terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Pici e resoluções


A perspectiva de meu filho entrar em férias por dois meses inteiros fazia os cabelos atrás de minha nuca se arrepiarem. Dois meses com duas crianças em casa e trabalho para fazer. Tinha planos para "delargar" a criançada o maior tempo possível nas casas das avós. Com Thomas saracoteando pela casa loucamente e Laura engatinhando como quem tem uma missão, não parecia que teria sossego o bastante para pintar coisa alguma.

E minha sogra foi viajar e deixou a cadelinha conosco. Já com 7 anos (acho) e não muito costume de ficar com crianças ou ter um gramado, foi aquele deus-nos-acuda na primeira semana, de recolher "presentinho" do gramado antes que o bebê chegasse perto e vigiar constantemente para que o bichinho não avançasse na Laura-puxa-rabo ou no Thomas-corre-atrás-latindo-com-espada-na-mão.

Acrescido a isso o montante de compromissos de fim de ano e pequenos-grandes contratempos de cunho pessoal, a primeira semana de férias não teve nada de relaxante. Daí que nada -NADA- saiu como eu queria, e minha longa lista de quitutes de natal ficou restrita a:

  • Spekulatius: ficaram bons, feitos pré-crise-de-férias; acabaram antes de preparar qualquer outra coisa;
  • Torrone: ficaram uma droga; as claras desinflaram quando a calda de mel estava na temperatura certa, e tive de reaquecer tudo enquanto batia mais claras, e o mel cristalizou, e o torrone ficou pastoso;
  • Panforte nero: ficou ótimo, e foi o maior orgulho ver o Pequeno-Devorador-de-Frutas-Secas comendo aquele doce tão "adulto" como se fosse chocolate. Mas foi feito em novembro e deixado "maturar" até o Natal, então não conta. Pré-crise;
  • Panettone: esqueci de macerar as frutas na noite anterior e na hora de incorporar as cascas de laranja... descobri que haviam acabado e não tinha mais no supermercado, assim como nenhuma outra fruta cristalizada. Tive de substituir com o que tinha e não ficou nem de perto saboroso como o do ano passado. Queimou na base e ficou com o miolo ressecado. Crise se instalando;

  • Bûche de Nöel: de última hora, decidi preparar o bolo, com medo de que o torrone tivesse ficado ruim (check!), o panforte tivesse mofado embrulhado nesse calorão por um mês (nope!), o Panettone estivesse sem graça (check!) e todo mundo ficasse sem sobremesa, única coisa da qual eu havia ficado encarregada esse ano. Aí... o bolo do rocambole foi fácil de fazer mas ressecou. A mousse do recheio não firmou. Na hora de enrolar, o bolo quebrou todo e a mousse vazou toda pra fora. A ganache, maravilhosa (mesma desse bolo aqui), salvou tudo e deixou com cara de alguma coisa que valia a pena ser comida. Os cogumelos da decoração... era pra ser aquela coisa linda, com farinha de castanha, o que em inglês produziriam... "chestnut mushrooms"! Nhóin. *_* Bom, eu li a receita com pressa e coloquei no forno por 2 horas a 200 graus. Acontece que eu coloquei a 200 graus Celsius, e a receita era em Farenheit. Em meia hora, só faltavam os bombeiros aparecerem para ver que fumaça preta era aquela que invadira toda a cozinha. No meio do caos pré-Natal, resolvi tentar de novo. Desta vez, resolvi que o passo de incorporar o açúcar e a farinha de castanha com uma espátula no final obviamente era uma frescura, e meti tudo na batedeira. Lixo. As claras desinflaram e eu quis quebrar minha própria cabeça idiota com a batedeira. Determinada, tentei pela última vez, com a última clara descongelada que eu tinha e sem a farinha de castanha. Enquanto estava no forno, conformada com a terceira derrota, cortei alguns damascos ao meio. Já que eu não teria cogumelos, faria outro tipo de fungo de madeira no meu bolo-tronco. Mas, milagre dos milagres, os cogumelinhos deram certo e ficaram ótimos, e compuseram, junto com a "neve" de coco ralado, a coisa mais bonita que já saiu da minha cozinha. Só que o gosto do bolo ficou sem graça. #Fail. Crise no ápice.
Passado o Natal, conforme as crianças foram se acostumando ao novo cãozinho e eu me acostumando à bagunça, dei-me conta de que não era apenas meu filho que estava de férias. Meus clientes também. E, deixando as crianças na avó, primeiro Thomas, depois Laura, percebi que os dois já haviam de tal forma criado entre si uma espécie de Liga-Épica-de-Destruição-e-Risada, uma Unidade de Caos, que era estranho estar com um e não com outro. A interação dos dois trazia alegria para a casa.

Então eu relaxei.

