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terça-feira, 19 de novembro de 2019

40 anos, 42km, um Dahl, um Frango


Acordei  àquela manhã de quinta-feira ao som de Parabéns A Você, cheiro de cappuccino quentinho e lambidas de cachorro usando chapéu de festa. Levantei um tanto atordoada, pois fora dormir tarde na noite anterior, e, saboreando pequenos goles do meu café, ri da cara do Gnocchi enquanto andava em direção à sala. Eu já sabia que eles tinham aprontado alguma, pois na hora do Boa Noite, Laura sussurrara ao meu ouvido: "Mamãe, amanhã, quando você acordar, fica na cama, tá, não pode levantar se não você vai ver sua surpresa!"

Abençoada inocência infantil.

Mas nem esse aviso me preparou para o que Allex montara na sala. Havia bandeirinhas e balões de látex coloridos por toda a parte onde se lia "Happy 40th Birthday!", e outros balões de hélio variados, incluindo um enorme unicórnio de crina cor-de-rosa (segundo Allex era para ter uma lhama também, mas o moço da loja esqueceu), e outros ainda amarrados com fitas coloridas numa sacola no meio da sala que tinha meu presente: um relógio de corrida, pra eu parar de correr carregando o celular. No aparelho de som, tocava uma playlist especial só de músicas lançadas em 1979. Laura me entregou um caixa inteira de cartões de aniversário que ela fizera durante um mês todo. Thomas pulou em cima de mim e colocou uma enorme coroa de plástico dourado na minha cabeça. "Porque você é a Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa, então precisa de uma coroa!"

Eu ria compulsivamente.

Feliz Quarenta Anos.


Naquela manhã, as crianças foram para a escola normalmente, ainda que àquele dia tivessem uma prova de corrida (para o qual vinham treinando havia dois meses) em um parque distante. Allex tirara dois dias de férias especialmente para meu aniversário e veio logo perguntar, enquanto tomávamos um café com mais calma, só nós dois: "O que você quer fazer no seu aniversário?"

"Correr. Primeiro, correr."

Explicando... Logo ao fim da visita de minha irmã, em Agosto, Allex veio empolgado: "Estou me inscrevendo na Maratona de Toronto, do Scotiabank!"
"Certeza? Você nunca correu mais do que 25km..."
"Ah, mas fiz 25km em trilha, com altimetria. A maratona é reta, asfalto... Acho que rola."
"Ok. Divirta-se."
"Tô inscrevendo você também."
"Mas hein?"
"É, ué. Vamos! A gente faz nossa primeira maratona juntos!"
"Vixe... Hmmm... Será?"
"Você já correu 30km, são só mais doze... hahah... Vai, você consegue!"
"Eita. Tá bom. Quando é?"
"Vinte de outubro."
"P*ta que pariu. Tem dois meses pra treinar, é isso?"
"É. Vai, pronto, já te inscrevi. Aqui ó... camiseta? Tamanho M... feminino... Motivação... Wine and Pasta!"
"Ei!"
"Ué..."
"É. Verdade. Você tá certo. Bora treinar então. Vixe..."

Até o fim das férias escolares continuei correndo como era possível. Às vezes as crianças montavam em suas bicicletas e pedalavam pelas ciclovias à minha frente, parando e olhando para trás para ter certeza de que mamãe ainda estava ali, ou me esperando para atravessar ruas e avenidas. Eles pedalavam e eu corria 10, 12, 16km, dependendo do dia, parando ocasionalmente para brincar um pouco num parquinho ou numa praia.

Em outros dias, quando não queriam sair de bicicleta, acordava mais cedo e ia correr trajetos mais curtos enquanto Allex se arrumava para o trabalho.
Vista para o lago, de uma das trilhas onde gosto de correr.

Mas o treino de verdade só começou quando as aulas voltaram, em Setembro.

Foi um mês atabalhoado. É sempre estranho voltar à rotina da escola, depois de dois meses de férias de verão. Além disso, Laura está agora na primeira série, e os horários dela finalmente são os mesmos dos do Thomas. Voltam as aulas, voltam os eventos escolares. Volta o preparar almoço de todo mundo logo de manhã cedo. Voltam os gostos e desgostos que transforma a montagem do lanche num quebra-cabeça de 5 mil peças. Thomas não gosta de fruta fresca. Laura não gosta de nada "cheesy" (sim, Laura anda se revoltando contra queijo.) Thomas não come comida quente na marmita, Laura não gosta de levar sanduíche. Eu quero esganar todo mundo e mandar comer o que a mamãe preparou e parar de encher os pacová e me arranjar sarna pra coçar. Mas né? A gente faz aquele esforço zen para não matar a prole.

Eu tinha vários projetos envolvendo ilustração e novas exposições engatilhados para Setembro, mas além da adaptação à rotina escolar, as reuniões com professor, a anual caça às roupas de inverno que não cabem mais porque as crianças cresceram dois números de calça e de bota em quatro meses, minha cabeça só pensava em uma coisa... Maratona.

Eu não sou tonta nem nada, e por mais que me jogue loucamente em algumas empreitadas, gosto de pesquisar onde estou me metendo para não me estrepar muito lá na frente. Até então eu vinha correndo muito mais esporadicamente, 5km por dia, dez de vez em quando, e num sábado me dava a louca e eu ia correr vinte e um. Assim, come um donut, sai pra correr, volta três horas depois, pro espanto da família que não sabia das minhas intenções. Ou corre até o centro da cidade, toma uma cerveja na Steam Whistle, a cervejaria que fica em frente à CN Tower, e volta correndo tudo de novo. Manda uma foto da cerveja pro marido, pra ele dar risada e saber quando começar a preparar o almoço.

Decidi que ia tentar fazer mais ou menos direito. Vi videos e li textos sobre maratonistas e ultra-maratonistas, gente de trail running e povo de Iron Man. Lembrei de tudo o que eu fazia na época em que tinha treinador. Peguei os pontos em comum dos treinos e da alimentação e vi como melhor adaptar isso tudo à minha realidade.

E lá fui eu.

Allex achava graça que, se antes meu feed do YouTube só tinha video de comida, agora só tinha video falando sobre fascite plantar e síndrome do trato iliotibial. Quem corre vai entender. ;) O marido, enquanto isso, fazia seus treinos e trocava figurinhas com amigos ultramaratonistas (e quando paro pra pensar, me surpreendo com a quantidade de gente que a gente conhece que corre 70km em montanha...)

Comecei a planejar melhor meus treinos, para ir aumentando as distâncias um pouco por semana. Li em várias fontes que meus treinos longos não poderiam ser maiores que 30% do treino total da semana, então logo me dei conta de que isso de correr meia horinha por dia não ia mais rolar.

Conforme as distâncias aumentavam, percebi que aquela dieta que a nutricionista fizera para mim dez anos antes, quando corria com treinador no Brasil, era insuficiente. Eu andava com fome, e o objetivo não era emagrecer. Era correr bem.
Café da manhã de corrida. Torrada com tahini, banana e mel, pêssego e uvas.
Meu café da manhã mudou muito pouco. Continuei na minha torradinha com cappuccino, mas colocando um pouco mais de frutas no prato. Às sextas-feiras, quando fazia algo entre 18 e 26km, acrescentava mais uma torrada com queijo ao prato. Levava na pochete de corrida sempre duas bananinhas (aquele docinho de banana e açúcar) trazidos do Brasil por minha mãe, pois nunca na vida aquele Gel bizarro de corrida me desceu.
Café de treino longo: Torrada com tahini, banana e mel, torrada com manteiga e queijo, pitaya e uvas. E Cappuccino, claro.

"Você vai ter que mudar o trajeto. A Maratona sai do centro e vem pra esses lados pelo lago, você vai achar chato fazer o mesmo caminho...", avisou Allex.

E por isso saí me enfiando em novas ciclovias e trilhas que me levassem por parques e caminhos que eu nunca percorrera. Descobri pedaços lindos de Toronto, que me fizeram ainda mais grata pela oportunidade de morar aqui.




Os treinos longos são sempre meus favoritos. Lembro de um amigo nosso avisando: "Correr longa distância é mais cabeça do que perna - você tem que se acostumar com a ideia de que vai passar MUITO tempo correndo. É a cabeça que quebra primeiro, o corpo depois." No melhor estilo Dorie, quando estou perto de chegar na distância a que me propus a correr àquele dia (pois acordo e decido assim, de supetão, "Hoje eu vou correr 25km, porque é isso que me deu vontade") saio cantarolando: "Just keep running... Just keep running..."

