quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Tralha nova, bolo novo

Na sexta-feira passada, Allex entrou em casa com uma mochila grande, cheia e deformada nas costas. Em tempo: ele vai e volta de moto para o trabalho, o que nesses dias em que os céus vem caindo é quase uma piada, e o pobrezinho chega em casa com cara de cachorro molhado. Bem, como ele mesmo diz, de moto ele chega molhado e de carro ele não chega.

"Feliz Natal", disse ele, abrindo a mochila no chão e retirando peças brancas e azuis embaladas individualmente em plástico.
"What the f...?!"
"Ah, comprei seu processador, mais a caixa não cabia na mochila, então ela foi para a reciclagem e o brinquedo veio em pedaços."
"E eu já posso usar? Ou é só no Natal?"
"Você vai querer fazer coisas com ele agora, não vai?"
"Vou."
"Então... e eu não vou embalar tudo isso de novo em outra caixa. Feliz Natal adiantado."

No fim das contas, baseado nos comentários de vocês e alguma pesquisa, acabei escolhendo um dos modelos mais simples dentre os nacionais mesmo. Achei tentador comprar um processador maior e cheio de tralha, mas a verdade é que eu não preciso de um processador-juicer-batedeira-corta-unha-do-pé-traz-café-na-cama. Já tenho uma bela de uma batedeira, e não sou muito de fazer sucos de frutas (prefiro comê-las), e quando os faço, uso aquele espremedorzinho manual que parece um espremedor de alho, que acho muito prático e funciona muito bem. Ah, mas aqueles cortam fatias de várias espessuras... Argh. Não, não preciso disso. Para falar a verdade, corto os meus legumes com a faca mais rápido do que o tempo que me leva para montar o processador. Para quê então eu realmente precisava de um? Para fazer todos os bolos e massas do tipo "joga tudo dentro e pulsa 30 segundos", e para emergências como o dia em que fiz uma pissaladière para 8 pessoas, e passei 45 minutos cortando quase 2kg de cebolas em meias-luas finas. Acreditem: eu nunca mais quero passar por isso

A dúvida cruel era que o cheio de tralha era de fato bem maior do que o com menos tralha. A psicopata metódica em mim apanhou todos os livros de receita da estante, procurou uma por uma as receitas que usavam processador e, baseado no manual de instruções online dos modelos de processadores e o limite de peso de farinha e número de ovos, calculou se o volume de massa de todas aquelas receitas era suportado pelo tamanho da tigela do modelo menor.

Cu-cooo! Cu-cooo! Louca de pedra.

Bem, o modelo menor era bastante.

Resolvi testar o brinquedo novo na segunda-feira, com uma receita muito, muito simples, mas que sempre foi um verdadeiro desastre aqui em casa: o bolo de cenouras de minha mãe. Ele é um bolo dummy-proof, como já escrevi aqui. É muito difícil ele dar errado, e mesmo quem nunca acertava bolo de cenoura tem ótimos resultados com ele. Por isso me considero muito talentosa: só na minha mão ele dava errado.

Primeiro, era o liquidificador maldito, que não batia direito. Ele não tinha potência e não puxava os ingredientes de cima para a parte debaixo, batendo em falso; e o que teoricamente seria uma atividade muito simples (colocar tudo no liquidificador e apertar o botão "Ligar") virava uma epopeia de abre, mexe com a colher, tira a bolota de farinha presa embaixo da inalcançável lâmina, mistura o ovo que nesse meio tempo foi absorvido pelo açúcar e virou uma papa dura... Muitas vezes tudo isso alterava a textura do produto final, e o bolo não saía como deveria, com o miolo irregular, assado num ponto, cru em outro, com buracos no meio. [É visível a diferença de textura do miolo dos dois bolos, da foto do post antigo e desta foto atual.]

