quarta-feira, 10 de abril de 2019

Abril, sorvete de Gianduia, Focaccia de morangos, melhores almôndegas, criança na cozinha, saudade de comida de vó

FLORES FINALMENTE!
A Primavera parece ter finalmente chegado. Depois da última nevasca no começo de Abril, que pegou todo mundo de surpresa, finalmente os pássaros voltaram, as formigas ressurgiram e as flores começam a nascer novamente. Só quem passa por um Inverno rigoroso conhece a alegria de ver um tufo de grama verde. Sair finalmente sem gorro, com o vento soprando pelos cabelos no topo da cabeça é um alívio.

O começo de Abril também trouxe o aniversário de oito anos de meu Matador de Dragões. Oito anos. Olho para esse menino comprido do meu lado e me assusto com a velocidade do tempo. É uma delícia acompanhar seu amadurecimento, essa montanha russa comportamental, que o leva da risonha bobeira infantil à opinião forte e respondona mais típica de um adolescente em milissegundos.  

Quase que  não sobra bolo para fotografar. Era o bolo de baunilha de sempre da Alice Medrich, ao qual acrescentei 1/4xic. de coco ralado hidratado em um pouquinho de água quente. Chocolate Fudge frosting da Alice também. A ideia do bolo foi do Thomas: um bolo de coco, com cobertura de chocolate, com coco ralado em cima e morangos.

Numa manhã recente, enquanto eu tomava meu cappuccino, braços cruzados, quadris repousados contra a pia, observei a movimentação silenciosa de meus filhos. Thomas veio até a cozinha a passos certeiros, apanhou a frigideira da gaveta de panelas e deixou-a sobre o fogão. Continuei apenas observando, sem dizer nada. Pegou uma fatia de pão. Não, duas. Tirou o pote de vidro de manteiga da geladeira e, com uma pequena faca afiada, tirou-lhe um naco, cuidadosamente depositado no centro da frigideira. Esticou o braço por cima da frigideira, erguendo seu corpo apenas a alguns centímetros do chão sobre a ponta dos dedos, e ligou a boca sob a panela, após um segundo de pausa, enquanto lembrava para que lado girar o botão. Quando a manteiga começou a derreter, segurou firme o cabo de metal com as duas mãos, fazendo um movimento circular com a frigideira, para que a gordura se espalhasse por sobre todo o fundo. Depositou ali suas duas fatias de pão, pressionando-as com as pontas dos dedos para que absorvessem a manteiga, e então cruzou a minha frente em direção à cafeteira automática, onde posicionou sua caneca favorita, de dinossauros, e se preparou um pouco de leite quente com espuma, que bebericou aos poucos, enquanto esperava suas torradas dourarem. Quando desligou o fogo e colocou seu café da manhã no prato para levar à mesa, voltei meus olhos para Laura, que àquele dia resolvera, não sei por quê, já que nunca peço isso a ela, esvaziar a lava-louças. Foi tirando cuidadosamente todos os pratos, tigelas, copos, talheres e panelas pesadas da máquina, e arrumando cada item em seu lugar no armário lá no alto, empoleirada num banquinho, de forma organizada, deixando sobre a bancada apenas os potes que eu precisaria para seus lanches escolares.  Terminada a tarefa, ela abriu o freezer, apanhou um saco de mirtilos congelados, despejando um punhado deles sobre a peneira que ela tirara da lava-louças, e abrindo a torneira de água quente da pia, finalmente ao seu alcance. Depois de deixar a água quente correr sobre as frutas o bastante para que descongelassem, ela as espalhou sobre colheradas de iogurte natural retiradas do pote tamanho família da geladeira, e seguiu contente e em silêncio para a mesa, onde saboreou seu café da manhã com seu irmão, enquanto conversavam sobre tipos de monstros e demônios que desenhariam em seguida.

Ri por dentro, contentíssima e surpresa. 

Meus filhos cresceram. Com seis e oito anos, não há mais crianças pequenas em casa. 

Sempre estimulei sua independência, por motivos altruístas (quero que desenvolvam diferentes habilidades e autoconfiança) e por motivos completamente egoístas (quanto mais independentes eles são, mais tempo eu tenho para mim). Se eles mostram capacidade física e emocional para uma tarefa, quero mais é que façam sozinhos. Começando com arrumar as próprias camas e se vestirem sozinhos quando eram bem pequenos, comerem sozinhos, usarem louça de adulto sem quebrar (sempre fui contra prato de plástico e copo antirespingo, porque não ensina a ter cuidado com os objetos e com a sujeira - a única pessoa da casa que quebrou prato e copo desde que as crianças nasceram fui eu)... passando por tomarem banho sozinhos e escovarem os dentes (o último precisa de uma avaliação materna e paterna e às vezes mandamos eles refazerem). 