Correr virou para mim muito mais que um exercício físico, mas um momento completa e unicamente meu, que não serve a mais ninguém a não ser... eu. É meu cuidado comigo. Meu momento de silêncio, de solitude, de botar a cabeça no lugar. Eu corro sorrindo. Assobiando uma música. Parando para olhar o mirante ou procurar um bicho selvagem ao ouvir um farfalhar de folhas ao meu lado na trilha. Correndo, já tive encontros com guaxinins, coelhos, esquilos, chipmunks, cobras, falcões, gaviões, corujas, corvos, garças pretas, uma raposa e dois coiotes. Coisas de Toronto. Há muitos corredores verdes no meio da cidade, e a bicharada simplesmente circula por aí.

Volto pra casa cansada e feliz, cheia de endorfina. O ritual é sempre o mesmo. Ainda suando, sento pra comer meu iogurte com fruta, agora com manteiga de alguma castanha e sementes de cânhamo. Banho, e seguir com a vida normal.
Iogurte natural, pêssegos, manteiga de amêndoa, sementes de cânhamo e mel.
Na hora do almoço, durante a primeira semana inteira de treino segui uma receita de um livro ayurvédico que Allex me dera de presente há muitos anos e que minha irmã trouxera para mim em sua visita. Arroz integral e legumes no vapor temperados com ghee e cúrcuma. Simples demais e muito bom.  Só isso mesmo. Quando os legumes estão prontos, você esquenta o ghee numa panelinha, dissolve um pouco de cúrcuma em pó e derrama isso por sobre os legumes. Nham!
Arroz integral com legumes no vapor e ghee com cúrcuma.
Como isso era bem mais que minha usual torrada com abacate, eu não tinha fome no meio da tarde. Se tivesse, comia uma fruta. Os pêssegos e nectarinas do fim do verão estavam um desbunde!
Dahl de lentilhas e legumes no vapor com ghee, castanhas e coco ralado.
O jantar eram aqueles mesmos legumes no vapor e ghee, polvilhados com castanha de caju picado e coco ralado, e um fenomenal dahl de lentilhas cuja receita deixo aqui. As crianças amaram a refeição, para quem servi também arroz.

DAHL AYURVEDICO TRI-DOSHA
(Do livro You Are What You Eat, Cooking for body, mind and soul, de Sandra Herber-Percy)

Ingredientes:
  • 1 xic. lentilhas (vermelhas, amarelas ou qualquer outro tipo - usei uma mistura da vermelha, preta, marrom e verde)
  • 8 xic. água
  • 2 xic. abóbora ou abobrinha em cubos
  • 1 xic. cenoura fatiada
  • 1/2 colh.(chá) assafétida (se não tiver, use 1/4 cebola pequena bem picadinha, que foi o que fiz. O sabor é ligeiramente diferente e não é uma substituição autêntica, porque há muitos indianos que não usam cebola e alho de jeito nenhum. No entanto, fica delicioso igual.)
  • 2 colh. (sopa) ghee ou óleo vegetal
  • 1 colh. (chá) cúrcuma em pó ou fresca, ralada
  • 1 colh. (chá) suco de limão
  • 1 colh. (chá) sal marinho
  • 1/2 colh (chá) gengibre fresco ralado
  • 2 pimentas verdes, sem sementes, picadas (aqui, vai no gosto, na verdade, e dependendo do tipo de pimenta verde que você encontrar. Comprei uma pimenta verde que era grande e forte, e usei apenas uma e foi o bastante)
  • 1 colh (chá) sementes de mostarda
  • 1 colh. (chá) sementes de cominho
  • 1 colh (sopa) coentro fresco
  • 1 colh (sopa) de coco ralado fresco

Preparo:
  1. Aqueça 1 colh (sopa) do óleo ou ghee numa panela grande. Junte a assafétida, cúrcuma e suco de limão e refogue em fogo baixo por 30 segundos. Junte as lentilhas e refogue por 1-2 minutos.
  2. Junte os legumes, e misture bem por 1-2 minutos.
  3. Junte a água, pimenta, sal e gengibre. Leve à fervura,  cubra, abaixe o fogo e mantenha em fervura branda por 45 minutos, ou até que as lentilhas estejam se desmanchando.
  4. Aqueça o óleo restante em uma frigideira pequena. Junte o cominho e sementes de mostarda e cozinhe até que as sementes de mostarda comecem a pular. Desligue o fogo e adicione o óleo e sementes às lentilhas.
  5. Sirva o Dahl com coentro e coco ralado por cima.  

Variei os legumes durante a semana, usando também berinjela e brócolis e temperando o ghee não só com cúrcuma, mas também com um pouco de gengibre fresco picado. Castanhas por cima e tudo cobrindo arroz.
Arroz integral, berinjela e brócolis no vapor, com castanhas e gengibre.
Noutro dia, já sem arroz, fiz novamente aquelas mesmas berinjelas, mas sobre soba, e temperado também com um nada de shoyu e folhas de coentro.

Soba com berinjelas no vapor.
Essas primeiras semanas comendo mais leve me deram um gás para de fato engatar os treinos. Pela primeira vez desde o nascimento do Thomas, eu estava correndo consistentemente e melhorando. Eu me sentia bem, forte e motivada. Junto dos treinos de força de kettlebell para evitar lesões, comecei a ver meu corpo reagir bem àquela nova rotina.

E lá estava eu, no meu aniversário, a 17 dias da maratona, querendo sair para correr.

Chovia leve. O dia estava feio. Allex saiu para correr comigo, mas não sem antes apanhar dois chapéus de festa e colocá-los em nossa cabeça.

"Você acha que eu vou sair assim?"
"Vai. É seu aniversário."

E lá fomos nós correr na chuva de chapéuzinho colorido.

Foram os 12km mais engraçados da minha vida. Todo canadense que passava por nós desejava Happy Birhtday! Caminhões buzinavam. Velhinhas riam da nossa cara. E nós ríamos de volta. Foi sensacional.

Saímos para almoçar só nós dois depois disso, e então fomos buscar as crianças na escola. Depois de algum descanso, saímos para comer uma pizza numa das poucas pizzarias da cidade que usam forno à lenha. Apesar de estar caindo de sono, foi um bocado divertido. Principalmente porque a família toda usava chapeuzinhos coloridos e eu, claro, fui a louca andando por aí de coroa dourada na cabeça. "Vocês foram ao Medieval Times?", perguntou a garçonete, servindo-me meu segundo Spritz da noite. "Não", respondeu Allex, "É o aniversário de 40 anos dela e a gente tá fazendo ela passar vergonha." Por conta disso, ganhamos sorvete de chocolate com uma vela de aniversário em cima. ;)

Na manhã seguinte, com crianças na escola e Allex ainda de férias, arrastei o marido para o treino longo. O dia estava lindo e ensolarado. Subimos o rio Humber e eu ria apontando para ele todos os locais que haviam usado como cenário na série Handmaid's Tale. Achava engraçadíssimo que os personagens quisessem fugir para Toronto mas já estivessem aqui. (Explico: Toronto e Vancouver são cidades canadenses amplamente usadas pela indústria cinematográfica americana para fingir que são Nova York ou outras cidades americanas, pois elas se parecem muito e são mais baratas.)


Paramos sobre uma ponte abaixo da ferrovia para comer uma bananinha e voltamos. Nos separamos num certo ponto, pois ele queria voltar logo para casa indo por cima, e eu queria fazer todo o trajeto de volta pela margem do lago. Ele correu 21km, eu queria fazer 30.

Sozinha, descendo à margem do rio, ri novamente da minha sorte com bichos. Aproximei-me do rio ao ver um acumulado de gente batendo fotos, quando me dou conta do que está acontecendo: a piracema do salmão. Lá iam os salmões imensos rio acima, se debatendo nos ares, cheios de convicção e coragem, tentando infinitas vezes ultrapassar a pequena queda d'agua que os separava de seu objetivo.


Quando o primeiro deles conseguiu, dei um gritinho de alegria com braços para o ar e continuei a correr. Se o salmão consegue subir aquele rio, eu vou conseguir correr minha maratona. Just keep running! Just keep running!