Então tentei a batedeira. Mas também não dava certo. Ela demorava mais do que devia para misturar os ingredientes, incorporava ar demais à massa e o bolo crescia, crescia, transbordava e ia parar no chão do forno, espalhando pela casa um horrível cheiro de queimado e soltando fumaça escura em toda a minha cozinha.

Precisava ser essa receita. Se havia um momento de redenção do bolo de cenoura, seria aquele. Montei o bichinho na bancada, ainda pouco familiarizada e resolvi que, primeiro, claro, ralaria as cenouras nele. Eu fatio e pico coisas numa boa, mas eu detesto ter de ralar cenouras, beterrabas, e principalmente grandes quantidades de queijo, uma vez que, invariavelmente, eu vou acabar ralando os nós dos dedos.

Liguei o menino. E imediatamente comecei a rir. Talvez por ele ser de plástico, ele não tenha o peso necessário para mantê-lo tão estável quanto, por exemplo, minha batedeira, que pesa 10kg e não sai do lugar mesmo batendo as massas mais pesadas. O bichinho me lembrou o movimento daqueles bonecos de vento de postos de gasolina. Iúuuuuuuuhuuuuuu!, imaginei ele gritando, enquanto rebolava loucamente. Coloquei minha mão em cima, para mantê-lo firme e prossegui. No final, apesar do centro de gravidade deslocado, ele é menos barulhento que meu antigo liquidificador (que apesar de pouco potente parecia um ar-condicinado industrial quando ligado), e fez muito bem seu trabalho, ralando as cenouras rapidinho sem ralar meus dedos junto. ;)

O bolo.

Quando terminei de colocar todos os ingredientes na tigela que anunciava ter 2,5l (e tem), mas que na verdade sugere um limite de 1,5l, achei que tinha feito bobagem, que teria sido melhor comprar um modelo maior, mesmo com toda a tralha que viria junto. Os ingredientes ultrapassavam em 1cm o tal do limite proposto. Isso vai explodir para todo lado, pensei, imaginando ovos, farinha e cenouras pelas paredes. Arrisquei. E, para minha felicidade, em 30 segundos o bolo estava batido. E pela primeira vez em quatro anos, o bolo assou maravilhosamente bem, e finalmente ficou com a textura fofa e uniforme dos bolos de minha infância.

Felicidade total.

Levei o bolo para o café da manhã da corrida, na manhã seguinte, e fiquei o tempo todo torcendo para que meus amigos acabassem com ele. Se não houver mais bolo, vou "ser obrigada" a fazer outro. Puxa... ;)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Voltando...

Devagar vou voltando à normalidade, se é que essa palavra alguma vez foi aplicável. Dizer que esse ano foi um ano ruim é ofensivo ao Universo, que colocou sim bons momentos e boas pessoas em meu caminho. Este ano evoluí como profissional graças a excelentes ilustradores e artistas que conheci e que tiveram a bondade de serem meus professores. Este ano reavivei dentro de mim a paixão pelo desenho, que andava moribunda. Este ano foi muito bom para meu casamento, e pudemos pensar muito no futuro e ansiar por ele. Este ano meu cãozinho cruzou pela primeira vez e seus filhotes, agora com dois meses, são a prova de que há beleza e doçura no mundo. Este ano fiz muitos novos – e bons – amigos. Este ano atingi duas metas que eram importantes para mim: emagrecer 10kg e correr minha primeira meia maratona (21km). E vou terminar o ano fazendo algo que sempre quis fazer: correr a São Silvestre.

Foram poucas, pouquíssimas as coisas que me fazem pensar nesse ano como um ano ruim, apesar de todos os pontos positivos que pude citar. Primeiro, este foi o pior ano desde que abri minha empresa. E quem trabalha por conta própria sabe o quanto dói analisar planilhas e gráficos e perceber que seu faturamento não está seguindo a tendência que você previra. É extenuante a expectativa pelo trabalho que colocará seu fluxo de caixa de volta nos eixos. A assim chamada crise foi a desculpa perfeita para que muitas empresas eliminassem sua verba de comunicação por boa parte do ano. E isso afetou a todos os profissionais da área de criação, principalmente os da ponta da cadeia, como ilustradores e fotógrafos.

