segunda-feira, 11 de junho de 2018

O que trouxe Maio




Quando meus pais chegaram, as temperaturas ensaiavam uma primavera tímida. Alguns passeios no parque de casacos leves e cachecóis, outros de camisetas. Era difícil não pensar nos céus azuis de Maio em São Paulo, mas apesar do cobalto intenso entre nuvens, a sensação era outra: a alegria de dedos livres de luvas, do sol ameno acariciando os braços, dos cabelos soltos no vento. Havia um anseio primordial pelo calor, pelo ar fresco na pele, pela luz. Essa luz que veio rápida, tornando os dias mais longos, essa luz que chama para fora.

Sentei-me sobre a grama pela primeira vez em meses. Vi as crianças correrem descalças pelo parque. Os caminhões de sorvete mequetrefe voltaram. Os carrinhos de cachorros-quentes nos parques. Os Robins, meus Sabiás honorários. E os Chipmunks, aos montes, fugindo do som de meus passos com gritinhos agudos e se escondendo em seus buraquinhos no chão.

Antes que digam, essa não é uma cerejeira. Apenas uma árvore de flores muito cor-de-rosa.
As cerejeiras estavam em flor. Tão tarde esse ano, disseram. Mas como se elas dessem o sinal de comando, a natureza explodiu em flor e verde e pólem e sons e cheiros junto com aqueles buquês cor-de-rosa e brancos. Hávia tulipas iridescentes de todas as cores, atravessando a terra escura com força e em riste em direção ao sol como lanças ali fincadas. E arbustos de flores pequeninas cor-de-leite-fresco, tão delicadas, que o vento arrancava suas pétalas circulares e as carregava pelos ares, dançando e brilhando como confete perfumado. Dentes-de-leão forravam de amarelo-ouro a grama macia por toda e qualquer parte. Havia flores em chapéus e cestos de bicicletas.

Houve também vendavais e telhados levados e árvores partidas. Árvores por toda a parte, arrancadas pelas raízes, galhos imensos despencados duma altura infinita. A festa da natureza nunca termina sem alguns feridos.

Houve patinete. Laura olhou o patinete de duas rodas, e choramingou, um, dois, três dias. No quarto, descia morro, ia na frente, acelerada, sumindo pela rua.



Maio foi mês de muito vinho, muita conversa, muito abraço, muita brincadeira de avós, muita contação de história, muito desenho, muita costura, muitos planos. Foi um mês de uma visita tranquila, duas semanas simplesmente juntos, levando e trazendo da escola, passeando cachorro nos parques, comendo ramen e hambúrguer. Aquele calor que vinha de meus pais, no fim, por ele eu também ansiava. E vê-los aqui contentes, sem mais dúvidas das decisões que havíamos tomado para nossas vidas, trouxe-me uma paz imensa.


Eles se foram um dia depois do aniversário de meu pai e um dia antes do dia das mães.


Foi providencial o convite que tivemos de amigos para passarmos o dia das mães em sua casa no lago, fora de Toronto, e o acordar muito cedo, o road-trip, a ansiedade pelo passeio e pela brincadeira, apaziguou o vazio da partida no coração de todos.


Lá, a dona da casa mostrou-me a horta que preparava, e uma profusão fantástica de ruibarbo plantado pelo antigo dono e com o qual ela já não sabia o que fazer. As crianças ajudaram a colher tudo o que pudemos, e carreguei para casa comigo algumas picadas de inseto, braços queimados de sol, e ruibarbo o bastante para bolo, geleia e o que mais quizesse. 

Com ele, preparei primeiro um bolo simples, receita como sempre apanhada no Smitten Kitchen.  Em seguida uma geleia de ruibarbo simplíssima da dona Martha Stewart, que fica azedinho-doce, e que as crianças adoraram. Um pote foi imediatamente de presente aos donos originais do ruibarbo, como agradecimento. E o restante dos talos tenros, cortei e congelei, e no fim do mês, uma parte deles virou muffins deliciosos que as crianças mesmas fizeram. Novamente, aquela receita perfeita da tia Martha. Receita esta, aliás, que transcrevi numa linguagem mais simples em dois post-its cor-de-rosa e colei à geladeira, para ter sempre à mão. Também porque, com as férias de verão chegando, pensei numa boa estratégia para manter Thomas praticando a leitura em inglês sem parecer lição-de-casa. E resolvi testar minha ideia já com antecedência: Thomas leu os ingredientes e os processos, e Laura mediu tudo e misturou. Trabalho em conjunto, pouca ajuda minha, e os muffins saíram perfeitos. 
Vemos filhotes de todos os bichos pór aí. De gansos a guaxinins, como este.

Então Allex entrou em férias, e tivemos uma semana inteira de almoços nós dois enquanto as crianças estavam na escola. E os dois adoraram pai levando e trazendo da escola, e brincando depois da lição, e jogando Trouble e Zombie Dice, e preparando milk-shake e comprando picolé, e indo levar ao parque para andar de bicicleta. 

E Allex, que nunca havia corrido na vida, e que começara no fim do Inverno, calhou de começar a correr 5km por dia e se inscreveu em provas de Trail Running, influenciado por um amigo querido no Brasil que junta grupos de gente para correr no mato e nas montanhas. E assim como todo mundo que encontra saúde, lá veio ele me cutucar e querer me levar junto: corre de novo, dizia ele; você costumava correr, é só comprar um tênis, vai lá, vamos lá. Mas Allex, não tenho tempo. Eu finalmente estou fazendo o que você sempre me disse: para largar as coisas da casa um pouco e usar meu tempo sem as crianças para fazer os meus trabalhos, e é isso que estou fazendo; já tenho trabalho, passeio do cão, cuidar da casa... se eu começar a correr, vou trabalhar menos, e ter menos chance ainda de voltar a ganhar algum dinheiro. Ana, eu prefiro você saudável e feliz comigo até os cem anos do que ganhando dinheiro; eu fico com as crianças de manhã e você sai para correr; eu posso correr depois do trabalho, não tem problema.

Ok. O amor dos pequenos gestos.

E saímos os dois, e me comprei o tênis mais baratinho da promoção do outlet, e saímos para correr no mato. E corri 5km feliz. E corri 5km todo dia. Até pisar torto uma semana depois ao arrumar a cama e ter de ficar duas semanas sem correr coisa nenhuma. Tudo bem. Esperei sete anos para voltar a correr, posso esperar mais duas semanas.

Durante as semanas em que meus pais estiveram aqui, cozinhei muito pouco, é verdade. Fiz-lhes um Berry Cobbler da Alice Medrich, aproveitando um saco imenso de frutas vermelhas congeladas, que traziam amoras, framboesas, cerejas, morangos e blueberries, com a massinha com fubá que fica deliciosa. Não fotografei coisa alguma, mas encontrei a receita aqui e vale repeti-la à exaustão e servir quente com chantilly ou iogurte. Fica pronto no tempo que se demora para comer o jantar, e é uma sobremesa simples e fantástica.

Também reparei um bolo invertido de cranberries (usando das congeladas), cujo uso não me animou quando era outono, mas achei interessante servir a meus pais, já que não se encontra desta fruta super azeda no Brasil. A receita é daquela revisitinha Everyday Food que trouxe comigo, e está aqui. Super fácil e fica de fato delicioso. 

Depois, com Allex de férias, saímos algumas vezes para comer e em outras fomos simples e frugais, e houve poucas refeições que merecessem um comentário por aqui. Boas de fato, mas não exatamente receitas.

Esta foi uma das poucas. Um arroz simples feito com a água do cozimento do brócolis, que o deixa assim amareladinho mas bem saboroso, e salsichas de porco (encontrei das orgânicas, apenas carne e temperos) com batatas-doces. Esta batata-doce cor-de-laranja, que procurei à exaustão no Brasil sem nunca encontrar, é um dos ingredientes favoritos meus e de Thomas. Allex e Laura ainda torcem o nariz, pois parece demais com abóbora, e com certeza pode ser substituído por ela. Refoguei cebola em meias luas em azeite e manteiga até quase caramelizarem, e alho e alecrim e uma pitada de páprica picante e as batatas-doces em cubos, e fui refogando devagar e devagar, com sal e pimenta-do-reino, até amaciarem e pegarem cor. Então entraram as salsichas já cozidas e cortadas em rodelas grossas, que foram douradas rapidamente, e um nada de vinagre e água, para raspar o fundo queimadinho com a colher de pau e terminar de cozinhar as batatas, criando uma liga mais cremosa entre os ingredientes. Água evaporada, muita salsinha fresca, sal acertado e sentar-se à mesa.

Tenho feito muito o mesmo prato substituindo as salsichas por ervilhas congeladas, e deixando um pouco mais de molho na panela. Um pouco de queijo feta esmigalhado, ou lascas de parmesão, ou queijo haloumi (ou coalho, no Brasil) douradinho, ou mesmo ovos cozidos, completam a mistura sempre. E daí que uma batata-doce grande alimenta quatro pessoas. Cozinha inteligente e econômica, para contrabalançar os dias de comer fora.

