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sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Dezembro, o Frio, o Natal e um purê de cenoura


Faz 8oC lá fora, está escuro, apesar de serem sete e vinte da manhã, e eu não sei como vestir as crianças para a escola. Olho pela janela e há neve ainda remanescente das duas semanas de frio intenso pelas quais passamos. Mas chove. E a neve derrete em ritmo rápido, formando poças de água escura circundando ilhas altas de neve suja, que me lembram aquela espuma esquisita que flutua sobre rios muito poluídos. Apesar disso, o dia está "quente". Visto um jeans fino de verão, uma camiseta de manga curta e - aí que vira bagunça - as botas de neve, para não encharcar os pés e o casaco de neve porque eu não tenho um de chuva. Apesar da temperatura positiva, as crianças vão de luvas, para poderem brincar com o que restou de neve no pátio da escola.

Andamos até a escola meio desajeitados. Há pedaços inundados pela neve derretida, há pedaços ainda com gelo escorregadio sobre as calçadas, há momentos em que não se pode fazer nada a não ser enfiar o pé inteiro naquela neve suja para poder atravessar a rua, ao mesmo tempo em que você pede pela décima vez para que as crianças não brinquem nas poças e no gelo, pois a neve conforme derrete revela presentinhos de gente mal educada que não sabe onde existe lixeira e não recolhe dejetos caninos. 

Volto da escola e é todo um processo para limpar o cachorro, que parece saído do meio de um manguezal, imundo até a barriga e cheio de pedras de sal nas patas. Depois de limpá-lo e secá-lo, é a vez de limpar a entrada do apartamento, enlameada e grudenta de sal, independente de termos colocado junto à porta um enorme tapete de borracha.

Apesar disso, as coisas vão bem.

É delicioso sair na rua sem luvas depois de duas semanas mal tendo o nariz exposto ao frio. Quando meus pais vieram visitar eles trouxeram o calor, fazendo a neve da semana anterior desaparecer e facilitando nossos passeios, apesar do vento intenso e das eventuais temperaturas negativas. Foi bom ter sua companhia aqui, poder mostrar-lhes nossa casa, nossa vida, nossa rotina. Isso parece ter tornado mais concreto o fato de morarmos aqui. Não são férias. Não vamos voltar e mostrar as fotos da viagem.

Aproveitei o fato de que as crianças estavam o dia todo na escola e os levei para passear, para conhecer a cidade que eu mesma não conhecia ainda, concentrada que andava na rotina da casa e na adaptação das crianças. 

Nós saímos algumas vezes para comer, e outras ficamos em casa, e adorei cozinhar para todos nós a nossa comidinha de sempre, como AQUELA SOPA DE ABÓBORA SIMPLES E DELICIOSA, que meus filhos amam e o marido que não gosta de abóbora aprendeu a comer. Sempre a preparei com abóbora japonesa, mas desta vez foi com a Butternut Squash.

Falando em abóboras, demorei o Outono inteiro para mergulhar nelas, ainda tirando proveito da variedade de legumes e verduras que desapareceriam durante o inverno. A Spaghetti Squash foi um sucesso com todo mundo menos com Laura, que andava numa fase meio do contra desde que eu voltara do Brasil (ela ficou brava porque não a levei junto). É de se amar muito uma abóbora que, depois de assada, desfia-se assim como spaghetti, firminho e delicioso. Coisa linda, imaginei logo simplesmente misturá-la a um molho alho e óleo, mas resolvi seguir os planos com a receita do blog Sprouted Kitchen, Lasagna Style Spaghetti Squash. Eu não tinha carne ou espinafre, mas tinha o molho de tomate que sobrara da pizza dos dias anteriores e um bocado de queijo. Thomas pede para comprar essa abóbora de novo toda vez que a avista no mercado.



Essa falta de variedade de verduras no inverno não é sentida por todo mundo não. Assim como no Brasil, os supermercados tendem a se abastecer de comida do mundo inteiro. Então se o verão acabou e Ontario não produz mais blueberries, não entre em pânico: temos mirtilos chilenos por apenas o dobro do preço e metade do sabor. Via de regra, tenho comprado minhas frutas e verduras no mercado orgânico. E como sigo sempre a regra de só comprar comida importada que venha do mesmo hemisfério (mesma estação do ano) em que estou, isso acaba naturalmente limitando as escolhas. Pouca coisa tenho conseguido que seja produzida no Canadá: quase tudo raízes, tubérculos e maçãs. Nenhum problema, tem sido interessante descobrir o que fazer com nabos (sopa francesa deliciosa de nabos e batatas), rutabagas (funciona em qualquer receita de batata), pastinacas, raízes de aipo, diferentes tipos de batata e todas as cores de beterrabas e cenouras. Toda semana o mercado coloca em promoção uma saca diferente de maçãs, e toda semana temos mais 1,5kg de maçãs pra comer. Havia peras de Washington que já sumiram, caquis espanhóis, marmelos italianos e romãs americanas. Bananas são a única exceção que faço, pois são produzidas o ano inteiro e precisam necessariamente vir de algum país tropical. Quem me salva muito é a Califórnia (oi, titia!). Querida Califórnia ensolarada que nos provê de muitos tipos diferentes de couves:  curly kale, cavolo nero, purple kale, collard greens... E couve é algo que tenho sempre, sempre, de dois a quatro pés, e eu saio rasgando e colocando em tudo, em saladas, em sopas, no macarrão... Mas meu jeito favorito de comê-las é mesmo numa torrada.


Assim, couve picada, com cabinho e tudo, refogadinha no alho só até amolecer. Polvilho de queijo, desligo a frigideira e tampo, deixando o queijo derreter com o calor ali dentro da panela. Transfiro tudo isso para cima de um pão integral torrado e com uma passadela de tahini, polviho de gergelim e sou feliz. Naquele dia da foto usei tomates pretos, locais, orgânicos, mas de estufa, que são sempre os olhos da cara, mas que estavam em promoção, e minha saudade de tomate não me deixou passá-los.

O hábito da torrada com legumes de almoço tem tornado minha vida infinitamente mais simples. Não preciso cozinhar nada complexo para mim e isso resolve quando tudo o que sobrou do jantar foi meia xícara de legumes, ou uma única concha de sopa. É fácil adaptar essa sobra para uma torrada. Eu almoço leve, continuo o dia me sentindo produtiva, não aumento minha cintura e não tenho trabalho extra.

Esta da foto embaixo, complementada por alface romana de onde? de onde? da Califórnia, claro, tinha tahini por baixo, o purê de cenoura do jantar, queijo feta e sementes de abóbora. Esse purê de cenoura foi uma revelação: sempre via nas competições de culinária o pessoal se dando mal por conta de purê de cenoura ralo e granuloso, e confesso que fiquei com medo de tentar.

Mas eu havia comprado um belo Artic Char em promoção (já deu pra notar que só compro no mercado orgânico aquilo que está em promoção, certo?), um peixe de águas geladas, que parece salmão, cozinha-se como salmão, mas é bem mais suave e menos fishy. Sem saber o que fazer com ele, acabei me guiando pelos legumes que tinha: adivinha! cenoura e beterraba. A receita da Suzanne Goin, do livro Sunday Suppers at Lucques, que quase vendi um punhado de vezes mas acabei trazendo comigo, grelhava um filé de Snapper (Vermelho) e servia com beterrabas ao gengibre e purê de cenoura. E eu tinha TODOS os ingredientes na despensa, até a harissa para o peixe. Quão raro é isso?

Tanto as beterrabas quando o purê ficam sensacionais. O prato todo, com o peixe, ficou absolutamente delicioso... não fosse o fato de ter ficado todo meio rosa-cor-de-laranja. A única coisa que esqueci de comprar foi a rúcula, e ela traria verde e contraste ao prato. Com o peixe de carne branca deve ficar lindo. Mas não havia luz que fizesse o meu prato ficar apetitoso na foto. Então desisti. Mas deixo aqui a receita. O peixe fica picante, as beterrabas refrescantes e o purê de cenoura adocicado e incrivelmente cremoso, graças  a uma dose cavalar de azeite para emulsionar tudo. Mas como eu sou a primeira a colocar meio tablete de manteiga dentro do purê de batatas, não me senti nem um pouco incomodada. Bota todo o azeite sem dó. É uma delícia.



PEIXE APIMENTADO, COM BETERRABAS AO GENGIBRE E PURÊ DE CENOURA
(adaptado do livro Sunday Suppers at Lucques, de Suzzane Goin)
rendimento: 6 pessoas

Ingredientes:
  • 6 filés de peixe, com pele, de cerca de 150-180g cada
  • harissa (ela pede 3/4 xic de pasta de harissa feita em casa, mas usei o tempero seco, e foi no olho, tipo pitadas, apenas o suficiente para temperar, para não matar de pimenta a boca dos meus filhos.)
  • cerca de 10 beterrabas pequeninas
  • azeite de oliva
  • 2 colh. (sopa) cebola picada bem fininha
  • 1/2 (chá) alho picado bem fininho
  • 2 colh. (chá) gengibre ralado
  • 1/4 xic hortelã fresca picada
  • 1/4 xic coentro fresco picado
  • 2 colh (chá) suco de limão
  •  1 maço pequeno de rúcula
  • 1/2 limão
  • sal e pimenta
(purê de cenoura)
  • 900g cenoura, descascada e cortada em rodelas de 0,5cm
  • Um punhado cheio de talos de coentro + 1/4 xic. das folhas
  • 3/4 xic azeite de oliva
  • 1 xic. cebola picada
  • sal e pimenta

Preparo:
  1. Esfregue a harissa e um fio de azeite nos filés de peixe, cubra e refrigere por pelo menos 4 horas. 

