tempere com sal e pimenta, e junte a água ou caldo e a tira de casca de limão.
  5. Aumente o fogo pra levar à fervura, e então abaixe novamente, para manter uma fervura branda por uns 10 minutos, ou até que os legumes estejam macios mas ainda al dente, sem se desmancharem. (Quando o prato estiver pronto, você quer que os vegetais tenham textura, e não que vire uma sopa.)
  6. Você pode parar o cozimento agora e retomar algumas horas depois, se precisar.
  7. Enquanto os vegetais estão cozinhando, coloque uma panela de água para ferver. Você pode preparar seus ovos poché ou cozidos, com a gema mais para mole. Fica a seu critério. Lá no meu Instagram tem um destaque com video do ovo poché. Eu também tenho um post aqui no blog ensinando. A única coisa que faço de diferente hoje em dia é fazer um furinho na bunda do ovo com a ponta da faca ou agulha, e mergulhar ele inteiro, com casca, por uns 20 segundos na água que está borbulhando (fervura branda, não louca). Tiro, e aí sim quebro o ovo em cima da água, para que ele cozinhe por 3 minutos mais. Essa "pré-cozida" ajuda a clara a não espalhar na água, e você não precisa fazer o redemoinho, o que é ótimo quando você precisa fazer 4 ovos poché de uma vez.
  8. Reserve os ovos cozidos ou poché. (Você pode colocar os ovos poché em água fria e deixá-los lá até a hora de servir. Na hora de servir, mergulhe-os em água quente por alguns segundos, só pra reaquecer. Eu meio que fui doida e fiz os ovos na hora de servir o prato, tudo ao mesmo tempo. Funciona.)
  9. Na panela com os legumes, junte os aspargos, ervilhas ou qualquer outro legume, e cozinhe por mais 4 minutos. Junte o espinafre, revirando com a colher até ele murche. Acerte o tempero.
  10. Sirva os legumes em pratos fundos, com caldo. Colque um ovo no centro de cada prato, sobre os legumes, e distribua colheradas do coulis de ervas. Um pãozinho pra raspar o caldo no final vai muito bem.

 

 

 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Sopa de cenouras e funcho para enganar o olho gordo

Mas nem começou Dezembro direito, e já estou me sentindo empapuçada. Mal sinal, mal sinal... Olhar minha agenda para esse mês, pela primeira vez em minha vida, me deixa desnorteada. Além da quantidade cavalar de trabalho [Benza Deus, obrigada Senhor, estou um caco assim, mas estaria pior sem trabalho nenhum!], tenho tantos compromissos familiares, happy hours com amigos e colegas de diferentes lugares, amigo secreto, eventos tchanchantrans, coisas de corrida e almoços de domingo, que não consigo imaginar onde conseguirei tempo para preparar o almoço do dia 25.

E é claro que a porcaria da dieta não me sai da cabeça. "Você pode beber moderadamente uma vez por semana", proferiu a nutri. Ahn-rã. Até parece. Quinta-feira, happy hour da corrida. Sábado de manhã, churrasco dos atletas do clube. Sábado à noite, aniversário de um amigão. Domingo, almoço de advento nos sogros. E esse ritmo tende a se repetir até o fim do mês.

Dancei nessa.

Pior, a nutri pediu para que eu desse um pulo lá logo antes do Natal para uma "pesagem" antes das festas. Ahhhnnn... isso faz com que eu me sinta um peru indo para o abate. Quem é que agüenta três cookies por semana com taaaaantas receitas de fim de ano alinhadas em fila para serem feitas???

O jeito é (tentar) manter a linha em outras áreas mais fáceis. O que para mim não é problema. Falei para a nutri que poderia passar o resto da vida comendo saladas e legumes do jeito como estou comendo, pois estou adorando a sensação de leveza pós-refeição que a dieta me tem proporcionado. Porém, eu quero, QUERO, meu docinho dia sim, dia não, e eu quero, PRECISO, da minha cervejinha em dias estressantes. Eu passo sem macarrão, mas não sem um pedaço de bolo e uma taça de vinho.

Vê-se então que não é nenhuma dificuldade jantar uma sopinha de legumes. Principalmente se ela é saborosa como essa receita da revista Gourmet, pela qual sou apaixonada. Corte 300g de cenouras em quartos, no sentido do comprimento, e junte com 1 bulbo de funcho pequeno fatiado, 1/2 cebola sem casca e 1 dente de alho em uma assadeira. Tempere com 2 colh. (sopa) de azeite, 1 pitada de açúcar, sal e pimenta-do-reino a gosto e leve ao forno pré-aquecido a 230ºC por 25-30 minutos, mexendo uma ou duas vezes no meio do cozimento, até que os legumes estejam assados e caramelizados. Bata no liqüidificador com 2 xícaras de caldo de legumes e leve à panela para reaquecer. Levante fervura e e deixe em fogo baixo por alguns minutos. Acerte o tempero e afine a sopa com mais uma xícara de água ou a gosto. Moa em um pilão 1/4 colh. (chá) de sementes de erva doce, até virarem um pó fino e junte a 1 colh. (sopa) de azeite. Sirva a sopa nos pratos, derrame um fio do azeite aromatizado, e guarneça com cubos de queijo feta e folhas frescas de funcho. Delícia!

