segunda-feira, 26 de março de 2018

A pausa de Março

Laura pintou muito durante o March Break. Eu não.
Março andava bem.
Andava igual.

Andava com patinação no gelo, com bolo de fim de semana, com livro no sofá.

Adoro ver listas de livros dos outros, pois me obriga a conhecer autores novos, e lá fui eu no site da biblioteca pública de Toronto pedir livros que achei que demorariam um bocado para chegar. E que chegaram todos de uma só vez, na primeira semana do mês com o papelzinho dizendo que eu tinha vinte dias para devolver aqueles seis livros.

Lista de livros que a biblioteca mandou tudo de uma vez para mim.

Comecei.

Meu novo livro favorito. Recomendo.

Devorei um depois do outro, lendo 50 páginas por dia, às vezes mais, e descobri meu novo autor favorito, Kurt Vonnegut, e meu novo livro favorito, Slaughterhouse 5. Que livro fantástico. Que jeito impressionante de enxergar a existência humana. Que humor ácido. LEIA.

As crianças estavam cansadas. Bocejavam aos cantos, já não se animavam para ir à escola. Acabaram de comemorar os 100 dias de escola, a exata metade do ano letivo, e era claro que precisavam de uma pausa. E eu esperava ansiosamente pela pausa de Março, o March Break, o Spring Break, essa uma semana inteira de férias no final do inverno.

Allex viajaria a trabalho por duas semanas, e ficaria fora durante toda essa mini-férias das crianças. Mas eu tinha planos. Planos de patinar no último fim de semana de rinque público aberto do ano, planos de ir a parquinhos diferentes e  fazer piqueniques, planos de ir ao museu e à galeria de arte e de levar as crianças para um brunch ao sábado.

No primeiro sábado, saímos para passear o cão no parque de manhã e nos perdemos em trilhas, brincamos no playground, voltamos para um almoço gostoso em casa e uma tarde de brincar tranquilos, que era o que eles vinham pedindo faz tempo: tempo de ficar em casa. Combinamos de no dia seguinte irmos patinar no outro parque, cujo playground é mais legal, que faríamos piquenique, que passaríamos o dia fora.

Depois da volta do cachorro e do almoço, no entanto, e depois de um caminho de quinze minutos dando bronca nos dois por conta de coisas estúpidas, fiz um macarrão qualquer, e ainda que tudo a meu redor me dissesse para ficarmos em casa, botei patins e capacete na sacola, montei um piquenique e arrastei todos para pegar o metrô até o tal outro parque, porque A GENTE VAI SE DIVERTIR, EU TÔ MANDANDO.

Chegamos e o rinque estava meio estranho, o gelo parecia esquisito, minha cabeça estava aérea, e depois de quinze minutos deslizando, percebi que não estava me divertindo. Olhei em volta e vi as crianças sentadas fora do rinque.

Vamos, gente, u-hú! venham patinar! É o último fim de semana! Depois tem que esperar o ano todo até o próximo inverno! Vamos! Vamos! A gente veio até aqui!

A gente cansou, mamãe.

Tá. Ok. Querem ir ao parquinho?

Tira patins, tira capacete, corre pro parquinho. Monto o piquenique numa das mesas. O vento está gelado e não há um raio de sol para me aquecer. Abro meu livro enquanto as crianças brincam. Thomas não toca na comida. Nem no queijo. Não estou com fome, mamãe.

Hmmm...

Não consigo prestar atenção ao livro. Meus dedos dentro da luva estão gelados, ali parados, segurando as páginas que insistem em virar no vento forte. Olho em volta. Laura está cutucando alguma coisa com um galho. Thomas achou um caminhãozinho e está sistematicamente batendo a mão fechada, devagar e sem força, contra a parte de cima do brinquedo. Nenhum deles está sorrindo.

Vocês não estão se divertindo, estão?

A resposta é um menear de cabeça desanimado.

Vamos para casa.

Em casa, Thomas se abandona no sofá, sem fome e sem vontade, e suas bochechas vermelhas e seus olhos semicerrados me dão a dica: febre. Ele passa os dois dias seguintes com febre, tossindo, sem vontade de fazer nada. Não conseguimos sair de casa para fazer coisa alguma, sequer passear o cão no parque, pois o vento gelado pode lhe fazer mal.