Na última semana antes da prova, minha sogra veio visitar. Consegui correr uma ou duas vezes, mas no restante do tempo simplesmente passeamos. As crianças faltaram dois dias na escola para que pudéssemos ir até Algonquin Park, pois lá o Outono já chegara oficialmente e as árvores estavam todas coloridas. Alugamos um chalezinho simples perto do parque, à beira de um lago, e fomos passear pelo parque imenso, lindo, inteiro dourado e vermelho.


Passávamos o dia fora, em trilhas pelo parque. Capas de chuva protegendo do tempo ruim mas que não desanimou nossos espíritos. Eu ia na frente com o cão e com Thomas, que ia "Kilian-Jornando" * todo o caminho íngreme de pedra e lama. Mais tarde eu me inspiraria nessa visão do meu filho correndo a trilha sem medo, mas estou me adiantando.

*Procure vídeos do Kilian Jornet, se não sabe quem é, e vai entender do que estou falando.

O último local a que fomos antes de voltarmos a Toronto foi à pedra mais antiga do mundo. É um morro rochoso cuja datação de carbono é tão antiga que o local inteiro parece ter sido importado de Marte.


Foi uma viagem curta mais deliciosa. Não há nada que eu goste mais do que me enfiar no mato, principalmente com minha família.
De volta a Toronto, as primeiras árvores a ficarem vermelhinhas.
No dia da Maratona, minha sogra ficou com as crianças. O outono começara a dar as caras também em Toronto, e estava frio. Fazia oito anos que eu não participava de uma prova de rua, sendo a última a Meia-maratona do Rio, que eu corri sem saber que estava grávida de Thomas. Fiquei impressionada com a participação popular durante toda a prova. Muita gente por todo o trajeto carregava cartazes engraçados, como "You payed to do this!", "It seems like a huge effort just for a banana!", "Pain is only the french word for bread!", "You think your legs hurt, my arms are killing me!" "You already ran 40km, I can't run even 1", "There's beer at the end!", "The faster you run, the sooner you're drunk!"e tantos outros. Havia grupos de música tocando e dançando em vários pontos do caminho. Crianças distribuindo pretzels e bananas para os corredores com suas mães. Gente fantasiada torcendo e soltando bolhas de sabão. A energia toda da prova era muito boa, e me lembrou da sensação de participar da São Silvestre, há tantos anos atrás.
Preparando para a largada em Downtown.
Allex se machucou no quilômetro 21, e por um instante fiquei triste, achando que ele abandonaria a prova. Mas logo se recompôs e me alcançou e por algum tempo corremos juntos outra vez até ele me dizer para ir no meu ritmo, que ele iria mais devagar. E assim fui. Assobiando, sorrindo, feliz.

Quando cheguei ao quilômetro 32, conhecido como o "paredão", eu estava me sentindo ótima, o que me empolgou ainda mais. O problema desses últimos dez quilômetros, é que eles consistiam de loooooongas retas em áreas industriais, feias e sem sombra. O frio fora embora, e os dezoito graus ao meio dia começavam a cobrar pedágio. O calor (sim, 18oC é quente) sob minha camiseta preta incomodava. E aquelas retas eram infinitas. Você via os quilômetros passando e não via a curva de retorno. A cabeça começava a pirar, pensando que tudo o que a gente ia, teríamos de voltar.

Foi no quilômetro 37 que a pilha começou a acabar. Meus quadris doíam. Meus joelhos doíam (Olá, iliotibial!). Meu abdome doía. Lembrava dos videos de corrida, treinadores avisando: "você vai cansar de simplesmente passar tanto tempo em pé".

Comecei a desacelerar. Então pensei em Allex: "o negócio é não pensar nos 42. Pensar que são só dez. E dez é um treino de terça-feira. Cinco K é uma volta no parque. Você consegue dar uma volta no parque."

Eu consigo dar uma volta no parque. É só uma volta no parque. São só 5k.

Não parei de correr. A reta industrial acabou e subi um viaduto de volta a Downtown. As ruas se fechavam por entre prédios altos novamente. Eu ouvia de longe gente torcendo. Eu ouvia o narrador da corrida falando, empolgado, o nome de quem terminava. Meu sorriso se abriu largo de felicidade e de repente havia força para aqueles últimos dois quilômetros. Acelerei. Acelerei mais. Fiz a curva para a praça da prefeitura, e ali estava a multidão torcendo atrás das barricadas vermelhas, a linha de chegada, e todo mundo gritava e aplaudia como se me conhecesse. Meus olhos se encheram de lágrimas. Energia tão boa. Ouvir aquela voz no microfone dizendo meu nome quando cruzei a linha dos 42km foi uma das coisas mais fantásticas da minha vida. Felicidade plena.

Foi perfeito.

Foram 4 horas e 48 minutos correndo sem parar. Muito longe de ser um tempo impressionante. Mas foi o bastante para mim. Eu fiz. Eu terminei. Eu queria muito, fui lá e fiz. Quarenta quilômetros para comemorar meus quarenta anos. E mais dois de lambuja.

Allex terminou depois de mim.

Voltamos, exaustos, pernas duras, medalha pesada no peito, de metrô para casa. Ríamos. Meu deus do céu, como tinha sido difícil! Mas como era legal! Vixe, imagina povo que faz 50? E 100? Nossa, não rola. 42 acho que já foi o bastante.

A cerveja e o macarrão em casa eram divinos. Eu me sentia bem.

Passado o cansaço, que perdurou por alguns dias, não sobrou nenhuma lesão. Sobrou a surpresa de me dar conta de que meu abdome e meus braços doíam mais que as pernas.

Fazer uma maratona foi como parir. Tanto tempo de preparo, chegou a hora, acelera, acelera, parece que não vai, eita, que maravilha!, terminou, você conseguiu. Também é como parir porque depois que passa o efeito do primeiro filho, você esquece o sofrimento e decide ter o segundo. Por isso, na semana seguinte, me inscrevi para minha primeira ultra. Cinquenta quilômetros em trilha, daqui a um ano. Muito tempo para treinar. Para fazer maratonas em parques. Para melhorar minha velocidade, para passar menos tempo correndo. Mas em trilha. Chega de asfalto. Correr em asfalto foi chato. Gosto de mato.

Três semanas depois, fiz minha primeira prova de trail running. 25km no mato. Lama e pedras e limo e raízes escondidas pelas folhas mortas de outono. Lembrei de Thomas "Kilian-Jornando", levantei os braços na altura do ombro pra me equilibrar e simplesmente soltei o corpo. Vai. Pula de pedra em pedra. Aceite o fato de que você vai cair em algum momento, dizia um video de uma ultra-maratonista numa entrevista. Aceito. Eu sei que vou cair. Não vou ter medo. Só pula. Pulei. Caí. Duas vezes. Xinguei, ri, limpei a lama das luvas (porque fazia -7oC àquele dia) e continuei correndo. Meu eu de vinte anos atrás, se borrando de medo de altura nas trilhas, ficaria orgulhosíssima.

Feliz Quarenta Anos.

....


Uma das abóboras, design da Laura.

No meio do caminho, claro, teve Halloween. Laura me pediu para mandar um lanche "scary", e pela primeira vez na vida me dei ao trabalho de fazer isso. Eu não curto essa coisa de fazer comida parecer outra coisa. Pra mim comida tem que parecer comida. Mas... enfim. Foi divertido.

Preparei muffins de abóbora (com o miolo da abóbora que virara Jack-O-Lantern), com o glacê de açúcar e limão em forma de teia de aranha.  Improvisei aranhas com uvas verdes e salsão. Thomas comeu o muffin e deixou a uva, Laura comeu a uva e deixou o muffin. Né? Minha sina. (Improvisei os muffins usando de base aquela mesma receita-base da Martha Stewart que já linkei aqui várias vezes. Mas esqueci de escorrer e apertar a abóbora cozida e o purê ficou muito úmido, o que afetou toda a receita...)



 Também mandei ovos cozidos, com lascas de azeitonas encaixadas em buraquinhos que escavei com a ponta da faca para fazer os olhos e a boca. Ghost-eggs. Esse fez sucesso com os dois.

Teve sanduíche de queijo e salame demoníaco, com lascas de tomate-cereja como olhos brilhantes. Thomas adorou. Laura reclamou que foi difícil de comer, porque seus dedos tocavam o salame ao invés do pão. Ai, ai...

 
Por último, Cheesy Feet da Nigella, suuuuuuuuper fáceis e deliciosos. Por que pés? Porque eu não tinha nenhum cortador de biscoito assustador. Eles foram tão fáceis de fazer e ficaram tão gostosos, que pretendo prepará-los mais vezes para mandar de lanche da escola. Apesar de bem "cheesy", Laura aprovou.