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Retorno com uma sopa de legumes

Depois de três semanas muito, mas MUITO, atribuladas, sinto que estou conseguindo retomar minha rotina. Rotina retomada quer dizer também abrir a geladeira e averiguar o estrago causado por dias sem fazer almoço ou jantar. O stress faz com que comamos muita porcaria, e tudo o que eu queria hoje era voltar aos meus adorados legumes. Quando vi o que sobrara na gaveta da geladeira, lembrei-me imediatamente desta sopa.

Coloquei em uma assadeira 4 cenouras médias cortadas em pedaços de 2cm, um bulbo pequeno de funcho sem as folhas, cortado em fatias grossas, 1 cebola roxa descascada, cortada em quartos e despedaçada com os dedos, 2 dentes de alho inteiros e na casca, 1 batata média cortada em cubos, com casca, alguns ramos de tomilho, pimenta-do-reino, sal e azeite de oliva bastante apenas para recobrir os legumes com uma fina película de óleo. Misturei tudo muito bem e levei ao forno médio (180º) até que os legumes estivessem macios e chamuscadinhos nas pontas (uns 35 minutos).

Retirei os ramos mais lenhosos do tomilho, jogando-os fora, espremi o alho para fora da casca e bati-o no liquidificador com todos os outros legumes e 2 1/2 xícaras de caldo de legumes. Coloquei em uma panela e aqueci, acertando o tempero e servindo com um fio de azeite e fatias de pão. Serve 3 porções.

Exatamente o que eu precisava. Só não sei o que fazer com o enorme ramo de rabanetes que continua na geladeira olhando para mim... :P

terça-feira, 19 de novembro de 2019

40 anos, 42km, um Dahl, um Frango


Acordei  àquela manhã de quinta-feira ao som de Parabéns A Você, cheiro de cappuccino quentinho e lambidas de cachorro usando chapéu de festa. Levantei um tanto atordoada, pois fora dormir tarde na noite anterior, e, saboreando pequenos goles do meu café, ri da cara do Gnocchi enquanto andava em direção à sala. Eu já sabia que eles tinham aprontado alguma, pois na hora do Boa Noite, Laura sussurrara ao meu ouvido: "Mamãe, amanhã, quando você acordar, fica na cama, tá, não pode levantar se não você vai ver sua surpresa!"

Abençoada inocência infantil.

Mas nem esse aviso me preparou para o que Allex montara na sala. Havia bandeirinhas e balões de látex coloridos por toda a parte onde se lia "Happy 40th Birthday!", e outros balões de hélio variados, incluindo um enorme unicórnio de crina cor-de-rosa (segundo Allex era para ter uma lhama também, mas o moço da loja esqueceu), e outros ainda amarrados com fitas coloridas numa sacola no meio da sala que tinha meu presente: um relógio de corrida, pra eu parar de correr carregando o celular. No aparelho de som, tocava uma playlist especial só de músicas lançadas em 1979. Laura me entregou um caixa inteira de cartões de aniversário que ela fizera durante um mês todo. Thomas pulou em cima de mim e colocou uma enorme coroa de plástico dourado na minha cabeça. "Porque você é a Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa, então precisa de uma coroa!"

Eu ria compulsivamente.

Feliz Quarenta Anos.


Naquela manhã, as crianças foram para a escola normalmente, ainda que àquele dia tivessem uma prova de corrida (para o qual vinham treinando havia dois meses) em um parque distante. Allex tirara dois dias de férias especialmente para meu aniversário e veio logo perguntar, enquanto tomávamos um café com mais calma, só nós dois: "O que você quer fazer no seu aniversário?"

"Correr. Primeiro, correr."

Explicando... Logo ao fim da visita de minha irmã, em Agosto, Allex veio empolgado: "Estou me inscrevendo na Maratona de Toronto, do Scotiabank!"
"Certeza? Você nunca correu mais do que 25km..."
"Ah, mas fiz 25km em trilha, com altimetria. A maratona é reta, asfalto... Acho que rola."
"Ok. Divirta-se."
"Tô inscrevendo você também."
"Mas hein?"
"É, ué. Vamos! A gente faz nossa primeira maratona juntos!"
"Vixe... Hmmm... Será?"
"Você já correu 30km, são só mais doze... hahah... Vai, você consegue!"
"Eita. Tá bom. Quando é?"
"Vinte de outubro."
"P*ta que pariu. Tem dois meses pra treinar, é isso?"
"É. Vai, pronto, já te inscrevi. Aqui ó... camiseta? Tamanho M... feminino... Motivação... Wine and Pasta!"
"Ei!"
"Ué..."
"É. Verdade. Você tá certo. Bora treinar então. Vixe..."