Quando Thomas melhora, começa a tosse da Laura. Mais dois dias trancafiados em casa.

Invento outras coisas para eles fazerem, e os chamo para uma competição de pães. Uso a água do cozimento da beterraba para Laura fazer um pão cor-de-rosa, e a água do cozimento da casca da abóbora, para que Thomas faça um pão amarelo.
 

Eles de divertem muito sovando e moldando e seus pães ficam lindos e me enchem de orgulho.

Allex volta da primeira viagem também doente e passa o dia inteiro na cama. No dia seguinte, ele faz as malas e volta para o aeroporto. Quando seu avião decola, eu caio na cama com febre alta e uma tosse que não me deixa dormir pelas cinco noites seguintes.

As crianças ajudam. Eles me fazem café e tentam me deixar descansar enquanto vêem desenhos e jogam jogos. Agradeço a mim mesma por sempre cozinhar tudo em dobro, pois há no freezer comida o bastante para aqueles dias sem que eu tenha de ir ao mercado. Desço o cão para o gramado ao lado do prédio três ou quatro vezes por dia, e ele sente falta dos passeios, mas cada vez que boto o pé para fora o ar gelado de 0 graus faz meus pulmões doerem e volto para casa pior.

É o fim do March Break e não fizemos nada do qeu eu havia planejado. Consigo contar de cabeça algumas trilhas feitas no parque, algumas idas ao playground, aquela mal fadada tentativa de patinar e a tarde divertida fazendo pão, e Thomas mal tem o que escrever na sua lição de casa sobre as mini-férias.

A família toda ficou doente, ele escreve.

As aulas voltam e eu continuo ruim.

Sair no vento gelado para levar e buscar criança na escola e levar cachorro para passear é difícil. Já não tenho mais febre, mas continuo tossindo, continuo entupida e sem conseguir dormir uma noite inteira, o que me deixa muito de mau humor.

A semana passa e sinto minha cabeça amarrada a um balão de hélio. Tudo gira, tudo é impalpável, não consigo me concentrar em nada que não seja absolutamente prático. Não me lembro mais o que estava fazendo antes de ficar doente. Fantasio com um dia inteiro deitada na cama.
Encontramos no parque essa árvore partida ao meio  com essa pedra linda encaixada. As criaças dizem que é um meteoro que destruiu a árvore como um raio. Gosto da teoria delas.
Apanho o livro para ler de novo. Ok, ler funciona. Fico brava pois aqueles cinco ou seis dias doentes me tiraram do ritmo de leitura e agora terei de renovar o empréstimo na biblioteca. Tinha uma parte de mim que queria conseguir terminar tudo nos vinte dias. Tive de mandar essa parte calar a boca e seguir a vida.

Seguindo a vida, precisei voltar a cozinhar comida. Eu não queria andar até o mercado, ainda me sentia esquisita, então resolvi catar as cascas de banana que vinha congelando havia um tempo e finalmente testar a receita das almôndegas que vira no canal da Bela Gil.

As crianças me ajudaram e estavam de fato empolgadas para experimentar aquela preparação tão inusitada.

Tem o Feio Mas Gostoso. Esse é Lindo Mas Horrível.

Eu ia colocando os temperos, o orégano junto com o cominho, e pensava: o que é que o C* tem a ver com as CALÇAS? Nunca vi orégano com cominho antes. Mas confiei. Fui indo, pensando que talvez aquele doce das cascas ficasse melhor com curry do que com molho de tomate com manjericão. Mas confiei. As almôndegas, que ficaram muito úmidas, foram assadas na AirFryer (sim, Allex continua trabalhando na Philips, e ele finalmente conseguiu enfiar uma AirFryer na minha cozinha. Confesso, adoro assar bolinhos nela, que ela assa em doze minutos o que demora 45 no forno normal.) Ficaram douradas e lindas no molho de tomate.

As crianças tentaram. Elas foram valentes. Conseguiram comer uma almôndega inteira cada um. Meu limite foram duas. O resto foi para o lixo. Intragável. Combinação mais esquisita de sabores. Não rolou. Assim que melhorei, fomos juntos ao mercado, onde comprei carne de boi e de porco para preparar almôndegas finlandesas da Tessa Kiros, deliciosas com molho de creme de leite e purê de batatas. Para compensar meus filhos pelas almônegas de casca de banana.