 

Por último, veio a alegria das frutas. Ontario e sua primavera tardia ainda tem pouca coisa a mostrar, e as frutas da estação vêm todas da California e do México. Passei todo o inverno com duas crianças pedindo por melancia, e desde que elas surgiram no mercado orgânico, tenho comprado assim, pequenas, de duas em duas, e feito um bocado de exercício ao carregar no braço por 2km duas melancias e dois melões e mais toda a compra da semana nas práticas mas desconfortáveis sacolas de 1 dólar da Ikea. E os melões são doces e chamam as abelhas nos parques. E eles tem gosto dos dias que não terminam e da grama entre os dedos dos pés, e do ar quente por dentro da blusa. 

E com os granulados que restaram dos brigadeiros que as crianças fizeram para o aniversário do vovô, Laura me ajudou a fazer um bolo formigueiro. E comemos bolo formigueiro e melão no nosso café da manhã de pousada de praia, inventando em nossas mentes as manhãs de férias mesmo em dias de escola. 

O bolo é o tal bolo de iogurte da Laura, que continua sendo um de meus bolos favoritos, não só por ser fácil o bastante para uma criança de 5 anos preparar sozinha, mas porque a textura é sempre ótima e é infinitamente adaptável. Ontem Laura o fez de novo, mas substituindo 1/3 de xícara de farinha por cacau em pó e o transformando num bolo de chocolate delicioso e macio.

Maio trouxe meus pais, trouxe o calor da primavera, o verde intenso e as flores, trouxe a sombra das árvores sobre as calçadas, trouxe de volta a alegria da rua e os piqueniques, trouxe frutas que não são maçã, trouxes dias que só acabam às nove da noite, trouxe a corrida de volta à minha vida, trouxe merecidas férias para um marido que trabalhara dois anos sem pausa, e trouxe de volta dois livros que eu deixara com minha irmã, acreditando não mais precisar deles. Folhear os dois livros da Marcella Hazan de novo me proporcionou um conforto maravilhoso e inesperado, a lembrança de uma cozinha italiana simples e boa e direta ao ponto. E numa conversa com uma amiga, desabafei: sempre que me pego procurando receitas muito complicadas e ingredientes difíceis, preciso parar e prestar atenção ao que anda acontecendo comigo; pois parece que minha mente é muito ligada à minha cozinha, e a cozinha simples do arroz com ovo, do bolo de iogurte e do muffin básico de sempre, parecem só existir quando minha mente é também simples. E quando a confusão se instala e eu me perco na floresta escura da insegurança, pareço buscar mais intensamente os caminhos mais tortuosos para me tirar dali, caminhos que são sempre dos outros e não meus. E me pego mais cansada, mais confusa, mais frustrada, por não conseguir trilhar com leveza aquele caminho empedregulhado que pareceu tão fácil para meu vizinho, para meu colega, para aquela moça do Instagram que eu sigo. 

E Maio terminou com uma série de reflexões. Maio começou e terminou com o livro Walden, de Henry Thoureau, meu primeiro clássico americano do século XIX lido em inglês. Leitura lenta. Mas leitura boa. Um texto rebuscado para exaltar uma vida simples. Uma vida com o necessário. Uma vez supridas as suas necessidades básicas, diz Thoureau, vá viver uma aventura. Não se perca com o supérfluo. Não acumule coisas. Dinheiro supérfluo só compra coisas supérfluas. Tudo o que você tem e do qual não precisa, custa-lhe mais trabalho e tempo para manter. 


É simples a vida simples. É simples a vida. Mas manter a mente nessa estado de águas calmas para se enxergar o fundo do lago é um exercício de atenção constante. Atenção aos insetos na grama, atenção à música a que seus filhos dançam, ao modo como a melancia se dissolve sobre a língua, ao vento quente que traz o cheiro do mato, ao abraço tão longo na mãe antes de partir, ao olhar de amor do marido, ao pedido por carinho do cão, aos anseios do próprio peito que precisam ser mais ouvidos do que as racionalizações da mente maculada pela sociedade. 

Maio terminou com a necessidade de encontrar meu próprio caminho, minha trilha no mato, minha aventura. O caminho para o lago turvo. O silêncio da espera, o olhar calmo até o dissipar das ondas.  A vida é simples se a vemos simples. Minha vida só é simples quando não me deixo complicá-la. Atenção! Aqui e Agora!, dizem os pássaros de Aldous Huxley. 

"Why should we be in such desperate haste to suceed, and in such desperate enterprises? If a man does not keep pace with his companions, perhaps it is because he hears a different drummer. Let him step to the music which he hears, however measured or far way." (Walden, Henry Thoureau).

("Por que deveríamos ter tanta pressa desesperada em atingir o sucesso, e em tão desesperados empreendimentos? Se um homem não acompanha os passos de seus companheiros, talvez seja porque ele ouve um ritmo* diferente. Deixe-o dançar à música que ele ouve, não importa quão medida ou distante.")
* no texto original, "drummer" é "baterista".















quarta-feira, 2 de maio de 2018

Abril, outro post em duas partes, Ele a última bagagem, a última fronteira


Foram 9 meses de análise e ressignificação, de um infinito quebra-cabeças de minhas partes e minhas relações com o mundo, e pela primeira vez respirava o ar gelado do início de primavera, mas assim como o tempo lá fora, o inverno permanecia em mim. Onde estava a renovação que buscava com tanta ânsia, onde estavam as flores depois de tanto tormento?

Se tudo está bem, então por que não está?

Parte do The 100 Day Project. Um sketch bobo por dia, combinado ao número dos dias. Começou no 1, vai ao 100. Você vê o processo e o resultado no Instagram: @anaelisagg e no hashtag #100sillysketches

Foi numa tarde de cervejas duplamente extraordinárias - porque eram boas, e porque tomei umas extras - que me meti numa discussão sem pé nem cabeça com ninguém; fiquei ali regurgitando livros e filosofias em cima de gente amiga que não tinha pedido por aquilo. Era como gritar com as paredes; sem quererem se meter em briga, meus colegas simplesmente ignoravam minhas investidas.

Ainda bem.

Foi preciso passar por essa vergonha e me acabar em arrependimentos e desculpas, para ver que havia uma raiva dentro de mim que andava sufocada, quietinha, esperando num canto, olhando para baixo, torcendo para ser a última a ser escolhida, na expectativa de que se esquecessem dela e que assim pudesse prosseguir sua rotina de ocasionais e incompreensíveis explosões.

Mas isso não se repetiria, pensei. Arranquei a raiva de seu canto e expus sua face sob fortes holofotes, e me dei conta de que, como sempre é, despida de sua fantasia de raiva, quem se encontrava ali era o medo.

Um medo imenso e descabido de não ser boa o suficiente. De ninguém querer meu trabalho aqui. De não ser interessante o bastante.

Eu havia esmiuçado todos os aspectos da minha vida nesses nove meses de vida fora da ilha, menos meu trabalho. Que eu continuo chamando de trabalho, como se fosse uma coisa externa a mim, uma atividade qualquer que eu troco por dinheiro, apesar de ser em verdade uma parte integral de quem sou e a fonte de minhas maiores e mais assombrosas inseguranças. É minha criação e minha visão de mundo, minha opinião e minhas cores, meus traços, minhas palavras, meu estômago inteiro e meu coração pulando, apertando; sou eu nua no mundo e no silêncio aguardando inevitável julgamento.

Não é um trabalho.

Uma semana antes, eu havia enfim parado de procrastinar e resolvido organizar os arquivos do computador, necessidade número um desde o triste fim de meu HD externo um ano antes. Marshall Mcluhan dizia que a maior parte das pessoas vive ou no passado ou no futuro, e que talvez apenas os artistas vivam no presente de fato. Jamais entendera a razão de não ficar conjecturando meu futuro como meus amigos, ou de me surpreender ao relembrar um acontecimento de meu passado como se tivesse ocorrido a outra pessoa, e aquela afirmação pareceu-me uma explicação bastante razoável para o que sempre me pareceu um problema cerebral exclusivo meu.

E lá estava eu, estupefata em frente ao computador, assistindo à vida de um desconhecido ser contada em fotos, desenhos e pinturas.

A cada nova imagem vinha uma nova lembrança, de algo que eu fizera, que eu produzira, que eu desenvolvera, que eu escrevera, que eu criara, que eu ganhara, e que havia sido largado ao esquecimento de uma carreira esquizofrênica de quem acha que tudo é meio besta e não é bom o suficiente para se fazer alarde a respeito.

Lembrei-me também, ao longo da história daqueles trabalhos, cada conselho que eu recebera e que me fizera mudar de ideia, de rumo, de direção. Cada conselho bem intencionado mas intrisicamente ruim para mim. Conselhos parecem ser, em sua grande maioria, se não em sua totalidade, ótimos apenas para quem os dá.

Eu era artista antes de entender que isso era uma profissão. Produzia adesivos engraçadinhos em papel auto-colante e vendia a alguns centavos para meus amigos aos 10 anos. Aos 12, numa feirinha montada no prédio, vendi minha primeira pintura: uma tentativa de um pato realista batendo asas, inspirado nos patos que eu vira no Parque da Aclimação com meus pais. Aos dezesseis, ganhei meu primeiro concurso de literatura, e tive meu primeiro conto publicado. Aos dezenove, já escrevera três romances inteiros, imensos, sobre vampiros e sagas em terras fantásticas, e um deles quase foi publicado, não fosse o fato de a editora achar que não havia mercado para vampiros e sagas em terras fantásticas em 1999.