Até o fim das férias escolares continuei correndo como era possível. Às vezes as crianças montavam em suas bicicletas e pedalavam pelas ciclovias à minha frente, parando e olhando para trás para ter certeza de que mamãe ainda estava ali, ou me esperando para atravessar ruas e avenidas. Eles pedalavam e eu corria 10, 12, 16km, dependendo do dia, parando ocasionalmente para brincar um pouco num parquinho ou numa praia.

Em outros dias, quando não queriam sair de bicicleta, acordava mais cedo e ia correr trajetos mais curtos enquanto Allex se arrumava para o trabalho.
Vista para o lago, de uma das trilhas onde gosto de correr.

Mas o treino de verdade só começou quando as aulas voltaram, em Setembro.

Foi um mês atabalhoado. É sempre estranho voltar à rotina da escola, depois de dois meses de férias de verão. Além disso, Laura está agora na primeira série, e os horários dela finalmente são os mesmos dos do Thomas. Voltam as aulas, voltam os eventos escolares. Volta o preparar almoço de todo mundo logo de manhã cedo. Voltam os gostos e desgostos que transforma a montagem do lanche num quebra-cabeça de 5 mil peças. Thomas não gosta de fruta fresca. Laura não gosta de nada "cheesy" (sim, Laura anda se revoltando contra queijo.) Thomas não come comida quente na marmita, Laura não gosta de levar sanduíche. Eu quero esganar todo mundo e mandar comer o que a mamãe preparou e parar de encher os pacová e me arranjar sarna pra coçar. Mas né? A gente faz aquele esforço zen para não matar a prole.

Eu tinha vários projetos envolvendo ilustração e novas exposições engatilhados para Setembro, mas além da adaptação à rotina escolar, as reuniões com professor, a anual caça às roupas de inverno que não cabem mais porque as crianças cresceram dois números de calça e de bota em quatro meses, minha cabeça só pensava em uma coisa... Maratona.

Eu não sou tonta nem nada, e por mais que me jogue loucamente em algumas empreitadas, gosto de pesquisar onde estou me metendo para não me estrepar muito lá na frente. Até então eu vinha correndo muito mais esporadicamente, 5km por dia, dez de vez em quando, e num sábado me dava a louca e eu ia correr vinte e um. Assim, come um donut, sai pra correr, volta três horas depois, pro espanto da família que não sabia das minhas intenções. Ou corre até o centro da cidade, toma uma cerveja na Steam Whistle, a cervejaria que fica em frente à CN Tower, e volta correndo tudo de novo. Manda uma foto da cerveja pro marido, pra ele dar risada e saber quando começar a preparar o almoço.

Decidi que ia tentar fazer mais ou menos direito. Vi videos e li textos sobre maratonistas e ultra-maratonistas, gente de trail running e povo de Iron Man. Lembrei de tudo o que eu fazia na época em que tinha treinador. Peguei os pontos em comum dos treinos e da alimentação e vi como melhor adaptar isso tudo à minha realidade.

E lá fui eu.

Allex achava graça que, se antes meu feed do YouTube só tinha video de comida, agora só tinha video falando sobre fascite plantar e síndrome do trato iliotibial. Quem corre vai entender. ;) O marido, enquanto isso, fazia seus treinos e trocava figurinhas com amigos ultramaratonistas (e quando paro pra pensar, me surpreendo com a quantidade de gente que a gente conhece que corre 70km em montanha...)

Comecei a planejar melhor meus treinos, para ir aumentando as distâncias um pouco por semana. Li em várias fontes que meus treinos longos não poderiam ser maiores que 30% do treino total da semana, então logo me dei conta de que isso de correr meia horinha por dia não ia mais rolar.

Conforme as distâncias aumentavam, percebi que aquela dieta que a nutricionista fizera para mim dez anos antes, quando corria com treinador no Brasil, era insuficiente. Eu andava com fome, e o objetivo não era emagrecer. Era correr bem.
Café da manhã de corrida. Torrada com tahini, banana e mel, pêssego e uvas.
Meu café da manhã mudou muito pouco. Continuei na minha torradinha com cappuccino, mas colocando um pouco mais de frutas no prato. Às sextas-feiras, quando fazia algo entre 18 e 26km, acrescentava mais uma torrada com queijo ao prato. Levava na pochete de corrida sempre duas bananinhas (aquele docinho de banana e açúcar) trazidos do Brasil por minha mãe, pois nunca na vida aquele Gel bizarro de corrida me desceu.
Café de treino longo: Torrada com tahini, banana e mel, torrada com manteiga e queijo, pitaya e uvas. E Cappuccino, claro.

"Você vai ter que mudar o trajeto. A Maratona sai do centro e vem pra esses lados pelo lago, você vai achar chato fazer o mesmo caminho...", avisou Allex.