(beterrabas)
  1. Pré-aqueça o forno a 205oC. Corte os talos das beterrabas, deixando 1cm deles ainda agarrados às beterrabas (guarde as folhas para outra receita, se houver). Limpe-as bem, misture a 2 colh,(sopa) de azeite  e 1 colh (chá) de sal. Coloque numa assadeira com um splash de água no fundo, cubra com papel alumínio e asse por 40 minutos, até que estejam macias. Retire do forno, deixe esfriar, arranque as peles, e corte as beterrabas em cunhas. 
  2. Numa tigela, misture a cebola, alho, gengibre, coentro, hortelã, e 6 colh. (sopa) de azeite. Junte as beterrabas, 1/4 colh (chá) de sal, um pouco de pimenta do reino e suco de limão. Experimente e ajuste o tempero.

(Purê de cenoura)
  1. Cozinhe as cenouras e os talos de coentro no vapor por 20 minutos, até que fiquem macias.
  2. Aqueça em fogo alto uma panela de fundo grosso, despeje 1/2 xic. do azeite e então a cebola. Tempere com 2 colh. (chá) sal e 1/4 colh (cha) de pimenta do reino. Cozinhe por 5 minutos, até que a cebola fique translúcida. 
  3. Junte as cenouras, as folhas de coentro, e cozinhe por mais uns 8 minutos, mexendo e raspando o fundo com uma colher de pau, até que as cenouras estejam ligeiramente caramelizadas, com cuidado para não queimar. 
  4. Passe a mistura pelo mixer ou processador até que fique lisa. Com a máquina ligada, despeje devagar o azeite restante, e processe até que esteja incorporado e o purê esteja bem homogêneo.

(peixe)
  1. Aqueça bem uma frigideira grande em fogo alto. Tempere o peixe com sal e pimenta (não muito, pois a harissa já tem os dois) e coloque na frigideira, pele para baixo, cozinhando por 3-4 minutos, sem mexer.Se estiver grudando, é porque a pele ainda não est[a crocante o bastante. Vire o peixe e cozinhe por mais alguns minutos, Não passe do ponto.
  2. Coloque uma colher do purê no centro do prato. Espalhe um pouco de rúcula por cima. Coloque o filé de peixe em cima. Tempere-o com suco de limão e uma colherada das beterrabas ao gengibre por cima e em volta do peixe. 

E então foi chegando o Natal. Enquanto meus pais estavam aqui, eles conseguiram participar da compra da árvore e da colocação dos enfeites. E assim que eles foram embora, o calor se foi e começou a nevar outra vez. Uma neve forte e intensa, que deixou tudo muito branco por muito tempo, e as crianças ficaram empolgadas em ter um Natal com neve. 

De repente, os biscoitos, os pães, os assados, as frutas secas, tudo fez sentido. Ao olhar do lado de fora da janela e perceber que no meio daquele mundo monocromático e dormente, apenas o verde dos pinheiros, evergreens, surgia, você entende o por que de trazer para dentro de casa um símbolo de que nem tudo morreu e aquele não é o fim. São as únicas árvores com folhas, onde os pássaros encontram proteção, e é só aproximar-se de um deles para ouvi-los cantar, em bandos imensos. Fiquei pensando nas crenças pagãs, no mundo antigo lidando com o inverno. 

Na vida moderna, no entanto, o Natal é igual em qualquer lugar do mundo. As decorações, o consumo desenfreado, o frenesi dos presentes, das festas de fim de ano de empresa, os amigos secretos, as promoções nas lojas, os papais-noéis fajutos de shopping centers, o lanche comunitário da pré-escola, a apresentação de música do primeiro ano, o trânsito louco de feriado, a pressão psicológica para a produção de momentos perfeitos e memoráveis.

Verdade verdadeira, eu estava exausta demais para aproveitar qualquer coisa do Natal.

Quando meus pais foram embora, me senti na obrigação de voltar à rotina e aos meus rituais, para não sentir tanto o baque da saudade. Meus pequenos rituais importantes que me trazem conforto. Como voltar da escola de manhã e tomar meu Chai e meu iogurte com frutas antes de começar qualquer outra atividade.

Maçã ralada, pedaços de pera, iogurte, linhaça, sementes de abóbora e mel.

Quando eu achava que retomaria a rotina normal da casa para me preparar para o fim do ano, veio o frio e a neve de uma vez por todas, de verdade agora, trazendo toda uma série de novidades com as quais me adaptar. 

  1. Não, não dá para confiar nas crianças. Elas saem sem luvas, sem fleece, botam tênis no lugar da bota de neve e regata embaixo do casaco. Tem que ficar monitorando cada peça de roupa que eles vestem. E tem um montão de peças. E tem que ver se eles voltaram da escola com todas elas. Thomas perdeu 2 gorros e um par de luvas na primeira semana (e enquanto escrevo isso descubro que mais um par de luvas se foi para o buraco negro do lost and found da escola).
  2. Neve tem diferentes texturas. Quando acaba de cair, é fofa, faz barulho de polvilho quando pisada, e te dá a sensação de andar em areia branquinha de praia. Depois de um tempo já acomodada, ela fica com cara de açúcar de confeiteiro, e conforme vai compactando, vai virando uma enorme pedra de gelo que escorrega pra chuchu. Conforme ela derrete nas calçadas por causa do sal, ela pode congelar de novo numa película de gelo que é como azulejo de cozinha ensaboado, ou formar uma lama com cara de raspadinha derretendo, que é bem como andar na lama mesmo: seu pé gira e desliza para fora a cada pisada. Ou seja, depois de um dia andando nisso tudo, você descobre dor em músculos que não sabia que tinha.
  3. Frio cansa. Seu corpo gasta muita energia para te manter quente. Quando você tem que esperar 30 minutos em pé do lado de fora entre a saída da escola da filha mais nova e a do filho mais velho, acrescido do tempo que eles querem gastar brincando na neve depois da aula, não há pilha que dure.
  4. Tudo demora o dobro quando tem neve. Seja porque você acaba andando mais devagar, seja porque você tem que ficar berrando pros seus filhos pararem de brincar com a neve ou eles chegarão atrasados à escola.
  5. Criança parece meio daltônica pra neve: você fala pra ela brincar só com a neve branquinha do parque, mas ela insiste em se jogar na neve cinzenta da beira da calçada, no slush preto do asfalto, e até na neve amarela, que você deve bem saber do que se trata. É virar os olhos e tá lá seu filho lambendo o poste gelado. É uma atrás da outra.
  6. Fim de ano é fim de ano em qualquer lugar do mundo, e se no Brasil eu já não conseguia mais relaxar para o Natal com as crianças de férias, verão, aquilo tudo, aqui que as aulas vão até dia 23 de dezembro, com evento na escola à noite, um milhão de reuniões com professores, meus dois dias de voluntariado na escola, lição de casa, cachorro, lanche comunitário de um, passeio de outro, preparação para receber a sogra, tudo regado a neve e slush e criançada tão cansada e histérica quanto você... simplesmente não sobrou muito espírito natalino dentro de mim.
Eu só queria férias.

Então não me coloquei muita pressão a respeito das comidas do Natal. Assim como ano passado, fui fazendo conforme dava vontade. Então saíram os Spekulatius de sempre na primeira semana de dezembro, como todo ano. As crianças se divertiram tanto cortando os biscoitos que decidi que só faria cut-out cookies. Eles pediram Gingerbread Men, então fui atrás de boas referências de receita: e a Deb, do Smitten Kitchen, recomendava muito bem os da Martha Stewart. E, de fato, a recomendação vale. Um dos MELHORES GINGERBREAD MEN que já fiz e comi, senão o melhor. Também fiquei com receio da quantidade astronômica de especiarias, mas a verdade é que elas tornam o biscoito realmente especial. Quando, na semana seguinte, fiz o Gingerbread finlandês da Tessa Kiros, eles empalideceram em comparação aos da Martha. Mesmo já tendo passado o Natal, recomendo. Você sempre pode fazer como eu fazia: assava gingerbread em formatos não-natalinos em julho e agosto, no inverno brasileiro, quando as especiarias faziam mais sentido para o meu paladar.
 

Dona Martha, na verdade, tem sido grande companheira nesse inverno. A única revista de culinária que guardei e trouxe durante todo esse processo de mudança foi uma Food Everyday - Holiday Baking edition, da titia Martha. Ao contrário de muitos livros de cozinha que eu tive na vida, eu realmente queria cozinhar TUDO daquela mini revistinha, e tudo o que eu já fizera ficara muito bom. Dele preparei Chocolate Shortbreads no dia do evento de Natal da escola. Tendo horário para sair, as crianças pedindo para experimentar o biscoito ainda esfriando na grade, não tive dúvida: coloquei a forma quente na varanda e contei cinco minutos. Estava -12oC lá fora, mais frio que meu freezer, e rapidinho os biscoitos ficaram frios para serem cortados. Só fiquei de olho para não ser assaltada por uma gaivota passante.

Também preparei o Applesauce Cake da revista. Com aquela infinidade de maçãs consumidas, eu tinha miolos de fruta para um galão de geleia. Mas nunca tendo preparado tanta geleia de uma vez, ela não pegou o ponto, e ficou meio molengona. Usei as duas xícaras restantes da geleia molinha no lugar do applesauce e obtive um bolo muito muito fofo e gostoso. Lembrando que Applesauce nada mais é que purê de maçã.