Lembro de uma mãe reclamando que não tinha tempo pra nada. Quando descobri que ela ainda dava banho no filho de nove anos, entendi: se eu tivesse de parar meu dia pra ficar dando banho nos dois, eu também teria pouco tempo. Aqui é justo o contrário: enquanto eles tomam banho, eu tenho sossego. (Escrevo isso enquanto Laura está no chuveiro e Thomas fazendo lição.)

Facas sempre foram motivo de discussão: tinha gente que me xingava porque eu dava faca na mão do meu filho quando ele tinha uns três anos (aquelas facas comuns de jogo de jantar).  Desde pequenos eles tinham as facas comuns para que aprendessem a cortar a própria comida no prato ou ajudar a empurrar a comida para cima do garfo - até hoje eu chamo isso de escavadeira e parede: a escavadeira (garfo) tem que empurrar a comida em direção à parede (faca) - e eles aprenderam a comer feito gente grande super rápido. Tenho um orgulho bem besta dos dois por saberem enrolar spaghetti no garfo sem precisar de outros talheres ou por saberem comer alface dobrando a folha sob o garfo com a ajuda da ponta da faca, sem cortá-la. Besta, besta, mas fico super contente. (No entanto, ainda tenho que pedir pra mastigarem de boca fechada e não falarem de boca cheia, em TODA REFEIÇÃO.)

Faz um tempo, comprei-lhes uma tábua de corte menor e uma faca de frutas bem afiada e bem leve, para que não precisem fazer força para cortar as coisas nem usar as minhas facas de corte, que são muito pesadas. Essa faquinha lá embaixo na foto é a faca das crianças, que Laura usa para picar cebolas para mim (ela corta uma cebola inteira em cubinhos ainda devagar, mas com muito capricho) e cortar a parte verde dos morangos quando os trago do mercado. A faca é bem afiada, então eles não precisam fazer FORÇA (o que diminui o risco de acidentes). E é do tamanho exato para que, proporcionalmente ao tamanho de suas mãos, eles possam usar como uma faca de Chef.

Todo restaurante japonês por aqui serve fatias de laranja de sobremesa. As laranjas daqui são muito doces e perfumadas, e foi nos restaurantes que aprendi esse corte: Você corta a laranja como se ela fosse uma melancia, e passa a faca da mesma forma para soltar a polpa da casca. O truque é deixar um cantinho ainda preso. Você pode mandar as fatias de laranja de lanche, e a casca ajuda a mantê-las intactas e ainda ajudam na hora de comer: você segura pela casca, entorta ela um pouquinho para a polpa se separar e come o gomo de fruta assim numa bocada só. A pimpolhada adora, inclusive Thomas, que anda resistente à frutas frescas.
Já cortaram os dedos? Claro que sim. E aprenderam a tomar mais cuidado depois disso. No começo eles só faziam comigo do lado. Hoje em dia eles têm autorização para usar a faca para cortar uma fruta se quiserem, sozinhos. As regras são claras: é um de cada vez na tábua de corte, sempre olhe onde estão os dedos, não pode fazer força com a faca, e a faca não sai de cima da tábua nunca. 

Então, um dia, Thomas pediu para fazer as panquecas sozinho. Expliquei a receita e ele mediu os ingredientes, misturou e então cozinhou, virou e serviu todas as panquequinhas sem minha ajuda. E quando vi que ele já alcançava os botões do fogão, que aqui ficam lá atrás das bocas, perto da parede, expliquei que ele só poderia usar o fogão quando eu estivesse do lado, sem exceção. Ele entendeu. Aliás, esse tipo de regra eles sempre entendem e respeitam muito bem, o que faz com que eu confie ainda mais nos dois. Só não achei que ele sairia assim, fazendo seu próprio café com tanta segurança tão rápido. 😜