Mas sempre tive receio de dizer que era artista. Parecia um título que deveria ser outorgado por outrém e nunca assumido por si mesmo. 

Larguei Filosofia para fazer Propaganda e Marketing, odiei publicidade e fui trabalhar com design gráfico, frustrei-me com design e fiquei só com ilustração, sentia-me incompleta, e corri para as artes plásticas, dando as costas para os cartoons que gostava de fazer, e das artes, pensei em correr de volta para a ilustração, percebendo que havia largado completamente a escrita pelo caminho. E ao ver minha vida sendo organizada naquele computador, parei e chorei.

Primeiro chorei minha falta de coragem. 

Ao longo dos anos, ouvi os conselhos e o julgamento de um mundo que achata e deforma e uniformiza e monocromatiza o multicolorido, que escraviza sua identidade em funcionalidade e pragmatismo, e abandonei minha pluralidade natural, essas muitas luas, muitas faces, muitas fases simultâneas que se completam em mim, esse olhar multiplicado do mundo que parece intrínseco e fácil em mulheres que ousam ser mulheres de verdade.

Sufoquei-me na obrigatoriedade de ser uma só, só mãe, só trabalho, só ilustradora, só pintora, só isso, só aquilo, uma coisa por vez e virei só coisa nenhuma.

"Eu não sei para onde ir", disse a meu marido. "Sempre que tento me apresentar de uma forma tradicional, meu trabalho parece conter hiatos e pausas e rasgos, e fica tudo imcompleto e capenga, como um bicho manco, porque a verdade é que uma coisa precisa se apoiar na outra. Minha pintura não existe sem minha fotografia, minha ilustração não existe sem o meu texto, eu não existo sem todos eles."
"Mas quem te disse que você precisa fazer só uma coisa?"
"Meus professores. Meus mentores. O mercado. O mundo."
"E você os ouviu por quê?"
"Porque eu estava insegura. Porque não tive coragem. Porque achei que o caminho dos outros era o caminho certo."
"E era?"
...
"Não."

Então chorei de novo, desta vez o choro de luto e alívio do sepultamento de um alguém que não é mais.
Não à toa, naquela mesma semana, descobri um caminho novo, um lago novo, que sempre estivera ali mas que eu ainda não percorrera.


Reconstruí minha trajetória sem esconder nada. Dei igual valor para todas as vitórias e derrotas, para os textos, as fotos, os desenhos, as pinturas, a música, a filosofia, a leitura, o pensamento, a maternidade, os relacionamentos, e o que vi surgir foi a coerência que sempre senti ausente na apresentação de meu trabalho.

Recriei meu portfólio. De novo. Outra vez. www.anaelisagranziera.com

Estou correndo atrás de tudo o que eu quero ao mesmo tempo, em todas as direções que me interessam.

Minhas aquarelas.

Meus cartoons.

Minha fotografia.

Meu texto.

Abro mão de tudo o que não sou eu para abrir espaço para o que sou de verdade. Viva a Primavera e o renascimento de tudo.

Quero terminar meu livro e publicá-lo. Você que sempre me disse que queria um livro meu, vai ter.

Você que tem um espaço de exposição em Toronto, quer expor fotos ou pinturas minhas? Estou buscando.

Você que quer uma ilustração minha? Continuo produzindo. Para quartos de bebês, caricaturas da família, o que você quiser. Entre em contato, dou um jeito de enviar. Veja o que ando fazendo no Instagram: @anaelisagg

Você que tem uma revista ou um espaço para publicação dos meus cartoons, do diário ilustrado e as pataquadas das crianças, mande um email.

Quer uma redatora freelancer, uma colaboradora para seu jornal, estou aqui.

Disseram-me por toda a vida que eu jamais seria boa em algo se fizesse um pouco de tudo. Mas nunca ninguém me explicou que se não fizesse um pouco de tudo não seria feliz.

Feliz é bem melhor. Escolho feliz.  

Basta de síndrome de impostor. Basta de correr atrás do caminho dos outros. Meu caminho é múltiplo. E ele é meu. 

........



E o resto?
Abril começou com uma Páscoa tranquila. Não há uma avalanche de ovos de chocolate nos supermercados. É razoavelmente difícil encontrar chocolate temático, apesar de as lojas de 1,99 ficarem cheios de cacarecos decorativos em forma de coelhos e ovos de plástico coloridos. Comprei alguns desses ovos vazios, e enchi de pistas para criar uma caça ao tesouro que levaria ao prêmio: um coelhinho de chocolate, meia dúzia de bombons e um caderninho de desenho com caneta. Depois de uma manhã inteira desenhando - pois os cadernos fizeram mais sucesso até do que eu esperava - almoçamos uma torta de acelga suíça e queijo em massa folhada da Suzanne Goin, que adaptei e cobri com outra camada de massa, e relaxamos. Na segunda-feira, feriado para as escolas, fomos ao lago passear com o cão e ver os patos que haviam voltado.

Uma semana depois foi aniversário de Thomas, e a comemoração foi exatamente como o de Laura. Thomas fez questão de preparar sozinho seu bolo e enrolou, com ajuda da irmã, todos os brigadeiros e beijinhos.


Abril foi um mês de fazer pão toda semana, e quando tive a paciência de novo de apanhar aquela massa de pizza retangular e fazê-la em formato de pizza outra vez. Você divide a massa ao meio, forma bolas e deixa fermentar enquanto o forno esquenta no máximo. Abre com as mãos, sem usar rolo, e coloca numa folha de papel alumíno untada com um tico de azeite. Cobre com um pouco de molho de tomate, bem pouco, uma concha só, transfere a massa no alumínio para a assadeira e bota no forno por 10-13 minutos. Tira, polvilha com queijo e a cobertura que quiser (a da foto é prosciutto e mozzarella de búfala) e volta para o forno por 8-10 minutos. O papel alumínio destaca facilmente da parte de baixo da pizza e você pode inclusive reaproveitá-lo para a próxima pizza. A assadeira fica limpinha e a pizza fica linda e deliciosa, com uma borda fofa e um meio fininho e úmido. Gorgonzola, cogumelos com alecrim, e mozzarella com salame são outros sabores que fizeram sucesso por aqui.

Essa, de prosciutto, mozzarella de bufala e manjericão.

Anda rolando bolo toda semana, e depois do aniversário do Thomas, a criançada pediu bolo de chocolate de novo. Fiz esse da Tessa Kiros, do livro Twelve, fácil e bom, ainda que preferisse tirar do forno uns 5 minutos antes para que ficasse mais úmido.

Mini dinossauros de plástico, lembrancinhas do aniversário do pimpolho.

TORTA AL CIOCCOLATO
(Do Livro Twelve, de Tessa Kiros)
Rendimento: 1 bolo de 23cm (9inch)

Ingredientes:
  • 200g chocolate 100% cacau (a partir de 85% funciona)
  • 6 colh. (sopa) leite
  • 100g manteiga sem sal
  • 4 ovos, separados
  • 150g açúcar
  • 50g farinha
  • 1 1/2 colh. (chá) fermento

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte com manteiga e enfarinhe uma forma de aro removível de 23-24cm. 
  2. Quebre o chocolate em pedaços pequenos e derreta em banho-maria junto com o leite e a manteiga.  Deixe amornar um pouco.
  3. Numa tigela, bata as gemas e o açúcar até que fique cremoso e espesso. Junte o chocolate derretido, mexendo rapidamente para que não cozinhe os ovos. 
  4. Junte a farinha e o fermento.
  5. Na batedeira, bata as claras até formarem picos suaves. Incorpore as claras em neve à massa rápida e delicadamente, e espalhe a mistura do bolo na forma.
  6. Leve ao forno por 35 minutos, ou até que um palito  inserido no meio saia limpo. (Achei o bolo meio seco assim. Eu checaria aos 30 minutos e tiraria o bolo ainda com algumas migalhas úmidas no palito, para um resultado mais úmido.) O bolo deve ser úmido e deve afundar um pouco ao esfriar. Sirva polvilhado com açúcar de confeiteiro ou com fruta e chantilly.

Também da Tessa, e não é à toa que trouxe tantos livros seus comigo, preparei essa truta salmonada com salsa verde de estragão e batatas cozidas. O peixe mais simples que você vai preparar na vida, já que a parte mais difícil é picar as ervas para o molho com meia hora de antecedência. O molho em si já recomendo fazer em quantidade grande, pois você vai querer espalhá-lo sobre uma salada no dia seguinte, ou no sanduíche, ou sobre um bife, ou sobre o arroz ou qualquer outra coisa. Estragão é minha nova erva favorita.

TRUTA SALMONADA COM SALSA VERDE DE ESTRAGÃO
(Do livro Recipes and Dreams From an Italian Life, de Tessa Kiros)
Rendimento: Diz 2 porções, mas aqui rendeu 4: 2 adultos e 2 crianças.