No meio disso tudo, dos curries ayurvédicos e tranqueiras de halloween, continuo no meu surto de cozinha saudosista. Rolaram panquequinhas de ricotta e espinafre, um dos pratos que minha mãe mais fez para mim e para o Allex em nossa fase mais vegetariana. Quando eu era criança, elas eram recheadas de carne moída e eram deliciooooosas. Acabei usando a receita de um dos livros da Tessa Kiros, mas apesar de amar os crepes doces dela, a versão salgada foi meio difícil de acertar e achei que molho branco MAIS molho de tomate ficou meio pesado. Delicioso, mas pesado. Próxima vez vou na receita simples da minha mãe para a massa dos crepes e faço como ela, servindo apenas com molho de tomate.
Amor puro, panqueca de ricota e espinafre.
 Quando Allex viaja a trabalho, sempre aproveito para preparar frango, pois ele não gosta, mas as crianças sim. A pedido deles, resolvi preparar o frango frito da minha mãe, uma das coisas que ela mais preparou para mim e para meus filhos desde que nasci. É a quintessência da casa dos meus pais.

Liguei para ela e pedi a receita. Ao contrário das panquequinhas, nesse caso, tinha que ser a receita da mamãe.

Como sempre, muito didática e solícita, minha mãe preparou o frango na casa dela e fotografou todos os passos, explicando minuciosamente o preparo.

Fui ao mercado comprar peito de frango, mas quando cheguei lá, quase caí pra trás com o preço de dois peitinhos orgânicos. Era o preço do frango inteiro. Vai o frango todo, então, que pelo menos rende mais refeições e faço caldo com a carcaça. Fora que sempre me divirto destrinchando o bicho. Ok, acho que perdi um zilhão de leitores veganos e vegetarianos agora. A técnica. A técnica eu acho divertida. De separar as partes. Ah, você entendeu.

Estava tudo bem não fosse o fato de a geladeira estar vazia, pois eu acabara de passar por uma daquelas minhas semanas divertidas de "rapa-despensa". Fui vendo a lista e botando no carrinho. Vendo e botando. Na hora de pagar, fui encaixando tudo nas duas grandes sacolas que levo comigo e na minha mochila.

"Quer ajuda pra levar até o carro?", perguntou a caixa.
"Eu tô a pé", respondi. Ao que ela me lançou um olhar desconfiado."Eu aguento. Sou mais forte do que pareço."

Faz a conta... 1 frango inteiro, 4 litros de leite, 2 litros de água de coco, meio quilo de queijo, 1,7kg de iogurte, 1,5kg de maçã, 1,5kg de pêssego, meio quilo de tomate, meio quilo de cenoura, 2 caixas de ovos, 1 abóbora, 1 couve-flor... Pois é. Esse 1,5km carregando essa tralha no braço pareceram MUITO mais longos do que os 42 correndo... ;)

Aí no fim do dia, Allex me pede ajuda para ROLAR (literalmente) os pneus de neve pra fora do nosso armário e até a garagem, para que ele pudesse aproveitar a revisão do carro e já trocar os pneus.

"Vai, Ana! É cross fit!", brincou ele.
"Minha vida é um cross fit, Allex."


 Durante a viagem dele, destrinchei o frango e com o peito preparei o franguinho frito, macio e suculento, de crostinha crocante e com gosto de comida de vó. Servi com macarrão gratinado e couve refogada. Foi a alegria da pimpolhada. "Mamãe, agora faz a sopa da vovó? E o rocambole?" Tá na lista, filho.
E outro amor puro: frango frito.
 O que sobrou do frango virou uma caçarola com molho de tomate, também da Tessa. E a carcaça foi cozida com legumes para virar 2 litros de caldo de frango que foram direto para o freezer. Contei o causo para meu pai, que ria, perguntando se o frango era do tamanho de um cisne, tanta comida tinha vindo dele.

Para arrematar a seção saudade, bolinho de chuva, que meus filhos nunca tinham comido na vida. Usei a receita da Rita Lobo e o sucesso foi retumbante. A única reclamação foi que a receita rendia muito pouco.



FRANGO FRITO DA MINHA MÃE

Ingredientes:
  • 2 peitos de frango sem pele
  • 1 colh. (chá) sal
  • leite (cerca de 2 xic)
  • 2-3 ovos
  • 2 xic. farinha de rosca
  • óleo para fritar

Preparo:
  1. Limpe bem o frango, tirando qualquer nervura. Corte em pedaços mais ou menos iguais, do tamanho de uma bolinha de ping-pong, lembrando que o frango encolhe depois de cozido. (Prefiro tamanhos menores, pois é garantia de que o frango vai cozinhar por dentro sem ficar seco ou queimado.)
  2. Numa tigela grande, misture o leite ao sal e coloque ali o frango já cortado. Cubra com um prato e leve à geladeira por pelo menos meia hora. 
  3. Retire da geladeira uns quinze minutos antes de usar, para perder um pouco o gelo. 
  4. Numa outra tigela, bata com um garfo dois ovos com cerca de meia xícara do leite do frango (aprendi a não desperdiçar nada com minha mãe e meu pai, veja bem.) até que fique misturadinho. (Segundo minha mãe, o leite na mistura de ovos para empanar deixa a casquinha mais fina e leve). Num prato, disponha metade da farinha de rosca.
  5. Retire o frango do leite (reserve o resto do leite, para se precisar bater com aquele ovo que sobrou). Pegue um pedaço de frango por vez, passe na farinha de rosca, então no ovo, e depois na farinha de rosca novamente e deixe num prato ao lado. (O leite, também, segundo mamãe, impede que o ovo faça aquele rabicho pingando quando a gente está empanando - a mistura fica mais homogênea.)
  6. Quando todo o frango estiver empanado (use o último ovo com um pouco daquele leite, e o resto da farinha de rosca, se precisar), coloque uns dois dedos de altura de óleo vegetal numa frigideira grande e aqueça em fogo médio-alto. Coloque um fósforo lá dentro. Quando o fósforo acender, o óleo está a 180oC. (Minha mãe não gosta de fritura com muito óleo, então usa um pouco de azeite e manteiga, mas desse jeito precisa ficar com uma colher banhando o os pedaços de frango. Esse jeito dela prefiro fazer quando é filé e não nuggets.)
  7. Enquanto isso, ligue o forno a 180oC.
  8. Coloque os franguinhos no óleo quente, sem encher muito a frigideira, para que a temperatura não abaixe. Cozinhe até dourar embaixo e vire-os com uma colher. Deve demorar uns dois a três minutos de cada lado, se os nuggets estiverem pequenos e o óleo na temperatura certa. Retire os franguinhos prontos, coloque-os numa assadeira e leve ao forno. Isso vai garantir que continuem cozinhando, para que nenhum fique cru por dentro, e a casquinha continue crocante. Termine de preparar o restante. 
  9. Simples e bom. 




quarta-feira, 10 de abril de 2019

Abril, sorvete de Gianduia, Focaccia de morangos, melhores almôndegas, criança na cozinha, saudade de comida de vó

FLORES FINALMENTE!
A Primavera parece ter finalmente chegado. Depois da última nevasca no começo de Abril, que pegou todo mundo de surpresa, finalmente os pássaros voltaram, as formigas ressurgiram e as flores começam a nascer novamente. Só quem passa por um Inverno rigoroso conhece a alegria de ver um tufo de grama verde. Sair finalmente sem gorro, com o vento soprando pelos cabelos no topo da cabeça é um alívio.

O começo de Abril também trouxe o aniversário de oito anos de meu Matador de Dragões. Oito anos. Olho para esse menino comprido do meu lado e me assusto com a velocidade do tempo. É uma delícia acompanhar seu amadurecimento, essa montanha russa comportamental, que o leva da risonha bobeira infantil à opinião forte e respondona mais típica de um adolescente em milissegundos.  

Quase que  não sobra bolo para fotografar. Era o bolo de baunilha de sempre da Alice Medrich, ao qual acrescentei 1/4xic. de coco ralado hidratado em um pouquinho de água quente. Chocolate Fudge frosting da Alice também. A ideia do bolo foi do Thomas: um bolo de coco, com cobertura de chocolate, com coco ralado em cima e morangos.