Enfim. Ele já se queimou? Claro que sim. Laura também. Thomas anda interessadíssimo no processo de auto-cura do corpo humano, observando o progresso de uma bolha em seu dedo mindinho, queimado quando ele encostou sem querer na borda da panela. Eu gosto que eles se machuquem? CLARO QUE NÃO. Fico preocupada? MAS É ÓBVIO QUE SIM. Ao mesmo tempo, eu conheço meus filhos e sei do que eles são capazes. Nunca deixo que façam nada em dias em que estão cansados ou distraídos, por exemplo, e nunca forço ninguém a ajudar na cozinha - faz só quem quiser. Mas sei que se você não deixa a criança correr e cair, ela nunca vai aprender que o chão é duro e precisa ser evitado. A gente aprende errando. E quando você toma a primeira queimada no antebraço, aprende a manter o cotovelo pra cima enquanto mexe a panela com a colher. Eles têm maturidade o bastante (pelo menos nessa área, no resto tá longe ainda) para saber que a gente não brinca com faca e não brinca com fogo. Quando estão na cozinha, eles são sérios e respeitam os perigos. E acho isso lindo. Quando começa a bagunça, eu já berro: na cozinha só tem UM CHEF! Vocês são ajudantes, e ajudante faz o que pedem, não o que quer. E pronto. Tudo volta ao normal. E se não volta, mando todo mundo pra fora da cozinha e acaba a brincadeira.

Talvez vê-los crescendo e se virando assim tão rápido seja o motivo do meu recente saudosismo culinário. Talvez seja um reflexo natural da idade e dessa busca por comida mais simples. 

Começou quando me dei conta de que havia muito tempo não usava castanhas na minha cozinha, por causa de todo o problema de alergias na América do Norte. Meus filhos são proibidos de levar castanhas e amendoins para a escola, e Allex não levava nada do tipo para o trabalho desde o incidente em que eu quase matei uma colega dele por causa de um biscoito de amendoim. 

Eu e Thomas somos apaixonados por castanhas (coisa que aprendi a comer com meu pai), e sempre inclui um bom punhado delas em nossas refeições e lanches. Meus bolos e biscoitos sempre tiveram amêndoas e nozes. Sempre comemos pesto com castanha do Pará (pois pinolis eram muito caros) e as crianças sempre foram as primeiras a devorarem as castanhas de caju trazidas de Fortaleza por meu pai. (Até hoje castanha de caju é a única que Laura come sem reclamar.)

Mas por que, Ana, você não faz o biscoito com castanha e simplesmente não manda pra escola? Porque, caro leitor, as crianças passam o dia todo fora e todos os lanches são feitos fora de casa, e não há um momento no dia, na verdade, que comporte biscoitos que não possam ser levados para a escola. Seu consumo não se encaixa no nosso dia-a-dia e usar meu tempo pra fazer um doce com nuts e um nut-free sempre me pareceu um abuso.

Mas no embalo das sobremesas de fim de semana, me dei conta de que podia reincorporá-las dessa forma sem correr o risco de mandar coisa errada pra escola sem querer. Resolvi fazer aquele sorvete de amêndoas com cerejas em calda do post anterior. Laura tomaria o sorvete sem reclamar da textura crocante das amêndoas. O sorvete gerou conversas interessantes com meus filhos, e foi quando eles disseram não saber o que era Gianduia que dei um basta. Ok. Mamãe vai voltar a cozinhar com nozes e castanhas. Porque terem família italiana e não conhecerem Gianduia é um crime. Castanhas fazem parte de quem somos (tanto brasileiros quanto de ascendência italiana) e eu não vou abdicar disso.
Quando a gente decide comer sorvete à noite, assistindo Masterchef no computador, a foto não fica lá essas coisas.

E como sorvete é mandatório no fim de semana, preparei um de Gianduia para as crianças imediatamente. Adaptei muito a receita de David Lebovitz. Porque depois de muito fazer sorvete, decidi que prefiro texturas mais delicadas. Os sorvetes dele, apesar de deliciosos, costumam levar mais gemas e gordura do que um gelato normal, e mesmo as crianças comentaram que o sorvete de amêndoas ficou um pouco pesado (Laura também achou muito doce). Adapto sem dó, usando sempre a mesma proporção de gemas para leite e creme a partir de agora, que produz um sorvete mais leve e delicado, mais de acordo com o meu paladar e o das crianças. E o resultado ficou excelente.