Ingredientes:
  • 1/2 xic. vinho branco
  • 1 cebola branca pequena, descascada e cortada ao meio
  • 1 talo pequeno de aipo
  • alguns ramos de salsinha
  • algumas sementes de pimenta-do-reino
  • 2 filés de truta salmonada, com pele, de cerca de 500g (Usei rainbow trout, que um filé tinha 450g)
  • sal e pimenta-do-reino
(salsa verde)
  • alguns ramos de salsinha, picados
  • folhas de dois ou três raminhos de estragão, picadas
  • 1 colh. (sopa) de folhas de hortelâ picadas
  • 2 dentes de alho médios, picados. 
  • 2 1/2 colh. (sopa) alcaparras em vinagre, drenadas e picadas
  • 3 filés de anchova, picadas
  • 1 colh. (chá) mostarda de Dijon
  • 2/3 xic. azeite
  • 1 pitada de pimenta caiena
  • pimenta-do-reino moída na hora.

Preparo:
  1. Escolha uma panela baixa ou frigideira com tampa grande o bastante para conter os filés inteiros. Coloque nela 1 xic. de água, o vinho, cebola, salsão, salsinha, pimenta-do-reino e um abela pitada de sal e leve à fervura. 
  2. Limpe o peixe, retirando quaisquer espinhas. Coloque o peixe no caldo, com a pele para baixo. Cubra e cozinhe por 10 minutos. Tenha certeza de molhar o peixe na parte de cima também. 
  3. Remova do fogo e descanse por 5 minutos, e então cuidadosamente transfira o peixe para cada prato.
  4. Passe o caldo por uma peneira e guarde para fazer um risotto (abaixo).
  5. Para remover a pele do peixe antes de servir, basta virar um prato por cima, como quem vira um bolo e puxar a pele delicadamente. Sirva com a parte mais bonita para cima, coberto de salsa verde e acompanhado de batatas cozidas.
  • Para a Salsa Verde: Ela diz para misturar primeiro o alho, as anchovas e as alcaparras, e então a mostarda e o azeite, e as pimentas. Ajuste o tempero e guarde na geladeira por pelo menos meia hora antes de usar. Se mantém por vários dias em pote fechado na geladeira.
  • Para o risotto: Pique 1/2 cebola e refogue em 2 1/2 colh. (sopa) azeite. Junte cerca de 1 xic. de arroz arbóreo e mexa por alguns minutos. Junte um pouco de água fervendo, algo como uma xícara. Quando tiver absorvido, junte o caldo de peixe e cozinhe por cerca de 20 minutos, até que o arroz esteja macio, completando com água fervente se achar necessário. Para finalizar, junte uma colher generosa de azeite, um punhado de parmesão e as ervas picadas que tiver à disposição. Usei salsinha e estragão novamente. Sirva com mais parmesão e pimenta-do-reino por cima. 

Ignore a desastrada gota de óleo sobre a mesa e concentre-se na delícia que é esse prato.
As sobras das batatas e as cebolas que havia no caldo, misturei a alface e abacatee espalhei por cima o restante da salsa verde, e almocei muito feliz e contente. O caldo, como sugerido na receita, foi congelado.
E duas semanas depois, virou esse risotto bianco, perfumado de peixe e ervas, acompanhado de cenouras glaceadas com ervilhas e tomilho.


E a última fronteira, o pudim de leite, o crème caramel. Que eu não preparava havia anos, pois era o doce assinatura tanto de minha sogra quanto de minha mãe, e, não querendo interferir nos rituais de ninguém, durante sete anos permiti que a lembrança do pudim estivesse associada apenas às avós. Agora longe, lembrei-me dele, e retomei o pudim para mim, e as crianças pediram para que eu fizesse de novo quando as avós viessem, pois pudim, para eles, é coisa de avó mesmo. :)

Esse é tão fácil quanto nosso pudim de leite condensado, mas bem menos doce e com sabor de baunilha.

CRÈME CARAMEL
(Do livro Falling Cloudberries, de Tessa Kiros)

Ingredientes:
  • 2 xic. açúcar
  • 4 xic. leite
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 6 ovos

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 160oC ou o mínimo que seu forno tiver. Faça o caramelo colocando uma xícara de açúcar numa panela com uma ou duas colheres de água e leve ao fogo médio até o açúcar derreter e começar a dourar. Diminua o fogo e cozinhe até que esteja cor de âmbar. 
  2. Despeje o caramelo no fundo da forma (usei uma forma de bolo com furo no meio com capacidade para 10xic.) e reserve. 
  3. Aqueça o leite em outra panela até levantar fervura branda. Enquanto isso, em uma tigela grande, bata os ovos com o resto do açúcar e a baunilha  até que fique bem homogêneo. 
  4. Derrame uma cocha do leite quente sobre os ovos, misturando bem, para que os ovos não cozinhem. Misture o restante do leite com uma colher, para não produzir muita espuma. Passe por uma peneira para retirar qualquer possível pedacinho de ovo.
  5. Despeje com cuidado a mistura na forma com caramelo e coloque a forma numa assadeira com água fervendo. 
  6. Leve a assadeira ao forno por 50-60 minutos, ou até que o pudim esteja começando a dourar em algumas partes e esteja firme, mas ainda balance. Dependendo do seu forno ou da sua forma, isso pode demorar mais. O meu demorou 80 minutos para ficar pronto.
  7. Retire com cuidado a forma do banho-maria, e deixe esfriar completamente antes de levar à geladeira por algumas horas ou preferencialmente durante a noite.
  8. Passe uma faquinha nas laterais para soltar o pudim e desenforme sobre um prato fundo e sirva. 



E agora me dá licença, que meus pais vieram visitar e quero curtir um pouco. ;)


segunda-feira, 26 de março de 2018

A pausa de Março

Laura pintou muito durante o March Break. Eu não.
Março andava bem.
Andava igual.

Andava com patinação no gelo, com bolo de fim de semana, com livro no sofá.

Adoro ver listas de livros dos outros, pois me obriga a conhecer autores novos, e lá fui eu no site da biblioteca pública de Toronto pedir livros que achei que demorariam um bocado para chegar. E que chegaram todos de uma só vez, na primeira semana do mês com o papelzinho dizendo que eu tinha vinte dias para devolver aqueles seis livros.

Lista de livros que a biblioteca mandou tudo de uma vez para mim.

Comecei.

Meu novo livro favorito. Recomendo.

Devorei um depois do outro, lendo 50 páginas por dia, às vezes mais, e descobri meu novo autor favorito, Kurt Vonnegut, e meu novo livro favorito, Slaughterhouse 5. Que livro fantástico. Que jeito impressionante de enxergar a existência humana. Que humor ácido. LEIA.

As crianças estavam cansadas. Bocejavam aos cantos, já não se animavam para ir à escola. Acabaram de comemorar os 100 dias de escola, a exata metade do ano letivo, e era claro que precisavam de uma pausa. E eu esperava ansiosamente pela pausa de Março, o March Break, o Spring Break, essa uma semana inteira de férias no final do inverno.

Allex viajaria a trabalho por duas semanas, e ficaria fora durante toda essa mini-férias das crianças. Mas eu tinha planos. Planos de patinar no último fim de semana de rinque público aberto do ano, planos de ir a parquinhos diferentes e  fazer piqueniques, planos de ir ao museu e à galeria de arte e de levar as crianças para um brunch ao sábado.

No primeiro sábado, saímos para passear o cão no parque de manhã e nos perdemos em trilhas, brincamos no playground, voltamos para um almoço gostoso em casa e uma tarde de brincar tranquilos, que era o que eles vinham pedindo faz tempo: tempo de ficar em casa. Combinamos de no dia seguinte irmos patinar no outro parque, cujo playground é mais legal, que faríamos piquenique, que passaríamos o dia fora.

Depois da volta do cachorro e do almoço, no entanto, e depois de um caminho de quinze minutos dando bronca nos dois por conta de coisas estúpidas, fiz um macarrão qualquer, e ainda que tudo a meu redor me dissesse para ficarmos em casa, botei patins e capacete na sacola, montei um piquenique e arrastei todos para pegar o metrô até o tal outro parque, porque A GENTE VAI SE DIVERTIR, EU TÔ MANDANDO.

Chegamos e o rinque estava meio estranho, o gelo parecia esquisito, minha cabeça estava aérea, e depois de quinze minutos deslizando, percebi que não estava me divertindo. Olhei em volta e vi as crianças sentadas fora do rinque.

Vamos, gente, u-hú! venham patinar! É o último fim de semana! Depois tem que esperar o ano todo até o próximo inverno! Vamos! Vamos! A gente veio até aqui!

A gente cansou, mamãe.

Tá. Ok. Querem ir ao parquinho?

Tira patins, tira capacete, corre pro parquinho. Monto o piquenique numa das mesas. O vento está gelado e não há um raio de sol para me aquecer. Abro meu livro enquanto as crianças brincam. Thomas não toca na comida. Nem no queijo. Não estou com fome, mamãe.

Hmmm...

Não consigo prestar atenção ao livro. Meus dedos dentro da luva estão gelados, ali parados, segurando as páginas que insistem em virar no vento forte. Olho em volta. Laura está cutucando alguma coisa com um galho. Thomas achou um caminhãozinho e está sistematicamente batendo a mão fechada, devagar e sem força, contra a parte de cima do brinquedo. Nenhum deles está sorrindo.

Vocês não estão se divertindo, estão?

A resposta é um menear de cabeça desanimado.

