quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Conservando a sanidade mental

Às vezes os clientes tomam chá de sumiço. No meio de um trabalho, prazo apertando, e eles desaparecem sem deixar rastro, a não ser pelo cheiro inconfundível do meu desespero crescente ao me ver abandonada, sem saber se o cliente sumiu porque não gostou, porque morreu ou simplesmente porque está ocupado com outra coisa.

Numa tarde dessas, em que minha mente ociosa começava a inventar caraminholas mil, apanhei um livro qualquer na estante e fui para o sofá. Tratava-se de um livro de conservas. Eu me sentira muito mal comigo mesma por ter desistido das conservas há um tempo atrás. Alguns erros de principiante metida à sabe-tudo botaram a perder minha conserva de ameixas, meu relish de milho e meu picles de melancia. No primeiro, não usei frutas no auge do seu frescor, e não retirei os bolsões de ar que ficaram entre a fruta e o xarope, de modo que ao abrir o frasco ouvi um triste "pssssssfff" ao invés do animador e hermético "poc!"e me deparei com uma conserva obviamente estragada. Quanto ao relish, o problema foi que quis inventar passos onde não havia, e resolvi ferver o relish depois de pronto, para conservá-lo na prateleira. Durante o cozimento extra, o milho antes macio ficou duro feito pedra. No picles de melancia, usei frascos cujas tampas (descobri depois) estavam ligeiramente tortas, de modo que não selaram de modo apropriado. Então me lembrei de que entortara as tampas com uma faquinha para conseguir abrir os vidros quando ainda tinham seus conteúdos originais. O ar lá dentro transformou meu picles em formas cinzentas nadando em um líquido enevoado. Uma tristeza...

É claro que isso desanima qualquer ser humano. Mas nessa tarde caraminholenta, estava decidida a tentar de novo. Algo fácil. Algo simples. Algo feito para ser consumido na hora, e não ser deixado maturando na prateleira, gerando enormes expectativas. Sabia ter encontrado o que queria ao ver a autora do livro falando cheia de amores de uma geleia de framboesas que deveria ser feita em pequenas quantidades, pois era mais saborosa quando ainda tinha gosto de frutas frescas, e não após meses de prateleira.

Tchanans!

E podia ser feita com framboesas congeladas!

Tchananans!

Apanhei meu meio pacotinho de framboesas congeladas, que vieram todas grudadas e em pedacinhos, impossíveis de serem usadas de forma mais decorativa, e misturei ao mesmo peso de açúcar cristal orgânico. Levei ao fogo e foi uma mera questão de mexer, retirar qualquer espuma, e esperar dar o ponto. Suficientemente espessa, considerando que geleias de framboesa não ficam muito espessas sem a adição de pectina, a geleia foi direto para um vidrinho esterilizado no forno (10 minutos a 180ºC, mais prático que ficar retirando vidro de água fervente), e fechada para ser aberta já no dia seguinte.

Na manhã seguinte, espalhei a geleia de cor vibrante e pontilhada de sementinhas num pãozinho com manteiga e passei-o ao meu marido. Algumas mordidas depois, ele veio perguntar que marca de geleia era essa que eu comprara, pois estava sensacional e eu deveria comprá-la sempre. Sucesso total! De fato, a geleia de framboesa feita assim fresquinha tem um gosto diferente do que as que ficaram maturando dentro do pote.

Fiquei empolgada com a possibilidade de produzir pequenas quantidades de geleia, com as frutas da estação, para consumo imediato. Aquilo fazia sentido, mais do que ficar entulhando a despensa. Assim que a de framboesa acabou, apanhei as laranjas-pêra orgânicas que eu tinha e um vidro de gengibre em conserva que já estava aberto e sem uso e, com mais uma receita do mesmo livro, fiz uma de minhas geleias favoritas, com as tirinhas finas de casca. O gengibre foi uma adição muito bem-vinda à geleia de laranja, e fiquei feliz por ter produzido mais de um pote. Tendo rendido três, deixei um na geladeira para consumir imediatamente, dei um à minha mãe e o outro resolvi deixar no armário, para testar. Pedi à minha mãe que prestasse atenção ao som feito pelo pote ao ser aberto, e fiquei feliz em saber que foi "poc!", o maravilhoso som do ar do ambiente entrando de uma vez em um pote fechado a vácuo. Grandes chances para minha geleia no armário, então.