GELATO DI GANDUIA
Rendimento: cerca de 1 litro

Ingredientes:
  • 2 xícaras de avelãs inteiras, com casca (assadas por 10 minutos a 180oC, esfregadas para liberar as cascas)
  • 115g chocolate ao leite de qualidade (ao menos 40% de cacau), picado
  • 4 gemas
  • 200g açúcar
  • 750ml leite
  • 250ml creme de leite fresco
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 1/4 colh  (chá) extrato de baunilha

Preparo:
  1. Pique muito bem as avelãs e coloque-as numa panela com o açúcar e o leite. Leve à fervura branda, misturando, desligue, tampe e deixe descansar por 1 hora pelo menos.
  2. Passado esse tempo, passe a mistura por uma peneira fina (se alguns pedacinhos de avelã passarem não tem problema). Reserve as avelãs para outro uso (você pode secá-las no forno para que durem mais na despensa, mas eu apenas coloquei-as no freezer como estavam).  
  3. Bata as gemas em uma tigela. 
  4. Em outra tigela maior, coloque o chocolate e reserve. 
  5. Reaqueça o leite de avelã até a fervura branda e desligue o fogo. 
  6. Tempere as gemas, acrescentando uma concha de leite quente por vez, misturando bem com um fouet. Depois de três ou quatro conchas, junte toda a mistura à panela, e ligue o fogo médio-baixo e mexa bem com uma colher de pau ou espátula, riscando um 8 no fundo da panela, por 8-10 minutos, ou até que a mistura engrosse o bastante para recobrir as costas da colher. As avelãs vão apressar esse processo, na verdade. Fique atento para não deixar o creme ferver ou talhar. 
  7. Passe por uma peneira sobre a tigela com o chocolate e misture bem até que o chocolate esteja todo derretido.
  8. Misture à tigela o creme de leite, o sal e a baunilha. Continue misturando até que o vapor pare de sair. Deixe a tigela em temperatura ambiente até que esfrie e então leve à geladeira por pelo menos 4 horas. 
  9. Passado esse tempo, coloque a mistura na sorveteira segundo as instruções do fabricante.

É CLARO que eu não joguei fora as avelãs picadinhas que foram peneiradas. Misturei-as a uma receita simples de granola, para assarem junto com a aveia logo do começo, e o resultado ficou delicioso. Pronto, mais castanhas incorporadas no nosso dia-a-dia.
Granola, banana e iogurte depois da corrida. Nham.
A empolgação com as castanhas me fez buscar novamente as receitas abandonadas de bolos e biscoitos italianos que eu andava ignorando em detrimento das preparações nut-free. Foi aí que voltei a preparar bolos feitos não com o intuito de serem lanche de escola, mas sim café da manhã. Pois assim poderia colocar todas as castanhas que quisesse, sem peso na consciência. Mas acontece que acabei apaixonada pelos bolos italianos, leves, pouco doces, cheios de fruta, que não parecem uma indulgência logo pela manhã, e esqueci-me de que a ideia era ter castanhas ali.

Além disso, bolos italianos costumam ser ridiculamente fáceis de preparar. Os dos livros de Marcella Hazan são praticamente todos feitos com uma tigela e uma colher, e as crianças gostaram de todos até agora.

Outra coisa boa para o café da manhã, que Laura me fizera prometer preparar no dia em que folheou meu livro e viu a foto é essa focaccia rápida de morangos. Rápida porque fermenta apenas uma vez e por apenas 1 hora e meia, indo direto para o forno. Ainda assim ela fica macia por dentro, ligeiramente crocante por fora, e com esses morangos mornos e macios, quase como uma compota. Ótimo para o fim de semana, quando todo mundo acorda meio sem fome e com vontade de ir brincar, e pode esperar duas horinhas para tomar café. (Mamãe não. Mamãe toma cappuccino enquanto prepara a focaccia.)

A focaccia da foto é apenas meia receita, que basta para 4 pessoas. (Eu não tinha fermento para uma receita inteira)
FOCACCIA RÁPIDA DE MORANGOS
Do livro Recipes and Dreams from an Italian Life, de Tessa Kiros)
Rendimento: 8 porções

Ingredientes:
  • 2 colh. (sopa) fermento biológico seco
  • 1 1/4 xic. àgua morna
  • 5 colh. (sopa) cheias de açúcar
  • 2 2/3xic. farinha de trigo
  • 1 pitada de sal
  • 2 1/2 colh. (sopa) azeite
  • 450g morangos maduros
  • açúcar de confeiteiro para polvilhar