Você deu sorte, papai, disse Thomas quando o pai voltou. Estava longe e não teve de comer bolinho de casca de banana.

Virou piada interna familiar.

Também gastei um monte de tâmaras Medjool para fazer um Date and Nut bread da Kim Boyce que só eu comi. Fiquei meio sem fazer mais nenhum bolo ou biscoito, vivendo à base de iogurte com mel nos dias em que a garganta doía demais e eu não tinha apetite, e as crianças redescobriram a alegria do iogurte com fruta. Comprei um monte de fruta congelada e essa tem sido a sobremesa e o snack favorito dos dois na última semana.

Espere. Estou enganada. No mesmo fim de semana em que Thomas ficou doente, resolvi preparar com Laura um bolo de laranja da Dorie Greenspan, cuja receita original é de rum e baunilha, mas ela oferece a variação de laranja. Tudo ia bem até eu colocar a manteiga derretida ainda fumegante na massa. Os bolos no forno afundaram miseravelmente. Mas continuaram gostosos e comemos tudo mesmo assim.

Esse é Lindo E DELICIOSO.

Em outro dia catei novamente o livro do Ottolenghi, Plenty More, e fiz essa salada linda de beterraba branqueada com ervilhas, abacate, coentro e cebolas marinadas em limão, para acompanhar panquequinhas de folha de cenoura que eu improvisara.

Com as crianças na escola, tentei voltar aos meus almoços tranquilos. Salada de couve roxa e abacate com croutons e bacon, e um vinaigrette de cebola feita na gordura do bacon.

Bacon.

Eu ainda estou tossindo. Estaria dormindo melhor, não fosse um estranho torcicolo vindo sabe-se lá de onde, que começa na minha omoplata esquerda e sobe pelo pescoço até atrás da orelha.

Allex voltou, ainda meio perdido, tendo ficado duas semanas fora da rotina familiar. Todo o chão onde pisamos esses dias parece estar sobre um mar arredio.Ele me traz um monte de queijo holandês e uma cerveja forte de presente. Porque canadense não sabe fazer cerveja forte.

As crianças estão bem, o descanso apesar de tudo foi ótimo para elas, mas eu ainda tenho esse balão de hélio amarrado na cabeça, que parece não me deixar concentrar em coisa nenhuma. Olho as listas na minha agenda e não me lembro direito o que eu estava fazendo antes de ficar doente. Espere. Eu já disse isso antes. Viu?

Ficar completamente sozinha e doente por uma semana foi difícil. Bem difícil. Mas foi bom ver que dou conta. A gente sempre dá conta. Mesmo quando a gente diz que não está dando conta, a gente já está. Porque é sempre uma escolha. Você pode ser o objeto que as forças movem, ou você pode ser a força que move tudo. I am the freaking force. Eu escolho mover tudo à minha volta e mover minha vida.

Houve uma noite em que quis sentar e chorar. E quando a primeira lágrima escorreu, senti-me idiota. O que isso faz por mim? Levanta a bunda. Faz um chá. Se cuida. Leva o cão pra fazer xixi. Sai e compra um iogurte para as crianças. Pipoca de janta. A vida segue. Empurra a vida que ela se mexe e segue. A vida é meio preguiçosa às vezes. Tem que dar uns pontapés na bunda dela pra ela se mexer mais rápido de vez em quando.  

Só preciso descobrir como estourar essa droga desse balão de hélio na minha cabeça para conseguir focar de novo nos meus projetos.

Que que eu precisava fazer mesmo? Vender a bicicleta. Pum. Vendi. Vender minha mesa de desenho. Mora em Toronto? Quer uma mesa para Craft? Tô vendendo a minha. Levar o cão ao veterinário. Arranjar médico de família. Comprar comida. Descobrir como fazer meu imposto de renda.

Done.
Done.
Done.
Done.

Menos café. Menos café ajuda.

Foca, Ana. Senta. Desenha. Pinta. Escreve. Desenha. Pinta. Escreve.

I am the freaking force.

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