quarta-feira, 24 de julho de 2019

Junho e Lisboa e Toronto



Quando chamaram meu voo de volta para casa, ouvi atônita aqueles dois chamados simultâneos: Passageiros do voo para Toronto, Canadá... Passageiros do voo para São Paulo, Brasil... Uma enorme estranheza tomou conta de mim, mas os motivos eram completamente inesperados: aquela era a primeira vez em que eu deixara o Canadá para outro lugar que não o Brasil, e era também a primeira vez em que eu estava irrevogavelmente certa de que Toronto era meu LAR. 


Junho fora um mês corrido à maneira que Dezembro costumava ser quando morava nos trópicos: festinhas de fim de ano escolar, apresentações, lanches comunitários, os últimos play dates antes dos amigos desaparecerem em seus dois meses de férias. A mãe tentando usar sabiamente o tempo que lhe resta de crianças na escola: faltam quinze dias para as férias, faltam dez, faltam três, meu deus, hoje é o último dia em que posso terminar esse trabalho sem os filhotes do lado! Montei minha segunda exposição num café de Toronto, mas já nesse momento, pelos horários impostos pelo lugar, precisei arrastar a pimpolhada comigo, pendurando quadros e grudando etiquetas, enquanto pedia aos filhos para tirarem os pés dos bancos e não incomodarem a mesa ao lado. Aqui, comam seu biscoito vegan-gluten-free, que esse café é uber-hipster e é o que tem pra hoje. Não, não pode ter outro, que a gente vai voltar pra casa e jantar. Sim, eu sei que está calor, mamãe também está com calor, o verão chegou, vocês não queriam o verão?, ali, taí, chegou o verão e o verão é quente. Ai, meu deus, os ganchos do café não cabem nos quadros, p*taquelospariu, vem com a mamãe na loja ali do lado pra comprar clipes de papel e resolver isso, que mamãe tem que pendurar os quadros pra vender, e a moça do café é muito educada e sorridente, mas à melhor maneira canadense, não está mexendo um dedo pra encontrar uma solução para o meu problema. Vem, que a mamãe é brasileira e a gente tem jogo de cintura e se vira nos trinta. 

No calor que chegou atrasado e repentino, guardei os casacos e meti-me num par de shorts e uma regata, cabelo póinhóinhóin desarranjado pela umidade e olhei no espelho. E aquela branquidão cadavérica do inverno sob a luz do sol, os bracinhos de ciabatta saindo da cava da camiseta, dando aquele tradicional tchauzinho em câmera lenta, a pele que exposta que já não tem aquele, como se diz mesmo? "viço" dos anos anteriores... fizeram-me olhar o espelho como cachorro que não entende, cabeça pendendo prum lado, sobrancelhas franzidas sobre os olhos. O que era isso que eu estava olhando? Quem era essa pessoa? Saída da elegância invernal, confortável consigo mesma, para essa estranha imagem sem idade nenhuma, uma mulher mais velha vestida d e "xófem" verão passado. Não conseguia definir se eu parecia uma velha tentando se passar por adolescente, se gostava ou não daquela mulher que eu olhava, se se era só um choque me ver de novo num biquini, após dez meses, e pela primeira vez eu me senti com os quarenta anos que se aproximam.

Ou melhor... me senti com idade nenhuma. Num limbo.

Liguei para minha melhor amiga: tô com crise de meia idade. Não sei quem eu devo ser com quarenta anos. Eu tava sussa até agora, de repente o espelho quebrou e não sei mais quem eu sou. Quem eu sou com quarenta anos? Eu sei que não sou mais quem eu era com trinta e poucos ou com o vinte e alguns. E agora, José? Que é que eu faço. 

Venha para Portugal me visitar, ela disse. 

E eu fui. 

Às vezes a gente precisa do farol para indicar o caminho.
Uma conversa rápida com o marido fenomenal que me apoia nas minhas loucuras e arranjamos o esquema das crianças na escola e alguém para passear o cachorro no meio do dia. Ele conseguiu horários alternativos de trabalho com a chefe dele, e em menos de vinte e quatro horas daquele convite, eu já estava de passagem comprada. O universo conspirou tanto, que até passagem promocional por metade do preço eu achei. 

E no meio de Junho dei um beijo na testa de cada filho, catei minha malinha e fui respirar ares portugueses na casa da minha querida amiga que eu não via havia dois anos. O abraço longo e amoroso, apertado de prender a respiração, compensou o voo com as galinhas da companhia aérea promocional mequetrefe. Enquanto andávamos até seu carro, sorrisos imensos, parando cinco vezes em vinte metros para mais abraços, fui sentindo os ares familiares entrando em mim e energizando meu corpo cansado. Familiar por aquela presença que me conhece tão bem, familiar por olhar em volta e ver aquele Brasil antigo de Lisboa, a arquitetura das casas de São Paulo, o idioma estampado nos outdoors. A mesma sensação de retorno às origens que senti quando fui à Itália pela primeira vez, mas agora eu compreendia não as minhas origens, mas do lugar onde nasci.


pão com chouriço
Fotografei o cone infantil de sorvete e mandei para Allex. No Canadá, sempre pedimos cones infantis para os adultos, pois a bola de sorvete que se faz para as crianças é do tamanho de uma bola de tênis.
Foram apenas cinco dias. Cinco dias de conversa infinita e mais abraços apertados. De O Que É Que Vamos Comer Hoje? De Quero Tanto Te Mostrar Esse Lugar! Fomos a Óbidos, Cascais, Sintra... comi todos os pastéis de nata que pude, e travesseiros de Sintra, e queijadas, e Toucinho do céu, e Sardinhas e pão com chouriço na festa dos Santos, e Pastéis de Bacalhau, e Polvo a Lagareiro olhando para o mar, e Bacalhau com batatas ao murro e sorvete de maracujá, e pão com manteiga de padaria e suco de laranja espremido na hora. Porque pão na chapa com suco de laranja em padaria de bairro é das poucas coisas que realmente me fazem falta do Brasil. As porções de comida eram consideravelmente menores do que as canadenses (e mais baratas), o que senti como um alívio. Que bom que a gente não se matava de comer numa refeição só e sobrava espaço para experimentar um pão-de-ló e tomar mais um café.

Não comi nada em Portugal que não estivesse gostoso.