Numa manhã recente, enquanto eu tomava meu cappuccino, braços cruzados, quadris repousados contra a pia, observei a movimentação silenciosa de meus filhos. Thomas veio até a cozinha a passos certeiros, apanhou a frigideira da gaveta de panelas e deixou-a sobre o fogão. Continuei apenas observando, sem dizer nada. Pegou uma fatia de pão. Não, duas. Tirou o pote de vidro de manteiga da geladeira e, com uma pequena faca afiada, tirou-lhe um naco, cuidadosamente depositado no centro da frigideira. Esticou o braço por cima da frigideira, erguendo seu corpo apenas a alguns centímetros do chão sobre a ponta dos dedos, e ligou a boca sob a panela, após um segundo de pausa, enquanto lembrava para que lado girar o botão. Quando a manteiga começou a derreter, segurou firme o cabo de metal com as duas mãos, fazendo um movimento circular com a frigideira, para que a gordura se espalhasse por sobre todo o fundo. Depositou ali suas duas fatias de pão, pressionando-as com as pontas dos dedos para que absorvessem a manteiga, e então cruzou a minha frente em direção à cafeteira automática, onde posicionou sua caneca favorita, de dinossauros, e se preparou um pouco de leite quente com espuma, que bebericou aos poucos, enquanto esperava suas torradas dourarem. Quando desligou o fogo e colocou seu café da manhã no prato para levar à mesa, voltei meus olhos para Laura, que àquele dia resolvera, não sei por quê, já que nunca peço isso a ela, esvaziar a lava-louças. Foi tirando cuidadosamente todos os pratos, tigelas, copos, talheres e panelas pesadas da máquina, e arrumando cada item em seu lugar no armário lá no alto, empoleirada num banquinho, de forma organizada, deixando sobre a bancada apenas os potes que eu precisaria para seus lanches escolares.  Terminada a tarefa, ela abriu o freezer, apanhou um saco de mirtilos congelados, despejando um punhado deles sobre a peneira que ela tirara da lava-louças, e abrindo a torneira de água quente da pia, finalmente ao seu alcance. Depois de deixar a água quente correr sobre as frutas o bastante para que descongelassem, ela as espalhou sobre colheradas de iogurte natural retiradas do pote tamanho família da geladeira, e seguiu contente e em silêncio para a mesa, onde saboreou seu café da manhã com seu irmão, enquanto conversavam sobre tipos de monstros e demônios que desenhariam em seguida.

Ri por dentro, contentíssima e surpresa. 

Meus filhos cresceram. Com seis e oito anos, não há mais crianças pequenas em casa. 

Sempre estimulei sua independência, por motivos altruístas (quero que desenvolvam diferentes habilidades e autoconfiança) e por motivos completamente egoístas (quanto mais independentes eles são, mais tempo eu tenho para mim). Se eles mostram capacidade física e emocional para uma tarefa, quero mais é que façam sozinhos. Começando com arrumar as próprias camas e se vestirem sozinhos quando eram bem pequenos, comerem sozinhos, usarem louça de adulto sem quebrar (sempre fui contra prato de plástico e copo antirespingo, porque não ensina a ter cuidado com os objetos e com a sujeira - a única pessoa da casa que quebrou prato e copo desde que as crianças nasceram fui eu)... passando por tomarem banho sozinhos e escovarem os dentes (o último precisa de uma avaliação materna e paterna e às vezes mandamos eles refazerem). 

Lembro de uma mãe reclamando que não tinha tempo pra nada. Quando descobri que ela ainda dava banho no filho de nove anos, entendi: se eu tivesse de parar meu dia pra ficar dando banho nos dois, eu também teria pouco tempo. Aqui é justo o contrário: enquanto eles tomam banho, eu tenho sossego. (Escrevo isso enquanto Laura está no chuveiro e Thomas fazendo lição.)

Facas sempre foram motivo de discussão: tinha gente que me xingava porque eu dava faca na mão do meu filho quando ele tinha uns três anos (aquelas facas comuns de jogo de jantar).  Desde pequenos eles tinham as facas comuns para que aprendessem a cortar a própria comida no prato ou ajudar a empurrar a comida para cima do garfo - até hoje eu chamo isso de escavadeira e parede: a escavadeira (garfo) tem que empurrar a comida em direção à parede (faca) - e eles aprenderam a comer feito gente grande super rápido. Tenho um orgulho bem besta dos dois por saberem enrolar spaghetti no garfo sem precisar de outros talheres ou por saberem comer alface dobrando a folha sob o garfo com a ajuda da ponta da faca, sem cortá-la. Besta, besta, mas fico super contente. (No entanto, ainda tenho que pedir pra mastigarem de boca fechada e não falarem de boca cheia, em TODA REFEIÇÃO.)

Faz um tempo, comprei-lhes uma tábua de corte menor e uma faca de frutas bem afiada e bem leve, para que não precisem fazer força para cortar as coisas nem usar as minhas facas de corte, que são muito pesadas. Essa faquinha lá embaixo na foto é a faca das crianças, que Laura usa para picar cebolas para mim (ela corta uma cebola inteira em cubinhos ainda devagar, mas com muito capricho) e cortar a parte verde dos morangos quando os trago do mercado. A faca é bem afiada, então eles não precisam fazer FORÇA (o que diminui o risco de acidentes). E é do tamanho exato para que, proporcionalmente ao tamanho de suas mãos, eles possam usar como uma faca de Chef.

Todo restaurante japonês por aqui serve fatias de laranja de sobremesa. As laranjas daqui são muito doces e perfumadas, e foi nos restaurantes que aprendi esse corte: Você corta a laranja como se ela fosse uma melancia, e passa a faca da mesma forma para soltar a polpa da casca. O truque é deixar um cantinho ainda preso. Você pode mandar as fatias de laranja de lanche, e a casca ajuda a mantê-las intactas e ainda ajudam na hora de comer: você segura pela casca, entorta ela um pouquinho para a polpa se separar e come o gomo de fruta assim numa bocada só. A pimpolhada adora, inclusive Thomas, que anda resistente à frutas frescas.
Já cortaram os dedos? Claro que sim. E aprenderam a tomar mais cuidado depois disso. No começo eles só faziam comigo do lado. Hoje em dia eles têm autorização para usar a faca para cortar uma fruta se quiserem, sozinhos. As regras são claras: é um de cada vez na tábua de corte, sempre olhe onde estão os dedos, não pode fazer força com a faca, e a faca não sai de cima da tábua nunca. 

Então, um dia, Thomas pediu para fazer as panquecas sozinho. Expliquei a receita e ele mediu os ingredientes, misturou e então cozinhou, virou e serviu todas as panquequinhas sem minha ajuda. E quando vi que ele já alcançava os botões do fogão, que aqui ficam lá atrás das bocas, perto da parede, expliquei que ele só poderia usar o fogão quando eu estivesse do lado, sem exceção. Ele entendeu. Aliás, esse tipo de regra eles sempre entendem e respeitam muito bem, o que faz com que eu confie ainda mais nos dois. Só não achei que ele sairia assim, fazendo seu próprio café com tanta segurança tão rápido. 😜

Enfim. Ele já se queimou? Claro que sim. Laura também. Thomas anda interessadíssimo no processo de auto-cura do corpo humano, observando o progresso de uma bolha em seu dedo mindinho, queimado quando ele encostou sem querer na borda da panela. Eu gosto que eles se machuquem? CLARO QUE NÃO. Fico preocupada? MAS É ÓBVIO QUE SIM. Ao mesmo tempo, eu conheço meus filhos e sei do que eles são capazes. Nunca deixo que façam nada em dias em que estão cansados ou distraídos, por exemplo, e nunca forço ninguém a ajudar na cozinha - faz só quem quiser. Mas sei que se você não deixa a criança correr e cair, ela nunca vai aprender que o chão é duro e precisa ser evitado. A gente aprende errando. E quando você toma a primeira queimada no antebraço, aprende a manter o cotovelo pra cima enquanto mexe a panela com a colher. Eles têm maturidade o bastante (pelo menos nessa área, no resto tá longe ainda) para saber que a gente não brinca com faca e não brinca com fogo. Quando estão na cozinha, eles são sérios e respeitam os perigos. E acho isso lindo. Quando começa a bagunça, eu já berro: na cozinha só tem UM CHEF! Vocês são ajudantes, e ajudante faz o que pedem, não o que quer. E pronto. Tudo volta ao normal. E se não volta, mando todo mundo pra fora da cozinha e acaba a brincadeira.

