
Muitas pessoas me dizem que gostam do fato de eu descrever meus fracassos tanto quanto os sucessos, enquanto outras não vêem qual seria o objetivo disso. Minha resposta é sempre a mesma: se meus amigos acharem que acerto sempre, desistirão ao primeiro insucesso, acreditando não terem "mão" para cozinha. E não é isso o que quero. Poderia, portanto, não publicar esse bolo, pelo simples fato de ele não ter ficado com a aparência que tinha em mente. Mas a verdade é que, no melhor estilo "pastelaria Nigella", o bolo ficou muito bom, apesar de desmazelado.
Quinta-feira foi aniversário de minha irmã, e uma semana antes ela já me pedira um bolo. Passei sete dias pensando no que faria, ansiosa por poder voltar à ativa, com saudades da produção de doces que costumava ser mais intensa por aqui. Perguntei-lhe sobre preferências de sabor, ao que ela respondeu: "ou morangos ou doce-de-leite". Morangos? Hmmmm... adoraria, mas o sucesso de um bolo de morangos depende da qualidade das frutas, e ficaria muito frustrada se comprasse cestos e cestos de morangos azedos. Doce-de-leite é mais garantido.
Imediatamente pensei num bolo de "dulce-de-leche" do livro Sky High. Mas quando abri o livro, dei-me conta de que a receita diluía demais o doce-de-leite em creme de leite fresco, e não era isso o que eu queria. A massa do bolo também levava canela, e percebi que aquele não era o bolo de doce-de-leite que minha irmã, por sua vez, queria. Tentei imaginar outra coisa, então. Nós crescemos comendo doce-de-leite feito pelo cozimento de lata de leite condensado, e era isso o que eu desejava: um bolo com gosto da nossa infância: doce, honesto, caseiro, sem firulas ou inovações. Decidi então que apanharia minha receita tradicional de génoise e trocaria uma parte do açúcar por açúcar mascavo escuro, para um sabor caramelado (coisa que depois vi, a autora do livro também faz, mas com açúcar mascavo claro). Para não aplicar o doce-de-leite puro no recheio, diluiria em muito pouco creme de leite fresco, praticamente invertendo as proporções sugeridas no livro. Faria um xarope de açúcar. Hmmmm... ok, vai, vou usar o xarope de rum do livro, que parece interessante. Rechearia os bolos. Para cobertura, faria uma ganache de chocolate branco e doce-de-leite, e criaria um efeito marmorizado com um pouquinho de ganache de chocolate amargo. Na minha mente, aquilo funcionaria e ficaria fantástico.



Um dia antes do aniversário, no entanto, estava atolada em trabalho e com pouco tempo para fazer o bolo. Preparei as génoises e adorei seu resultado. Elas assaram maravilhosamente bem, e o aroma que exalavam era exatamente o que eu buscava: doce-de-leite. Deixei que esfriassem enquanto voltava ao trabalho.
Hora do recheio. Tive medo de cozinhar a lata de leite condensado por horas a fio e não alcançar o ponto desejado, e por isso, contrariando meu comportamento padrão, comprei uma lata de doce-de-leite pronto (a única marca que encontrei que não levava amido ou outros espessantes). Coloquei quase toda a lata na batedeira e um pouco de creme. Eu jurava que o recheio firmaria. Mas claro que isso não aconteceu. Cobri a primeira camada, tomando cuidado para deixar distância entre o recheio e a borda, e repousei suavemente a segunda camada por cima. Tudo ok. Por 10 segundos. E o peso da segunda camada começou a empurrar o recheio para fora.
Apanhei uma espátula e saí recolhendo o doce que fugia pelas laterais, tentando limpar o bolo o máximo possível. Quando tudo parecia bem novamente, coloquei o bolo na geladeira enquanto preparava a cobertura.