E por isso saí me enfiando em novas ciclovias e trilhas que me levassem por parques e caminhos que eu nunca percorrera. Descobri pedaços lindos de Toronto, que me fizeram ainda mais grata pela oportunidade de morar aqui.




Os treinos longos são sempre meus favoritos. Lembro de um amigo nosso avisando: "Correr longa distância é mais cabeça do que perna - você tem que se acostumar com a ideia de que vai passar MUITO tempo correndo. É a cabeça que quebra primeiro, o corpo depois." No melhor estilo Dorie, quando estou perto de chegar na distância a que me propus a correr àquele dia (pois acordo e decido assim, de supetão, "Hoje eu vou correr 25km, porque é isso que me deu vontade") saio cantarolando: "Just keep running... Just keep running..."

Correr virou para mim muito mais que um exercício físico, mas um momento completa e unicamente meu, que não serve a mais ninguém a não ser... eu. É meu cuidado comigo. Meu momento de silêncio, de solitude, de botar a cabeça no lugar. Eu corro sorrindo. Assobiando uma música. Parando para olhar o mirante ou procurar um bicho selvagem ao ouvir um farfalhar de folhas ao meu lado na trilha. Correndo, já tive encontros com guaxinins, coelhos, esquilos, chipmunks, cobras, falcões, gaviões, corujas, corvos, garças pretas, uma raposa e dois coiotes. Coisas de Toronto. Há muitos corredores verdes no meio da cidade, e a bicharada simplesmente circula por aí.

Volto pra casa cansada e feliz, cheia de endorfina. O ritual é sempre o mesmo. Ainda suando, sento pra comer meu iogurte com fruta, agora com manteiga de alguma castanha e sementes de cânhamo. Banho, e seguir com a vida normal.
Iogurte natural, pêssegos, manteiga de amêndoa, sementes de cânhamo e mel.
Na hora do almoço, durante a primeira semana inteira de treino segui uma receita de um livro ayurvédico que Allex me dera de presente há muitos anos e que minha irmã trouxera para mim em sua visita. Arroz integral e legumes no vapor temperados com ghee e cúrcuma. Simples demais e muito bom.  Só isso mesmo. Quando os legumes estão prontos, você esquenta o ghee numa panelinha, dissolve um pouco de cúrcuma em pó e derrama isso por sobre os legumes. Nham!
Arroz integral com legumes no vapor e ghee com cúrcuma.
Como isso era bem mais que minha usual torrada com abacate, eu não tinha fome no meio da tarde. Se tivesse, comia uma fruta. Os pêssegos e nectarinas do fim do verão estavam um desbunde!
Dahl de lentilhas e legumes no vapor com ghee, castanhas e coco ralado.
O jantar eram aqueles mesmos legumes no vapor e ghee, polvilhados com castanha de caju picado e coco ralado, e um fenomenal dahl de lentilhas cuja receita deixo aqui. As crianças amaram a refeição, para quem servi também arroz.

DAHL AYURVEDICO TRI-DOSHA
(Do livro You Are What You Eat, Cooking for body, mind and soul, de Sandra Herber-Percy)

Ingredientes:
  • 1 xic. lentilhas (vermelhas, amarelas ou qualquer outro tipo - usei uma mistura da vermelha, preta, marrom e verde)
  • 8 xic. água
  • 2 xic. abóbora ou abobrinha em cubos
  • 1 xic. cenoura fatiada
  • 1/2 colh.(chá) assafétida (se não tiver, use 1/4 cebola pequena bem picadinha, que foi o que fiz. O sabor é ligeiramente diferente e não é uma substituição autêntica, porque há muitos indianos que não usam cebola e alho de jeito nenhum. No entanto, fica delicioso igual.)
  • 2 colh. (sopa) ghee ou óleo vegetal
  • 1 colh. (chá) cúrcuma em pó ou fresca, ralada
  • 1 colh. (chá) suco de limão
  • 1 colh. (chá) sal marinho
  • 1/2 colh (chá) gengibre fresco ralado
  • 2 pimentas verdes, sem sementes, picadas (aqui, vai no gosto, na verdade, e dependendo do tipo de pimenta verde que você encontrar. Comprei uma pimenta verde que era grande e forte, e usei apenas uma e foi o bastante)
  • 1 colh (chá) sementes de mostarda
  • 1 colh. (chá) sementes de cominho
  • 1 colh (sopa) coentro fresco
  • 1 colh (sopa) de coco ralado fresco

Preparo:
  1. Aqueça 1 colh (sopa) do óleo ou ghee numa panela grande. Junte a assafétida, cúrcuma e suco de limão e refogue em fogo baixo por 30 segundos. Junte as lentilhas e refogue por 1-2 minutos.
  2. Junte os legumes, e misture bem por 1-2 minutos.
  3. Junte a água, pimenta, sal e gengibre. Leve à fervura,  cubra, abaixe o fogo e mantenha em fervura branda por 45 minutos, ou até que as lentilhas estejam se desmanchando.
  4. Aqueça o óleo restante em uma frigideira pequena. Junte o cominho e sementes de mostarda e cozinhe até que as sementes de mostarda comecem a pular. Desligue o fogo e adicione o óleo e sementes às lentilhas.
  5. Sirva o Dahl com coentro e coco ralado por cima.  