Vamos para casa.

Em casa, Thomas se abandona no sofá, sem fome e sem vontade, e suas bochechas vermelhas e seus olhos semicerrados me dão a dica: febre. Ele passa os dois dias seguintes com febre, tossindo, sem vontade de fazer nada. Não conseguimos sair de casa para fazer coisa alguma, sequer passear o cão no parque, pois o vento gelado pode lhe fazer mal.

Quando Thomas melhora, começa a tosse da Laura. Mais dois dias trancafiados em casa.

Invento outras coisas para eles fazerem, e os chamo para uma competição de pães. Uso a água do cozimento da beterraba para Laura fazer um pão cor-de-rosa, e a água do cozimento da casca da abóbora, para que Thomas faça um pão amarelo.
 

Eles de divertem muito sovando e moldando e seus pães ficam lindos e me enchem de orgulho.

Allex volta da primeira viagem também doente e passa o dia inteiro na cama. No dia seguinte, ele faz as malas e volta para o aeroporto. Quando seu avião decola, eu caio na cama com febre alta e uma tosse que não me deixa dormir pelas cinco noites seguintes.

As crianças ajudam. Eles me fazem café e tentam me deixar descansar enquanto vêem desenhos e jogam jogos. Agradeço a mim mesma por sempre cozinhar tudo em dobro, pois há no freezer comida o bastante para aqueles dias sem que eu tenha de ir ao mercado. Desço o cão para o gramado ao lado do prédio três ou quatro vezes por dia, e ele sente falta dos passeios, mas cada vez que boto o pé para fora o ar gelado de 0 graus faz meus pulmões doerem e volto para casa pior.

É o fim do March Break e não fizemos nada do qeu eu havia planejado. Consigo contar de cabeça algumas trilhas feitas no parque, algumas idas ao playground, aquela mal fadada tentativa de patinar e a tarde divertida fazendo pão, e Thomas mal tem o que escrever na sua lição de casa sobre as mini-férias.

A família toda ficou doente, ele escreve.

As aulas voltam e eu continuo ruim.

Sair no vento gelado para levar e buscar criança na escola e levar cachorro para passear é difícil. Já não tenho mais febre, mas continuo tossindo, continuo entupida e sem conseguir dormir uma noite inteira, o que me deixa muito de mau humor.

A semana passa e sinto minha cabeça amarrada a um balão de hélio. Tudo gira, tudo é impalpável, não consigo me concentrar em nada que não seja absolutamente prático. Não me lembro mais o que estava fazendo antes de ficar doente. Fantasio com um dia inteiro deitada na cama.
Encontramos no parque essa árvore partida ao meio  com essa pedra linda encaixada. As criaças dizem que é um meteoro que destruiu a árvore como um raio. Gosto da teoria delas.
Apanho o livro para ler de novo. Ok, ler funciona. Fico brava pois aqueles cinco ou seis dias doentes me tiraram do ritmo de leitura e agora terei de renovar o empréstimo na biblioteca. Tinha uma parte de mim que queria conseguir terminar tudo nos vinte dias. Tive de mandar essa parte calar a boca e seguir a vida.

Seguindo a vida, precisei voltar a cozinhar comida. Eu não queria andar até o mercado, ainda me sentia esquisita, então resolvi catar as cascas de banana que vinha congelando havia um tempo e finalmente testar a receita das almôndegas que vira no canal da Bela Gil.

As crianças me ajudaram e estavam de fato empolgadas para experimentar aquela preparação tão inusitada.

Tem o Feio Mas Gostoso. Esse é Lindo Mas Horrível.

Eu ia colocando os temperos, o orégano junto com o cominho, e pensava: o que é que o C* tem a ver com as CALÇAS? Nunca vi orégano com cominho antes. Mas confiei. Fui indo, pensando que talvez aquele doce das cascas ficasse melhor com curry do que com molho de tomate com manjericão. Mas confiei. As almôndegas, que ficaram muito úmidas, foram assadas na AirFryer (sim, Allex continua trabalhando na Philips, e ele finalmente conseguiu enfiar uma AirFryer na minha cozinha. Confesso, adoro assar bolinhos nela, que ela assa em doze minutos o que demora 45 no forno normal.) Ficaram douradas e lindas no molho de tomate.

As crianças tentaram. Elas foram valentes. Conseguiram comer uma almôndega inteira cada um. Meu limite foram duas. O resto foi para o lixo. Intragável. Combinação mais esquisita de sabores. Não rolou. Assim que melhorei, fomos juntos ao mercado, onde comprei carne de boi e de porco para preparar almôndegas finlandesas da Tessa Kiros, deliciosas com molho de creme de leite e purê de batatas. Para compensar meus filhos pelas almônegas de casca de banana.

Você deu sorte, papai, disse Thomas quando o pai voltou. Estava longe e não teve de comer bolinho de casca de banana.

Virou piada interna familiar.

Também gastei um monte de tâmaras Medjool para fazer um Date and Nut bread da Kim Boyce que só eu comi. Fiquei meio sem fazer mais nenhum bolo ou biscoito, vivendo à base de iogurte com mel nos dias em que a garganta doía demais e eu não tinha apetite, e as crianças redescobriram a alegria do iogurte com fruta. Comprei um monte de fruta congelada e essa tem sido a sobremesa e o snack favorito dos dois na última semana.

Espere. Estou enganada. No mesmo fim de semana em que Thomas ficou doente, resolvi preparar com Laura um bolo de laranja da Dorie Greenspan, cuja receita original é de rum e baunilha, mas ela oferece a variação de laranja. Tudo ia bem até eu colocar a manteiga derretida ainda fumegante na massa. Os bolos no forno afundaram miseravelmente. Mas continuaram gostosos e comemos tudo mesmo assim.

Esse é Lindo E DELICIOSO.

Em outro dia catei novamente o livro do Ottolenghi, Plenty More, e fiz essa salada linda de beterraba branqueada com ervilhas, abacate, coentro e cebolas marinadas em limão, para acompanhar panquequinhas de folha de cenoura que eu improvisara.

Com as crianças na escola, tentei voltar aos meus almoços tranquilos. Salada de couve roxa e abacate com croutons e bacon, e um vinaigrette de cebola feita na gordura do bacon.

Bacon.

Eu ainda estou tossindo. Estaria dormindo melhor, não fosse um estranho torcicolo vindo sabe-se lá de onde, que começa na minha omoplata esquerda e sobe pelo pescoço até atrás da orelha.

Allex voltou, ainda meio perdido, tendo ficado duas semanas fora da rotina familiar. Todo o chão onde pisamos esses dias parece estar sobre um mar arredio.Ele me traz um monte de queijo holandês e uma cerveja forte de presente. Porque canadense não sabe fazer cerveja forte.

As crianças estão bem, o descanso apesar de tudo foi ótimo para elas, mas eu ainda tenho esse balão de hélio amarrado na cabeça, que parece não me deixar concentrar em coisa nenhuma. Olho as listas na minha agenda e não me lembro direito o que eu estava fazendo antes de ficar doente. Espere. Eu já disse isso antes. Viu?

Ficar completamente sozinha e doente por uma semana foi difícil. Bem difícil. Mas foi bom ver que dou conta. A gente sempre dá conta. Mesmo quando a gente diz que não está dando conta, a gente já está. Porque é sempre uma escolha. Você pode ser o objeto que as forças movem, ou você pode ser a força que move tudo. I am the freaking force. Eu escolho mover tudo à minha volta e mover minha vida.

Houve uma noite em que quis sentar e chorar. E quando a primeira lágrima escorreu, senti-me idiota. O que isso faz por mim? Levanta a bunda. Faz um chá. Se cuida. Leva o cão pra fazer xixi. Sai e compra um iogurte para as crianças. Pipoca de janta. A vida segue. Empurra a vida que ela se mexe e segue. A vida é meio preguiçosa às vezes. Tem que dar uns pontapés na bunda dela pra ela se mexer mais rápido de vez em quando.  

Só preciso descobrir como estourar essa droga desse balão de hélio na minha cabeça para conseguir focar de novo nos meus projetos.

Que que eu precisava fazer mesmo? Vender a bicicleta. Pum. Vendi. Vender minha mesa de desenho. Mora em Toronto? Quer uma mesa para Craft? Tô vendendo a minha. Levar o cão ao veterinário. Arranjar médico de família. Comprar comida. Descobrir como fazer meu imposto de renda.

Done.
Done.
Done.
Done.

Menos café. Menos café ajuda.

Foca, Ana. Senta. Desenha. Pinta. Escreve. Desenha. Pinta. Escreve.

I am the freaking force.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Fevereiro, vida tranquila, um post em duas partes


Cerca de um ano antes de virmos para Toronto, minha cunhada me emprestou um livro pequenininho em italiano chamado Novecento, de Alessandro Baricco. No livro, esse homem que nasceu num barco e nunca saiu dele, um dia diz que quer descer para a terra. Por quê?, perguntam. Para ver o mar onde ele vivera a vida toda de outro ponto de vista.