Talvez vê-los crescendo e se virando assim tão rápido seja o motivo do meu recente saudosismo culinário. Talvez seja um reflexo natural da idade e dessa busca por comida mais simples. 

Começou quando me dei conta de que havia muito tempo não usava castanhas na minha cozinha, por causa de todo o problema de alergias na América do Norte. Meus filhos são proibidos de levar castanhas e amendoins para a escola, e Allex não levava nada do tipo para o trabalho desde o incidente em que eu quase matei uma colega dele por causa de um biscoito de amendoim. 

Eu e Thomas somos apaixonados por castanhas (coisa que aprendi a comer com meu pai), e sempre inclui um bom punhado delas em nossas refeições e lanches. Meus bolos e biscoitos sempre tiveram amêndoas e nozes. Sempre comemos pesto com castanha do Pará (pois pinolis eram muito caros) e as crianças sempre foram as primeiras a devorarem as castanhas de caju trazidas de Fortaleza por meu pai. (Até hoje castanha de caju é a única que Laura come sem reclamar.)

Mas por que, Ana, você não faz o biscoito com castanha e simplesmente não manda pra escola? Porque, caro leitor, as crianças passam o dia todo fora e todos os lanches são feitos fora de casa, e não há um momento no dia, na verdade, que comporte biscoitos que não possam ser levados para a escola. Seu consumo não se encaixa no nosso dia-a-dia e usar meu tempo pra fazer um doce com nuts e um nut-free sempre me pareceu um abuso.

Mas no embalo das sobremesas de fim de semana, me dei conta de que podia reincorporá-las dessa forma sem correr o risco de mandar coisa errada pra escola sem querer. Resolvi fazer aquele sorvete de amêndoas com cerejas em calda do post anterior. Laura tomaria o sorvete sem reclamar da textura crocante das amêndoas. O sorvete gerou conversas interessantes com meus filhos, e foi quando eles disseram não saber o que era Gianduia que dei um basta. Ok. Mamãe vai voltar a cozinhar com nozes e castanhas. Porque terem família italiana e não conhecerem Gianduia é um crime. Castanhas fazem parte de quem somos (tanto brasileiros quanto de ascendência italiana) e eu não vou abdicar disso.
Quando a gente decide comer sorvete à noite, assistindo Masterchef no computador, a foto não fica lá essas coisas.

E como sorvete é mandatório no fim de semana, preparei um de Gianduia para as crianças imediatamente. Adaptei muito a receita de David Lebovitz. Porque depois de muito fazer sorvete, decidi que prefiro texturas mais delicadas. Os sorvetes dele, apesar de deliciosos, costumam levar mais gemas e gordura do que um gelato normal, e mesmo as crianças comentaram que o sorvete de amêndoas ficou um pouco pesado (Laura também achou muito doce). Adapto sem dó, usando sempre a mesma proporção de gemas para leite e creme a partir de agora, que produz um sorvete mais leve e delicado, mais de acordo com o meu paladar e o das crianças. E o resultado ficou excelente.

GELATO DI GANDUIA
Rendimento: cerca de 1 litro

Ingredientes:
  • 2 xícaras de avelãs inteiras, com casca (assadas por 10 minutos a 180oC, esfregadas para liberar as cascas)
  • 115g chocolate ao leite de qualidade (ao menos 40% de cacau), picado
  • 4 gemas
  • 200g açúcar
  • 750ml leite
  • 250ml creme de leite fresco
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 1/4 colh  (chá) extrato de baunilha

Preparo:
  1. Pique muito bem as avelãs e coloque-as numa panela com o açúcar e o leite. Leve à fervura branda, misturando, desligue, tampe e deixe descansar por 1 hora pelo menos.
  2. Passado esse tempo, passe a mistura por uma peneira fina (se alguns pedacinhos de avelã passarem não tem problema). Reserve as avelãs para outro uso (você pode secá-las no forno para que durem mais na despensa, mas eu apenas coloquei-as no freezer como estavam).  
  3. Bata as gemas em uma tigela. 
  4. Em outra tigela maior, coloque o chocolate e reserve. 
  5. Reaqueça o leite de avelã até a fervura branda e desligue o fogo. 
  6. Tempere as gemas, acrescentando uma concha de leite quente por vez, misturando bem com um fouet. Depois de três ou quatro conchas, junte toda a mistura à panela, e ligue o fogo médio-baixo e mexa bem com uma colher de pau ou espátula, riscando um 8 no fundo da panela, por 8-10 minutos, ou até que a mistura engrosse o bastante para recobrir as costas da colher. As avelãs vão apressar esse processo, na verdade. Fique atento para não deixar o creme ferver ou talhar. 
  7. Passe por uma peneira sobre a tigela com o chocolate e misture bem até que o chocolate esteja todo derretido.
  8. Misture à tigela o creme de leite, o sal e a baunilha. Continue misturando até que o vapor pare de sair. Deixe a tigela em temperatura ambiente até que esfrie e então leve à geladeira por pelo menos 4 horas. 
  9. Passado esse tempo, coloque a mistura na sorveteira segundo as instruções do fabricante.

É CLARO que eu não joguei fora as avelãs picadinhas que foram peneiradas. Misturei-as a uma receita simples de granola, para assarem junto com a aveia logo do começo, e o resultado ficou delicioso. Pronto, mais castanhas incorporadas no nosso dia-a-dia.
Granola, banana e iogurte depois da corrida. Nham.
A empolgação com as castanhas me fez buscar novamente as receitas abandonadas de bolos e biscoitos italianos que eu andava ignorando em detrimento das preparações nut-free. Foi aí que voltei a preparar bolos feitos não com o intuito de serem lanche de escola, mas sim café da manhã. Pois assim poderia colocar todas as castanhas que quisesse, sem peso na consciência. Mas acontece que acabei apaixonada pelos bolos italianos, leves, pouco doces, cheios de fruta, que não parecem uma indulgência logo pela manhã, e esqueci-me de que a ideia era ter castanhas ali.

Além disso, bolos italianos costumam ser ridiculamente fáceis de preparar. Os dos livros de Marcella Hazan são praticamente todos feitos com uma tigela e uma colher, e as crianças gostaram de todos até agora.

Outra coisa boa para o café da manhã, que Laura me fizera prometer preparar no dia em que folheou meu livro e viu a foto é essa focaccia rápida de morangos. Rápida porque fermenta apenas uma vez e por apenas 1 hora e meia, indo direto para o forno. Ainda assim ela fica macia por dentro, ligeiramente crocante por fora, e com esses morangos mornos e macios, quase como uma compota. Ótimo para o fim de semana, quando todo mundo acorda meio sem fome e com vontade de ir brincar, e pode esperar duas horinhas para tomar café. (Mamãe não. Mamãe toma cappuccino enquanto prepara a focaccia.)

A focaccia da foto é apenas meia receita, que basta para 4 pessoas. (Eu não tinha fermento para uma receita inteira)
FOCACCIA RÁPIDA DE MORANGOS
Do livro Recipes and Dreams from an Italian Life, de Tessa Kiros)
Rendimento: 8 porções

Ingredientes:
  • 2 colh. (sopa) fermento biológico seco
  • 1 1/4 xic. àgua morna
  • 5 colh. (sopa) cheias de açúcar
  • 2 2/3xic. farinha de trigo
  • 1 pitada de sal
  • 2 1/2 colh. (sopa) azeite
  • 450g morangos maduros
  • açúcar de confeiteiro para polvilhar

Preparo:
  1. Junte o fermento à agua com 1 colh. (sopa) açúcar e deixe uns minutinhos para espumar. 
  2. Junte a farinha e o sal e sove ligeiramente dentro da tigela, obtendo uma massa macia e mais grudenta que o normal.
  3. Espirre um pouco de água numa assadeira e forre-a com papel-manteiga (a água vai ajudar o papel a grudar lisinho no lugar). Unte o papel com o azeite, espalhando com as mãos (o azeite nas mãos ajuda a massa a não grudar depois).
  4. Espalhe a massa sobre o papel, e comece a esticá-la sobre ele usando os dedos, empurrando o centro da massa para fora. Se a massa estiver elástica e voltando para o lugar, deixe descansar por 5 minutos e tente de novo. Espalhe com os dedos e as palmas das mãos até que cubra boa parte da assadeira (uns 33cm de comprimento).
  5. Cubra com um pano apoiado a copos, para que o pano não encoste na massa, e deixe levedar por 1 hora a 1 hora e meia. 
  6. Enquanto isso, corte ao meio os morangos grandes e deixe os menores inteiros. Numa tigela, misture-os a 2 1/2colh. (sopa) açúcar. Deixe macerar.
  7. Pré-aqueça o forno a 205oC. Quando a massa tiver crescido bem, espalhe os morangos com seu suco sobre ela, com cuidado para não desinflá-la. Polvilhe com o restante do açúcar, inclusive as bordas, e leve ao forno por 25 minutos, ou até que a massa esteja dourada e assada. Tenha certeza de que a parte do meio está assada, mas não cozinhe demais, ou os morangos vão virar uma geleia. 
  8. Retire do forno, deixe amornar e polvilhe com o açúcar de confeiteiro antes de servir.