E a dúvida surgiu. Sem cacau na fórmula (que contém amido), não sabia se a mistura simples do chocolate branco com o creme de leite firmaria. A única receita que encontrara de ganache branco pedia para batê-lo como chantilly, o que eu não queria: buscava uma cobertura lisa e firme. Sem querer arriscar o bolo de minha irmã e o pouco tempo que eu teria para fazer tudo de novo caso a idéia virasse um desastre, abdiquei de minha cobertura marmorizada e decidi que faria uma linda e brilhante ganache de chocolate, que daria ao bolo inteiro a cara de um alfajor gigante. Pronto. Mais fácil. [Por favor, argentinos, descendentes de argentinos ou pessoas que gostam de coisas argentinas: não me massacrem por comparar o bolo a um alfajor; a referência é puramente visual.]
Retirei o bolo da geladeira apenas para descobrir que o recheio escorrera mais. Lá fui eu novamente, espátula em mãos, limpando a sujeira. Quando tudo parecia bem novamente, comecei a aplicar a cobertura. E tudo ia bem. Consegui aplicar a primeira camada, que, teoricamente, manteria também o recheio em seu lugar, e meti o bolo na geladeira. Meia hora depois, fui aplicar a segunda camada e descobri que a cobertura não contivera coisa nenhuma. Tentei desesperadamente espalhar a ganache sem puxar junto o creme de doce-de-leite, mas foi impossível. Em algumas partes das laterais, a mistura dos dois era evidente. Suspirei. Fazer o quê?
Estava tudo ótimo, e eu deveria ter deixado o bolo do jeito que estava. Mas não, precisava meter o dedo. Esquentei a espátula de metal, querendo dar um acabamento brilhante e um pouco mais profissional e passei-a sobre a ganache. No entanto, ela já endurecera o suficiente para, ao invés de derreter ligeiramente e ficar lisa, dividir-se em placas e arrastar-se como pele queimada na superfície do bolo.
Ah! O horror...
Ok, dá prá salvar, dá prá salvar. O meio está apresentável, apenas as laterais e as bordas estão feias. Vamos cobrir as bordas, então, com a sobra de recheio que ficou na geladeira.
Apanhei a tigela gelada e percebi que o creme firmara, finalmente. A-há! Para o saco de confeitar! Foi formar a quinta estrelinha de creme sobre o bolo, que notei, exasperada, que a primeira começara a derreter. Muito rapidamente. Tentei apressar o trabalho, para voltar o bolo à geladeira, mas ao terminar toda a borda, era tarde demais: as estrelas se haviam derretido e escorriam pelas laterais do bolo.
What the helll...?
Fica assim, então. Espalhei o que restava do recheio e puxei com a ponta de uma faca, para que, agora de propósito, escorrecem pelas laterais.
Olhei para o bolo finalizado. Vergonha. Ai, que vergonha. O da minha mãe tinha ficado tão bonito... Minha irmã vai achar que fiz o dela de qualquer jeito.
Levei-o para a sala, que tinha uma deliciosa luz de fim de tarde, fotografei-o, guardei-o na geladeira e mandei as fotos para minha irmã, por e-mail, perguntando se ela ia mesmo querer o bolo, pois ele tinha ficado feio.
"´Cê tá louca? Manda prá cá!"
Oooooook... Então tá.
No fim das contas, o bolo fez sucesso. Ficou muito bom e valeu completamente a pena furar a dieta e comer dois pedaços. Fiquei com raiva de não poder comer mais. Com certeza terá repeteco. Mas com adaptações: omitiria completamente o creme-de-leite do recheio, espalhando puro doce-de-leite sobre o bolo; e, para evitar que ficasse enjoativo, faria a ganache sem açúcar ou com um chocolate mais amargo. Ou, diminuiria pela metade a quantidade do recheio, de modo que ele não seja suficiente para escorrer. A idéia da ganache branca com doce-de-leite ainda não está descartada, entretanto: apenas precisa de testes. Ou, o que também recomendo, é desencanar completamente de apresentações firulentas e simplesmente deixar que o recheio escorra livremente e despejar a ganache sobre a segunda camada de forma que ela se misture naturalmente ao recheio, deixando entrever as génoises. Pensando bem, acho que farei isso da próxima vez.
De qualquer forma, deixo a receita exatamente como fiz.
Se quiser saber da receita original de bolo de doce de leite que serviu de inspiração, pode ver a linda versão preparada pela Patrícia Scarpin, que, só depois me dei conta, também teve a idéia de finalizar tudo com chocolate.