 
Acordávamos cedo com minha amiga cantarolando uma musiquinha que, brinco, ficou gravada na minha mente para sempre. As crianças eram sempre cheias de energia, e a mesa do café era farto, como sempre era quando eu a visitava no Brasil. Queijos, presunto, muitas frutas devoradas inteiras pelas crianças. Café da manhã sem pressa, sem horário. Bota todo mundo no carro, bicicleta de criança, vamos passear. As crianças participam da conversa. Música. Estrada. Histórias de família. Esperanças e planos para o futuro. Passeios longos, caminhadas sem pressa em cidadelas antigas, ruas estreitas de escorregadias pedras portuguesas. Um calorzinho com vento fresco que pede vestido com echarpe. Cafezinhos bons e docinhos delicados em lugares de tetos antigos e janelas de madeira. Luz aconchegante. Sanduíches de sardinha e vinho verde. Crianças brincando com os brinquedos e os livros dos cafés. 


Banho de descarrego.
Cheiro de mar. Quem nada em lago não tem medo de água fria. Enquanto os portugueses sentavam na areia de agasalhos sob um ventinho frio de vinte e um graus, larguei as roupas e fui e eu e meu biquini brasileiro, minha barriguinha de mãe, minha pele branca de bicho de goiaba encasulado num inverno de oito meses, e me joguei no outro lado do Atlântico, cabeça submersa, tocando as mãos na areia do fundo, e emergindo com o sal na boca, estranho, tão estranho, porque não é lago. A água gelada pinicava minha pele e então esquentou. Nadei muito, deixei a corrente me levar, boiei à deriva um pouco, olhando as nuvens la´em cima, sentindo o cheiro salgado daquele mar que eu não via havia anos. 

Saí da água feito sereia que ganhou pernas, renovada, recriada, um mundo novo a explorar sob meus pés.

De volta à casa, a rotina bem conhecida, jantar, banho nas crianças, um vinho, uma conversa até tarde da noite, o cansaço do dia palpitando de energia viva sob a pele. Olho para fora, para as ovelhas sendo recolhidas na quinta em frente, o pôr do sol nas montanhas lá no fundo, ah, montanhas, sinto saudades suas, naquela terra plana onde moro, e ouço as vozes de pai e mãe explicando o mundo para os filhos, cantando músicas, contando histórias, dizendo boa noite. Roupas coloridas balançam no vento do lado de fora das janelas.

Tenho sorte de poder participar da rotina de uma família amorosa. E no outro dia vamos fazer uma visita à Maria, do Seis Mais Dois que virou Sete. Outra família que nos recebe de braços abertos, calorosa e gentil, e a realidade é sempre melhor do que o que se vê pelos filtros do Instagram, se você souber observar. A realidade das vidas dos outros, quando temos a sorte de viver com eles, de conectar e estar ali, é o aconchego do imperfeito, é a paz que vem quando a gente aceita a vida como é e não como dizem que tem que ser (ou como achamos que tem que ser). É vida que não cabe em página de revista e em foto de Instagram. É um alívio de se sentir parte de um mundo de verdade, de romper aquele filtro mágico que recobre a realidade dos outros na internet. O imperfeito que está bem e é lindo por isso mesmo. Que permite que nossas cobranças se dissolvam. Que permite que respiremos. Estar ali com aquelas duas famílias foi um presente divino do universo, o farol que acendeu suas luzes para me guiar naquele mar.


Num dia de uma volta sozinha em Lisboa, paro no fim da tarde para ouvir uma banda tocando numa praça. Tomo um vinho no meio da rua, sentada na beira do canteiro da praça com mais umas trinta pessoas. Olho o Tejo nessa luz de noite de verão que não escurece, ventinho frio sob a jaqueta jeans. Eu estava tranquila.

O tempo passa devagar. O tempo tem passado devagar desde que cheguei a Lisboa. Respiro devagar. As ideias fluem mais lentamente e com mais atenção. Vejo um grafite de um guaxinim ali, mas é tão a cara de Toronto. Sinto saudades. Pela primeira vez sinto saudades de Toronto. Lisboa é linda e antiga, é comida maravilhosa, familiaridade, mar. Mas sinto saudades de meus filhos, queria que estivessem comigo, e penso neles naquela cidade. Eles teriam adorado o mar e o castelo São Jorge. Teriam adorado os pastéis de nata e os frutos do mar. Mas como eu, cansariam rápido da dinâmica da cidade, pediriam mato e parque e trilha e bicho. Muito bicho. Falei dos bichos? Toronto tem bichos que não são grafite. Guaxinins aos montes. E esquilos. E chipmonks. E cisnes, e gansos e patos e corujas e falcões, que há dias que vejo mais de três sobrevoando baixo acima de minha cabeça. E coelhos, vi coelhos durante uma corrida cedo no parque. E noutro dia, para espanto geral, dei de cara com um coiote que ficou muito curioso com minha presença e me olhou nos olhos por longos minutos até assustar com minhas palmas e correr mato adentro. Bichos.




Penso na infinidade de playgrounds de Toronto. Como é fácil ter filhos ali. Com as calçadas grandes para andar de bicicleta. As trilhas que se conectam nos corredores verdes e vão te levando do lago para o rio, para o bosque, para a praça, para a floresta, para a lagoa, para o rio, para o lago de novo, borboletas voejando à sua volta e você esquecendo que aquela é uma cidade grande. Enquanto estou em Lisboa tomando meu vinho verde e pensando essas coisas, Allex me manda um video: Laura pedalando a primeira vez de bicicleta sem rodinhas. Pronto, meus dois filhos são crescidos agora.

Despeço-me com a promessa de um novo encontro, uma nova travessia de oceanos. Levo um doce português comigo no avião, para curar as mágoas da refeição aérea desastrosa. Agradeço e continuo agradecendo por dias ainda aquele convite singelo e transformador.