Preparo:
  1. Junte o fermento à agua com 1 colh. (sopa) açúcar e deixe uns minutinhos para espumar. 
  2. Junte a farinha e o sal e sove ligeiramente dentro da tigela, obtendo uma massa macia e mais grudenta que o normal.
  3. Espirre um pouco de água numa assadeira e forre-a com papel-manteiga (a água vai ajudar o papel a grudar lisinho no lugar). Unte o papel com o azeite, espalhando com as mãos (o azeite nas mãos ajuda a massa a não grudar depois).
  4. Espalhe a massa sobre o papel, e comece a esticá-la sobre ele usando os dedos, empurrando o centro da massa para fora. Se a massa estiver elástica e voltando para o lugar, deixe descansar por 5 minutos e tente de novo. Espalhe com os dedos e as palmas das mãos até que cubra boa parte da assadeira (uns 33cm de comprimento).
  5. Cubra com um pano apoiado a copos, para que o pano não encoste na massa, e deixe levedar por 1 hora a 1 hora e meia. 
  6. Enquanto isso, corte ao meio os morangos grandes e deixe os menores inteiros. Numa tigela, misture-os a 2 1/2colh. (sopa) açúcar. Deixe macerar.
  7. Pré-aqueça o forno a 205oC. Quando a massa tiver crescido bem, espalhe os morangos com seu suco sobre ela, com cuidado para não desinflá-la. Polvilhe com o restante do açúcar, inclusive as bordas, e leve ao forno por 25 minutos, ou até que a massa esteja dourada e assada. Tenha certeza de que a parte do meio está assada, mas não cozinhe demais, ou os morangos vão virar uma geleia. 
  8. Retire do forno, deixe amornar e polvilhe com o açúcar de confeiteiro antes de servir.


Foi justo num fim de semana cansado, depois de muita correria, em que eu só queria parar e não pensar muito em nada enquanto tomava minha cerveja, que resolvi assistir a um programa do Jamie Oliver em que ele vai (de novo) para a Itália. Jamie já me deu um bode imenso, mas a proposta do programa era fofa: ir atrás das vovós italianas e suas receitas.

Pronto, eu estava apaixonada. Aquelas avós que eram iguais às minhas, cortando cebola na palma da mão com uma faquinha de fruta fizeram minha saudade explodir. Fiquei mais bodeada ainda com Jamie, pois depois de anos e anos enchendo todo mundo pra aprender a picar legume com faca de chef, cheio de técnica, agora ele estava ali, se debulhando em elogios à "técnica fantástica" de cortar batata com faca de bife na palma da mão, e de picar os legumes sem qualquer espécie de padrão de tamanho "porque dá mais textura para o prato".

😒



Sério?

Ok, então.

Eu assisti com deleite às senhorinhas preparando seus pratos regionais com carinho e dei um fast-foward nas adaptações escalafobéticas do Jamie Oliver. E quando terminei de ver todos os episódios, cheia de lembranças carinhosas de minhas avós e de minhas viagens à Itália, o YouTube me recomendou um canal italiano com videos de receitas de Nonna. E ali estava uma linda Ciambella, um bolo de furo no meio, e eu não resisti.

O video é uma delícia. A carinha da cozinha, os utensílios, a relação da Nonna com o Nonno que só senta lá pra dar palpite, a toalha de plástico, a Nonna esfriando bolo no chão da cozinha. (Se eu fizesse isso, o Gnocchi seria o primeiro a experimentar o bolo, com certeza!) E desse videozinho fui para vários outros, e descobri que depois de passar tantos anos da minha vida vendo Chefs de cozinha preparando comida com precisão científica e empilhando ingredientes no prato, dá um alívio infinito ver uma velhinha italiana sovando massa e batendo bolo até o glúten arrebentar. Ri muito quando uma das avós soltou em italiano a expressão "uma vez a cada morte de Papa", porque eu falo isso o tempo todo e não fazia ideia de onde eu tinha tirado.

Ver aquilo me fez pensar na minha avó paterna que me ensinou a fazer pasta fresca, na materna, que sempre preparava meus pratos favoritos, na avó do Allex que me ensinou a fazer seu Apfelstrudel, na avó da minha melhor amiga na infância, que sempre preparava arroz doce quando sabia que eu viria e fazia bolinhos de chuva para nosso lanche da tarde... Fez com que eu lembrasse que comecei esse blog dizendo que eu era uma Nonna em treinamento, e que, no fim, o objetivo era chegar nessa cozinha de amor, nutrição e conforto que as avós fazem tão bem. No mundo de hoje em que cozinha é de mostrar pros outros, de show, de exibição, lembrar da cozinha fria de azulejos azuis da minha avó paterna e de suas mãos pequenas sovando massa sobre a mesa de fórmica branca me trouxe um chão e um norte que eu vinha buscando com força há muitos anos e mais ainda desde que mudei de país.