Variei os legumes durante a semana, usando também berinjela e brócolis e temperando o ghee não só com cúrcuma, mas também com um pouco de gengibre fresco picado. Castanhas por cima e tudo cobrindo arroz.
Arroz integral, berinjela e brócolis no vapor, com castanhas e gengibre.
Noutro dia, já sem arroz, fiz novamente aquelas mesmas berinjelas, mas sobre soba, e temperado também com um nada de shoyu e folhas de coentro.

Soba com berinjelas no vapor.
Essas primeiras semanas comendo mais leve me deram um gás para de fato engatar os treinos. Pela primeira vez desde o nascimento do Thomas, eu estava correndo consistentemente e melhorando. Eu me sentia bem, forte e motivada. Junto dos treinos de força de kettlebell para evitar lesões, comecei a ver meu corpo reagir bem àquela nova rotina.

E lá estava eu, no meu aniversário, a 17 dias da maratona, querendo sair para correr.

Chovia leve. O dia estava feio. Allex saiu para correr comigo, mas não sem antes apanhar dois chapéus de festa e colocá-los em nossa cabeça.

"Você acha que eu vou sair assim?"
"Vai. É seu aniversário."

E lá fomos nós correr na chuva de chapéuzinho colorido.

Foram os 12km mais engraçados da minha vida. Todo canadense que passava por nós desejava Happy Birhtday! Caminhões buzinavam. Velhinhas riam da nossa cara. E nós ríamos de volta. Foi sensacional.

Saímos para almoçar só nós dois depois disso, e então fomos buscar as crianças na escola. Depois de algum descanso, saímos para comer uma pizza numa das poucas pizzarias da cidade que usam forno à lenha. Apesar de estar caindo de sono, foi um bocado divertido. Principalmente porque a família toda usava chapeuzinhos coloridos e eu, claro, fui a louca andando por aí de coroa dourada na cabeça. "Vocês foram ao Medieval Times?", perguntou a garçonete, servindo-me meu segundo Spritz da noite. "Não", respondeu Allex, "É o aniversário de 40 anos dela e a gente tá fazendo ela passar vergonha." Por conta disso, ganhamos sorvete de chocolate com uma vela de aniversário em cima. ;)

Na manhã seguinte, com crianças na escola e Allex ainda de férias, arrastei o marido para o treino longo. O dia estava lindo e ensolarado. Subimos o rio Humber e eu ria apontando para ele todos os locais que haviam usado como cenário na série Handmaid's Tale. Achava engraçadíssimo que os personagens quisessem fugir para Toronto mas já estivessem aqui. (Explico: Toronto e Vancouver são cidades canadenses amplamente usadas pela indústria cinematográfica americana para fingir que são Nova York ou outras cidades americanas, pois elas se parecem muito e são mais baratas.)


Paramos sobre uma ponte abaixo da ferrovia para comer uma bananinha e voltamos. Nos separamos num certo ponto, pois ele queria voltar logo para casa indo por cima, e eu queria fazer todo o trajeto de volta pela margem do lago. Ele correu 21km, eu queria fazer 30.

Sozinha, descendo à margem do rio, ri novamente da minha sorte com bichos. Aproximei-me do rio ao ver um acumulado de gente batendo fotos, quando me dou conta do que está acontecendo: a piracema do salmão. Lá iam os salmões imensos rio acima, se debatendo nos ares, cheios de convicção e coragem, tentando infinitas vezes ultrapassar a pequena queda d'agua que os separava de seu objetivo.


Quando o primeiro deles conseguiu, dei um gritinho de alegria com braços para o ar e continuei a correr. Se o salmão consegue subir aquele rio, eu vou conseguir correr minha maratona. Just keep running! Just keep running!

Na última semana antes da prova, minha sogra veio visitar. Consegui correr uma ou duas vezes, mas no restante do tempo simplesmente passeamos. As crianças faltaram dois dias na escola para que pudéssemos ir até Algonquin Park, pois lá o Outono já chegara oficialmente e as árvores estavam todas coloridas. Alugamos um chalezinho simples perto do parque, à beira de um lago, e fomos passear pelo parque imenso, lindo, inteiro dourado e vermelho.


Passávamos o dia fora, em trilhas pelo parque. Capas de chuva protegendo do tempo ruim mas que não desanimou nossos espíritos. Eu ia na frente com o cão e com Thomas, que ia "Kilian-Jornando" * todo o caminho íngreme de pedra e lama. Mais tarde eu me inspiraria nessa visão do meu filho correndo a trilha sem medo, mas estou me adiantando.

*Procure vídeos do Kilian Jornet, se não sabe quem é, e vai entender do que estou falando.