Estou ouvindo a chamada no aeroporto e despeço-me também da dúvida. O voo para São Paulo não faz mais parte da minha vida. Quando o avião decola, despeço-me não da Europa, mas da ideia de Europa que assombrava minha mente: e se tivéssemos ido para a Itália ao invés do Canadá? Quando o avião sobrevoa Toronto no meio de uma linda tarde de céu azul, vejo meu prédio ali perto do lago. É a primeira vez que consigo ver minha casa de um avião. Ele se destaca, assim como todos os poucos prédios, naquela imensidão verde que cobre a cidade. As árvores antigas são maiores que as casas, e  Toronto de cima é quase amazônica no verão. Meu coração se enche de amor e gratidão por aquelas árvores, aqueles parques, aquela infinidade de playgrounds que meu filhos amam tanto explorar. Um playground novo a cada cem metros. É uma cidade para crianças. 


Volto para abraços apertados. Volto para meu novo familiar. Estou em casa. Estou em paz. Estou zen.
Boto meus shorts, prendo o cabelo desarranjado pela umidade e vejo no espelho uma mulher de (quase) quarenta anos que está bem. Subimos em bicicletas e pedalamos vinte quilômetros por trilhas ao longo do lago, até prainhas pequenas. As crianças nadam com peixes. A água é gelada. Entro de roupa e tudo para refrescar.



Voltamos e botamos linguiças na churrasqueira. E tomates e abobrinhas e pimentões e cebolas. E no dia seguinte comemos os legumes que sobram com torradas e queijo e salada.


Quando Junho acaba, volto contente para o café para recolher meus quadros e descobrir que vendi alguns. Corro atrás da próxima empreitada. Quero vender todos.

Julho começa com o fim da minha breve crise de meia-idade. Renovada pela convivência com uma família linda e amorosa. Pelo banho de descarrego no mar gelado. Volto zen. Volto com amor e certeza por minha cidade, pelo meu momento, pelo meu lugar no mundo. Munida de toda a paciência do universo, de quem respira devagar. Paciência com as crianças. Paciência com os outros. Mas principalmente comigo. Dou-me conta do quanto julgar os outros me faz intolerante comigo mesma. Então apenas paro. Respiro. Aceito.

Não vejo a hora de poder dizer com orgulho que tenho quarenta anos.

The purpose of life is to enjoy.


......

E o que se cozinhou em Junho por aqui? 

Pouca coisa nova, no meio da correria. Rolou muita improvisação, isso sim.


Lembrei-me de um hábito que tinha com as crianças no Brasil, de comer queijos de sobremesa. Isso funciona bem aqui, pois a pimpolhada não come doce durante a semana, a não ser que seja um bolo ou biscoito de lanche da escola. Eles adoram queijo de sobremesa, e eu me divirto comprando um queijinho diferente por semana. Acompanham castanhas, que Thomas adora, e uma porção pequenina de frutas, que Laura devora.



Andei cavocando de novo o livro da Suzanne Goin, e dele saíram essa sopa de agrião com torradas com relish amanteigado. A sopa é uma delícia e o relish fez sucesso imediato. Mas achei muito bizarro descartar os legumes cozidos. Guardei-os e no dia seguinte transformei-os em recheio de quiche. Nham!


Dica: eu achei que a sopa ficou deliciosa, mas um pouco mais rala do que gostaria. Não sei se me faltou agrião ou se o caldo não reduziu como deveria. De qualquer forma,  numa próxima vez, eu colocaria menos sal no começo para poder reduzir um pouco mais o caldo antes de bater com o agrião. 

SOPA DE AGRIÃO COM TORRADAS COM RELISH
(Largamente adaptado do Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)
Rendimento: 6 porções

Ingredientes:
  • 7 colh. (sopa) manteiga
  • 1 xic. cebola fatiada + 2 xic. cebola picada
  • 2 alhos-porós pequenos fatiados
  • 1 cenoura, descascada e fatiada
  • 2 talos de salsão, fatiados
  • 1/4 de maço de tomilho
  • 1/4 de maço de salsinha + 2 colh. (sopa) salsinha picada
  • 1 pitada de pimenta caiena
  • 5 xic. folhas de agrião (cerca de dois maços)
  • 2 colh. (sopa) cebolinha picada
  • 1 colh. (sopa) estragão picado
  • 1 xic. creme de leite fresco
  • 1 limão
  • sal e pimenta do reino
(torradas com relish)
  • 1 baguette em fatias diagonais
  • 1/4 xic. azeite
  • 6 colh. (sopa) manteiga, amolecida
  • 1 colh. (chá) anchova picada
  • 2 colh. (chá) cebola picadinha
  • 1 colh. (chá) suco de limão
  • 1/4 colh. (chá) raspas de limão
  • 1 colh. (chá) salsinha picada
  • 1 colh. (chá) cebolinha picada
  • sal e pimenta

Preparo:
  1. Aqueça uma panela grande. Derreta nela 4 colh. (sopa) de manteiga da sopa e junte a cebola fatiada, o alho-poró, cenoura e salsão. Misture bem e tempere com 1 colh. (sopa) sal e um pouco de pimenta. Cozinhe por 5 minutos e junte as ervas, sem tirar dos talos, para facilitar retira-los depois. Cozinhe em fogo médio por mais 5 minutos até que os vegetais caramelizem. 
  2. Junte 10 xic. de água e leve à fervura. Abaixe o fogo e cozinhe pro 30 minutos. Passe por uma peneira e reservando o caldo. (Reserve também os legumes para outro uso, retirando os talos das ervas.)
  3. Volte a panela vazia ao fogo. Junte 3 colh. (sopa) manteiga e junte a cebola, 1 pitada da pimenta caiena, 1 colh. (chá) de sal  e pimenta. Cozinhe por 5 minutos, mexendo sempre, até que amoleçam. Junte o caldo, aumente para fogo alto e leve à fervura.
  4. É preciso bater a sopa aos poucos. Coloque 2 1/2 xic. de agrião e as ervas no liquidificador. Junte 1 1/2 xic. do caldo quente e bata até que fique homogêneo. Vá juntando o restante do agrião e batendo, acrescentando caldo se necessário, e volte a sopa à panela do que restou de caldo. Misture bem, Junte o creme de leite e misture, acertando o tempero.  Tempere com uma espremida de limão, se quiser. 
  5. Para as torradas, aqueça o forno a 190oC. Coloque as fatias de pão numa assadeira e pincele com o azeite. Leve ao forno por uns 10 minutos ou até que dourem. Deixe que esfriem.
  6. Numa tigela, misture todos os outros ingredientes até que vire uma pasta. Acerte o tempero. Espalhe a pastinha sobre as torradas frias e sirva com a sopa.