Aquilo ficou gravado dentro de mim. Porque é preciso sair da ilha para ver a ilha, segundo Saramago, e percebi que confortavelmente inserida no contexto da minha existência no Brasil, eu jamais conseguiria enxergar a ilha, ver minha vida de outro ponto de vista. E eu vinha tentando, havia muito tempo, com todos esses processos de auto-ajuda encaixotados que peguei para mim, da naturebice, no minimalismo, do moda parisiense, dos livros de parenting, sem perceber que usar os óculos dos outros para enxergar pode ajudar mas não é a solução.

Em fevereiro fizeram seis meses que mudamos de país.

Durante esse tempo houve uma dezena, uma centena de desastres miniaturas dentro de mim, quebrando-me inteira por dentro, obrigando-me a reorganizar os pedaços e montá-los de um jeito novo, de novo e de novo. Demorei para me dar conta de que aquele quebra-cabeça emocional era tão difícil porque continuava forçando as peças dentro de um molde velho, gasto e torto.

Estava na hora de jogar o molde fora e montar aquelas peças livres no ar. Olhar para cada uma delas e decidir se elas ainda combinavam com as outras, se ainda tinham lugar. Muito como desentulhar uma garagem cheia de tralha, mas ao invés de olhar para os objetos em volta, você olha para aquele imenso espelho de cristal dentro de si. E abdicar de um pedaço do que você achava que queria ser, ou um pedaço da pessoa que você queria que os outros acreditassem que você era, é bem mais difícil do que jogar fora um abajur.

Mas quando você sai da ilha e se encontra à deriva nesse mar sem referências, você se dá conta de que todas aquelas pecinhas que formavam o que você acreditava ser sua identidade não passavam de bagagens externas. Eu sou uma pessoa que faz. Eu sou uma pessoa que tem. Eu sou uma pessoa que usa. Eu sou a pessoa que é filha de... Sou a pessoa que é mãe de... Eu sou uma pessoa que gosta de... coisas, pessoas, ações fora de mim. Todas essas malas pesadas que a gente carrega com a gente para fora da ilha e não nos permitem nadar para longe. E ali você está, na marolinha, achando que é alto-mar.

Fui nadando para longe e largando um baú medieval repleto de tralha emocional a cada braçada, e agora sento aqui nesse meu barquinho simples, olhando a ilha. O balanço do mar me conforta e meus olhos divisam as formas da terra firme claras sob o sol. E o que eu vejo não é bom nem ruim, apenas é.

Tudo mudou em mim.

Dou-me conta de que cada mudança de casa na minha vida foi o passinho que eu aguentava para longe da ilha que eu sabia que teria de deixar definitivamente um dia para me conhecer de verdade. Coisa louca, que muita gente não precisa fazer, mas que para mim era imprescindível. Não é que eu não me sentisse confortável no Brasil. Eu não me sentia confortável em mim mesma.

Agora o barco navega tranquilo. Tempestades ocasionais aqui e ali, mas a diferença crucial entre o antes e o agora é essa recém-descoberta calma frente ao conflito. Isso que tenho tentado ensinar aos meus filhos, isso de aprender a identificar suas emoções, ainda que abruptas e explosivas, e lidar com elas de forma tranquila. Isso de resolver os problemas sem perder a cabeça. Isso que eu não sabia fazer mas vi os professores canadenses ensinando às crianças. Oi, tia. Pode me ensinar isso também? Essa coisa linda de não perder a calma? De ficar zen? De se respeitar e respeitar o outro e exigir respeito? Adorei isso, quero tentar também.

E tudo flui. Essa vida tranquila que eu sempre busquei e que estava dentro de mim, escondida atrás de uma muralha de coisas que não eram eu, uma floresta de vitimismo, um mar inteiro de infantilidade e um deserto de ausência de responsabilidade pela minha própria vida.

E a gente se resolve um pouco e as coisas se resolvem em torno por osmose, porque a natureza assim funciona. E as crianças imitam o adulto, seja ele descompensado ou feliz. Que me imitem feliz então, que aprendam a respirar fundo e enfrentar seus medos, e tentar coisas novas, e resolver pepinos, e amar, e pedir desculpas, e dar a vez ao outro mas também exigir respeito.

As crianças vão aos pouquinhos nadando também para longe da ilha e entendendo que o mundo é grande e que as pessoas são incrivelmente diferentes e interessantes, e que todo mundo pode ser amigo desde que haja conversa. E conversando eles vão, aprendendo inglês em ritmo de trem-bala, contando histórias e aprendendo histórias, e Laura quer viajar para outros países e Thomas diz que vai morar no Japão um dia. E eu vejo esses dois seres imensos, desde quando a mão deles é tão grande?, fazendo lição-de-casa sozinhos e preparando o café de manhã, e recortando papéis coloridos e desenhos em folhas sulfite para criar seus próprios jogos de tabuleiros, e brincando metade em inglês, metade em português, e me dá uma tranquilidade imensa vê-los apanhar os livros da estante para folheá-los no sofá, em silêncio, por muito tempo, enquanto ouço uma música e preparo o jantar.

Passei fevereiro todo refazendo meu portfolio. Entra lá: www.anaelisagranziera.com

A vida anda mais devagar, ainda que bastante ocupada.

Numa quinta-feira corrida, voltamos da escola para a rotina de sempre: banho, lição, brincar, jantar, cama. Está um fim de tarde lindo, no entanto, um céu azul claro brilhante diferente da noite que caía cedo no auge do inverno e a sala inteira se ilumina e refresca como havia meses não acontecia. Acabáramos de assar biscoitos, e enquanto Thomas roubava um ainda quente da última fornada, pergunto se querem ir ao parque estrear os patins de gelo que apanhara usados na escola. Pensei que o jantar sairia atrasado, que era uma "school night", que Thomas não fizera a lição ainda. Mandei as favas as preocupações, o controle da rotina, e fomos. E as crianças patinaram pela primeira vez na vida, e Laura não parava de dizer o quanto AMAVA aquilo, e eu, ainda sem meus patins, sentei e vi o por-do-sol cor-de-laranja deitando sobre o rinque branco, e éramos praticamente só nós ali quando a noite caiu e continuei ouvindo seus risos e o raspar das lâminas no gelo sob a lâmpadas amarelas do parque.

Voltamos para casa no escuro, jantamos pipoca e Thomas disse para que eu não me preocupasse, pois ele faria a lição de manhã antes de ir à escola. Na manhã seguinte, ao invés de mandar consertar meu celular quebrado, comprei-me um par de patins para poder acompanhá-los no rinque. Prioridades.

O celular quebrou enquanto eu tirava essa foto, quando tropecei no cachorro e caí em cima do celular.
Senti-me estúpida e peguei birra do Instagram por alguns dias.

Patinei pela primeira vez na primeira festa de aniversário para a qual Thomas fora convidado. Os pais haviam reservado um espaço para fogueira num parque ali perto, do lado do rinque público de patinação. Havia smores e cachorros-quentes feitos na fogueira, e pipoca. Eram apenas meia-dúzia de crianças e os respectivos pais. Nossos pés chafurdavam na lama criada pela neve que se derretera nos dias anteriores. As crianças ajudavam os adultos a alimentar o fogo e saíam correndo para patinar mais um pouco. Era tudo simples e bom. O som dos pássaros, do fogo, das crianças.

Deslizar no gelo foi aterrorizante e maravilhoso. Fazer algo novo. Vencer meu medo de quebrar um braço ao cair. Eu já escorregara no gelo ao correr com o cão num parque e já sabia quão doloroso isso podia ser. As crianças estavam em êxtase ao me ver fazendo algo pela primeira vez, como eles. Mamãe não sabe tudo. Mamãe também está aprendendo. Se mamãe cair, tudo bem. Então se a gente cair, tudo bem também. Depois é a vez do papai. A gente quer ver o papai tentar também. 

Fevereiro se foi e levou com ele muito de quem eu achava que precisava mostrar para os outros que eu queria ser. E o que sobrou foi apenas eu. Eu que só quero uma vida tranquila.

Já estou com saudades da neve, pode?


.....

Agora vamos às praticidades da vida. Era preciso que entendessem isso aí em cima para entenderem isso aqui embaixo.

Em fevereiro minha cozinha começou a se aventurar de novo. Janeiro foi o mês em que Thomas decidiu que não queria mais levar fruta para a escola. E que tinha vergonha de comer salada na frente dos amigos. Pudera, bastou uma olhadela no almoço dos coleguinhas, num dia em que ajudava a professora, para entender. Era um tal de pão branco sem nada e sucrilhos de almoço que me deixou de cabelo em pé. Além disso, ele veio me explicar que não tinha lá muito tempo para comer, que os amigos engoliam a comida meio de qualquer jeito e saíam correndo para brincar ou jogar Ball Hockey, atividade gratuita que a escola oferece nos intervalos de almoço umas duas vezes por semana durante o inverno - e na qual Thomas se inscreveu assim, sozinho; fui descobrir que ele estava jogando um mês depois.

Janeiro eu passei preocupada tentando convencer a criança a comer fruta e verdura, e fiquei me enfiando em sites natureba-vegan-gluten-free-vida-sem-queijo para tentar inventar novas formas de enfiar coisas verdes na lancheira dele. Fiquei lá passando sabão no coitado, discursando à mesa cada vez que o lanche voltava, e vi logo que um sinal de que eu precisava mudar alguma coisa era o fato do meu filho levar as mãos às orelhas e fazer cara de exausto enquanto a ladainha prosseguia. 