Outro bolo muito, muito, MUITO bom foi o Fresh Ginger Cake. Foi difícil achar um melado saboroso como o do Brasil, pois os daqui quase todos têm gosto de queimado e textura de graxa. Esse é um bolo que não vejo a hora de fazer de novo. Ele é muito fácil e deveria ter crescido lindamente, não fosse o fato de eu ter ficado no papo com a minha irmã pelo Skype e o forno ter aquecido além da conta. Mesmo afundando, o bolo ficou fantástico. :D

Para a ceia a ideia era manter simples e sazonal, e Allex teve a ideia de irmos ao St. Lawrence Market, o "Mercadão" de Toronto, e comprar uma carne já preparada de um dos lindos açougues por lá. Compramos Peameal Bacon feito com açúcar mascavo e um outro, cru, para tentarmos fazer outro dia. Esse segundo, que achei que ficou mais gostoso, foi regado com uma calda de Maple Syrup, mostarda de Dijon  e alecrim, um glaze que deve ficar delicioso no tender brasileiro. Batatas e rutabagas assadas para acompanhar e couves de bruxelas braseadas que, estavam tão fresquinhas que passaram do ponto mais rápido do que a receita previa. Ficaram muito moles, mas ficaram bem gostosas.

Coisas gostosas compradas no St Lawrence Market
Peameal bacon, brussel sprouts, roasted potatoes and rutabagas amd apple sauce.
Depois que o natal passou, preparei o panforte da Alice Medrich, empolgada por finalmente ter um forno que assa as coisas a temperaturas menores que 180oC, ao contrário do meu forno no Brasil. Também dei pulinhos de alegria por uma coisa muito besta: o papel-manteiga daqui DE FATO não gruda. Não precisei correr atrás de papel-arroz para forra a forma do panforte. Segui a receita, usando o papel-manteiga untado, e ele desgrudou sem a menor dificuldade. Às vezes não sei como posso ser uma pessoa tão complicada, se coisas tão simples me deixam tão feliz. Vai entender.

O tempo todo em que minha sogra esteve aqui a temperatura despencou. Quando chegou a -20oC, ficamos cautelosos, mas o frio (e meu marido ansioso em aproveitar as férias) não nos impediu de sair. Fomos ver o lago congelado, fazer trilha com snow shoes, descer morros de trenó e andar no parque. Quando chegou a -30oC, no entanto... Alguém tinha que passear o cachorro. E lá fui eu, apenas olhinhos de fora. Não precisa sequer ventar. O ar é tão gelado que sua primeira respiração do lado de fora faz seu nariz congelar e grudar por dentro. Você olha para aquele céu azul sem nuvem nenhuma e não acredita que está tão frio. Tão frio que as nuvens não se formam. Qualquer pele exposta simplesmente dói. Enrolei meu cachecol em volta do rosto até cobrir o nariz, puxei o zíper do casaco até o alto (ele cobre minha boca) e acomodei o capuz com peles o mais por cima da testa que pude. E saí. Lá fora, não se via ninguém que não PRECISASSE estar lá. No parque, meia dúzia de cães e seus donos passeavam, os cães felizes e contentes, afundando na neve e brincando com galhos, os donos encolhidos, mãos segurando copos fumegantes de café em canecas térmicas. Nos parabenizávamos com o olhar por sermos tão bravos e intrépidos, enfrentando o frio por nossos amigos peludos. O frio é assim: parou, congelou. Enquanto Gnocchi e eu nos movêssemos, estávamos bem. Andávamos, pés afundando na neve, silêncio absoluto à nossa volta, nenhum animal selvagem, nenhum passarinho à vista. Depois de uns dez minutos caminhando, eu finalmente sentia minhas mãos quentes outra vez. Pois roupa térmica tem disso: ela não esquenta, ela só mantém o calor. Se seu corpo está frio, ele continuará frio. Precisei começar a gerar calor no corpo para que as luvas cumprissem seu papel e mantivessem aquele calor ali dentro. Enquanto isso, minha respiração quente condensava na lã do cachecol e nos pelos do capuz, e imediatamente congelava, criando minúsculas estalactites penduradas em frente aos meus olhos.


Foi uma experiência e tanto.

E quando, no dia seguinte à partida de minha sogra, a temperatura voltou a ZERO graus, parecia verão. Sensação gostosa no rosto, cabeça sem gorro, casaco meio aberto, calça jeans sem calça térmica por baixo. Referência é tudo na vida. Aquele dia de sensação de -17oC que descrevi em outro post, do vento como apanhar com um bacalhau congelado? Nada. Tranquilo. Sossegado. Passou. Nos próximos dias a temperatura deve despencar de novo, mas agora já sei no que estou me metendo.



Há um mês atrás, tive uma conversa rápida de porta de escola com a mãe croata de uma colega da Laura. E ela me disse: só sofre no inverno quem fica dentro de casa. E isso é verdade. Não se pode ter medo do frio. Conheço gente que ficou o recesso de natal inteirinho trancafiado dentro de casa, com medo daqueles -20oC. Você tem que dar a cara a bater para aquele bacalhau congelado, se agasalhar DIREITO, com ROUPAS APROPRIADAS, e ir brincar na neve. Porque uma das coisas mais legais daqui, é que adulto tem permissão para brincar. A gente o morro de trenó com filho ou sem filho, faz boneco de neve, se mete no meio do mato, cutuca o gelo do lago com galho, faz castelo de areia na praia cheia de neve. Depois que você pega a manha da parte chata do inverno, que é o slush, que é o cansaço, que é o tira-e-põe infinito de bota e casaco e a sujeirada que invade invariavelmente sua casa - e depois que dá uma relaxada com a porcariada que as crianças fazem com neve suja e poça preta - o inverno é tão divertido quanto o verão. Só requer cuidados específicos.

No último dia com neve, antes da temperatura subir e o gelo começar a derreter, fui buscar as crianças com o trenó debaixo do braço e uma caneca térmica cheia de Chai fumegante. Laura brincou com os colegas nos morrinhos da escola enquanto esperávamos Thomas, e assim que ele saiu, fomos ao parque mais próximo para brincar. Fazia 0 graus. Começou a chover leve. Ficamos ainda uma hora debaixo da chuva, rolando blocos imensos de gelo morro abaixo. Havia mais duas ou três famílias fazendo o mesmo. Vendo a pimpolhada se divertir enquanto eu me aquecia sob a chuva com minha bebida quentinha, senti que havia passado no teste de admissão canadense.

No dia seguinte, o que encontrei na escola foi o que parecia um pátio imenso coberto por raspadinha de limão derretida. :P Esperemos pela próxima neve, que eu e minha caneca térmica estamos prontas.


 




terça-feira, 17 de outubro de 2017

Um post imenso para o mês de Setembro e reaprendendo a cozinhar e ser


Almoço solitário: Salada de abobrinha amarela, rabanetes, alface romana, ovo cozido e pão de centeio, com azeite, limão e cebolinha. Iogurte com mel e frutas de sobremesa.

Na segunda-feira após meu aniversário, acordei decidida a não me deixar mais abater pelas pequenas coisas. Talvez por ter conhecido outros imigrantes brasileiros passando por apuros bem mais significativos, o que sempre coloca seus problemas em perspectiva; ou talvez por efeito daquele ótimo artigo, "The subtle art of not giving a f*ck", de Mark Mason.  Finalmente me senti pronta para "stop distributing f*cks everywhere".

A manhã fora como todas as outras, mas diferente. Acordamos no mesmo horário, fizemos as mesmas coisas. Andei com as crianças até a escola como sempre. Esperei que entrassem e saí para dar conta dos afazeres e pepinos a resolver.

Andei vinte minutos para norte até o mercado orgânico, buscando bons tomates em lata, creme de leite de verdade, e grãos e castanhas a granel. Voltei com duas sacolas da Ikea cheias de boa comida, sentindo o peso delas machucar um pouco as dobras dos dedos. Parei por um instante naquela avenida residencial, endireitei os ombros, respirei fundo e olhei em volta. O céu estava de um azul de Maio, e pensar nisso foi imediatamente estranho. Esta referência perder-se-ia com o tempo, e meu céu de Maio estava fadado a se tornar um céu de Outubro. Os dezoito graus vinham mornos com o sol das onze e meia, e o vento agradável levava meus cabelos soltos e pilhas de folhas alaranjadas, avermelhadas, amareladas, em espirais pela rua a se chocarem contra os carros estacionados. Eu ouvia o som do trânsito na rua de trás quase abafado pelo cantar insistente de dois ou três pássaros. Nesses dois meses tive como meta tentar conhecer os passarinhos da cidade, com saudades do meu Bem-te-vi, e pesquisei cantos e cores e bicos e penas, até descobrir os nomes dos meus cantores cotidianos. Eu sabia que aqueles cantos breves e em coro caótico vinham do Finch, esse pardalzinho que aqui anda em enormes bandos, e não solitário como no Brasil. Aquele outro distante era de uma gaivota que pairava acima dos prédios no fim do quarteirão. E o último, meu favorito, era do Blue Jay, pássaro símbolo da província.