E esse peixe delicioso, marinado, grelhado, servido sobre um arroz verdíssimo e com rúcula fresca por cima. Um molhinho de pepino e iogurte para acompanhar.


Para deixar bem claro: essas são as medidas originais das ervas ´picadinhas. Mas, de verdade, eu já fiz assim ipsis literis e já saí jogando simplesmente "punhados" das ervas, e fica igualmente ótimo. Então não precisa ficar medindo loucamente não.

PEIXE COM ARROZ VERDE E PEPINOS NO IOGURTE
(Largamente adaptado do Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)
Rendimento: 6 porções

Ingredientes:
(peixe)
  • 6 filés de peixe branco com pele (o Vermelho é uma boa opção no Brasil)
  • casca ralada de um limão
  • 1 colh. (sopa) folhas de tomilho
  • 2 colh. (sopa) folhas de salsinha picadas
(pepino com iogurte)
  • 450g pepino
  • 1/2 colh. (chá) sementes de cominho
  • 3/4 xic. de iogurte
  • 1/2 colh. (chá) alho picadinho
  • 2 colh. (sopa) cebola picadinha
  • uma pitada de pimenta caiena
  • 2 colh. (sopa) folhas de menta, picadas
  • 2 colh. (sopa) azeite
(arroz verde)
  • 3 xic. água
  • 1/2 xic. salsinha
  • 1/4 xic. folhas de menta ou hortelã
  • 2 colh. (sopa) cebolinha
  • 1/4 xic. folhas de coentro
  • 2 colh. (chá) semente de erva doce
  • 1/4 xic. azeite
  • 3/4 xic. de funcho picado
  • 3/4 xic. cebola picada
  • 1 1/2 xic. arroz branco
  • 1 colh. (sopa) manteiga
  • sal e pimenta do reino
(finalização)
  • 1 maço de agrião, sem os talos mais grossos
  • 6 raminhos de coentro
Preparo:
  1. Tempere o peixe com as raspas de limão e as ervas, cubra e refrigere por 4 horas. 
  2. Faça o arroz: Leve a água para ferver e desligue o fogo. Coloque num liquidificador todas as ervas do arroz e 1 xic. da água quente. Bata até virar um purê bem verde e homogêneo.Junte o restante da água e termine de bater. Quanto mais lisinho for o caldo de ervas, mais bonito fica o arroz.
  3. Doure as sementes de erva-doce na panela em que vai fazer o arroz. Transfira as sementes para um pilão e transforme em pó (se ficar com preguiça, só doure e depois junte ao restante no passo seguinte). 
  4. Aqueça o azeite na panela do arroz e junte o funcho picado, a cebola, as sementes de erva doce, e 1/2 colh. (chá) de sal. Cozinhe em fogo médio até a cebola e o funcho ficarem macios, sem dourar. Junte o arroz, mais 1 colh. (chá) de sal e pimenta do reino. Mexa bem, e junte o caldo de ervas. Experimente e acerte o sal a gosto.  Leve à fervura, reduza o fogo e junte a manteiga. Cubra e cozinhe por uns 15 minutos ou até o arroz ficar pronto, normalmente. Afofe com um garfo, acerte o tempero e reserve.
  5. Enquanto o arroz cozinha, faça os pepinos: Fatie os pepinos bem fininhos e tempere com 1 colh. (chá) de sal. Deixe sorar por dez minutos.
  6. Toste o cominho (dica: as sementes já estão tostadas o bastante quando você sente o perfume delas) numa frigideira e pulverize num pilão. 
  7. Drene os pepinos, seque com uma toalha e junte aos outros ingredientes. Acerte o tempero e reserve. 
  8. Aqueça uma frigideira grande por uns dois minutos. Tempere o peixe com sal e pimenta dos dois lados. Coloque um fio de azeite na frigideira e espere um minuto para esquentar. Coloque o peixe com a pele para baixo e cozinhe por 3 a 4 minutos até a pele ficar crocante. Vire o peixe, abaixe o fogo para médio-baixo e cozinhe por mais alguns minutos. 
  9. Transfira o peixe para a travessa do arroz quente. Sirva com o agrião por cima, mais um fio de azeite, uma espremida de limão e os pepinos para acompanhar.





quarta-feira, 15 de maio de 2019

Biscotti per il caffe, Torcidinho e Alcachofra de infância, duas mesas, uma panela e um Panzerotti


Em Fevereiro eu disse que a Primavera não chegava nunca. Em Março eu disse que a Primavera não chegava nunca. Em Abril eu disse que a Primavera não chegava nunca. E agora estamos em Maio, passamos a última semana com chuva, vento e miseráveis 5 graus, e a Primavera parece só dar as caras em teoria.

"Não se preocupe", disse uma amiga croata. "A primavera acaba logo logo."

Rio pra não chorar. Até os canadenses estão reclamando.

Hoje faz o que deve ser o terceiro dia de sol desde o início da Primavera e provavelmente o sétimo de temperaturas acima de 12 graus. Depressivo sim, mas para quem passou meses com dígitos duplos negativos, 17 graus com sol é a pura alegria do verão. Quando fez 11 pela primeira vez, Laura tirou o casaco e rodopiou a saia pela rua, gritando "o calor voltou! o calor voltou!". Com 14, achamos que o tempo estava suficientemente agradável para estrear a churrasqueira.

Referência é tudo na vida.



Enquanto a churrasqueira não chega na temperatura ideal para o prato principal, deixo pimentões ali chamuscando. Se as árvores ainda estão secas e o parque tem mais lama que grama, ao menos os pimentões trazem para dentro essa cor linda de sol de que tanto precisamos. Chamuscados os pimentões, vão para um saco ou pote fechado, para esfriarem e soltarem a pele. Fatiadinhos, sem as sementes, são temperados com bastante azeite, alho e manjericão, uma pitada de sal e pimenta, e viram condimento para as linguiças que vão para a grelha em seguida. Ou simplesmente sobre pão grelhado, com uma fatia de queijo. O que sobra é coberto com mais azeite e mantido num pote de vidro tampado na geladeira, e dura bem uma semana assim, para entrar em sanduíches, saladas ou como molho de macarrão.



Laura agora sempre pede que compre pimentões em dia de acender a churrasqueira.