O último local a que fomos antes de voltarmos a Toronto foi à pedra mais antiga do mundo. É um morro rochoso cuja datação de carbono é tão antiga que o local inteiro parece ter sido importado de Marte.


Foi uma viagem curta mais deliciosa. Não há nada que eu goste mais do que me enfiar no mato, principalmente com minha família.
De volta a Toronto, as primeiras árvores a ficarem vermelhinhas.
No dia da Maratona, minha sogra ficou com as crianças. O outono começara a dar as caras também em Toronto, e estava frio. Fazia oito anos que eu não participava de uma prova de rua, sendo a última a Meia-maratona do Rio, que eu corri sem saber que estava grávida de Thomas. Fiquei impressionada com a participação popular durante toda a prova. Muita gente por todo o trajeto carregava cartazes engraçados, como "You payed to do this!", "It seems like a huge effort just for a banana!", "Pain is only the french word for bread!", "You think your legs hurt, my arms are killing me!" "You already ran 40km, I can't run even 1", "There's beer at the end!", "The faster you run, the sooner you're drunk!"e tantos outros. Havia grupos de música tocando e dançando em vários pontos do caminho. Crianças distribuindo pretzels e bananas para os corredores com suas mães. Gente fantasiada torcendo e soltando bolhas de sabão. A energia toda da prova era muito boa, e me lembrou da sensação de participar da São Silvestre, há tantos anos atrás.
Preparando para a largada em Downtown.
Allex se machucou no quilômetro 21, e por um instante fiquei triste, achando que ele abandonaria a prova. Mas logo se recompôs e me alcançou e por algum tempo corremos juntos outra vez até ele me dizer para ir no meu ritmo, que ele iria mais devagar. E assim fui. Assobiando, sorrindo, feliz.

Quando cheguei ao quilômetro 32, conhecido como o "paredão", eu estava me sentindo ótima, o que me empolgou ainda mais. O problema desses últimos dez quilômetros, é que eles consistiam de loooooongas retas em áreas industriais, feias e sem sombra. O frio fora embora, e os dezoito graus ao meio dia começavam a cobrar pedágio. O calor (sim, 18oC é quente) sob minha camiseta preta incomodava. E aquelas retas eram infinitas. Você via os quilômetros passando e não via a curva de retorno. A cabeça começava a pirar, pensando que tudo o que a gente ia, teríamos de voltar.

Foi no quilômetro 37 que a pilha começou a acabar. Meus quadris doíam. Meus joelhos doíam (Olá, iliotibial!). Meu abdome doía. Lembrava dos videos de corrida, treinadores avisando: "você vai cansar de simplesmente passar tanto tempo em pé".

Comecei a desacelerar. Então pensei em Allex: "o negócio é não pensar nos 42. Pensar que são só dez. E dez é um treino de terça-feira. Cinco K é uma volta no parque. Você consegue dar uma volta no parque."

Eu consigo dar uma volta no parque. É só uma volta no parque. São só 5k.

Não parei de correr. A reta industrial acabou e subi um viaduto de volta a Downtown. As ruas se fechavam por entre prédios altos novamente. Eu ouvia de longe gente torcendo. Eu ouvia o narrador da corrida falando, empolgado, o nome de quem terminava. Meu sorriso se abriu largo de felicidade e de repente havia força para aqueles últimos dois quilômetros. Acelerei. Acelerei mais. Fiz a curva para a praça da prefeitura, e ali estava a multidão torcendo atrás das barricadas vermelhas, a linha de chegada, e todo mundo gritava e aplaudia como se me conhecesse. Meus olhos se encheram de lágrimas. Energia tão boa. Ouvir aquela voz no microfone dizendo meu nome quando cruzei a linha dos 42km foi uma das coisas mais fantásticas da minha vida. Felicidade plena.

Foi perfeito.

Foram 4 horas e 48 minutos correndo sem parar. Muito longe de ser um tempo impressionante. Mas foi o bastante para mim. Eu fiz. Eu terminei. Eu queria muito, fui lá e fiz. Quarenta quilômetros para comemorar meus quarenta anos. E mais dois de lambuja.

Allex terminou depois de mim.

Voltamos, exaustos, pernas duras, medalha pesada no peito, de metrô para casa. Ríamos. Meu deus do céu, como tinha sido difícil! Mas como era legal! Vixe, imagina povo que faz 50? E 100? Nossa, não rola. 42 acho que já foi o bastante.

A cerveja e o macarrão em casa eram divinos. Eu me sentia bem.

Passado o cansaço, que perdurou por alguns dias, não sobrou nenhuma lesão. Sobrou a surpresa de me dar conta de que meu abdome e meus braços doíam mais que as pernas.