Fora no primeiro dia de escola das crianças, na mesma semana em que nos mudamos para este apartamento, que ouvi o Blue Jay pela primeira vez. Thomas achara que aquele canto muito alto e metálico fosse de um gavião. Laura, de uma gaivota. Eu olhava para cima, buscando nos galhos o emissor do canto, e me dando conta da impossibilidade de se encontrar algo cuja aparência você não conhece. Um passante se aproximou, percebendo nossa curiosidade, e explicou: esse canto é do Blue Jay.

Todas as manhãs, no caminhar para a escola e de volta, ouvíamos o Blue Jay cantar. As crianças gritavam seu nome para os galhos altos, na esperança de que ele respondesse ao chamado; mas ele, que é tido como um pássaro tão cara-de-pau, tinha decidido esconder-se de nós.

Um dos passarinhos que consegui avistar, o White-breasted Nuthatch
E foi assim durante todo o mês de Setembro. Eu me agarrava à possibilidade de enxergar o pássaro em meio à folhagem, como quem espera um sinal de bom agouro. Às vezes outros passarinhos surgiam para me animar, lindos, interessantes, de cantos bonitos. Mas o Blue Jay continuava a brincar com meus sentimentos.

E meus sentimentos não estavam para brincadeira.

O mês de Agosto se fora, aquele mês de aventura, de exploração, de férias de verão, de piqueniques e parquinhos, de brincar na água, de imaginar como seria quando tivéssemos nosso próprio lar. Depois de tanto tempo de incertezas, de malas pelo caminho, de nos sentirmos deslocados e desconfortáveis, parecia óbvio que depositássemos toda a nossa futura paz de espírito no novo apartamento. Em nossas mentes, ter um espaço nosso seria ter de volta nossa rotina, nossa vida, nosso conforto.

Contudo, não é isso o que acontece quando você muda permanentemente para um país novo com meia dúzia de malas e duas crianças. Com Allex trabalhando desde o primeiro dia em Toronto, a mudança do AirBnb para o apartamento novo foi no mínimo atabalhoada, com direito a sair da Ikea em horário de fechamento, com Allex levando no carro os três colchões e lençóis de que precisávamos para dormir àquela noite e eu voltando com as crianças de metrô às dez da noite, pois não cabíamos junto no carro e o Uber não nos aceitaria sem os booster-seats das crianças. Foi bom acordarmos em nosso próprio apartamento, mas logo percebemos que sem cabides ou uma mesa onde comer, continuávamos vivendo num eterno acampamento.

Tentamos manter tudo simples e comprar apenas conforme a necessidade fosse aparecendo, o que parecia e é de fato mais sensato se você não quer correr o risco de viver entulhado de tralhas outra vez. Acredite, o processo de expurgar tudo o que havia em nossa casa no Brasil foi traumático a ponto de eu proibir meu marido, que é doido por eletrônicos, de ter qualquer cabo em casa que não esteja conectado a alguma coisa. Desafiei-me a analisar as coisas com calma e não sair simplesmente comprando de novo tudo o que tinha no Brasil. Eram já dois meses sem batedeira, sem liquidificador, sem processador, sem computador, sem televisão. A casa tinha uma mesa com bancos e um sofá. Nossas coisas pequenas couberam todas nos armários embutidos, então a sensação era de muito espaço livre.

Uma amiga, vendo o tour pelo celular, comentou: "nossa! parece uma casa sueca! super minimalista!" Ao que eu suspirei e respondi com uma sinceridade acachapante: "Minimalismo é uma m*rda."

Ela riu, e eu expliquei: é lindo o espaço vazio, os tons neutros, e funciona super bem no Pinterest; mas sem as MINHAS coisas desordenando esse exceço de ordem, eu me sinto perpetuamente morando num quarto de hotel. Depois de um dia inteiro de perrengue, voltar para "casa" não trazia aquele conforto emocional que se esperava.

Além dessa dificuldade de reconhecer o espaço como lar, havia a ainda constante ausência da rotina invisível. Lembra dela? Pule uns três posts para trás e você vai entender do que estou falando. 

As coisas estavam todas em armários, mas ninguém sabia onde nada estava. Alguém ligava, e eu me dava conta de que eu não tinha uma Bic e um Post-it para anotar o recado. Todo dia faltava alguma coisa em casa que todo ser humano tem sempre em casa mas a gente não tinha.  Você passa o dia andando 9km indo a diversos lugares diferentes para tentar resolver o mesmo problema, e ao fechar a porta atrás de si, descobre que continua entrando na sala feito uma barata tonta, SEM TER ONDE APOIAR A BOLSA. E quando larga a bolsa no chão e apanha dentro dela o item que finalmente encontrou depois de toda aquela maratona, descobre que veio faltando uma peça e que você vai ter que ir lá onde Judas perdeu as botas no dia seguinte de novo para trocar o maldito. E isso se repete uma, duas, cinco, sete vezes.

Cometemos muitos erros. Os banais, os imbecis, aqueles por falta de atenção, por cansaço, por falta de conhecimento, e isso nos faz sentir incapazes boa parte do tempo.
Algumas coisas que vieram comigo e me trazem conforto: minha panela, o pano de pão, minhas facas, meu pilãozinho italiano.
E não é apenas a rotina invisível que se demora para entrar nos eixos: a própria rotina principal da casa, aquela que acreditávamos que teríamos de volta uma vez que nos mudássemos e todas as roupas estivessem nos cabides... essa foi a bolha ilusória mais difícil de romper. No Brasil, tínhamos uma rotina matinal muito gostosa. Pelo fato de Allex trabalhar perto de casa, ter horário flexível e a escola ser a cinco minutos de carro. Eu não sabia como estava confortável nos nossos hábitos e horários até vê-los modificados em sua integralidade. Agora Allex trabalha longe e entra mais cedo na empresa. As crianças entram mais tarde, em horários diferentes, e saem só bem depois do almoço, também em horários diferentes. Com tudo ainda meio atrapalhado de manhã, nunca consigo tirar as crianças de casa no mesmo horário. A escola fica a dez minutos a pé, mas cada dia as crianças vão numa velocidade, e às vezes me pego irritada porque estamos nos atrasando, e  quando deixo que eles venham em seu ritmo, enfrento toda uma birra porque o sinal tocou e eles não tiveram tempo de brincar no pátio antes de entrar na sala de aula. Quando vou buscá-los, eles nunca querem vir direto para casa. Brincam no parque até o fim da tarde, e eu vou ficando aflita, sabendo que ainda vai demorar uma hora para fazer o jantar, e eu não quero que eles durmam tarde porque acordamos às 5h30 na manhã seguinte, e quando voltamos para casa, é banho, jantar e cama, tudo na correria, e quase que não dá tempo de fazer a lição de casa do Thomas, que no primeiro ano, é simplesmente ler um livrinho de história escolhido pela professora.

O cachorro ainda não está aqui, então uma vez que todos foram para o trabalho e para a escola, eu fico completamente sozinha. Não desgosto disso, sou meio eremita mesmo, mas não ficava tanto tempo sozinha assim desde antes das crianças nascerem, desde antes de adotarmos o Gnocchi.

Quando parece que conseguiremos ter um dia de calma e começar a estabelecer uma rotina, calha que precisamos sair correndo de novo para ir a Ikea comprar o sofá e o beliche das crianças, procurar um aspirador de pó em promoção na Canadian Tire ou correr atrás de documentação. Foi um mês intenso em que, se não nos sentíamos em casa, era porque não conseguíamos parar tempo suficiente dentro dela para observar essa transformação do espaço.



Não me leve a mal. Quando de fato conseguimos parar tudo e passearmos, foi maravilhoso. Ir ao parque, à praia do lago, colher maçãs. Momentos tão bons que compensaram toda a ansiedade dos outros dias. Um suspiro relaxado, um oásis na ventania, nos dando a certeza de estarmos no lugar certo.



Com certeza foi uma vitória pessoal e fonte de alegria usar as maçãs colhidas para produzir essa torta, sem medidores, sem balança, sem receita, só sentindo a textura, tendo uma vaga ideia de quanta farinha eu havia posto na tigela ou quantas maçãs eu precisava para preencher a torta. O resultado me deu a sensação de poder conquistar o mundo, e fiquei com a sensação de que minhas avós teriam ficado orgulhosas. :)

Mas no fim do dia você volta à sua casa com cara de quarto de hotel vazio, e não reconhecer as coisas à sua volta, não entender os códigos sociais ou as coisas mais simples, como onde eu me registro para receber minha conta de luz, são o bastante para fazer você se sentir a deriva, tentando se manter de pé no convés de um barco em plena tempestade, sem ter onde se segurar. Sua mente e seu coração ficam frágeis, e você se pega de olhos marejados e coração apertado por coisas que em outras épocas teriam sido banais.

Mas além de se deixar perturbar pelas pequenas coisas, por todos os erros cometidos, todos os tropeços, todas as pequenas dificuldades, Setembro foi um mês de muita preocupação. Quero buscar meu cachorro. Minha passagem fora comprada com antecedência, pois você precisa reservar o espaço do cachorro no avião e marcar no Vigiagro a produção do documento de viagem. Tudo muito bem calculadinho e planejado. Chegando aqui, descobrimos que precisamos esperar o recebimento de nosso PR Card, o Green Card canadense, para poder sair do país. Sem esse documento, você não pode entrar de volta. E é claro, o prazo para receber o documento ultrapassa a data da viagem. Remarco tudo. Duas vezes. Um baita perrengue. A companhia aérea erra o dia do cachorro. Tenho que reorganizar tudo, e Allex, que vai perder dia de trabalho para ficar com as crianças, se lasca mais ainda. No meio do caminho, descobrimos que a imigração ainda tem o endereço do AirBnb, e o site do governo não reconhece nossa identificação para que consigamos atualizar o endereço. Esperas telefônicas de 45 minutos para falar com a imigração. Emails sem resposta. A data da viagem chegando de novo e eu sem saber se um turista qualquer vai receber na casa antiga os documentos mais importantes de nossas vidas. Tento falar com a hostess do AirBnb mas sou ignorada. Cogito a possibilidade de ir todos os dias à casa velha fuçar na correspondência, mas sei que isso é crime.