Apesar da temperatura, da chuva, dos ventos, as flores surgem. A primeira grama de primavera é de um verde fluorescente que parece conter toda a  energia do mundo. Um verde vivo contra os troncos molhados de chuva, de um azul escuro intenso sobre marrom. Os pássaros estão todos aqui. O silêncio do inverno não mais existe. Um passear pelo parque é um estímulo aos ouvidos. Um farfalhar de folhas ali, onde os esquilos se escondem, Robins, Picapaus, Red Winged Black Birds cantando sem pausa por sobre minha cabeça. Os filhotes de guaxinim explorando o mundo com ares perdidos. O caminhão de sorvete. O homem do cachorro-quente. Os seres humanos que brotam como que da terra, como toupeiras despertando da hibernação, deixando suas tocas poeirentas para deixar o sol bater em seus rostos pela primeira vez no ano, olhos semicerrados, narizes coçando de pólen, joelhos pálidos de fora.

A luz, mesmo que cinza de dia feio, vem cedo. Estranho que sejam sete da manhã e tomemos café de luzes apagadas. Sento-me à mesa nova, uma mesa grande, onde agora caberemos todos mais confortavelmente, comida e comensais, e beberico meu cappuccino, olhando para fora. Pela primeira vez, há vida lá fora às sete da manhã. Bandos de patos e gansos voam em formação para os gramados onde vão passar o dia se alimentando. A construção do prédio ao lado já está a todo vapor. A luz. A luz prateada de mais uma manhã cinzenta fere meus olhos sonolentos ligeiramente, mas me enche de energia para começar o dia direito.

Os dias têm começado com Biscotti. Essa descoberta linda no meu café da manhã. Passei muito tempo da minha visa assando biscotti (e toda sorte de biscoitos italianos) para serem mergulhados no vinho doce. Laura sempre os achou muito duros e crocantes para serem comidos de lanche. E eles haviam sumido de minha vida por conta da proibição de castanhas na escola desde que chegamos aqui.

Até o dia em que decido preparar biscotti de amêndoas, clássicos cantuccini, de pura saudade que tinha deles. E pesquisando aqui e ali, descubro que os italianos na verdade comem biscoitos no café da manhã, e não como lanche da tarde.

É uma descoberta muito besta, mas que de repente fez todo o sentido do mundo. Mergulhados no cappuccino, no leite puro ou no café com leite, sua crocância se atenua como fazia no vinho, mas de repente seus sabores sutis, adultos, sua quase ausência de doçura comparados com os biscoitos americanos, combinam-se perfeitamente com a doce gordura do leite. Biscoitos italianos no café da manhã são como uma fatia de "bolo de nada", aqueles bolos de laranja ou baunilha bem suaves. Se fossem cookies de chocolate ou outros exemplos de biscoitos norte-americanos, talvez parecessem uma indulgência tão cedo no dia. Mas esses, particularmente, fazem um café leve e agradável.


As crianças mergulharam alegremente no conceito de biscoito de café da manhã, da mesma forma que mergulharam os biscotti no leite quente. E olhe só, minha filha que detesta castanhas adorou os cantuccini.

Agora quando digo que estou fazendo Biscotti, eles já sabem que é não é um cookie qualquer: é biscoito para o café.

Os cantuccini foram receita de Tessa Kiros, fáceis e até hoje os mais parecidos com o que meu paladar se recorda do que provei na Itália. Já fiz cantucci excessivamente austeros e, mais do que nunca, excessivamente doces, como são quase todas as receitas vindas de chefs americanos e ingleses. Já os fiz muito duros, que Laura detestava, e muito macios, que dissolvem ao serem mergulhados, arruinando a experiência. Esses eu considero ideais. E por Laura ter gostado deles, têm agora o carimbo de "minha receita oficial de cantuccini".

Um outro me chamou a atenção na internet por conta do nome: biscotti della nonna ou Biscotti da Inzuppo. Literalmente, biscoito pra ensopar. Parecem Lady Fingers (biscoito champagne) na aparência, mas são bem mais secos, simples e menos doces. Deixaram-me com vontade de preparar Savoiardi (o nome italiano de biscoito champagne), que, curiosamente, não me lembro de jamais ter feito. Foi um igual sucesso com as crianças.


O último preparado foram Biscotti delle Suore, o biscoito das freiras.  Em forma de S, é uma massa fácil de preparar, leva quase nada de açúcar, e é assada duas vezes, como os cantucci. Esse, aromatizado com sementes de erva-doce, entrou para minha lista de favoritos. Thomas adorou, como sempre adora todos os biscoitos que preparo. Laura pareceu confusa num primeiro momento pela presença da erva-doce.



"Mas mãe, esse biscoito é salgado ou é sweet? Ele tem aquelas mesmas seeds do outro, sabe? Aquele que era assim, long and thin and twisted."

Ela fala do Torcidinho. E sim, meus filhos estão fazendo uma bela de uma salada russa de inglês com português, o que às vezes é muito engraçado, mas tem me feito pegar um pouco mais no pé dos dois a respeito de concordância verbal e uso de preposição. Quando acontece esse troca-troca de palavras, repito suas frases com as palavras em português, para que não percam o vocabulário. Mas quando aparecem com frases inteiras e histórias contadas todas em inglês, sou chata num tom leve, e vou logo avisando: "Mamãe fala português.", ao que eles trocam o idioma novamente.

Quando brincam juntos, quase sempre o fazem inteiramente em inglês, trocando de volta para o português quando percebem que não estão se fazendo entender ou não estão convencendo um ao outro. As brigas são sempre em português. ;)

Vejo que eles têm dificuldades com palavras novas em português. É mais fácil aprenderem a falar Artichoke do que Alcachofra (que Laura transformou em Alfachoca). Os fonemas ingleses já fazem mais sentido na cabecinha deles.

Conjugação verbal é outra batalha. "Se eu fizesse" vira "se eu fazia", "que eu venha" vira "que eu venho", "eu fiz" vira "eu fazi", e já houve clássicos como "que eu vinhesse", "ter fazido", "ele iu", e muitos mais. (Isso considerando que eles saíram do Brasil conjugando verbos super bem - desaprenderam mesmo!) Sem contar as expressões idiomáticas traduzidas literalmente, como "mamãe, POSSO TER um pedaço de bolo?" (can I have a piece of cake), ou "Eu NÃO POSSO ESPERAR pela festa" (I can´t wait for the party), "ela VAI SER seis anos amanhã" (she will be six years old tomorrow) e "o dinossauro É ESSE GRANDE!" (...is THIS big, ao invés de "grande assim").