Munida de amor por aquelas velhinhas, resolvi tentar me ater àquela cozinha simples e carinhosa, e com certeza meu prazer na cozinha se multiplicou.

O YouTube normalmente só me recomenda bizarrice, razão pela qual às vezes passo semanas sem nem abri-lo. Mas uma vez que volto a assistir Masterchef Brasil (que é o único Masterchef que gosto hoje em dia), abre-se a porteira novamente e lá vou eu ficar fuçando em video tonto ao invés de ler meus livros (foi justamente aí que caí na série do Jamie Oliver). Mas ás vezes ele acerta: acertou na Ciambella da Nonna e acertou numa pequena série de videos de um outro canal italiano chamado Italia Squisita. Trata-se de uma seriezinha de chefs italianos reagindo aos videos mais assistidos do mundo de receitas de seus pratos regionais. Então você tem três pizzaiolos napolitanos assistinto os videos mais famosos da internet sobre como fazer pizza napolitana. Achei que seria algo só muito metido a besta, mas ver os italianos reclamando dos crimes cometidos contra sua comida é hilário. De quebra, eles dão algumas dicas do preparo "correto" dos pratos. É melhor para quem fala italiano, mas as legendas em inglês estão bem adequadas.

Uma das dicas que os pizzaiolos de Napoli dão é a respeito da pizza em forno caseiro. Eles sugerem que se coloque o molho sobre a massa e leve a pizza ao forno pela maior parte do tempo, colocando o queijo apenas no final, para derreter por pouquíssimos minutos, sem dourar. Queijo dourado, para eles, é um defeito. Não vou entrar no mérito de certo e errado, aqui o que vale é o gosto pessoal: se você gosta do queijo dourado, faça a pizza com queijo dourado. (Até porque, pizza romana é crocante, e em Napoli pizza crocante é defeito. Então, cada um que faça o que gosta e seja feliz. Eu sou do time napolitano: pouco recheio, queijo suculento e não dourado e massa por baixo fina e macia com bordas pãozudinhas. É disso que eu gosto. Outra dica era colocar o queijo em pedaços maiores, para que não perdesse tanta umidade no forno.


Pizza depois de 12 minutos de forno a 225oC, apenas com molho de tomate, voltando para o forno com parmesão ralado, o queijo mozzarella em tiras, manjericão e um fio de azeite.
Eu tentei. Mas oito minutos para o queijo em pedaços teve o mesmo efeito que o queijo ralado e ele dourou mesmo assim.



Na próxima vez vou tentar deixar a pizza por uns 15-16 minutos e deixar o queijo apenas por 4-5 e ver o que acontece. :)

Os videos desse canal também mostram como abrir a pizza com as mãos, sem o rolo. Segundo eles, o segredo está em manipular a massa o menos possível. Vou dizer que minha pizza nunca saiu tão uniforme e redonda. :D

Depois de me esborrachar de rir com os italianos reclamando e aprender alguns truques novos, vi-me novamente sentada no sofá folheando meus livros de cozinha italiana. Vi-me comprando polenta de novo e arroz arbóreo novamente, ingredientes que andavam meio esquecidos nos últimos tempos.

Num dia em que eu tinha uma quantidade grande de cogumelos na geladeira, dourei-os todos com um pouco de alho e os cobri com o que restara do molho de tomate que eu fizera em dobro para um spaghetti de fim de semana. Esse "ragù" de cogumelos acompanhou polenta molinha e fumegante.

Ragù rápido de cogumelos com polenta.

O spaghetti al sugo que sobrara do fim de semana virou doze mini-frittate, feitas na forma de muffins muito bem untada de manteiga para nada grudar. Dividi o spaghetti (tinha bastante) entre as formas já untadas (o spaghetti retornado à temperatura ambiente fica molinho de novo e fácil de separar uns fios dos outros), e fiz uma mistura de 8 ovos, um splashzinho de leite, sal, noz mocada e pimenta-do reino, um punhado de parmesão, e dividi entre as formas, que devem ficar preenchidas algo entre metade e 3/4 da capacidade. Polvilhei cada uma com salsinha e mozzarella ralada e levei ao forno médio por uns 15-20 minutos, até que inflassem, dourassem e estivessem cozidas. Esperei que esfriassem um pouco antes de desenformar com a ajuda de uma faquinha. As frittate que não foram jantadas viraram lanche da escola no dia seguinte.