Segundo, minha avó faleceu em meados do primeiro semestre. Era esperado, mas o processo foi mais longo e doloroso do que o necessário. É interessante como a quebra de um elo, como os avós normalmente são, nunca deixam os laços familiares que restam como eram; eles se estreitam ou desfazem definitivamente. Neste caso, o laço foi desfeito de forma irreversível, deixando em mim uma marca indelével, um gosto amargo na boca, que para sempre me lembrará dos limites da mesquinharia humana. Foi um corte brusco e profundo, de cicatrização muito lenta, que ainda pulsa devagar, me lembrando da ferida. E eu fico aqui, inconformada, sem entender o mundo.

Eu não era muito próxima de minha avó. De nenhuma das duas. Não me lembro de nenhuma conversa significativa. Mas nossos pratos favoritos estavam sempre ali nos esperando, e eu sabia que havia amor ali, disfarçado de alimento. Ela se prontificou, já muito idosa, a me ensinar a fazer macarrão, quando lhe pedi. E gnocchi. E manjar branco. E então me deu todos os seus cadernos de receita para que eu desse continuidade à cozinha que ela já não mais praticava. No meio daquele mês ácido, no entanto, os cadernos me foram tomados, e tudo o que me resta dela é seu bolo de laranja decifrado e os bolinhos de banana, favoritos de meu pai.

É sempre a mesma agonia para mim, quando alguém morre. A sensação egoísta de que perdi minha chance de fazer qualquer coisa boa por aquele ser que passou por aqui. Todas as boas intenções de nada mais servem. Salada de catalogna e abóbora. Era o que eu estava almoçando quando minha mãe me telefonou, e a fotografia está até hoje alojada numa pasta em meu computador, e eu simplesmente não consigo publicá-la aqui, ainda que o gosto doce, amargo e salgado ainda estale em minha boca.

Sinto falta da ideia de ela estar lá. E apesar de ela ser co-responsável, junto com minha avó materna, pelo meu amor à cozinha, não consegui me fazer escrever sobre ela durante todos esses meses. Por todo esse tempo, minha vontade de cozinhar ficou dormente, fingindo que despertava vez ou outra, apenas para manter vivo esse espaço e aquela centelha dentro de mim que ainda acreditava em amar através da comida. Era difícil acreditar em amor após testemunhar tanta ausência dele.

Mas acho que finalmente a ferida parou de latejar. Pode ser a aproximação do Natal. Os piores Natais ainda são bons, de alguma forma. Pode ser que eu tenha encontrado suficiente amor durante os últimos meses para aniquilar meu cinismo de uma vez por todas. Talvez seja simplesmente um processo natural. Talvez o fato de o trabalho ter voltado ao normal no final do ano tenha me tirado da espiral descendente em que eu me encontrava.

De repente, minha vontade de cozinhar parece restaurada. Quero fazer biscoitos, cannoli, pães, quero gente jantando em casa, quero preparar o almoço do dia 25! Principalmente, sinto vontade de compartilhar outra vez. Como se minha visão tivesse sido restaurada, consigo ver beleza novamente nos pratos que saem da minha cozinha, e agora é fácil escrever a respeito deles. Não é mais um fardo, como fora nos últimos meses. Voltou a ser um prazer. Prazer em fazer, em alimentar, em fotografar, em contar, em dividir, em debater.

Eu andara querendo fechar o blog, pensara por que diabos acumulara tantos livros de culinária, e estava cozinhando mecanicamente. Então eu quis fazer massa folhada. Massa folhada! E eu fiz pão, um lindo pão de centeio, pela primeira vez em meses. E fiz biscoitos para decorar a árvore de Natal.

Curada. Enfim.

Cozinhe isso também!

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