Fico feliz de ver que, apesar da confusão na hora de falar, eles ainda têm curiosidade com a língua-mãe. Laura às vezes pede ajuda para escrever frases inteiras em português, ainda que eu tenha que soletrar com a pronúncia em inglês para evitar a famosa bagunça do "I", "E" e "A". Thomas, por sua vez, já entendeu que a coisa toda de "sound the letters" para formar os fonemas das palavras também funciona em outras línguas, e começou a pegar livros e gibis em português para ler sozinho. Entendo sua dificuldade, enquanto ele lê em voz alta, todas as palavras soando num primeiro momento com sotaque de gringo. Mas tão logo ele reconhece o significado, repete em português correto, e assim ele vai, aprendendo a ler sua própria língua sozinho.

Ao vê-lo esparramado no sofá, óculos sobre o nariz pontudinho, cenho franzido, sério, pernas compridíssimas dobradas para apoiar o livro aberto, dou-me conta do seu tamanho. Menino gigante. Essa semana veio me dizer que quem lê 100 livros num ano ganha um pirulito e o nome marcado na lousa da professora. Lá veio ele feliz e contente dizer que faltam só 15, e que ele vai trazer dois por dia da escola, para poder bater sua meta mais rápido. (Lembrando que na escola aqui eles trazem um livro por dia para ler como lição de casa, mais o livro da biblioteca que podem manter por uma semana.)

Meu Matador de Dragões não é perfeito. Ele apronta pra burro na escola. Mas vê-lo tomar gosto por leitura me enche de orgulho. 

A segunda fornada ainda tinha no papel as migalhas da primeira.

Eles não são nadinha perfeitos, mas eram exatamente como eu me lembrava.

Fazer Torcidinho para meus filhos me encheu o coração de alegria. Foi dar uma mordida para ser transportada novamente à minha infância. Eles não ficam bonitos como os que lembro de trazer da casa de minha avó, mas o gosto é o mesmo, a crocância, o modo como derretem na boca, deixando um sabor delicioso de manteiga dourada e um aroma delicado de erva-doce. Teriam sido sucesso absoluto se Laura não tivesse achado os biscoitos muito salgados. Aparentemente, pesei na mão na hora de polvilhar com sal a superfície antes de ir ao forno. (Cada vez que vou ao mercado há uma marca diferente de sal marinho, e cada um tem um teor diferente de "salinidade". Com esse último, percebi que muita coisa acabou ficando mais salgada do que normal mesmo.) Prometi maneirar da próxima vez, e ela prometeu experimentar de novo.

TORCIDINHO
 (adaptado do livro Dona Benta de sabe-se lá que ano)
Rendimento: o bastante para o lanche da tarde de meia dúzia de netos. 

Ingredientes
  • 100g manteiga gelada
  • 250g farinha de trigo
  • 1 colh (chá) sal
  • 1 colh (chá) fermento químico em pó
  • 6 colh. (sopa) leite
  • 1 colh (sopa) sementes de erva-doce
  • 1 gema para pincelar

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC.
  2. Numa tigela, misture a farinha, sal e fermento. Esmigalhe a manteiga com a farinha, esfregando entre os dedos, até obter uma farofa grosseira. Junte  o leite e as sementes de erva-doce e amasse com as mãos apenas até que a massa fique uniforme. 
  3. (Eu que sou moderninha, fiz no processador: pulsei a manteiga com a farinha, sal e fermento, uma ou duas vezes, só para fazer a farofa. Juntei o leite e pulsei mais umas duas vezes até a massa começar a querer grudar. A massa É SECA e deve ser sovada até se juntar bem, mas se estiver se esmigalhando muito facilmente, junte uma colher extra de leite.)
  4. Abra a massa com o rolo, com pouca farinha, apenas para não grudar, até a espessura de mais ou menos meio centímetro (se ficar muito fina vai quebrar na hora de torcer). Pincele a massa com a gema batida. 
  5. Corte com uma faca em tiras compridas de 1cm de largura. Torça ligeiramente as tiras e disponha numa assadeira forrada com papel-manteiga. 
  6. Leve ao forno por 10-15 minutos, virando uma vez no meio do cozimento para que não queimem embaixo e dourem por igual. 
  7. Retire do forno e da assadeira e deixe que esfriem sobre uma grade.

Não foram apenas biscoitos as coisas novas que experimentamos. Ao dar de cara com um pé de escarola, coisa banal no Brasil, mas que por aqui é sazonal e eu quase nunca encontro, resolvi fazer um prato que não preparava desde que saí do país, e que é um de meus favoritos: peixe grelhado com escarola. Não era só a ausência da escarola, no entanto, que me fez ficar quase dois anos sem preparar algo tão simples. Também foi o problema da panela.

Veja bem, eu vendi todas as minhas panelas antes de sair do Brasil, menos a caçarola vermelha que Allex me deu de aniversário uma vez. Chegando aqui, pesquisei um monte, e acabei comprando um jogo de panelas de inox da Cuisinart em promoção (porque aqui só se compra coisa em promoção, já que todas as políticas de preço são feitas para o preço promocional ser o preço real, mais ou menos como meia entrada de cinema no Brasil), que estava bem avaliada e não ia comer nosso orçamento de imigrante recém-chegado.

Ah.

Nunca me arrependi tanto de vender minhas panelas WMF. Aquelas, alemãs, que haviam sido presente de casamento, duraram quinze anos, até eu vendê-las, sem nenhum dano estrutural. Nunca entortaram, nunca soltaram um rebite, nunca me deram problema. As Cuisinart... que deveriam ter fundo triplo e tudo o mais... entortaram na primeira vez que deglaceei a panela com vinho gelado. Ouvi um POC! vindo da frigideira, e seu fundo entortou e abaulou de uma vez e definitivamente. (Detalhe: eu nunca tive torneira de água quente na pia da cozinha lá no Brasil, e aquelas panelas WMF iam do fogão pra pia cheia de água fria direto, e NUNCA NUNCA NUNCA entortaram.)