Eu quero meu cachorro.

No fim das contas, a tensão causada pelas semanas sem resolução do problema do PR Card e da viagem foram fazendo com que os pequenos perrengues normais da adaptação a um novo país mudassem de proporção. Tudo parecia infinitamente mais difícil. Eu me sentia o tempo todo burra, incompetente, perdida e, principalmente, sozinha. Cantou Fred Mercury: I´m naked and I´m far from home. Quando minha tia me disse que eu choraria muito na banheira depois de imigrar, achei que fosse exagero. Não era não. Aquela sena ridícula de chorar no metrô por trás dos óculos escuros, porque o consulado estava fechado no único dia em que você podia ir lá aquela semana, aconteceu. E a constatação triste de que eu não corria o risco de encontrar ninguém conhecido no caminho que me visse chorando pirou tudo.

Busquei refúgio na cozinha. Preparar minha comida parecia a receita ideal para voltar a estabelecer uma rotina e encontrar um porto seguro em meio à tempestade.

A primeira surpresa é, depois de quinze anos levando meus temperos de uma casa para a outra, é difícil improvisar naturalmente uma refeição quando você não têm seus molhos e especiarias favoritos à mão. Fiz um esforço para lembrar dos essenciais e novamente não cair na pegadinha de sair estocando coisas que eu não usaria com frequência.

A segunda surpresa é que eu de fato gostava dos meus eletrodomésticos: como é frustrante querer transformar a couve num pesto e não ter um processador, como é irritante querer fazer uma vitamina de manhã e não ter um liquidificador. Rapidamente as crianças começaram a perguntar quando eu faria waffles ou sorvete, e eu percebi que ter a batedeira realmente me ajudava a produzir tantos pães por semana lá no Brasil.

Mas eu não queria gastar dinheiro e queria provar para mim mesma que podia ter uma vida simples sem tralhas. Certo?

Hmmm....

Outra coisa que entrou no caminho da rotina na cozinha foi essa novidade de ter de preparar o almoço da escola e o do Allex. As crianças têm dois momentos de snack e o almoço. Mas elas não podem levar NADA com castanhas por questões de alergias. É lei. Parece estúpido, uma vez que as crianças também são proibidas de dividir o lanche com o colega. E isso logo me aborrece. Eu adoro castanhas. Thomas ama nozes e amêndoas, e frequentemente levava um punhado delas para lanche da escola. Dois terços das minhas receitas de biscoito levam alguma espécie de castanha. Acabo ficando mais irritada com isso do que deveria, e mais um pouco pelo fato de não conseguir me organizar o bastante para dar conta dos almoços. Allex tem microondas no escritório. As crianças não: se a refeição veio fria, ela é comida fria mesmo. As crianças comem pratos frios, como rice noodles, saladas e sanduíches frios no almoço sem o menor problema, foram acostumadas assim quando almoçavam comigo. Allex, por sua vez, detesta comer almoço frio. Então tenho de pensar em refeições sem castanhas, que possam ser comidas frias ou requentadas, que se mantenham bem na térmica ou requentem bem no microondas sem virar uma gosma, que não fermentem dentro da térmica, que não vaze, que seja apetitoso e que sustente todo mundo até o jantar. Mas que também seja natural. E tenho que montar tudo, com dois lanchinhos diferentes, nutritivos e fáceis de comer, às 6 da manhã todo dia, enquanto preparo também o café da manhã, mando criança escovar dente e botar a roupa.

O engraçado é que foi tanto tempo sem rotina de verdade, que minha sensação é der apagado completamente da memória o meu jeito de fazer as coisas, de cozinhar, de me organizar. Estou reaprendendo tudo de novo. E claro que, num momento em que você busca familiaridade e conforto, encarar mudanças e reaprendizagem termina de puxar seu tapete.

Sentia-me sem nenhum norte, sem saber onde me apoiar e sem saber para onde ir a partir de então. Setembro foi um mês difícil.

Num momento mais crítico, converso com duas grandes amigas, separadamente, e não consigo disfarçar a exaustão na voz. Divido com elas meus perrengues, minhas frustrações, minha ansiedade. Uma delas, muito sensata, tendo passado pela mesma experiência dois anos antes, diz, quando pergunto se ela já se sente em casa num país estrangeiro: "você precisa saber o que está buscando, para saber se as suas decisões estão aproximando você desse objetivo ou afastando; se você muda de país sem saber o que você quer disso, você só mudou o cenário."

Ficou dolorosamente claro que eu andava buscando nas árvores um pássaro cuja cor eu não sabia.

E então, esta outra amiga exasperou-se com um outro relato meu, dizendo que eu fora atrás de qualidade de vida, e que não fazia o menor sentido tomar decisões que tivessem o resultado oposto.Você está tornando tudo mais difícil para você, e não há nenhuma necessidade disso, ela disse. Tentando fazer mais do que se pode, tentando provar um ponto sabe-se lá para quem - se um processador vai facilitar sua vida e melhorar seu humor em casa, vai lá e compre o processador de uma vez, foi pra isso que você vendeu suas coisas, para poder recomprar o que fosse importante. 

Ter isso no freezer com certeza me remete ao lar.
E as duas, uma depois da outra, disseram que era preciso se perdoar por todas as burradas e pés metidos pelas mãos que havíamos cometido e ainda cometeríamos, e, sem dúvida, nessa situação em que quase todas as nossas referências são jogadas para o alto, buscar sim algum conforto que seja familiar. Admitir cansaço, e apenas descansar.

Aqueles conselhos ressoaram durante dias na minha mente, mas foi preciso todo um episódio específico de excesso de preocupação com coisas estúpidas, gasto desnecessário de tempo e energia, e obtenção de resultados medíocres, para que as palavras se arraigassem em meu cérebro e eu de fato entendesse que aquele recomeço não significava apenas uma mudança de endereço, mas a oportunidade de parar de cometer os mesmos erros de sempre.

Foi doloroso como um tijolo baiano no pé ler, àquela noite, o artigo de Mason, e encontrar uma frase mais ou menos como"se você se importa com muitas coisas pequenas, talvez você não tenha algo realmente significativo com o que se importar".

Com o que eu me importo, então?

O que eu quero?


EU QUERO UMA VIDA TRANQUILA. Repeti isso à exaustão nesse blog nos últimos anos, e sempre me surpreendo quando percebo que esqueci o que quero. Eu quero uma vida tranquila.

Começo a desenhar em linhas suaves na minha mente o que uma vida tranquila representa para mim. E me dou conta de que já tenho todo o desenho completo realizado. Só preciso respirar fundo e parar de puxar meu próprio tapete. Simplesmente aceitar as mudanças que vieram e tornar minha vida tranquila dentro dessa nova rotina contra a qual eu parecia estar lutando. Parar de dar importância ao que parece diferente e difícil, e simplesmente "don't give a f*ck anymore". Dar importância com mais parcimônia.

Respiro fundo, e naquela segunda-feira, decido que quero minha vida tranquila AGORA. Não só depois que tudo estiver resolvido. O PR Card não chegou a a viagem é em cinco dias? Fazer o quê? Eu tenho até 24 horas para alterar a data outra vez, e nada mais está nas minhas mãos. Logo, me preocupar com isso é inútil.

Acordo cedo sem pensar se estou cansada ou não, sem pensar se dormi mal ou não. Allex, que levanta cinco minutos antes, traz um cappuccino quentinho para mim. Dou-me conta de que ele tem feito isso todos os dias há já mais de uma semana, e ver o primeiro hábito instaurado na nossa nova rotina me faz sorrir. Acordo cedo pensando que terei muito tempo para fazer várias coisas até o horário de sair para a escola. Para garantir que não haverá mais correria atradasada no meio da rua, coloco um despertador no celular para a hora limite de nossa saída, ainda dando tempo de as crianças brincarem antes da aula.


 Deixo as crianças ajudarem como podem e como querem durante o café. Enquanto elas comem e fazem uma dose mínima de sujeira com a geleia sem que eu esteja olhando (e se eu não estiver olhando, eu não me irrito), preparo o almoço de todos, dando prioridade para o do Allex, que sai mais cedo. Minha linha de produção de marmitas vai funcionando bem, e Allex pega sua marmita pronta, dá-me um beijo e sai, e as crianças vêm ver o que há para comer e fecham as tampas e guardam tudo em suas respectivas lancheiras. Deixo que brinquem enquanto faço um pouco de exercício. Só um pouco. Não precisa ser um treino inteiro. Um exerciciozinho só para lembrar meu corpo de como ele funciona. Visto-me com calma, coloco maquiagem, e enquanto as crianças colocam a roupa que lhes dá na telha, sento-me para aí sim comer uma fatia de pão, pois nunca tenho fome às 5h30 da manhã. Quando saímos, saímos sem pressa. As crianças entenderam que chegando cedo, têm mais tempo de brincar antes da aula, e deixo que decidam por elas e arquem com as próprias consequências. Basta dizer que não terão tempo de brincar para que saiam correndo vinte metros à frente em direção à escola.