As melhores almôndegas que já fiz (ou comi) na vida.

Na semana seguinte não me aguentei e quando vi Grass Fed Beef em promoção, catei um pacote na gôndola. Porque aqui tem disso: tem carne de boi de pasto e carne de boi que come soja. O de pasto é claro que é mais caro. Então espero as promoções para poder comprar boi feliz pelo preço de boi triste. Como tivesse repolho crespo igualmente em promoção (repolho crespo = savoy cabbage), decidi preparar as almôndegas de inverno da Marcella Hazan. Tantas, tantas receitas maravilhosas que eu nunca havia feito, preocupada demais em me entulhar de livros da última moda culinária. Eita, se eu tivesse cabeça de 40 anos quando tinha corpo de 20...

Enfim. Claro que servi as almôndegas com polenta. Preparei as almôndegas com antecedência, num momento tranquilo da minha manhã, enquanto esperava a tinta da minha ilustração secar, e deixei para preparar o restante do molho no fim do dia, junto com a polenta. (Polenta, aliás, que depois que esfria, você corta em tirinhas e frita, ou tempera com azeite e coloca 18 minutos na Air Fryer até que fiquem crocantes por fora.)

O veredito da Laura para esse prato: "Mamãe, essa comida está SENSACIONAL!"

Adoro quando ela usa essas palavras, que parecem saídas da boca de um adulto e não de uma criança do Kindergarten. ;)

Elas são de fato absolutamente deliciosas, mesmo antes de acrescentar o molho de repolho e tomate. Muito suculentas e saborosas. As melhores que já preparei na vida e ouso dizer as melhores que já comi.

ALMÔNDEGAS DE INVERNO COM REPOLHO CRESPO (OU COUVE)
(Do livro Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana, de Marcella Hazan)

Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 1/3 xic. leite quente
  • 1 fatia de pão sem casca
  • 500g carne moída (de preferência de 1a)
  • 50g pancetta (usei bacon) picado pequenininho
  • 1 ovo
  • sal a gosto
  • pimenta-do-reino a gosto
  • 2 colh. (sopa) cebola picadinha
  • 3 colh. (sopa) queijo parmesão ralado
  • 1 colh. (sopa) salsinha picada
  • 1 xícara de farinha de rosca
  • Óleo ou azeite para fritar
  • 550-600g repolho crespo ou couve, em tiras de 0,6cm, sem o miolo (eu piquei o miolo junto, porque desperdiçar comida fazendo um prato italiano é um paradoxo)
  • 2 colh. (sopa) azeite
  • 2 colh. (sopa) alho picado
  • 2/3 xic. tomates pelados em lata (eu usei 1 xícara e meia, pois queria mais molho e meu repolho não soltou muita água)

Preparo:

  1. Coloque o pão no leite quente e deixe ali até que ele o absorva todo. Quando isso acontecer, amasse bem com um garfo até que vire uma papa.
  2. Junte a papa de pão à carne moída, bacon picado, o ovo, salsinha, queijo e cebola. Tempere com sal e pimenta e misture bem com as mãos até que dê liga e os temperos estejam distribuídos.
  3. Forme bolinhas de 3,5cm e passe-as ligeiramente na farinha de rosca.
  4. Aqueça cerca de meio centímetro de altura de óleo ou azeite numa frigideira. Frite as almôndegas, algumas de cada vez, até que dourem de todos os lados. Deixe-as secando num prato com papel toalha. (Eu fiz até aqui e deixei o prato em temperatura ambiente até a hora de preparar o restante do jantar.)
  5. Descarte adequadamente o óleo. Você vai precisar de uma frigideira ou panela grande o bastante para comportar todas as almôndegas em uma só camada. Aqueça o azeite nela e junte o alho picado, cozinhando até perfumar. Junte a couve ou repolho em tirinhas, tempere com um pouco de sal, mexa duas ou três vezes e tampe a panela. Passe para o fogo baixo.
  6. Cozinhe por cerca de 40 minutos (enquanto isso você faz a polenta, se quiser), mexendo de vez em quando. Experimente e corrija o tempero adicionando sal e pimenta-do-reino.
  7. Passe para fogo médio, destampe a panela e continue a cozinhar até que o repolho escureça um pouco. Junte os tomates, mexa bem e cozinhe por uns quinze minutos em fogo baixo.
  8. Junte as almôndegas, vire-as na panela algumas vezes, tampe e cozinhe por mais uns dez minutos. Sirva imediatamente.