Fazer uma maratona foi como parir. Tanto tempo de preparo, chegou a hora, acelera, acelera, parece que não vai, eita, que maravilha!, terminou, você conseguiu. Também é como parir porque depois que passa o efeito do primeiro filho, você esquece o sofrimento e decide ter o segundo. Por isso, na semana seguinte, me inscrevi para minha primeira ultra. Cinquenta quilômetros em trilha, daqui a um ano. Muito tempo para treinar. Para fazer maratonas em parques. Para melhorar minha velocidade, para passar menos tempo correndo. Mas em trilha. Chega de asfalto. Correr em asfalto foi chato. Gosto de mato.

Três semanas depois, fiz minha primeira prova de trail running. 25km no mato. Lama e pedras e limo e raízes escondidas pelas folhas mortas de outono. Lembrei de Thomas "Kilian-Jornando", levantei os braços na altura do ombro pra me equilibrar e simplesmente soltei o corpo. Vai. Pula de pedra em pedra. Aceite o fato de que você vai cair em algum momento, dizia um video de uma ultra-maratonista numa entrevista. Aceito. Eu sei que vou cair. Não vou ter medo. Só pula. Pulei. Caí. Duas vezes. Xinguei, ri, limpei a lama das luvas (porque fazia -7oC àquele dia) e continuei correndo. Meu eu de vinte anos atrás, se borrando de medo de altura nas trilhas, ficaria orgulhosíssima.

Feliz Quarenta Anos.

....


Uma das abóboras, design da Laura.

No meio do caminho, claro, teve Halloween. Laura me pediu para mandar um lanche "scary", e pela primeira vez na vida me dei ao trabalho de fazer isso. Eu não curto essa coisa de fazer comida parecer outra coisa. Pra mim comida tem que parecer comida. Mas... enfim. Foi divertido.

Preparei muffins de abóbora (com o miolo da abóbora que virara Jack-O-Lantern), com o glacê de açúcar e limão em forma de teia de aranha.  Improvisei aranhas com uvas verdes e salsão. Thomas comeu o muffin e deixou a uva, Laura comeu a uva e deixou o muffin. Né? Minha sina. (Improvisei os muffins usando de base aquela mesma receita-base da Martha Stewart que já linkei aqui várias vezes. Mas esqueci de escorrer e apertar a abóbora cozida e o purê ficou muito úmido, o que afetou toda a receita...)



 Também mandei ovos cozidos, com lascas de azeitonas encaixadas em buraquinhos que escavei com a ponta da faca para fazer os olhos e a boca. Ghost-eggs. Esse fez sucesso com os dois.

Teve sanduíche de queijo e salame demoníaco, com lascas de tomate-cereja como olhos brilhantes. Thomas adorou. Laura reclamou que foi difícil de comer, porque seus dedos tocavam o salame ao invés do pão. Ai, ai...

 
Por último, Cheesy Feet da Nigella, suuuuuuuuper fáceis e deliciosos. Por que pés? Porque eu não tinha nenhum cortador de biscoito assustador. Eles foram tão fáceis de fazer e ficaram tão gostosos, que pretendo prepará-los mais vezes para mandar de lanche da escola. Apesar de bem "cheesy", Laura aprovou.



No meio disso tudo, dos curries ayurvédicos e tranqueiras de halloween, continuo no meu surto de cozinha saudosista. Rolaram panquequinhas de ricotta e espinafre, um dos pratos que minha mãe mais fez para mim e para o Allex em nossa fase mais vegetariana. Quando eu era criança, elas eram recheadas de carne moída e eram deliciooooosas. Acabei usando a receita de um dos livros da Tessa Kiros, mas apesar de amar os crepes doces dela, a versão salgada foi meio difícil de acertar e achei que molho branco MAIS molho de tomate ficou meio pesado. Delicioso, mas pesado. Próxima vez vou na receita simples da minha mãe para a massa dos crepes e faço como ela, servindo apenas com molho de tomate.
Amor puro, panqueca de ricota e espinafre.
 Quando Allex viaja a trabalho, sempre aproveito para preparar frango, pois ele não gosta, mas as crianças sim. A pedido deles, resolvi preparar o frango frito da minha mãe, uma das coisas que ela mais preparou para mim e para meus filhos desde que nasci. É a quintessência da casa dos meus pais.

Liguei para ela e pedi a receita. Ao contrário das panquequinhas, nesse caso, tinha que ser a receita da mamãe.

Como sempre, muito didática e solícita, minha mãe preparou o frango na casa dela e fotografou todos os passos, explicando minuciosamente o preparo.

Fui ao mercado comprar peito de frango, mas quando cheguei lá, quase caí pra trás com o preço de dois peitinhos orgânicos. Era o preço do frango inteiro. Vai o frango todo, então, que pelo menos rende mais refeições e faço caldo com a carcaça. Fora que sempre me divirto destrinchando o bicho. Ok, acho que perdi um zilhão de leitores veganos e vegetarianos agora. A técnica. A técnica eu acho divertida. De separar as partes. Ah, você entendeu.

Estava tudo bem não fosse o fato de a geladeira estar vazia, pois eu acabara de passar por uma daquelas minhas semanas divertidas de "rapa-despensa". Fui vendo a lista e botando no carrinho. Vendo e botando. Na hora de pagar, fui encaixando tudo nas duas grandes sacolas que levo comigo e na minha mochila.