[P.S.: Antes que eu receba comentários me mandando para os quintos dos infernos, não acho que o bolo tenha ficado "feio-inservível"; apenas não estava de acordo com os meus planos originais... Claro, na minha terra da fantasia, eu tenho muito mais talento para decorar bolos do que na vida real... : P]

BOLO DE DOCE-DE-LEITE E CHOCOLATE
(Inspirado e adaptado do livro Sky High)
Tempo de preparo: 3 horas
Rendimento: 1 bolo 21cm, de duas camadas
Ingredientes:
(génoises)
- 4 ovos extra-grandes orgânicos em temperatura ambiente
- 1 pitada de sal
- 100g de açúcar cristal orgânico
- 45g de açúcar mascavo escuro (amassado com um garfo para desfazer as pelotas)
- 145g de farinha de trigo
- 1 colh. (chá) de essência de baunilha
- 1/4 xíc. de rum escuro
- 1/2 xíc. de açúcar cristal orgânico
- 1/4 xíc. de água
- 300g de doce-de-leite
- 1/4 xíc. de creme-de-leite fresco
- 150g de chocolate amargo mínimo de 50% de cacau
- 150g de creme-de-leite-fresco
- 15g de mel
- 30g de açúcar cristal orgânico
- Pré-aqueça o forno a 190ºC. Unte duas formas de bolo de 21cm, forre-as com papel-manteiga e unte novamente. Em uma batedeira, bata em velocidade alta os ovos, a baunilha e o sal, até começarem a tomar corpo. Vá acrescentando os açúcares aos poucos e continue batendo por cerca de 10 minutos, até que a mistura esteja com 4-5 vezes o volume inicial, bastante fofa e esbranquiçada. Isso é crucial para o sucesso do bolo, uma vez que ele não leva fermento.
- Diminua a velocidade da batedeira. Peneire a farinha e junte-a aos poucos à mistura, incorporando bem, tomando cuidado para que a massa não perca volume. Faça isso à mão, com uma espátula, se quiser.
- Derrame a massa igualmente nas duas formas, alisando com a espátula (não bata na forma). Leve ao forno por 10-15 minutos, até que estejam dourado-claras em cima e se desprendendo das laterais. Teste com um palito, e se ele sair limpo, está pronto.
- Retire do forno, deixe descansarem por 5 minutos e então desenforme, retire cuidadosamente os papéis e deixe que esfriem.
- Coloque os ingredientes do xarope numa panela e leve à fervura. Abaixe o fogo e deixe que ferva devagar, até que esteja com metade do volume inicial. Deixe esfriar um pouco.
- Enquanto isso, coloque o doce-de-leite e o creme de leite fresco na tigela da batedeira e bata até dissolver o doce e tomar corpo. Se não quiser usar o creme de leite, pule essa etapa.
- Coloque um dos bolos num prato, de ponta-cabeça. Regue com metade do xarope frio. Espalhe o recheio por cima. Se pretender dar um acabamento mais refinado com a ganache, deixe 1-2cm de borda, para que o recheio não se misture à cobertura. Se não, use todo o recheio e deixe que escorra naturalmente. Coloque a segunda camada, virada para cima, e regue com o resto do xarope.
- Pique o chocolate e coloque em uma tigela. Coloque o creme de leite, o mel e o açúcar em uma panela e leve à fervura. Desligue imediatamente e derrame sobre o chocolate. Deixe por alguns segundos e então misture até que esteja tudo derretido e homogêneo. Deixe esfriar um pouco.
- Se quiser um acabamento mais rústico, apenas derrame a ganache no centro do bolo, deixando que escorra naturalmente pelas laterais. Se não, espalhe uma camada fina da cobertura, por todo o bolo, puxando de cima para as laterais e puxando a espátula sempre para a mesma direção. Leve o bolo à geladeira por meia hora.
- Derrame o restante da cobertura, puxando com a espátula de cima para as laterais e deslizando-a pela lateral do bolo, num só sentido. Puxe o excesso de cobertura das bordas para o centro do bolo, deixando-o uniforme.
- Se tiver feito o recheio com o creme e tiver sobras, use-as para decorar o bolo como quiser.