quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Da simplicidade de uma sopa e do surto histérico da quinoa


Uma amiga era dona de um café. Ela usava apenas ingredientes orgânicos e frescos para produzir seus pães de fermentação natural e seus bolos. Bolos de limão, de chocolate, de cenoura. Um dia, uma cliente lhe pergunta se ela não poderia fazer um bolo, assim, mais natural: integral, sem glúten, sem açúcar, sem gordura. Ela respondeu que seus bolos já eram naturais. E que o de banana era feito com farinha integral, se ela fizesse mesmo questão disso. O assunto morreu ali. Ela andava cansada de gente perguntando se não havia pão sem glúten no cardápio, ao mesmo tempo que se revoltavam por ela não vender refrigerante. Cadê minha coca zero? Mas eu quero pão sem glúten e cappuccino sem lactose. Ela sabia que ninguém ali era alérgico, celíaco ou intolerante. Só louco e chato mesmo.

Eu achei divertido experimentar com alternativas vegan ou sem glúten para facilitar minha vida e variar um pouco. Quando acaba o ovo, sei que ainda consigo fazer panquecas usando chia e água. Ou posso fazer meus bolinhos de lentilha usando inhame para dar liga. Quando estou sem farinha de trigo, ainda consigo fazer crêpes para o almoço, ou uma massa de torta, sem ter que encaixar uma ida ao supermercado num dia já suficientemente corrido. Quando todo mundo se refestelou muito de bolo de chocolate numa semana, acho prudente fazer quitutes sem açúcar adicionado na semana seguinte. É prático, é gostoso, mas a neurose para por aí, porque eu adoro fazer um belo lombo de porco com batatas assadas de vez em quando, meu risotto de legumes sempre vira supplì, devidamente frito como se deve, meus filhos adoram quando faço um bom e velho sorvete de chocolate, e eu amo finalizar uma refeição leve com uma fatia de algum queijo forte, no melhor estilo franco-italiano.

Se por um lado de início me encantei com alguns sites ou programas de youtube naturebas, porque adoro descobrir essas alternativas ou pelo simples fato de amar verduras e legumes, por outro, comecei a ficar um bocado incomodada com a abordagem reducionista do que essas pessoas consideram uma "alimentação natural" – apesar de continuar gostando dos sites e programas.

Grosso modo, vejo uma alimentação natural como você prover seu corpo com comida pouco ou nada processada, que tenha sido produzida de modo a gerar a menor quantidade de impacto negativo no seu ambiente e na sua comunidade (o que quer dizer orgânica, biodinâmica, caipira, fair trade, local, etc.). Se é azeite ou óleo de coco, se é cevadinha ou painço, se é abobrinha ou uma galinha criada feliz e saltitante... realmente tanto faz.

Acho que todo mundo que envereda para uma comida natural acaba caindo na boa e velha cestinha de óleo de coco, quinoa, abacate, couve e batata-doce. Mas pare e pense bem: uma pessoa que more na Inglaterra ou na Suécia e pretenda se alimentar quase que exclusivamente desses alimentos, pode estar super bem nutrido e pagando de hippie ambientalista, mas a verdade é que quase todos esses alimentos são produzidos do outro lado do mundo e transportados até seu mercadinho natural gastando um absurdo de combustível e embalagens. Isso não é lá muito natural, vai dizer... ¬_¬

Pare e pense na quinoa. No modo como os pequenos produtores andinos estão perdendo espaço para grandes produções de quinoa para abastecer o resto do mundo com sua fome de "super foods". Procure. Há várias reportagens a respeito.

Quanto óleo de coco um país tropical subdesenvolvido consegue produzir para que todas as novaiorquinas zero-waste possam produzir seu próprio desodorante?

Complicado.

Podemos até mesmo deixar a esfera do mundo natureba. Lembro-me de uma reportagem antiga numa revista Gourmet que mostrava a verdade sobre a produção dos tomates pelados enlatados. Que mesmo que fossem pelados e enlatados na Itália (o que lhes garante o texto: "produzido na Itália"), os tomates na verdade vinham do norte da África e várias outras localidades, em que produtores eram mal pagos pela indústria e trabalhadores eram explorados de formas vergonhosas. Apenas para que o mundo todo possa se sentir virtuoso abrindo uma lata de tomates pelados italianos para produzir seu molho.

Há outros textos ainda que dizem que é impossível abastecer o mundo todo de azeite de oliva extra-virgem, e que por isso a maior parte das marcas de azeite extra-virgem não é sequer virgem e muitas vezes sequer 100% azeite de oliva.

Num mundo ideal em que todas as cidades são abastecidas por um cinturão verde de agricultores responsáveis, nós teríamos uma alimentação natural de produtos nativos e locais. Uma inglesa natureba comeria comida pouco processada usando ingredientes comuns à sua cultura culinária, deixando o ingrediente exótico para uma ocasião especial.