Nisso, caí de gaiata no canal relaxante da Lu Azevedo, coleguinha ilustradora e brasileira que mora em Vancouver. Mais ou menos de gaiata, pois eu já conhecia o canal antigo, o Fala Maluca, cujos videos eu assistia para tentar me situar nesse futuro incerto que seria mudar para o Canadá com filhos. Mas o que eu não sabia era que ela havia partido em "carreira solo" e tinha criado esse canal que para mim é a versão em video da maternidade-sussa da Maria, do Seis Mais Dois. Quando ela fez um video mostrando o que mandava de almoço para os filhos na escola, logo caí em mim que eu andava complicando demais as coisas. (Aliás, sempre me deixa contente assistir a seus videos, pois parece que estamos sempre mais ou menos alinhadas em algumas coisas da vida - andava falando para uma amiga sobre comon mudara meu relacionamento com as crianças nos últimos meses, e vai lá a Lu e faz um video sobre disciplina positiva que é praticamente um resumão do que eu tentava explicar.)

Larguei mão geral e se meu filho diz que não dá pra comer mais que um sanduíche, então sanduíche será. Sanduichinho, macarrão, nori, cenoura, mini-pretzel e passas cobertas de iogurte, os dois últimos comprados a granel na loja de orgânico. E bolo e muffin e cookie feitos pela mamãe, porque a maior graça é poder fazer essas coisas toda semana. E aí que vem o pulo do gato: as frutas que Thomas não come em natura na escola, ele come nos doces que eu faço.


Como esse bolo de banana com chocolate do livro da Magnolia Bakery. Muito bom. Era para ter amendoins, mas como na escola não pode, omiti, e não fez falta.

CHOCOLATE CHIP BANANA LOAF
(do livro The Magnolia Bakery CookBook)

Ingredientes:
  • 1/3xic. manteiga sem sal, amolecida
  • 1/2 xic. açúcar
  • 2 ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 1 1/2 xic. bananas maduras, amassadas
  • 1/3 xic. leite
  • 2 xic. farinha de trigo com fermento (eu usei farinha comum, adicionei 1 colh (chá) de fermento e uma pitada de sal)
  • 3/4xic. chocolate chips
  • (se quiser usar os amendoins, é só acrescentar 1/2 xic. de amendoins sem sal e sem pele, picados

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte e enfarinhe uma forma de bolo inglês de cerca de 21cm.
  2. Na batedeira, bata a manteiga e o açúcar até que fique clara e fofa. 
  3. Junte os ovos, um a um, batendo bem. Junte a banana e o leite e misture.
  4. Adicione a farinha e misture apenas até que esteja tudo incorporado. 
  5. Junte os chips com a ajuda de uma espátula e passe a mistura para a forma.
  6. Asse por 45-55 minutos, até que um palito inserido saia limpo. 
  7. Deixe que esfrie na forma por uns 20 minutos antes de desenformar,.


PORÉM... é claro que a nutricionista esquizofrênica dentro da gente começa a achar que a criança está comendo muito açúcar, muita farinha branca e aquela coisa toda. (Se for comparar com criança-padrão canadenses e brasileiras, meus filhos não comem quase nada de aç[ucar, mas a nossa cabeça adora achar problema com o qual se preocupar e fica tentando resolver o que já está resolvido, simplesmente pelo prazer de resolver alguma coisa. - Tivesse resolvido os problemas de verdade dentro de mim, não ficaria enchendo tanto o saco dos meus filhos.)

E daí que eu catei todas as receitas da Kim Boyce (do livro Whole to the Grain) que eu tinha anotado e saí tentando encontrar um denominador comum entre elas, um template para criar outros muffins com outras farinhas integrais e outras frutas, pois sempre gostei dos muffins altos, massudinhos e pouco doces dela. E assim fiz. E nasceu o Muffin de Salada de Frutas. Com todas as frutas que Thomas se recusou a levar para a escola naquela semana. E ficou ótimo, principalmente quentinho com manteiga. E Thomas amou. E eu achei que meus problemas estavam resolvidos.



MUFFIN DE SALADA DE FRUTAS
(Rendimento: 12 muffins)

Ingredientes:
  • 1 1/2 xic. de farinha de trigo
  • 1 xic. farinha de trigo integral 
  • 1/2 xic açúcar mascavo (eu tentaria 3/4 xic também, para algo mais doce)
  • 1 colh (chá) fermento
  • 1 colh. (chá) bicarbonato de sódio
  • 1/2 colh. (chá) canela
  • 3/4 xic. manteiga derretida (150g, aproximadamente)
  • 2 ovos grandes
  • 1 (colh) chá extrato de baunilha
  • 1 xic. iogurte natural
  • 1/2 xic. leite
  • 2 xic. de frutas picadas grosseiramente, como maçãs, peras, bananas, caquis, abacaxi.

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Forre a forma de muffins com forminhas de papel.
  2. Misture com um fouet todos os ingredientes secos numa tigela. Em outra, misture a manteiga derretida, os ovos, a baunilha e o iogurte e o leite, até que fique homogêneo. A massa não pode ficar líquida. Ela precisa fazer um montinho e ficar ali quietinha, sem espalhar. Isso garante aqueles muffins altos com domos grandes.
  3. Junte os líquidos aos secos e misture com uma espátula apenas até que a farinha suma. Junte as frutas.
  4. Divida a massa entre as formas. A massa VAI FICAR PARA FORA, mais alta que as formas. Desde que esteja firme, está tudo bem, ela não vai vazar. Vai inflar e firmar bonitinho sem virar aquela gororoba de quando tudo espalha, achata e afunda. Asse por cerca de 25 minutos, ou até que um palito inserido no meio de um deles saia limpo. 
  5. Retire do forno e deixe esfriar cinco minutos antes de comer. 

Mas Laura não comeu.

Porque aqui a grande diversão dos dois parece ser me deixar culinariamente louca.

Thomas ama nozes e castanhas e sementes e qualquer coisa crocante. Laura detesta. DETESTA.
Laura pede e devora qualquer fruta. Thomas diz que só gosta de melancia.
Thomas me pede para fazer mingau pelo menos uma vez por semana. Laura reclama sempre que eu faço mingau.
Ela adora tomate cereja. Ele nem encosta.
Ele adora edamame. Ela faz cara de nojo.
Ele adora sanduíche de almoço. Ela só quer prato quente.

Não tem saída.

Parece que eles só têm pontos em comum no que se refere às porcarias. Eu queria dizer que eles concordam na pizza, mas Thomas gosta de massa fina e Laura gosta de massa grossa.

Em fevereiro eu larguei mão de me preocupar demais com isso, virei para os dois, e disse: vocês vão levar o que tiver em casa e o que eu tiver tempo de preparar. Comeu, comeu, não comeu, traz de volta. E é isso aí.

E é isso aí.

E uma coisa puxa a outra. Se eu não fico aflita com o almoço deles, posso relaxar e me divertir mais nas outras refeições. E me deu vontade de fazer pão de novo, para variar um pouco o pão do sanduíche, e porque o pão integral das padarias daqui meio que não têm gosto de coisa nenhuma.

Catei um livro na biblioteca e achei essa receita aqui. Fiquei meio ressabiada com a quantidade absurda de fermento e cortei pela metade. Mas deixo aqui a quantidade original e, você conhecendo o fermento que usa, pensa bem o que fazer a respeito. O pão ficou fofo e delicioso, e eu faria de novo várias e várias vezes.

Thomas amou as sementes no pão.
Laura destestou e comeu só o queijo. >_<



BIRDSEED BREAD
(receita de um livro de baking de uma autora canadense. Preciso pegar o nome. Não curti muito o livro mas esse pão ficou muito bom. Fotografei a receita mas esqueci de anotar o nome do livro.) 
Rendimento: 2 pães

Ingredientes:
  •  2 xic. água morna
  • 5 colh (chá) fermento ativo seco (usei metade)
  • 3 colh (sopa) óleo vegetal (usei azeite)
  • 1 colh (sopa) suco de limão
  • 2 colh (sopa) mel
  • 2 colh (sopa) açúcar mascavo
  • 1 colh (sopa) melado ou extrato de malte
  • 1 colh (sopa) sal
  • 1/4 xic farinha de centeio
  • 1 xic. farinha de trigo integral
  • 1/2 xic. sementes de girassol
  • 2 colh. (sopa) de farelo de trigo (omiti pois não tinha)
  • 2 colh (sopa) de linhaça (depois vi que era moída, mas usei inteiras)
  • 2 colh (sopa) de sementes de gergelim
  • 3 a 4 xic. farinha de trigo branca 
  • mais sementes para polvilhar

Preparo:
  1. Unte duas formas de pão e posicione sobre uma assadeira.
  2. Na tigela da batedeira planetária, misture a água morna, o fermento, o óleo, mel, açúcar e melado, até que tudo esteja dissolvido. Se o fermento não for do tipo instantâneo, deixe uns cinco minutos ativando antes de prosseguir. (Fermento instantâneo dissolve rápido na água - o meu aqui não é, e se eu não der uns minutos, as bolinhas de fermento continuam inteiras na massa do pão.)
  3. Junte todos os ingredientes menos a farinha branca e misture. 
  4. JUnte 2 xicaras da farinha branca e misture por alguns minutos. 
  5. Vá misturando na batedeira com o gancho aos poucos o restante da farinha branca, até obter uma massa grudenta mas que pareça razoavelmente manipulável. Talvez você não precise de toda a farinha.
  6. Cubra a tigela com filme plástico e deixe fermentando por 1 hora ou até dobrar de tamanho.
  7. Divida a massa em duas partes, e deixe descansar por 15 minutos. Molde como dois cilindros do comprimento da forma. Espalhe as sementes pela bancada e role os pães sobre elas para que grudem na superfície. Coloque-os dentro da forma, cubra e deixe que fermentem novamente até que estejam ultrapassando a borda da forma. Enquanto isso, aqueça o forno a 190oC.
  8. Coloque os pães no forno e imediatamente abaixe o forno para 180oC. Asse até que estejam com a crosta dura e dourada, cerca de 35-40 minutos. Esfrie nas formas sobre grades.