E aquelas polpettine, aquele monte de polenta, claro que me mantiveram com a mente fixa em minhas avós. Fiquei pensando nas tradições familiares, nas lembranças. Em como meus filhos jpa pedem constantemente a canja de galinha da avó (que eu já prometi preparar diversas vezes mas ainda não fiz), que é o prato de que mais sentem falta desde que vieram para o Canadá.

Fiquei buscando nos livros receitas que me lembrassem das minhas avós, algo que reproduzisse aqueles gostos de infância, aquelas histórias de cozinha, já que minhas avós não me deixaram praticamente receita nenhuma.

E então liguei para minha mãe e lhe pedi todas as suas.

"Mas minha comida é simples", disse ela. " É alho e cebola, não tem nada de muita invenção."
"Eu sei, e é isso o que eu quero. Não quero que aconteça com a sua comida a mesma coisa que aconteceu com a da vovó, que ninguém sabe preparar igual. Tô com saudade do estrogonofe, do couscous, daquele frango com pimentão e batata, a sopa de frango com legumes, da Braciola, daquela carne de panela que você botava tomate e azeitona..."
"Carne lessa?"
"É esse o nome?"
"É."
"Carne lessa". Carne cozida. Fui procurar no tio Google. Bolito di manzo. A carne bovina que se cozinha em muita água por muito tempo até ficar macia. Que quando pronta, é separada do caldo, resfriada e transformada em salada de carne (com tomates e azeitonas, por exemplo) ou desfiada para virar bolinhos ou é misturada a molho de tomate para um macarrão. E o caldo vira outra coisa: vai para uma sopa, um ensopado, um risotto, exatamente como faziam minhas avós. Um prato que vira dois. Cozinha esperta.

Essa carne fria com tomates e azeitonas foi um ícone da minha infância, tantas vezes que comemos sanduíches dela. Minha pergunta gerou histórias. Quem fazia, aprendeu com quem, como servia. Juntar as informações da família com as dos livros e mesmo as da internet, explicaram melhor aquele prato simples que, antes de ser típico da Itália, era típico da minha mãe, que é avó dos meus filhos. Comida de Nonna.

Essa semana ela começou a me mandar as fotos do passo-a-passo de suas receitas, começando com a tal Carne Lessa.

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Agora, apesar da brincadeira dos videos de chefs italianos, levanta a mão quem está meio cansada de comida de chef.

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Foi divertido aprender por todos esses anos todas as técnicas de corte, de cozimento, as combinações clássicas e as escalafobéticas, os modismos de ingredientes, o vegetariano, o vegan, o cru, o natureba, o pode, o não-pode, o típico e o bastardo, o autêntico e a adaptação.

Certamente parte do meu prazer em cozinhar todo dia advém do fato de eu ter aprendido a picar uma cebola inteira em trinta segundos ou conhecer o preparo de molhos básicos sem ter que ficar olhando receita.

E isso é muito bom e sou grata pela curiosidade (e pretensão e preciosismo, digamos de passagem) que me fez correr atrás de tanta informação ao longo desses anos. Sinto que posso explicar melhor a meus filhos hoje porque mamãe faz isso ou aquilo. Como ontem, quando acabou o fermento que Thomas tinha de acrescentar ao bolo e eu disse que estava tudo bem, pois havia muito suco de limão na massa (ácido) e se usássemos bicarbonato de sódio (sal), a massa cresceria mesmo assim (e cresceu).

Mas agora eu meio que cansei. Agora que eu já sei tudo isso, só tenho vontade de voltar às origens. Ao arroz com feijão e creme de espinafre, à farofa de ovo com azeitona e à canja que comi toda semana quando criança na casa de minha mãe; ao frango com batatas de minha avó materna, ao tagliatelle fresco de minha avó paterna; aos bolos simples de café da manhã e aos torcidinhos de lanche da tarde. Alguém lembra dos torcidinhos? Era uma receita do livro da Dona Benta. Um biscoito salgado com sementes de erva-doce,comprido e torcido, que minha avó fez todos os domingos durante os quinze anos em que minha vida e a dela se intercalaram. É uma receita que todo mundo tem, mas é a quintessência de minha relação com minha avó.

Está na hora de preparar torcidinhos.

Cozinhe isso também!

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