Mas sabemos que isso é impossível. Tendo já visitado cidades brasileiras cercadas por centenas de quilômetros de monoculturas de vegetais destinados a se transformarem exclusivamente em combustível ou produtos alimentícios altamente processados (cana-de-açúcar, milho e soja), sei bem a cara que têm os mercados desses lugares: comida extremamente processada que veio de longe e meia dúzia de frutas e verduras que viajaram mal por tempo demais e longas distâncias, atravessando aquele deserto verde que deveria ser ocupado por agricultura familiar orgânica para abastecer de comida fresca e verdadeira aquela cidadezinha ali no meio.

Mas largando a política um pouco, porque, afinal, eu continuo comprando macarrão italiano e azeite português...

As pessoas parecem ter entrado nessa paranóia de que comida saudável só é saudável se for quinoa com couve e batata-doce, e pior, demonizando ingredientes maravilhosos como o trigo, com todos os seus nutrientes e sua versatilidade, além de sua abundante contribuição para as culturas culinárias do mundo todo.

Peguei um bode particular da onda do sem-glúten depois que li um estudo dizendo que o consumo de macarrão na Itália anda caindo vertiginosamente por conta disso. Se isso não te deixa com raiva, saiba que eu fico furiosa.

Noutro dia meu filho pediu peixe frito. "Eu aaaaaaamo peixe frito." Às vezes ele cisma de forma adorável com algum alimento específico, mesmo nunca tendo provado. O que faz com que ele me peça coisas estranhas como uma sopa de amendoim ou uma panqueca de atum. "Eu aaaaaaamo panqueca de atum."

Mas sendo quem eu sou, não resisti a fazer-lhe essa vontade e comprei peixe fresco. Envolvi os filés cortados ao meio em uma massa de farinha, ovo e cerveja de boa qualidade, como nos famosos Fish & Chips e fritei-os lindamente. Servi com um purê de batatas e ervilhas delicioso. Tudo fresco, tudo orgânico, tudo natural, local e sustentável. Família amou, Thomas ficou contentíssimo, e eu fiquei pensando nisso: olha só, comida boa e de verdade, e sem quinoa, sem couve e sem batata-doce.

Ri silenciosamente dessa constatação.

É tão fácil entrar na neurose que seu prato tem que sempre ter aquela cara de "tigela de quarenta e três ingredientes" (eu adoro tigelas de quarenta e três ingredienres), e que se não tiver linhaça no meio você não está sendo bem nutrido (e eu adoro linhaça)... que eu tenho intercalado a compra de arroz integral e arroz branco simplesmente pelo prazer de me lembrar que peixe frito com purê de batata também é comida de verdade.

Usei uma abóbora inteira, ainda que pequena, para preparar essa sopa, que, como sempre, sendo do livro da Ginette Mathiot, surpreendeu-me por ser tão ridiculamente simples e ao mesmo tempo tão fantasticamente deliciosa. Tanto, que até o marido que continua não gostando de abóbora repetiu.

E veja só. Ela usa um só legume. E é maravilhosamente natural. E saudável, e orgânica, e todos os outros adjetivos que hoje em dia precisamos incorporar ao nosso prato para nos sentirmos bons e virtuosos. E é amanteigada sem ser cheia de manteiga, e saborosa como se tivesse quarenta e três ingredientes, e suave e cremosa e com gosto de comida que você come quando quer um abraço. Para melhorar, ela ainda é francesa. O que nos coloca sempre na posição obrigatória de terminar a refeição com uma fatia de algum queijo forte e um suspiro de satisfação.

SOPA DE ABÓBORA
(Do sempre excelente I Know How to Cook, de Ginette Mathiot)
Tempo de preparo: 30 minutos + 15 de preparo
Rendimento: 6 porções generosas.

Ingredientes:

  • 1,6kg de abóbora (de preferência Kabocha), descascada, sem sementes e cortada em cubos (uma abóbora inteira de cerca de 2kg)
  • 2-4 xic. leite *
  • 2 colh. (sopa) generosas de manteiga
  • sal e pimenta
  • croûtons caseiros (pão amanhecido, cortado em cubos e dourado em azeite e um dente de alho inteiro)


Preparo:

  1. Coloque a abóbora em uma panela grande e cubra com 4-6xic, de água. Leve à fervura, reduza o fogo e cozinhe por 25 minutos sem tampa, até que fique macia. 
  2. Bata num processador ou liquidificador até que fique cremosa. Retorne à panela, junte o leite até obter a consistência que você prefere na sopa, tempere com sal e pimenta e cozinhe por mais 5 minutos.
  3. Coloque a manteiga e os croûtons na sopeira (ou divida entre os pratos), derrame a sopa sobre eles e sirva imediatamente. 
* Observação: eu usei a quantidade menor de água para cozinhar, pois não queria uma sopa líquida demais e achei que seria mais fácil afinar uma sopa grossa na hora de incorporar o leite do que engrossá-la novamente, por razões óbvias. Também acabei não usando todo o leite. 










Cozinhe isso também!

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