Não contente, apanhei um vidro grande e resolvi fazer os tais limões em salmoura que andam muito na moda em blogs e revistas. Principalmente porque nunca os vi à venda, nem mesmo em lugares bem abastecidos de coisinhas gourmet. Imaginei esses limões lindamente amarelos em pratos de verão (quando estarão maturados), e imediatamente pensei em dias de sol. Bastou esfregar bem os limões (1kg) em água quente, cortá-los em quartos quase até o fim, deixando os quartos ainda presos entre si, e acondicioná-los num pote de vidro esterilizado (tampas de vidro, para evitar corrosão pelo sal), alternando com camadas de sal grosso (250g) e algumas folhas de louro. Empurrei bem os limões para baixo, deixando-os apertadinhos para que não flutuassem depois. Preenchi todos os espaços com água, fechei a tampa e coloquei a data. Esses foram fáceis, e desde que estejam todos bem submersos, tudo indica que terei limões em conserva para temperar meus pratos em janeiro. O pote já tem quase duas semanas e não há nenhum sinal de "atividade indesejada" neles. De vez em quando, basta dar uma chacoalhada no pote e colocar mais sal, caso ele tenha dissolvido. Deve ser guardado em local fresco e escuro por 3 meses antes de ser usado.

Então, na feira, deparei-me com uma caixa inteira de mini-alcachofras, do tamanho de punhos de crianças. Coisinha mais linda. Levei meio quilo por uma ninharia, comprei um potinho hermético de 500ml e segui absolutamente à risca uma receita de Eugenia Bone. E assim, fiz meus primeiros corações de alcachofra em conserva, que devem ficar quietinhos por umas duas semanas antes de serem consumidos, mas também, alguns dias depois, não dão indícios de estarem estragando.

Por fim, quando a geleia de laranja acabou, fiquei com dó de abrir tão já o próximo pote e resolvi produzir outra, com algo da estação: ruibarbos. Antes que perguntem onde os encontrei, o Santa Luzia tem produção própria. E fiz minha geleia de ruibarbos, azedinha-doce, deliciosa sobre uma fatia de broa de milho. A receita é adaptada da revista francesa Saveurs, e fiz apenas metade, rendendo dois potes, pois ruibarbos não são o vegetal mais barato do mundo por aqui. Deixei macerando durante umas duas horas 650g de ruibarbos cortados em pedaços pequenos, 450g açúcar cristal orgânico baunilhado, suco de 1/4 limão siciliano e 1 colh. (chá) extrato natural de baunilha (para substituir o uso da fava, que eu não tinha), até que o ruibarbo estivesse flutuando em seu próprio caldo. Então levei a panela ao fogo moderado e cozinhei, retirando a espuma com uma escumadeira e mexendo, até dar ponto, uns 20-30 minutos. Ela ficou espessa e deliciosa, cheia de pedacinhos macios de ruibarbo. Como havia muitos talos esverdeados, a geleia não ficou tão rosa. Para intensificar a cor tradicional, a revista sugeria o acréscimo final de 1 colh. (sopa) de Grenadine, um xarope cor-de-rosa de romã. Mas me pareceu bobagem comprar uma garrafa inteira apenas para isso, e mantive minha geleia assim, vermelho-acastanhada. Um pote foi para a geladeira, e outro para o armário.

Meus dedinhos coçam em antecipação para a próxima empreitada. :)

"Se não estiver dando trabalho, pode continuar com as geleias, viu?!", disse o marido outro dia, muito consciente de que eu estou é me divertindo.

Cozinhe isso também!

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