Pode ter sido minha maratona de The Great British Bake Off  seguido do The Great Canadian Baking Show que me transformou na louca da padaria novamente. Pode ter sido o fato de eu ter encontrado um lugar para comprar farinha de trigo orgânica em sacos imensos e mais baratos - pensa a pessoa que usa um saco de 11kg de farinha em um mês. Sei que devo a isso o fato de ter encontrado ESSA RECEITA PERFEITA DE CINNAMON BUNS, sucesso absoluto com 100% da família. Catei a receita do Smitten Kitchen mas omiti tudo o que não pertencia a um Cinnamon Bun, e é isso aí. Pense macio. Úmido. Doce. Delicioso. E PRÀTICO. Você faz ele todo num fim de tarde, começo de noite e deixa fermentando durante a noite na geladeira para ir direto para o forno. Vinte minutos depois, eis o melhor café-da-manhã de sábado do mundo. :D A massa é feita na batedeira, e é uma delicinha de abrir e enrolar e cortar.

 
Daí que as crianças pediram bolo de chocolate e eu, que andava feliz e tranquila, catei o tal livro do Birdseed Bread e resolvi fazer um bolo dele com sour cream que parecia muito bom e muito simples. Havia um mês eu encontrara cacau Valhrona numa loja de importados e andava enrolando para abrir, usando o baratinho da Hersheys até então. Lá fui eu. Três quartos de xícara de cacau Valhrona. TRÊS QUARTOS DE XÍCARA.
E o bolo ficou assim:


Falei que foram 3/4 de xícara de cacau Valhrona? Pois é. No mesmo dia, a máquina de lavar e secar roupa quebrara, com todas as toalhas de casa, sujas e molhadas, dentro. E eu tinha queimado consideravelmente meu braço na tampa de uma das panelas ao preparar o jantar (a bolha se foi, a cicatriz ficou.) Laura resolveu virar no Jiraia e fazer as birras mais escalafobéticas do mundo. Daquelas que você se surpreende pelos vizinhos não terem chamado a polícia. Daquelas que te dão vontade de levantar, ir embora e não voltar mais. Daquelas que fazem você pensar por que diabos resolveu ter filhos mesmo. E quando meu marido me mandou um recado perguntando como estavam as coisas e eu expliquei, ele perguntou se eu queria que ele voltasse mais cedo, pois eu deveria estar um caco.

Foi aí que me dei conta de que não, eu não estava um caco. Eu estava tranquila. Já ligara para a administradora do condomínio requisitando o reparo da máquina (que, diga-se de passagem, ainda não foi consertada até o momento em que eu escrevo - toda uma epopéia). Lidara com a queimadura feia no braço com a mesma calma com que lidara com a vez em que chanfrei a ponta do dedo cortando salsinha, ou quando rasguei o outro dedo na lâmina serrilhada do processador: cuidei e segui a vida. Mantive-me zen-budista frente à reencarnação de Cthulhu que era minha filha e resolvi sem castigo nem escândalos adicionais, e terminamos o dia tranquilos ouvindo música. E quando o Gólgota emergiu da minha forma de bolo, eu soltei um palavrão cabeludo, tirei a porcaria do forno, suspirei e disse a mim mesma: Meh. É só um bolo. o_O Isso foi inédito. As crianças roubaram uns pedaços cozidos de bolo da beirada da forma, eu deixei tudo esfriar para jogar fora e limpar o piso do forno, catei um livro mais confiável e... fiz outro bolo.


 CHOCOLATE SOUR CREAM CAKE WITH CHOCOLATE CHIPS
(Do livro The Magnolia Bakery Cookbook)

Ingredientes:
  • 3 xic. + 2 colh (sopa) farinha de trigo
  • 1 1/2colh (chá) bicarbonato
  • 1/4 colh (chá) sal
  •  85g chocolate 100% cacau (unsweetened chocolate, difícil de achar no Brasil, mas que eu substituía com sucesso por chocolate 85% ou 90% cacau)
  • 1 1/2 xic. café forte ainda fervendo
  • 3/4 xic (150g) manteiga sem sal, amolecida
  • 2 2/3 xic açúcar mascavo
  • 2 ovos grandes, em temperatura ambiente
  • 1 1/2 colh (chá) extrato de baunilha
  • 3/4 xic. sour cream (se não tiver, deixe o creme de leite fresco com uma colher de vinagre fora da geladeira por algumas horas e use)
  • 2/3 xic. chocolate chips

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 160oC. Unte e enfarinhe uma forma bundt ou de tubo com capacidade para 12 xícaras.
  2. Numa tigela, peneire a farinha, bicarbonato e sal.
  3. Em outra, coloque o chocolate 100%. Adicione o café fervendoe misture até derreter o chocolate. Deixe esfriar por uns 10 minutos.
  4. Na batedeira, bata a manteiga e o açúcar até que fique fofo. Junte os ovos, um a um, batendo bem. Junte a baunilha. 
  5. Adicione os ingredientes secos aos poucos, batendo apenas até incorporar, em velocidade baixa. Junte o sour cream. Junte o chocolate derretido em três partes.Incorpore os chips. 
  6. Passe a mistura para a forma e asse por 70-80 minutos, até que um palito inserido no meio saia limpo. DEixe esfriar por 20 minutos pelo menos na forma antes de desenformar.

A vida não é horrível. O universo não está te perseguindo. O mundo não está contra você. É só um bolo de 14 xicaras que você meteu numa forma onde só cabiam 12. É só uma birra de criança porque a criança tem f*cking 5 anos e está aprendendo a controlar as emoções. É só uma máquina de lavar que tem conserto e o prédio tem lavanderia. E é só uma bolha no braço para acompanhar as dúzias de marcas de guerra que você adquiriu na cozinha durante sua vida.

Finito. Caput. No more drama. Porque a vida no fim é isso: tem muito mais birra de criança, machucado e máquina quebrada do que dia de piquenique, todo mundo fofo e céu azul com borboletas. E se você for deixar um bolo afundado estragar seu dia... bom... você está lascado, pois está destinado a uma vida de miséria e frustração. Vida tranquila não é vida de comercial de margarina. É aceitar que a vida tem uns momentinhos mequetrefes e desastres estrambólicos mas não deixar isso te destruir. A gente é melhor que isso. A vida é muito curta pra chorar por bolo explodido no forno. Limpa tudo e segue a vida. É só um bolo.

Quando estou alegre, quero que a cozinha reflita isso. Saio buscando muito mais cores e mais vida para a mesa combinar com meu humor. Daí que catei o livro Plenty More na biblioteca, que me trouxe belíssimas surpresas, como um COZIDO DE ERVILHAS E ALFACE ROMANA maravilhoso (no qual usei edamames ao invés de favas, pois era o que tinha e Laura comeu sem saber o que eram) e esse BOLO DE COUVE-FLOR sensacional, que preparei acompanhado de uma salada de alface romana, abacates e watermelon-radish, esse rabanete grandalhão que quando cortado parece uma melancia, lindo e delicioso. Esse foi um jantar tão bom que as crianças pediram repeteco para a escola, até com o tal rabanete e alface acompanhando, e a lancheira voltou vazia, vazia.



Acabei estendendo meu empréstimo do livro por mais 20 dias para poder fazer outras receitas.
E outra coisa que valeu muito a pena fazer e que rendeu igualmente almoços escolares bem sucedidos foi essa TORTA SALGADA do blog Smitten Kitchen. Aliás, tenho cozinhado tanto dessa fonte que sinto que preciso ir até Nova York e dar um abraço na Deb por isso, mas acho que ela acharia esquisito esse abraço de uma completa desconhecida. ;)

A receita original era com batatas e espinafre, mas substituí por brocolis branqueado e puxado no alho, e algumas fatias de bacon douradas e picadas. O restante do recheio de ovos e queijo, mantive igual. Também arrisquei estender a massa mais fina para conbrir minha assadeira, um pouco maior que a dela, e o risco compensou, pois a torta ficou um desbunde de boa. Fria, dava para comer os quadrados com a mão, o que facilitou no almoço da escola. De novo, torta acompanhada de salada de alface, watermelon radish, cenouras e sementes de abóbora.



 E é isso aí. Vida tranquila.


Cozinhe isso também!

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