Eu fora então ao mercado de orgânicos decidida a comprar a MINHA comida, com todas as naturebices a que eu tinha direito. Passara dois meses de adaptações e frustrações, com a ideia fixa de que era prudente economizar em tudo, sem exceções. Mas o mercado barato tem um sortimento limitado, e muita coisa que vem dos Estados Unidos é mais lixo do aquilo que eu já considerava porcaria no Brasil. Não encontrar bom tomate em lata sem bizarrices dentro, por besta que soe, havia me deixado deprimida por dias. É um problema estúpido. Mas comida é uma parte muito importante da minha vida, e eu havia vindo para cá acreditando que encontraria variedade e produtos de qualidade. EU ME IMPORTO COM COMIDA. E só estou me importando com outras coisas idiotas, por não estar respeitando aquilo que é de fato importante para mim.

E no mercado de orgânicos encontrei meu tomate em lata. E meus legumes, e bacon de porco feliz, e as nozes e castanhas que, apesar de não poder botar no almoço das crianças, eu posso botar no meu. E comprei snacks, bolachas de arroz, chips de banana da terra, cenouras baby coloridas, para facilitar de manhã cedo o preparo dos almoços, e passei na Staples para comprar canetas e um bloco colorido de post-it, para voltar a criar a lista de ingredientes da despensa e a lista de refeições da semana, que sempre foi a melhor coisa do mundo para me organizar. E sim, até catei minha carteira e comprei meu processador, pois não poder fazer um pesto de brócolis ou transformar as sobras do arroz em bolinhos, ou transformar o pão amanhecido em farinha de rosca, andava quebrando minha cabeça e tornando minha rotina na cozinha consideravelmente mais difícil. Minha amiga tinha razão, e ela ficou felicíssima quando mandei a foto do processador desembalado.
Almoço solitário: pão sourdough torrado com uma colherada de tahini, cavolo nero refogado em alho, tomates e queijo feta esmigalhado.
É bom ter gente próxima que bota a gente nos eixos quando começamos a tropeçar por aí. Mesmo que esteja cada uma de um lado do mundo. Essas duas mulheres fortes que me fazem pensar mais devagar, olhar as coisas com outros olhos e simplesmente don´t give a f*ck. Relaxar. Tirar o peso dos ombros.

Almoço solitário: bolinhos de arroz e lentilha com tomates heirloom, pepinos, abacate, alface, cebola roxa e uma colher gorda de iogurte.
E naquele dia de Outubro, voltando do mercado, olhei em volta, para a luz do sol passando através das folhas das inúmeras árvores de Maple plantadas na cidade, e percebi que pela primeira vez desde que cheguei aqui, estava me sentindo em casa, que meu dia estava sendo tranquilo, e que eu estava feliz. Estava fazendo aquele caminho pela enésima vez sem pensar, reconhecendo as casas, o cheiro das plantas, até mesmo o Pepe, o esquilo preto com a ponta do rabo branca, que está sempre no meu quarteirão, e que me faz lembrar da gatinha do desenho do Pepe Le Pew.

A consciência daquela sensação encheu meu peito de uma alegria quente. E porque às vezes a vida é poética assim, quando ouvi o canto do Blue Jay e levantei os olhos para procurá-lo, avistei aquele pássaro grande como um Bem-te-vi, azul, azul como nunca imaginei, cantando empoleirado no galho acima de minha cabeça.

A partir daquele dia o aperto no coração e a ansiedade se foram. As coisas começaram a parecer mais naturais e os contratempos, menos ameaçadores. A casa começou a ficar com cara de casa, os dias começaram a ficar mais parecidos. Entro em casa, tiro os sapatos, penduro minha bolsa no armário. Tenho um lugar para jogar as chaves. Faço um chá, sento no sofá, abro um livro. I´m finally home. 

Depois daquele dia, tive a primeira noite bem dormida em terras canadenses. Dois bons dias depois, meu cartão de residente permanente chegou, me dando a certeza de que agora posso fazer a viagem para buscar o Gnocchi e tornar nossa mudança completa.

Setembro foi um mês difícil mas necessário.

                                                                                   ....... 



Outubro é o mês em que fiz 38 anos, em que meu marido cumpriu sua promessa, feita há dois anos, de comemorarmos esse aniversário comendo hambúrguer em Toronto, e foi a primeira vez em que meus filhos de fato se lembraram sozinhos de que eu fazia anos. O bolo foi o de sempre, de chocolate da Alice Medrich com a cobertura de sempre, uma camada só, simples, que eu deixei as crianças lambuzarem de cobertura e cobrirem de velinhas coloridas. Passei o dia ouvindo Thomas cantando Happy Birthday To You. 
 

Tivesse mantido tudo o tempo todo simples como aquele bolo e essas receitas, talvez não tivesse me estressado tanto. É claro que me encantei com a variedade de couves, de abobrinhas, a possibilidade de comprar porco orgânico e salmão selvagem. Mas no fim o melhor a se fazer é se manter naquilo que é familiar e confortável. Por isso, todas as sextas-feiras tenho feito A PIZZA RETANGULAR. Depois de três semanas, todos já chegam em casa sabendo que sexta tem pizza, e isso é muito bom. Rotina, sabe? ;) Primeiro apenas mozzarella, depois com gorgonzola, e então comecei a usar outros toppings, distribuídos junto com o queijo, como o que sobrou da linguiça de ontem, pimentões fatiados, brócolis cozidos, couve, o que houver. 


Não dá para esquecer nunca da torta de liquidificador da minha mãe, que eu faço numa tigela com um fouet: quase não sobrou para levar de almoço no dia seguinte, e já sei que vale a pena fazer uma simplesmente com esse fim. 

Esse era de framboesa e chocolate. :)
Engraçado que no Brasil as crianças não pareciam ligar muito para muffins, mas aqui eles andam absolutamente entusiasmados, e preparar muffins de qualquer coisa que seja é fácil e prático para o lanche das crianças. Busquei na internet uma receita básica que eu pudesse alterar como quisesse, pois tinha apenas duas tigelas, farinha, ovos, manteiga leite e açúcar, e encontrei ESTA AQUI da Martha Stewart que fica deliciosa. Buttermilk no lugar de leite e uma pitada extra de bicarbonato os deixaram ainda melhores, e eu tenho brincado loucamente com a receita, fazendo-os com framboesas e chocolate, trocando o açúcar por mascavo e carregando a mão nas especiarias, usando sementes e frutas diversas, sempre com sucesso. Depois de prontos e frios, coloco-os num saco no freezer e tiro só os necessários para o lanche do dia seguinte. Eles descongelam durante a noite e parecem fresquinhos na hora do lanche. 

Outra descoberta do reino da simplicidade foi ESSE BOLO DE BANANA do The Kitchn. Ao procurar banana bread no blog, fiquei besta ao descobrir que não tinha nenhuma receita simples como eu queria. E a da Tessa Kiros que eu tinha no livro eu trouxe, apesar de simples, usava a batedeira que eu não tinha. Esta receita foi uma deliciosa surpresa. É perfeita e as crianças fizeram sozinha. Fica úmido, macio, compacto, com aquela casquinha brilhante e resistente à mordida de bolos da infância. 

Kedgeree de cenoura e couve-flor da Bela Gil, com coentro e amêndoas por cima. Amêndoas só no meu, que as crianças não podem levar na escola.

Tenho usado muito como inspiração o site Green Kitchen Stories, e até voltando a algumas receitas da Bela Gil. (O kedgeree de cenoura e couve-flor, que eu fiz com arroz branco orgânico, ficou um desbunde, as crianças levaram de almoço e rasparam o pote.) A ideia de simplesmente ter vários grãos e leguminosas cozidos e prontos para usar e apenas combinar isso com um punhado de vegetais e folhas, uma colher de iogurte, um queijo ou um ovo, tem facilitado a montagem dos almoços.  Sem contar que tirar a carne da jogada facilita e barateia as compras. Nisso, lembrando da época sem filhos em que eu almoçava sozinha, tenho voltado aos meus almoços leves de saladas, bruschetta ou uma sopa simples. Isso aliado ao fato de andar TANTO por aí me fez perder TODO o peso extra adquirido nos meses anteriores à viagem. 
 
Batatas previamente cozidas, pimentões, tomates, cebolas, alho e alecrim assados em azeite até caramelizarem. Juntei ervilhas congeladas apenas para cozinharem no calor do forno, queijo feta que aqueceu deliciosamente, polvilhado de salsinha picada e acompanhado de fatias de pão desse lindo pão de centeio marmorizado da padaria.

Uma das saídas mais brilhantes que tenho usado do Green Kitchen é isso de simplesmente jogar a refeição toda numa assadeira. SE você não sabe o que fazer de jantar, jogue os legumes na assadeira com azeite e temperos básicos e asse até dourarem. Jogue folhas por cima, e frutas, e queijos e o que houver, e você tem uma refeição. Achou que é pouco? Uma fatia de pão completa. Ou uma fruta de sobremesa. Ou uma salada. Enfim. No-brainer.