Decidi que ao invés de me culpar por não estar pintando joça nenhuma, aproveitaria essa fase fofa dos filhotes que não volta mais, integralmente. Ligo o computador só pra ter certeza de que não há trabalho a ser feito e então corro atrás deles, divirto-me com suas idiossincrasias, a lógica bizarra de criança, a correria, a barulheira, a cachorrada latindo, a Pequena Unidade de Caos. E percebi que conquanto não criasse uma expectativa com relação a meu dia e minhas atividades particulares, tudo correria bem e o único stress seria fazer Thomas comer seu brócolis.

Decidi que acabaria com essa ideia idiota de preparar trocentos doces natalinos e me ateria, a partir de então, a panforte (que eu de fato adoro e é muito fácil de fazer, além de poder ser feito com imensa antecedência) e talvez panettone, mas que agora a diversão seria preparar coisas que nunca fiz antes, sem a pressão de uma lista tão grande de afazeres numa época já tão atribulada.

Decidi que está na hora de voltar correr. Como der, quando der, o quanto der. Mas botar as pernas em movimento é prioridade, uma vez que não quero que meu visto temporário no País das Pelancas Pós-Bebês vire cidadania.

Decidi que, depois de um ano de Facebook, eu não estava perdendo nada. Voltei a entrar em contato com dois ou três amigos que andavam distantes, mas a verdade é que se eu (ou eles) quiser manter esse contato, nossos telefones estão devidamente atualizados. Nesse um ano, saí menos com meus amigos do que em anos anteriores. Não por estar longe, não por ter dois filhos. Mas porque ficar comentando bobagens via internet me trazia a ilusão de que estávamos conversando, e me destituía da necessidade de de fato chamá-los para sair tanto quanto eu costumava. Além disso, o Facebook me mostrou que muitas das pessoas que eu admirava pensam cocô boa parte do dia. Facebook me deprime. Facebook me lembra constantemente que o mundo é um lugar nojento, enquanto eu faço uma força brutal para tentar me convencer de que há beleza nele. Então, depois de um ano desperdiçando meu tempo com essa viciante rede de solidão e narcisismo, decido que não quero mais fazer parte dela. Vou transformar minha página pessoal numa página exclusivamente de trabalho e boa noite. Amigos, vocês têm meu telefone.

Decidi terminar de me desapegar de algumas tralhas que só fazem peso a cada mudança de casa, como aqueles livros que a gente continua guardando, não porque você usa de referência ou pretende ler outra vez, mas porque ficam bem na estante, contam para os outros um pouco sobre você (ou o que você gostaria que os outros acreditassem sobre você). Hmmm... acho que ninguém precisa ficar olhando para aquele imenso dicionário de verbetes de filosofia para saber quem eu sou, e eu nunca – NUNCA – abri aquele dicionário em 17 anos. Estou à procura de bibliotecas que aceitem doações de livros diversos (por incrível que pareça, há muitas que não querem) ou boas redes de troca de livros (sugestões?) para começar a manter a leitura em dia sem gastar mais dinheiro ou entulhar mais a casa.

Aliás, decidi colocar a leitura em dia.

Decidi que de vez em quando faz bem para a cabeça me dar férias. Não exatamente férias para não fazer nada, mas férias da obrigação e pressão pessoal de fazer coisas.

Decidi que o fim de semana é um bom momento para preparar massas caseiras e que quero fazê-las mais vezes. A máquina de macarrão já estava acumulando poeira dentro do armário, e, unido ao fato de que meu filho em seus quase 3 anos nunca comera massa caseira, tudo me pareceu muito errado. Comecei já há algum tempo a voltar a fazer macarrão de fim de semana, primeiro um fettuccine básico na máquina, depois um com farinha de castanha (e molho de porcini, uma delícia), então de beterraba, então ravioli de berinjela e ricotta...

E me ocorreu que eu não necessariamente precisava usar a máquina, e poderia preparar outros tipos de massa, daqueles de velhinhas italianas em mesinhas de madeira em ruelas de vilarejos medievais.

Quão divertido é isso???

[Quão louca eu sou???]

MUITO divertido.

[Louca de pedra.]

A primeira massa sem máquina que fiz foi Pici, uma massa longa típica de Siena, na Toscana. Comi Pici na minha primeira viagem à Itália, há 9 anos, com um molho simples de alho, azeite e pimenta fresca, e era uma delícia. Era um restaurante pequeno que só servia comida tradicional e não tinha cardápio em inglês, razão pela qual o casal de americanos na mesa ao lado entrou em pânico e pediu minha ajuda para escolher um prato. Lembro-me de que a mulher não arriscou nenhuma outra indicação minha e acabou pedindo o mesmo que eu, apesar de ter avisado a respeito do "pepperoncino". Calhou que ela não era tão fã de pimenta quanto eu e passou o jantar todo de rosto vermelho e olhos lacrimejando, enquanto eu me deliciava com aquela massa fresca, de textura macia e resistente à mordida e o molho apimentado. De sobremesa, uma fatia de panforte, e talvez tenha sido justamente a presença do panforte na minha cozinha que tenha me levado a essa receita para o almoço de domingo.