Foi justo num fim de semana cansado, depois de muita correria, em que eu só queria parar e não pensar muito em nada enquanto tomava minha cerveja, que resolvi assistir a um programa do Jamie Oliver em que ele vai (de novo) para a Itália. Jamie já me deu um bode imenso, mas a proposta do programa era fofa: ir atrás das vovós italianas e suas receitas.

Pronto, eu estava apaixonada. Aquelas avós que eram iguais às minhas, cortando cebola na palma da mão com uma faquinha de fruta fizeram minha saudade explodir. Fiquei mais bodeada ainda com Jamie, pois depois de anos e anos enchendo todo mundo pra aprender a picar legume com faca de chef, cheio de técnica, agora ele estava ali, se debulhando em elogios à "técnica fantástica" de cortar batata com faca de bife na palma da mão, e de picar os legumes sem qualquer espécie de padrão de tamanho "porque dá mais textura para o prato".

😒



Sério?

Ok, então.

Eu assisti com deleite às senhorinhas preparando seus pratos regionais com carinho e dei um fast-foward nas adaptações escalafobéticas do Jamie Oliver. E quando terminei de ver todos os episódios, cheia de lembranças carinhosas de minhas avós e de minhas viagens à Itália, o YouTube me recomendou um canal italiano com videos de receitas de Nonna. E ali estava uma linda Ciambella, um bolo de furo no meio, e eu não resisti.

O video é uma delícia. A carinha da cozinha, os utensílios, a relação da Nonna com o Nonno que só senta lá pra dar palpite, a toalha de plástico, a Nonna esfriando bolo no chão da cozinha. (Se eu fizesse isso, o Gnocchi seria o primeiro a experimentar o bolo, com certeza!) E desse videozinho fui para vários outros, e descobri que depois de passar tantos anos da minha vida vendo Chefs de cozinha preparando comida com precisão científica e empilhando ingredientes no prato, dá um alívio infinito ver uma velhinha italiana sovando massa e batendo bolo até o glúten arrebentar. Ri muito quando uma das avós soltou em italiano a expressão "uma vez a cada morte de Papa", porque eu falo isso o tempo todo e não fazia ideia de onde eu tinha tirado.

Ver aquilo me fez pensar na minha avó paterna que me ensinou a fazer pasta fresca, na materna, que sempre preparava meus pratos favoritos, na avó do Allex que me ensinou a fazer seu Apfelstrudel, na avó da minha melhor amiga na infância, que sempre preparava arroz doce quando sabia que eu viria e fazia bolinhos de chuva para nosso lanche da tarde... Fez com que eu lembrasse que comecei esse blog dizendo que eu era uma Nonna em treinamento, e que, no fim, o objetivo era chegar nessa cozinha de amor, nutrição e conforto que as avós fazem tão bem. No mundo de hoje em que cozinha é de mostrar pros outros, de show, de exibição, lembrar da cozinha fria de azulejos azuis da minha avó paterna e de suas mãos pequenas sovando massa sobre a mesa de fórmica branca me trouxe um chão e um norte que eu vinha buscando com força há muitos anos e mais ainda desde que mudei de país.

Munida de amor por aquelas velhinhas, resolvi tentar me ater àquela cozinha simples e carinhosa, e com certeza meu prazer na cozinha se multiplicou.

O YouTube normalmente só me recomenda bizarrice, razão pela qual às vezes passo semanas sem nem abri-lo. Mas uma vez que volto a assistir Masterchef Brasil (que é o único Masterchef que gosto hoje em dia), abre-se a porteira novamente e lá vou eu ficar fuçando em video tonto ao invés de ler meus livros (foi justamente aí que caí na série do Jamie Oliver). Mas ás vezes ele acerta: acertou na Ciambella da Nonna e acertou numa pequena série de videos de um outro canal italiano chamado Italia Squisita. Trata-se de uma seriezinha de chefs italianos reagindo aos videos mais assistidos do mundo de receitas de seus pratos regionais. Então você tem três pizzaiolos napolitanos assistinto os videos mais famosos da internet sobre como fazer pizza napolitana. Achei que seria algo só muito metido a besta, mas ver os italianos reclamando dos crimes cometidos contra sua comida é hilário. De quebra, eles dão algumas dicas do preparo "correto" dos pratos. É melhor para quem fala italiano, mas as legendas em inglês estão bem adequadas.

Uma das dicas que os pizzaiolos de Napoli dão é a respeito da pizza em forno caseiro. Eles sugerem que se coloque o molho sobre a massa e leve a pizza ao forno pela maior parte do tempo, colocando o queijo apenas no final, para derreter por pouquíssimos minutos, sem dourar. Queijo dourado, para eles, é um defeito. Não vou entrar no mérito de certo e errado, aqui o que vale é o gosto pessoal: se você gosta do queijo dourado, faça a pizza com queijo dourado. (Até porque, pizza romana é crocante, e em Napoli pizza crocante é defeito. Então, cada um que faça o que gosta e seja feliz. Eu sou do time napolitano: pouco recheio, queijo suculento e não dourado e massa por baixo fina e macia com bordas pãozudinhas. É disso que eu gosto. Outra dica era colocar o queijo em pedaços maiores, para que não perdesse tanta umidade no forno.


Pizza depois de 12 minutos de forno a 225oC, apenas com molho de tomate, voltando para o forno com parmesão ralado, o queijo mozzarella em tiras, manjericão e um fio de azeite.
Eu tentei. Mas oito minutos para o queijo em pedaços teve o mesmo efeito que o queijo ralado e ele dourou mesmo assim.



Na próxima vez vou tentar deixar a pizza por uns 15-16 minutos e deixar o queijo apenas por 4-5 e ver o que acontece. :)

Os videos desse canal também mostram como abrir a pizza com as mãos, sem o rolo. Segundo eles, o segredo está em manipular a massa o menos possível. Vou dizer que minha pizza nunca saiu tão uniforme e redonda. :D

Depois de me esborrachar de rir com os italianos reclamando e aprender alguns truques novos, vi-me novamente sentada no sofá folheando meus livros de cozinha italiana. Vi-me comprando polenta de novo e arroz arbóreo novamente, ingredientes que andavam meio esquecidos nos últimos tempos.

Num dia em que eu tinha uma quantidade grande de cogumelos na geladeira, dourei-os todos com um pouco de alho e os cobri com o que restara do molho de tomate que eu fizera em dobro para um spaghetti de fim de semana. Esse "ragù" de cogumelos acompanhou polenta molinha e fumegante.

Ragù rápido de cogumelos com polenta.

O spaghetti al sugo que sobrara do fim de semana virou doze mini-frittate, feitas na forma de muffins muito bem untada de manteiga para nada grudar. Dividi o spaghetti (tinha bastante) entre as formas já untadas (o spaghetti retornado à temperatura ambiente fica molinho de novo e fácil de separar uns fios dos outros), e fiz uma mistura de 8 ovos, um splashzinho de leite, sal, noz mocada e pimenta-do reino, um punhado de parmesão, e dividi entre as formas, que devem ficar preenchidas algo entre metade e 3/4 da capacidade. Polvilhei cada uma com salsinha e mozzarella ralada e levei ao forno médio por uns 15-20 minutos, até que inflassem, dourassem e estivessem cozidas. Esperei que esfriassem um pouco antes de desenformar com a ajuda de uma faquinha. As frittate que não foram jantadas viraram lanche da escola no dia seguinte.


As melhores almôndegas que já fiz (ou comi) na vida.