"Quer ajuda pra levar até o carro?", perguntou a caixa.
"Eu tô a pé", respondi. Ao que ela me lançou um olhar desconfiado."Eu aguento. Sou mais forte do que pareço."

Faz a conta... 1 frango inteiro, 4 litros de leite, 2 litros de água de coco, meio quilo de queijo, 1,7kg de iogurte, 1,5kg de maçã, 1,5kg de pêssego, meio quilo de tomate, meio quilo de cenoura, 2 caixas de ovos, 1 abóbora, 1 couve-flor... Pois é. Esse 1,5km carregando essa tralha no braço pareceram MUITO mais longos do que os 42 correndo... ;)

Aí no fim do dia, Allex me pede ajuda para ROLAR (literalmente) os pneus de neve pra fora do nosso armário e até a garagem, para que ele pudesse aproveitar a revisão do carro e já trocar os pneus.

"Vai, Ana! É cross fit!", brincou ele.
"Minha vida é um cross fit, Allex."


 Durante a viagem dele, destrinchei o frango e com o peito preparei o franguinho frito, macio e suculento, de crostinha crocante e com gosto de comida de vó. Servi com macarrão gratinado e couve refogada. Foi a alegria da pimpolhada. "Mamãe, agora faz a sopa da vovó? E o rocambole?" Tá na lista, filho.
E outro amor puro: frango frito.
 O que sobrou do frango virou uma caçarola com molho de tomate, também da Tessa. E a carcaça foi cozida com legumes para virar 2 litros de caldo de frango que foram direto para o freezer. Contei o causo para meu pai, que ria, perguntando se o frango era do tamanho de um cisne, tanta comida tinha vindo dele.

Para arrematar a seção saudade, bolinho de chuva, que meus filhos nunca tinham comido na vida. Usei a receita da Rita Lobo e o sucesso foi retumbante. A única reclamação foi que a receita rendia muito pouco.



FRANGO FRITO DA MINHA MÃE

Ingredientes:
  • 2 peitos de frango sem pele
  • 1 colh. (chá) sal
  • leite (cerca de 2 xic)
  • 2-3 ovos
  • 2 xic. farinha de rosca
  • óleo para fritar

Preparo:
  1. Limpe bem o frango, tirando qualquer nervura. Corte em pedaços mais ou menos iguais, do tamanho de uma bolinha de ping-pong, lembrando que o frango encolhe depois de cozido. (Prefiro tamanhos menores, pois é garantia de que o frango vai cozinhar por dentro sem ficar seco ou queimado.)
  2. Numa tigela grande, misture o leite ao sal e coloque ali o frango já cortado. Cubra com um prato e leve à geladeira por pelo menos meia hora. 
  3. Retire da geladeira uns quinze minutos antes de usar, para perder um pouco o gelo. 
  4. Numa outra tigela, bata com um garfo dois ovos com cerca de meia xícara do leite do frango (aprendi a não desperdiçar nada com minha mãe e meu pai, veja bem.) até que fique misturadinho. (Segundo minha mãe, o leite na mistura de ovos para empanar deixa a casquinha mais fina e leve). Num prato, disponha metade da farinha de rosca.
  5. Retire o frango do leite (reserve o resto do leite, para se precisar bater com aquele ovo que sobrou). Pegue um pedaço de frango por vez, passe na farinha de rosca, então no ovo, e depois na farinha de rosca novamente e deixe num prato ao lado. (O leite, também, segundo mamãe, impede que o ovo faça aquele rabicho pingando quando a gente está empanando - a mistura fica mais homogênea.)
  6. Quando todo o frango estiver empanado (use o último ovo com um pouco daquele leite, e o resto da farinha de rosca, se precisar), coloque uns dois dedos de altura de óleo vegetal numa frigideira grande e aqueça em fogo médio-alto. Coloque um fósforo lá dentro. Quando o fósforo acender, o óleo está a 180oC. (Minha mãe não gosta de fritura com muito óleo, então usa um pouco de azeite e manteiga, mas desse jeito precisa ficar com uma colher banhando o os pedaços de frango. Esse jeito dela prefiro fazer quando é filé e não nuggets.)
  7. Enquanto isso, ligue o forno a 180oC.
  8. Coloque os franguinhos no óleo quente, sem encher muito a frigideira, para que a temperatura não abaixe. Cozinhe até dourar embaixo e vire-os com uma colher. Deve demorar uns dois a três minutos de cada lado, se os nuggets estiverem pequenos e o óleo na temperatura certa. Retire os franguinhos prontos, coloque-os numa assadeira e leve ao forno. Isso vai garantir que continuem cozinhando, para que nenhum fique cru por dentro, e a casquinha continue crocante. Termine de preparar o restante. 
  9. Simples e bom. 




Cozinhe isso também!

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