Uma adaptação da sopa de grão de bico e repolho da Marcella Hazan.
Voltar a fazer minhas listas nos post-its na geladeira foi maravilhoso. Uso tudo o que tenho em casa, preparo tudo o que posso com antecedência no fim de semana ou na segunda, e vou apenas finalizando ou montando durante a semana. Tenho feito cada receita em porções gigantes, para sobrar para o dia seguinte ou poder congelar. Sempre que preparo um molho de tomates, preparo o dobro. Sempre que cozinho feijões, cozinho tudo. Vai tudo congelado e eu tenho refeições emergenciais para as semanas subsequentes. Tenho no meu freezer no momento:
  • cenouras picadas
  • salsão picado
  • ervilhas congeladas
  • massa folhada
  • sopa de grão de bico e repolho
  • grão de bico cozido
  • feijão preto cozido
  • arroz branco cozido
  • molho de tomate
  • guanciale
  • miolos de maçã para fazer geleia
  • aparas de legumes para fazer caldo
  • bolinhos de arroz e lentilha para irem direto para o forno
  • cozido marroquino de berinjela

 Estou mantendo sempre um estoque mínimo de opções de snack que não precisem de preparo:
  • chips de mandioca ou de banana da terra (que no momento estou comprando mas depois vou começar a fazer)
  • diferentes tipos de bolhacha de arroz (aqui você encontra uns que vem com trigo sarraceno, com quinoa, com cevada...)
  • cenouras baby orgânicas (eles adoram as coloridas)
  • tomates cereja
  • frutas para serem levadas inteiras (as crianças estão pirando na variedade enorme de maçãs que há aqui)
  • pepinos
  • pimentões
  • queijos


Vida tranquila também quer dizer acordar tarde de sábado e comer panquecas com maple de almoço. Também quer dizer jantar pipoca na terça-feira. Também quer dizer muito spaghetti caccio e peppe e fusilli com molho de tomate. Também quer dizer não fazer pão e ir até a padaria do bairro, onde você compra pão do dia anterior pela metade do preço.

Agora só falta o Gnocchi aqui para me acompanhar nas idas ao mercado e nos passeios de metrô. 

Não vejo a hora de por minhas mãos naquele cãozinho peludo delícia que me espera. ^_^




 



sexta-feira, 26 de maio de 2017

Apfelstrudel de aniversário e taturanas

Eu tinha tirado uma foto linda, com chantilly do lado. Mas ela sumiu. Fué.
Começou no início do mês, quando, após alguns pequenos grandes estresses (ou como canta KT Tunstall, "...my miniature disasters and minor catastrophes..."), ganhei de presente uma gripe querendo virar sinusite, um torcicolo de três dias que não passava nem com o tipo de remédio forte que tenho medo de tomar, e uma série de noites insones por nenhum motivo além do excesso de diálogos inventados em minha cabeça.

Meus músculos e minha vias aéreas só começaram a retornar ao estado natural quando consegui acalmar a mente um pouco e silenciar algumas daquelas vozes. Digo algumas, pois outras tantas ainda me mantêm acordada vez ou outra ou no mínimo me provocam sonhos suficientemente intensos para me fazer acordar cansada.

Santa meditação que me ajuda um bocado.

Santo marido que escuta toda a minha incessante verborragia, pacientemente, e me acalma, me apoia, me ajuda a quebrar correntes e me libertar do que não me permite crescer. Como a música do Paul McCartney

Mas quando eu achava que voltaria a dormir tranquila, foi a vez do Thomas voltar da escola com um febrão de 39,5oC que durou três dias. E um tosse-tosse-tosse ininterrupto. E dor de ouvido. Corre para levar ao médico, porque, da última vez, ele demorou para reclamar do ouvido e a infecção quase lhe perfurou o tímpano. Dá-lhe remédios, noites checando temperatura, dias faltados na escola.

Mencionei que fiquei cuidando do pimpolho com um talho aberto na ponta do dedão, cortado pela lâmina do processador que estava na gaveta?

Pois é. Vai vendo.

No primeiro dia em que Thomas melhorou... Laura teve febre. E lá vamos nós outra vez. Noites de cof-cof-cof, termômetros, narizes entupidos.

Na tarde em que tudo parecia ok, ninguém reclamando muito, mas ainda todo mundo meio borocoxô e entupido, resolvi aproveitar o dia bonito para ir lá fora arrancar as folhas mortas da cúrcuma. Vou juntando tudo num canto, e vejo umas outras folhas da couve-de-bruxelas, todas comidas de bicho, e resolvo arrancá-las também. Sinto algo no dedinho, como o arranhar de um espinho. Recolho rápido a mão e termino de jogar fora as folhas.

Só quando termino o serviço é que a queimação começa a vir. Meus dedos começaram a inchar e se avermelhar e pareciam pegar fogo.

"Me queimei numa taturana...", anunciei à família. 

Não qualquer taturana. Vou descrever só pelo prazer tétrico de causar aflição a outras pessoas... É uma filha da mãe cor-de-laranja peluda com cara de pomponzinho fofo, não maior que um moranguinho, e que calha de ser uma das mais tóxicas que há. Meus dedos queimavam por fora como se os tivesse pelado em água fervente, e corria uma dor no meio dos ossos e nas articulações até meu ombro, como se esmagassem meu braço num torno mecânico.

Nunca senti dor igual. Ela causava enjoos. Não conseguia parar de chorar.

"Putz, Ana, isso demora umas doze horas pra passar", proferiu Allex, pesquisando rapidamente o que fazer naquele caso. Nem consegui responder. Ele apanhou um pote grande na cozinha, virou uma garrafa de água gelada da geladeira, e enfiou minha mão lá dentro. Então me deu o Tylenol mais potente que tínhamos em casa, o mesmo que eu tomara depois de arrancar os dois dentes do siso no mesmo dia, e um copo de Bourbon. E me fez companhia, me mostrando coisas estúpidas da internet para me fazer rir.  E cuidou das crianças, das tosses, dos termômetros, dos narizes escorrendo.

Quando fui dormir, dois Tylenol 750mg e 3 doses de Bourbon depois, a dor no braço diminuíra e se concentrara na mão. Os dedos inchavam muito ainda, a água gelada já não fazia mais efeito, e eu sentia agulhas espetando os dois dedos queimados.

"Está melhor?", perguntou Allex.
"Melhor que antes, mas caramba! Nem aquela vez que eu fiz uma pururuca na minha mão no grill do forno doeu desse jeito! Consegue imaginar o que acontece com um passarinho que tente comer esse bicho?"
"Passarinhos são mais espertos que a gente. Eles sabem que não podem encostar em taturanas."
"Humm... E se fosse uma joaninha? Uma joaninha caindo em cima de uma taturana?"
"Acho que ela fritaria, coitada."
"Essa taturana é a raquete elétrica da natureza."

Eu mencionei as três doses de Bourbon?

E sim, eu já pururuquei minha mão no grill aceso do forno. Um milésimo de segundo. E o dorso da minha mão tinha uma linha grossa de pele cor de carvão com uma espuma branca por cima. Ainda tenho a cicatriz. Não doeu nada em comparação com o estrago dessa maldita taturana.

No dia seguinte, a dor era como se eu tivesse queimado os dedos no forno. Tolerável, dentro do espectro de machucados de cozinha pelos quais eu já passei na vida. Considerando a pururuca na mão, eu digo.

Enquanto Allex preparava meu cappuccino, lembrei-me de agradecer a ele pela ajuda no dia anterior. E enquanto Thomas se arrumava para ir à escola, ainda meio amuado, Laura conseguiu fechar o próprio dedo na dobradiça da porta.

Que acontece? Sério?
Preciso benzer essa família.

Ainda bem que a cozinha, com todas as suas imprevisibilidades, ainda me parece mais estável do que a bagunça da vida em geral. Quando tudo desanda, eu me enfio na cozinha o dia todo e produzo a maior quantidade de pães e bolos que posso, para sentir que ainda tenho algum controle sobre essa bagunça generalizada. Para ter algum conforto.

No meio desses dias caóticos, foi aniversário do Allex, e todo ano é a mesma coisa.

"Você quer bolo de quê?", pergunto.
"Não gosto de bolo."
Fué.
"Mas eu gosto de Apfelstrudel!", ele diz.
"Eba!!"

Pronto. Apfelstrudel de aniversário. Para esse homem lindo, amor da minha vida, melhor amigo, única pessoa que entende meu senso de humor, que me faz cappuccino italiano todas as manhãs há anos, e ouve todas as vozes cheias de caraminholas da minha cabeça quando estou aflita, que me deu meus filhos fantásticos e cuida tão bem deles, que me deu meu cachorro maravilhoso que é a encarnação do amor na Terra, e que cuida de mim com doses de Bourbon e carinho quando eu queimo minha mão numa taturana altamente tóxica. Allex é minha pessoa. Que me ajuda a ir para frente. E eu tento ser essa pessoa para ele também. Às vezes com sábios conselhos. Às vezes com Apfelstrudel.

Sim.

Essa é AQUELA receita de um milhão de anos atrás, dos primórdios do blog, antes das crianças nascerem. A receita da Oma. Que na época eu me senti mal em publicar porque me parecia uma coisa muito da família do Allex, e da qual eu não queria simplesmente me apropriar depois do falecimento da Oma, que havia sido pela época daquele post.

Trocentos anos depois, meus filhos têm o sobrenome da família alemã, e eu já fiz isso vezes o suficiente para, sim, me apropriar. Fora que eu perguntei e ninguém se importou de eu dividir a receita aqui.