:(

O fundo abaulado não seria um problema num fogão brasileiro, tradicional, em que a panela vai apoiada numa grade e o fogo se espalha por baixo dela toda. Mas aqui você aluga o apartamento e o fogão já vem junto. E eles são todos elétricos. E o meu, com essa superfície de vidro, só transfere calor para a parte da panela que está de fato encostada nela. Ou seja, metade da panela queima a comida, metade da panela deixa ela crua.

Além disso, a maior frigideira que viera no jogo não era grande o bastante para comportar dois filés de peixe ao mesmo tempo. E na primeira vez que tentei fazer peixe para a família inteira, terminei com filés meio queimados, meio crus, totalmente grudados na panela, e quando o último ficou pronto, o primeiro já estava gelado.

E por isso havia parado de fazer peixe grelhado.

Até o dia em que a octagésima torrada queimada me deu nos nervos e resolvi dar um basta. "Vou comprar uma frigideira nova", avisei. "Então pega um negócio bom de verdade dessa vez Ana, chega de solução provisória", disse Allex, já sabendo que eu ia querer economizar e pegar mais uma panela de inox que entortaria.

Pesquisei, pesquisei, e o início da Primavera trouxe toda uma temporada de liquidações em lojas de decoração e cozinha. E, sentindo saudades daquela minha caçarola verde que também vendi, que comportaria a quantidade brutal de comida que meus filhos andam comendo ultimamente (e, né? adolescência logo logo vem aí e eu tenho um moleque em casa), achei que um panelão seria mais interessante que uma frigideirinha.

E me arranjei de novo meu frigideirão-caçarola. Esse fundo ninguém entorta. ;)

E foi justo com o peixe e escarola que estreei a bonitona. A primeira alegria foi o pé inteiro de escarola caber nela de uma vez para ser refogado.

Escarola é minha verdura amarga favorita!

A segunda alegria foi o peixe não ter grudado, eu ter conseguido fazer dois filés por vez com folga, e poder ter voltado tudo para a panela para servir.


A terceira alegria foi meus filhos, que reclamavam do amargor da escarola no Brasil, terem crescido e decidido que adoram escarola. Principalmente desse jeito.

Esse é um dos meus pratos favoritos de todos os tempos. Daqueles que me enche a boca de água só de pensar e que lá no Brasil eu preparava sempre que tinha escarola na feira. Talvez eu já tenha publicado a receita aqui antes. Mas por via das dúvidas, vai de novo.

PEIXE GRELHADO COM ESCAROLA
(sim, é da Tessa de novo, mas já fiz tanto que já sei de cor.)

Numa frigideira bem grande, coloque duas colheres (sopa) de azeite e dois ou três filés de anchova. Ligue o fogo médio-baixo e vá amassando a anchova com as costas de uma colher de pau. Quando a anchova tiver dissolvido, junte um grande dente de alho fatiado fininho. Assim que perfumar e começar a querer dourar, junte a escarola cortada em tiras grossas (um pé inteiro, lavado e seco). Tempere com POUCO sal e mexa até que ela comece a murchar. Aumente o fogo e continue cozinhando até que ela esteja macia e quase toda a água do fundo da panela tenha evaporado. Junte um punhado de azeitonas pretas picadas e uma colher (sopa) de alcaparras. Acerte o sal e a pimenta e transfira para uma travessa, mantendo aquecida. 
Na mesma frigideira, aqueça mais um fio de azeite, um dente de alho pequeno, inteiro, e algumas folhas de sálvia. Tempere com sal e pimenta alguns filés de peixe branco de sua escolha (já fiz com linguado, pescada, e peixes mais altos e firmes). Passe os filés em farinha dos dois lados, bata o excesso, e frite os filés no azeite aromatizado, uns minutinhos de cada lado. (Quando o alho dourar, tire-o da panela.) Quando terminar de fritar os filés, retire-os da panela, desligue o fogo e esprema meio limão sobre ela, esfregando o fundo da panela com uma colher de pau para soltar a gordura grudada e fazer um molho. Regue o peixe com esse molho e sirva com a escarola preparada ainda quente.


Eu demorei muito, na verdade, para ter coragem de comprar a panela. Assim como para trocar a mesa da sala ou mesmo vender minha mesa de desenho, que era de vidro e metal. Havia uma coisa em mim que não queria admitir que eu tinha errado, que tinha tomado decisões às pressas.

Quando compramos a mesa pequena da sala, não queríamos gastar muito, mas, principalmente, achamos mesmo que não receberíamos gente em casa nunca, e que um espacinho só pra quatro estava bom. Ledo engano, a casa logo recebeu amigos, família, e mesmo para nós quatro a mesa não bastava. Era um quebra-cabeça para fazer caber os pratos, os copos e as panelas para as crianças se servirem. Quando meus pais vinham visitar e tínhamos de fazer caber seis numa mesinha de 120x70cm, então... vixe.

Quando comprei minha mesa de desenho, eu ainda tinha em mente a vida profissional que eu tinha no Brasil, os trabalhos que fazia lá, os clientes que tinha lá, o espaço, principalmente, que eu tinha em minha antiga casa. Eu queria muito voltar a desenhar, mas a confusão emocional da mudança não deixava, e me convenci de que o que faltava era a mesa, sem perceber que o que faltava era paz de espírito. Aqui, a mesa de vidro revelou-se desconfortável, pouco prática e me desestimulava a sentar para trabalhar. Ela acumulou pó por meses até me sentir em paz para usá-la diariamente, e foi nesse uso diário que percebi o erro que havia cometido. Mas eu tinha uma certa vergonha de admitir que tinha errado, que tinha feito uma compra ruim e meio que por impulso, ainda mais recém-chegada num país novo, e dizer que queria me livrar dela parecia quase ofensivo.

Com as panelas foi igual.

Quando cheguei com meu panelão vermelho aqui no Canadá, minha ideia era comprar uma panela por vez, segundo a necessidade aparecesse. Eu andava cozinhando de forma muito simples, e, num primeiro momento, parecia lógico apenas comprar uma frigideira e uma panelinha funda com cabo. Mas a muquirana em mim ficou aflita, pois pelo preço de uma frigideira excelente, eu poderia comprar um jogo inteiro de panelas que parecia muito boa. Estava em promoção, era uma oportunidade, faz muito mais sentido, eu dizia a mim mesma.