Na semana seguinte não me aguentei e quando vi Grass Fed Beef em promoção, catei um pacote na gôndola. Porque aqui tem disso: tem carne de boi de pasto e carne de boi que come soja. O de pasto é claro que é mais caro. Então espero as promoções para poder comprar boi feliz pelo preço de boi triste. Como tivesse repolho crespo igualmente em promoção (repolho crespo = savoy cabbage), decidi preparar as almôndegas de inverno da Marcella Hazan. Tantas, tantas receitas maravilhosas que eu nunca havia feito, preocupada demais em me entulhar de livros da última moda culinária. Eita, se eu tivesse cabeça de 40 anos quando tinha corpo de 20...

Enfim. Claro que servi as almôndegas com polenta. Preparei as almôndegas com antecedência, num momento tranquilo da minha manhã, enquanto esperava a tinta da minha ilustração secar, e deixei para preparar o restante do molho no fim do dia, junto com a polenta. (Polenta, aliás, que depois que esfria, você corta em tirinhas e frita, ou tempera com azeite e coloca 18 minutos na Air Fryer até que fiquem crocantes por fora.)

O veredito da Laura para esse prato: "Mamãe, essa comida está SENSACIONAL!"

Adoro quando ela usa essas palavras, que parecem saídas da boca de um adulto e não de uma criança do Kindergarten. ;)

Elas são de fato absolutamente deliciosas, mesmo antes de acrescentar o molho de repolho e tomate. Muito suculentas e saborosas. As melhores que já preparei na vida e ouso dizer as melhores que já comi.

ALMÔNDEGAS DE INVERNO COM REPOLHO CRESPO (OU COUVE)
(Do livro Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana, de Marcella Hazan)

Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 1/3 xic. leite quente
  • 1 fatia de pão sem casca
  • 500g carne moída (de preferência de 1a)
  • 50g pancetta (usei bacon) picado pequenininho
  • 1 ovo
  • sal a gosto
  • pimenta-do-reino a gosto
  • 2 colh. (sopa) cebola picadinha
  • 3 colh. (sopa) queijo parmesão ralado
  • 1 colh. (sopa) salsinha picada
  • 1 xícara de farinha de rosca
  • Óleo ou azeite para fritar
  • 550-600g repolho crespo ou couve, em tiras de 0,6cm, sem o miolo (eu piquei o miolo junto, porque desperdiçar comida fazendo um prato italiano é um paradoxo)
  • 2 colh. (sopa) azeite
  • 2 colh. (sopa) alho picado
  • 2/3 xic. tomates pelados em lata (eu usei 1 xícara e meia, pois queria mais molho e meu repolho não soltou muita água)

Preparo:

  1. Coloque o pão no leite quente e deixe ali até que ele o absorva todo. Quando isso acontecer, amasse bem com um garfo até que vire uma papa.
  2. Junte a papa de pão à carne moída, bacon picado, o ovo, salsinha, queijo e cebola. Tempere com sal e pimenta e misture bem com as mãos até que dê liga e os temperos estejam distribuídos.
  3. Forme bolinhas de 3,5cm e passe-as ligeiramente na farinha de rosca.
  4. Aqueça cerca de meio centímetro de altura de óleo ou azeite numa frigideira. Frite as almôndegas, algumas de cada vez, até que dourem de todos os lados. Deixe-as secando num prato com papel toalha. (Eu fiz até aqui e deixei o prato em temperatura ambiente até a hora de preparar o restante do jantar.)
  5. Descarte adequadamente o óleo. Você vai precisar de uma frigideira ou panela grande o bastante para comportar todas as almôndegas em uma só camada. Aqueça o azeite nela e junte o alho picado, cozinhando até perfumar. Junte a couve ou repolho em tirinhas, tempere com um pouco de sal, mexa duas ou três vezes e tampe a panela. Passe para o fogo baixo.
  6. Cozinhe por cerca de 40 minutos (enquanto isso você faz a polenta, se quiser), mexendo de vez em quando. Experimente e corrija o tempero adicionando sal e pimenta-do-reino.
  7. Passe para fogo médio, destampe a panela e continue a cozinhar até que o repolho escureça um pouco. Junte os tomates, mexa bem e cozinhe por uns quinze minutos em fogo baixo.
  8. Junte as almôndegas, vire-as na panela algumas vezes, tampe e cozinhe por mais uns dez minutos. Sirva imediatamente.

E aquelas polpettine, aquele monte de polenta, claro que me mantiveram com a mente fixa em minhas avós. Fiquei pensando nas tradições familiares, nas lembranças. Em como meus filhos jpa pedem constantemente a canja de galinha da avó (que eu já prometi preparar diversas vezes mas ainda não fiz), que é o prato de que mais sentem falta desde que vieram para o Canadá.

Fiquei buscando nos livros receitas que me lembrassem das minhas avós, algo que reproduzisse aqueles gostos de infância, aquelas histórias de cozinha, já que minhas avós não me deixaram praticamente receita nenhuma.

E então liguei para minha mãe e lhe pedi todas as suas.

"Mas minha comida é simples", disse ela. " É alho e cebola, não tem nada de muita invenção."
"Eu sei, e é isso o que eu quero. Não quero que aconteça com a sua comida a mesma coisa que aconteceu com a da vovó, que ninguém sabe preparar igual. Tô com saudade do estrogonofe, do couscous, daquele frango com pimentão e batata, a sopa de frango com legumes, da Braciola, daquela carne de panela que você botava tomate e azeitona..."
"Carne lessa?"
"É esse o nome?"
"É."
"Carne lessa". Carne cozida. Fui procurar no tio Google. Bolito di manzo. A carne bovina que se cozinha em muita água por muito tempo até ficar macia. Que quando pronta, é separada do caldo, resfriada e transformada em salada de carne (com tomates e azeitonas, por exemplo) ou desfiada para virar bolinhos ou é misturada a molho de tomate para um macarrão. E o caldo vira outra coisa: vai para uma sopa, um ensopado, um risotto, exatamente como faziam minhas avós. Um prato que vira dois. Cozinha esperta.

Essa carne fria com tomates e azeitonas foi um ícone da minha infância, tantas vezes que comemos sanduíches dela. Minha pergunta gerou histórias. Quem fazia, aprendeu com quem, como servia. Juntar as informações da família com as dos livros e mesmo as da internet, explicaram melhor aquele prato simples que, antes de ser típico da Itália, era típico da minha mãe, que é avó dos meus filhos. Comida de Nonna.

Essa semana ela começou a me mandar as fotos do passo-a-passo de suas receitas, começando com a tal Carne Lessa.

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Agora, apesar da brincadeira dos videos de chefs italianos, levanta a mão quem está meio cansada de comida de chef.

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Foi divertido aprender por todos esses anos todas as técnicas de corte, de cozimento, as combinações clássicas e as escalafobéticas, os modismos de ingredientes, o vegetariano, o vegan, o cru, o natureba, o pode, o não-pode, o típico e o bastardo, o autêntico e a adaptação.

Certamente parte do meu prazer em cozinhar todo dia advém do fato de eu ter aprendido a picar uma cebola inteira em trinta segundos ou conhecer o preparo de molhos básicos sem ter que ficar olhando receita.

E isso é muito bom e sou grata pela curiosidade (e pretensão e preciosismo, digamos de passagem) que me fez correr atrás de tanta informação ao longo desses anos. Sinto que posso explicar melhor a meus filhos hoje porque mamãe faz isso ou aquilo. Como ontem, quando acabou o fermento que Thomas tinha de acrescentar ao bolo e eu disse que estava tudo bem, pois havia muito suco de limão na massa (ácido) e se usássemos bicarbonato de sódio (sal), a massa cresceria mesmo assim (e cresceu).

Mas agora eu meio que cansei. Agora que eu já sei tudo isso, só tenho vontade de voltar às origens. Ao arroz com feijão e creme de espinafre, à farofa de ovo com azeitona e à canja que comi toda semana quando criança na casa de minha mãe; ao frango com batatas de minha avó materna, ao tagliatelle fresco de minha avó paterna; aos bolos simples de café da manhã e aos torcidinhos de lanche da tarde. Alguém lembra dos torcidinhos? Era uma receita do livro da Dona Benta. Um biscoito salgado com sementes de erva-doce,comprido e torcido, que minha avó fez todos os domingos durante os quinze anos em que minha vida e a dela se intercalaram. É uma receita que todo mundo tem, mas é a quintessência de minha relação com minha avó.

Está na hora de preparar torcidinhos.

Cozinhe isso também!

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