Pici é uma excelente massa para quem nunca fez macarrão ou não tem máquina em casa. Ela é naturalmente rústica na aparência, então você não precisa se preocupar em criar uniformidade, e o processo é fácil até para uma criança. Você já brincou de fazer cobrinhas de massinha de modelar quando criança? Então você tem a habilidade necessária para fazer Pici.

O segredo, para mim, é a textura da massa: você deve senti-la úmida e macia, mas não pode grudar nos dedos. Se estiver craquelada ou esfarelada, está muito seca. Pense em argila macia. Isso vale para a massa de ovos também.

O molho é improvisação minha, no entanto, já que não havia pimenta fresca. A quantidade de pimenta-calabresa torna o molho um bocado picante, mas as crianças rasparam o prato com gosto. Se achar mais apropriado, diminua a quantidade. (A massa deve ficar ótima com ragù, aliás.) 
 


PICI
(do ótimo Twelve: A Tuscan Cook Book, de Tessa Kiros)
Rendimento: 6 porções (quando preparei, fiz 4 porções, apenas reduzindo a receita para 2/3 dela. O molho sobra um pouco, nesse caso, mas nada que um pãozinho não resolva... :)

Ingredientes:
  • 600g farinha de trigo
  • 300ml água
  • 1 colh. (sopa) azeite
  • 1/2 colh. (chá) sal

Preparo:
  1. Coloque a farinha numa tigela grande e faça um "fosso" no meio. Coloque ali o azeite, o sal e uma parte da água e comece a mexer com os dedos ou um garfo, para incorporar a farinha gradualmente. Vá juntando mais água conforme a farinha for absorvendo e quando formar uma massa, derrube na bancada e comece a sovar. A massa deve absorver toda a farinha e eventualmente parar de grudar nos dedos ou na bancada, mas não pode ficar craquelada ou esfarelada. Sove por uns dez minutos. A massa é mais pesada que massa de pão; use o peso do seu corpo para sovar, para não cansar os braços. Quando a massa estiver macia e uniforme, embrulhe em filme plástico e deixe descansar por 20-30 minutos, período durante o qual a farinha termina de absorver a água, o glúten relaxa e a massa fica mais suave e maleável – não pule esse descanso.
  2. Desembrulhe a massa e numa banca ligeiramente enfarinhada (se precisar) abra com um rolo em forma de retângulo estreito, com 1cm de altura. Corte tirinhas finas, de não mais de 1cm de largura. Uma a uma, abra rolando as palmas das mãos para frente e para trás, como quem faz cobrinhas de massinha, até obter fios bem compridos (corte ao meio se achar difícil manipulá-los quando muito longos) e quase tão finos quanto spaghetti grosso. Não se incomode se não ficar uniforme. O importante na hora de abrir é não enfarinhar sua bancada, ou você terá dificuldade de abrir os fios. Teoricamente a massa só estará grudando o bastante para criar atrito na bancada e alongar-se. 
  3. Conforme os fios forem ficando prontos, deixe-os numa assadeira grande e polvilhe bem com farinha, misturando-os com os dedos em garfo, para que não grudem uns nos outros. (Você pode deixá-los nas costas da cadeira, como fiz, mas tem que trabalhar rápido, pois conforme secam, podem romper-se com o peso pendurado). 
  4. Cozinhe em abundante água fervente com sal, misturando com um garfo assim que colocar os fios na água, para que não grudem. O Pici, por ser mais espesso, não vai cozinhar tão rápido quando fettuccine fresco, mas não vai demorar tanto quanto massa seca. Vá experimentando a cada minuto. Ele deve ter gosto de cozido, ter inchado um pouco e ter uma textura resistente à mordida. Cerca de 3-4 minutos. Escorra, misture imediatamente ao molho e sirva.

MOLHO COM PIMENTA CALABRESA
(improvisação minha)

Numa frigideira grande, aqueça em fogo médio uma colher (sopa) de azeite, 3 dentes de alho fatiados e 1 colh. (chá) pimenta calabresa seca (para um molho bem apimentado; você pode diminuir essa quantidade a gosto). Quando o alho soltar o aroma, junte duas latas de tomate italiano (ou 8 tomates frescos sem pele, picados), mexa bem com uma colher de pau,  quebrando os tomates em pedaços menores, abaixe o fogo e deixe apurar por cerca de 20 minutos, mexendo de vez em quando para não queimar, até que fique mais espesso. Tempere com sal e pimenta-do-reino a gosto, uma colher (chá) vinagre de vinho branco, e, antes de escorrer a massa, junte 1/3 xic. da água do cozimento da massa, agora cheia de amido. Junte a massa escorrida, um fio de azeite e misture bem. Sirva polvilhado de parmesão

Cozinhe isso também!

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