Como toda receita de avó, a original eu achava um pouco imprecisa em alguns aspectos, então já naquela época fui pesquisar para tornar a receita um pouco mais confiável para alguém sem tradição alemã e que nunca fez Apfelstrudel na vida. A Oma costumava esquentar uma tigela e deixar a massa descansando embaixo da tigela quente. Quando descobri que o descanso serve para relaxar o glúten, mas que a massa não deve ressecar de maneira nenhuma, troquei isso por pincelá-la com azeite e embrulhá-la em filme plástico. A massa relaxa e sai super macia e pronta para ser esticada ao máximo. A Oma também abria a massa passando os dedos por baixo dela, como se fizesse cócegas. Mas isso pode mais facilmente produzir buracos. Optei por outra técnica, que usa o dorso das mãos e os antebraços, num movimento que parecem os braços de uma dançarina de dança do ventre. Assim é mais difícil rasgar a massa. Oma usava margarina. Eu uso manteiga. Ela usava óleo. Eu uso azeite. Já testei o recheio com a quantidade dada de açúcar e com metade, e descobri que com metade o recheio tende a vazar menos e você não sente diferença na doçura (já que você descarta o líquido açucarado antes de montar o Apfelstrudel. A receita dizia forno forte por 20 minutos, mas não há meios de um Apfelstrudel sair assado por dentro assim. Pelo menos não no meu forno. Eu tentei. Ele fica cru. Não sei se foi escrito errado ou se, como no caso dos suspiros da minha avó, o forno dela era meio mágico. No meu caso, uso forno moderado por pelo menos 45 minutos.

E voilà. Apfelstrudel.
Começando a abrir com o rolo. Nessa hora, a massa é macia como massa de pão.

Eu costumo abrir com o rolo até começar a ficar transparente.
Eu nunca mais consegui abrir a massa tão grande quanto daquela primeira vez. Mas esse tamanho é já muito bom.
Pedacinhos de manteiga sobre a massa a cada rolada que ela der.
Um dia eu vou ter um forno e uma assadeira onde caiba um Apfelstrudel em linha reta.


APFELSTRUDEL DA OMA (quase nada adaptado; família alemã, não fique brava!)
Rendimento: o bastante para um almoço comemorativo de família alemã de tamanho moderado. No caso dos quatro habitantes dessa casa, durou 3 dias de sobremesas e cafés da manhã, porque Apfelstrudel no café da manhã é MUITO bom. 

Ingredientes:
(massa)
  • 3 1/2 a 4 xíc. farinha de trigo e mais para polvilhar
  • 1 pitada de sal
  • 1 colh. (sopa) vinagre
  • 1 colh (sopa) azeite
  • 1 colh (sopa) manteiga, em temperatura ambiente
  • 1 ovo
  • 1 xíc. água morna
(recheio)
  • 5-6 maçãs grandes (de preferência Gala, mas usei até Fuji orgânica, e sempre fica bom - vale a pena experimentar com maçãs mais ácidas também)
  • 1 xic. uvas passas (claras ou escuras)
  • suco de 1 limão tahiti ou siciliano (você pode colocar um pouco das raspas também)
  • 1 colh (chá) canela em pó
  • 1/2 - 1 xíc açúcar (as duas quantidades funcionam, siga sua preferência)
  • 1 xic. nozes picadas (opcional - eu nunca coloco porque o marido odeia nozes)
  • farinha de rosca para polvilhar 
  • uns 50g de manteiga para distribuir na massa

Preparo:
  1. Numa tigela, misture 3 1/2 xic de farinha ao restante dos ingredientes e misture com um garfo até obter uma massa macia e úmida e que se possa sovar sem que grude nos dedos. Se ainda estiver grudenta, junte o restante da farinha. Sove um pouco dentro da tigela, não como um pão, mas simplesmente amassando até que fique bem lisa e uniforme, mais como você faria à massa do macarrão. 
  2. Amasse para que fique já num formato retangular, pincele com azeite toda a superfície e embrulhe em filme plástico. Deixe descansar em temperatura ambiente por meia hora, enquanto você aquece o forno e prepara o recheio. 
  3. Pré-aqueça o forno a 205oC.
  4. Descasque as maçãs, retire os miolos e fatie fino as frutas. Coloque as fatias numa tigela grande e misture com o suco de limão (raspas também, se quiser), as passas, as nozes, se estiver usando, o açúcar e a canela. Deixe descansando um pouco. (Lembre-se de guardar as cascas e os miolos das maçãs para fazer geleia depois!)
  5. Enquanto isso, estenda uma toalha limpa sobre a mesa e polvilhe com um pouco de farinha de trigo. 
  6. Na hora de abrir a massa, saiba que você NÃO PODE PARAR O PROCESSO. Se a massa secar, você não conseguirá abri-la nem enrolá-la. Desembrulhe a massa, que deve estar macia, lisa, uniforme e úmida, mas sem grudar nada. Coloque no centro da mesa e comece a abrir com o rolo, do centro para fora, mantendo o formato retangular e tentando manter a espessura sempre uniforme por toda a massa. O pulo do gato está aqui: quanto mais você conseguir abrir com o rolo, melhor, pois a massa ficará toda na mesma espessura e você evitará o excesso de bordas grossas, que serão aparadas depois.Polvilhe com bem pouca farinha se necessário, mas se a massa estiver na textura certa, não será preciso.
  7. Quando você estiver conseguindo enxergar um pouco através da massa, e ela estiver com pelo menos uns 50cm, enfarinhe um pouco as mãos e os antebraços e enfie-os embaixo da massa, perto do centro. Comece a mover os braços como uma dançarina, deixando que a massa relaxe o peso sobre seus pulsos e seja esticada quando você afasta um braço do outro. É aflitivo, parece que você vai rasgar a massa, mas faça com delicadeza e confiança. Se rasgar, não tem problema, prossiga para outro pedaço. Só NUNCA tente amassar e começar de novo, isso não dá certo. Aprenda a conviver com os buracos. É como a vida. ;) Vá alternando as áreas da massa, andando em torno da mesa, tentando manter mais ou menos a mesma espessura. Se a massa dobrar em algum pedaço, desdobre e estique para que não grude, tente erguê-la e estendê-la como uma toalha, usando as beiradas da mesa para que o próprio peso da massa ajude a deixá-la no lugar e esticá-la. Quando o centro estiver bem transparente, vá trabalhando as bordas puxando delicadamente. Tem alguns videos que podem ajudar a visualizar o processo: https://www.youtube.com/watch?v=dPlBhVCSPfs e https://www.youtube.com/watch?v=rxkzryG-jUc.
  8. Quando a massa estiver bem transparente (no meu caso, consigo ver perfeitamente a estampa da toalha), pois quanto mais fina, mais crocante fica, apare com uma tesoura de cozinha as bordas que ficaram grossas, tentando manter mais ou menos um formato retangular. Minha mesa tem 70x100cm, para se ter uma ideia mais ou menos do tamanho que ficou minha massa na foto. 
  9. Polvilhe a massa com um punhado de farinha de rosca. 
  10. Apanhe o recheio. Escorra o excesso de líquido que ficou no fundo da tigela. (Não jogue fora - congele junto com as cascas e miolos de maçã e use para fazer aquela geleia.) 
  11. Distribua o recheio sobre 1/3 da área da massa mais próxima de você (e que tiver menos buracos), preservando uns 5-8cm de borda.  Lembre-se que você vai enrolar o strudel no sentido do comprimento. O tamanho do strudel será o lado mais curto. 
  12. Apanhe um dos lados compridos da massa e dobre aqueles 5cm de borda por cima do recheio. Repita do outro lado e depois com a borda do lado mais curto. Pense nas dobras de um envelope, pois é exatamente isso.
  13. Agora, volte para a ponta da mesa, segure a toalha firmemente e erga o bastante para que a ponta do strudel role sobre si mesmo uma vez. Distribua belisquinhos de manteiga sobre a massa, apanhe a toalha e faça rolar sobre si mesmo outra vez. A cada vez que a massa rolar, distribua um pouco de manteiga, até que ela termine de rolar sobre toda a massa sem recheio. 
  14. Com cuidado, pegue o strudel e o acomode sobre uma assadeira, com a borda final da massa virada para baixo, para que não solte. Distribua mais manteiga por cima. SE não couber na assadeira,NÃO CORTE. Dobre, enrole, faça uma ferradura, um caracol, tanto faz, tudo funciona.
  15. Leve ao forno quente por uns 45 minutos, até que esteja moderadamente dourado e sequinho. Não importa o que você faça, a tendência é vazar líquido mesmo. E ele VAI queimar. Ignore. Apenas quando você tirar o Strudel do forno, antes que ele esfrie, use duas espátulas grandes para removê-lo e colocá-lo numa assadeira limpa, pois se esse caramelo queimado esfriar, o Strudel vai ficar grudado. Nas próximas vezes, você pode tentar usar mais farinha de rosca  para absorver o líquido. Mas vazando ou não, fica sempre delicioso. A marca do bom cozimento da massa é se ela se quebrar ao ser cortada. O recheio deve estar úmido mas a massa interna não pode estar molenga e com gosto de farinha - isso quer dizer que ficou cru por dentro.
  16. Você pode polvilhar o Apfelstrudel com açúcar de confeiteiro antes de servir. Pode servir morno, acompanhado de sorvete de baunilha, ou frio, com chantilly batido na hora. Depois que esfriar, mantenha na geladeira. Reaquecido no forno ficar com gosto de fresquinho de novo. 

Acredite: é mais difícil explicar do que fazer. Como você tem que abrir a massa bem rápido para que não seque, você leva tanto tempo para preparar quanto uma torta de maçã comum. A parte chata mesmo é descascar as maçãs. 

Espero que gostem. ;)

Cozinhe isso também!

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