Só que não fez. Como todas as outras decisões tomadas às pressas e baseadas unicamente em ansiedade e dinheiro. Nessas três coisas (e em tantas outras), eu poderia ter esperado um momento mais calmo para tomar a decisão de compra e ter acertado mais. As frigideiras entortaram, a maior delas não era grande o suficiente para o que eu de fato precisava, o caldeirão é maior do que preciso, elas não distribuem tão bem o calor quanto as minhas antigas, indo de geladas a queimando num instante, e o fundo torto delas faz com que girem e deslizem perigosamente sobre a superfície de vidro do fogão, tornando muito difícil deixar as crianças cozinharem comigo.

E daí que comemoramos o emprego novo do marido trocando a mesa numa promoção da Ikea (que acabou saindo o mesmo preço da mesa pequena). Consegui vender minha mesa de desenho para uma vizinha e usar o dinheiro para comprar uma prancheta portátil de madeira, que foi para cima da antiga mesa de jantar, que é agora minha mesa de trabalho, infinitamente mais confortável.



E por último, o panelão. Ele é vendido como Braiser (uma panela de brasear), mas é um excelente frigideirão, e quando paro para pensar, era a panela que eu mais usava no Brasil e sabe-se lá o que me deu pra decidir vendê-la. O almoço de Páscoa também foi feito nela, uma perna desossada de cordeiro assado à toscana, com azeite, alho, alecrim e sálvia, braseado com um pouco de vinho branco e batatas bolinha.  Foi minha primeira vez assando cordeiro, e ele acabou passando um pouco do ponto rosé. Mas mesmo assim ficou muito bom. O que sobrou dele, desfiei e cozinhei com molho de tomate e congelei: ragù de cordeiro para comer com polenta. (Prefiro sempre congelar restos de carne em forma de ragù, pois o molho de tomate protege a carne de freezer burn).

IEEEEEEEIIII!!! As panelas cabem no meio da mesa! E a gente não come mais enfiando o cotovelo no prato do outro! :D
Ficou com certeza mais fácil tirar ISSO do forno do que a assadeira fininha onde eu assava carne com batata antes, que sempre entortava na hora que eu ia colocar na bancada e derramava molho engordurado pelos cantos.
O cordeiro passou bastante do ponto, mais ficou tudo danado de bom.


Olha quem estava embaixo da mesa só esperando as sobras do cordeiro caírem do meu prato.

O acompanhamento foram alcachofras recheadas (alcachofras limpas, abertas, espinhos retirados, recheadas de alho, salsinha e raspas de limão, um fio de azeite, cozidas em um pouco de água por trinta minutos, mais ou menos). Alcachofras são uma de minhas coisas favoritas, e uma memória culinária intensamente associada a meus pais. Todos os anos, perto do meu aniversário em Outubro, meus pais traziam alcachofras do mercado. Esse presente que eu esperava por estações inteiras. E enquanto elas estivessem na época, nós as comeríamos, cozidas, inteiras, solitárias nos pratos de louça, cada um com seu potinho de Pinzimonio (azeite, sal e pimenta-do-reino), para mergulhar as folhas e raspar com os dentes. Quando não houvesse mais folhas, meu pai me ensinaria a arrancar com os dedos em pinça as pétalas mais delicadas, cor-de-rosa, e então os espinhos, deixando o fundo cinzento da alcachofra com delicados furinhos de onde eles se haviam desprendido. Eu derramaria todo o restante do azeite temperado sobre aquele fundo e o comeria com garfo e faca, fazendo sons felinos de satisfação, saboreando aquela recompensa pela paciência de limpar e comer uma alcachofra pelas pétalas. 

Comida que tem ritual me encanta. 

E ver meus filhos fazendo o mesmo, arrancando as pétalas verde-acastanhadas, mergulhando no azeite e raspando a carninha pálida entre os dentinhos brancos, me enche de amor.  

Talvez por isso eu esteja adorando tanto assistir a videos de velhinhas italianas cozinhando. Sinto saudades de minhas avós e sinto saudades de meus pais no Brasil. Mas me lembro da importância do ritual na cozinha. 

Foi do canal da Nonna Maria que vieram esses panzerotti. 

Panzerotti eram algo que eu me prometera preparar havia já muito tempo, desde o dia em que Allex e eu comemos um no Panzerotti da Luini, em Milão. O excesso de projetos culinários do passado me impediu de levar esse a cabo, e a preguiça de fritura em panelas pequenas aqui também. Depois da bagunça que fora fritar pastel na minha frigideira de 26cm, eu não tinha planos de fazer isso de novo. 

Até o advento do panelão. 

Os panzerotti fritaram lindamente e foram a alegria da sexta-feira e do resto do fim de semana. Porque a receita que leva mais de 1kg de farinha dizia que fazia panzerotti para 4-5 pessoas, mas obtive 24 panzerotti do tamanho de um pastel de feira, e fiquei me perguntando se um ser humano conseguiria numa sentada só mandar ver 6 panzerotti assim de uma vez. Thomas comeu 3, o que me surpreendeu um bocado (pra onde vai tanta comida naquele corpinho magrelo?). Eu comi dois e estava satisfeitíssima. A parte boa é que eles requentaram super bem na Air Fryer, ficando crocantes de novo.

A dica que eu dou é colocá-los no óleo de barriga para baixo primeiro. Pois se colocados virados para cima, o ar que resta junto com o recheio vira um grande balão, e você não consegue virá-los ao contrário para terminarem de fritar. (Você também pode ser mais caprichoso que eu e de fato tentar tirar o ar de dentro deles na hora de rechear. Mas eu fiz todo o processo com criança junto, e eles fecharam um monte dos panzerotti, então, né... o controle de qualidade caiu.)



Não é pra ser um comercial de panela, nem um post de Haul de compras. Mas é um pouco a respeito de se perdoar quando a gente faz burrada. Principalmente burrada com dinheiro. Todo mundo já fez uma compra ruim e se arrependeu depois. E todo mundo já ficou guardando aquela blusinha feia que não cabe por anos ainda com etiqueta, ou sentando todo dia naquele sofá desconfortável, simplesmente por medo de dar o braço a torcer. Claro, muitas vezes não dá pra voltar atrás. Passei o último ano inteiro olhando para as duas mesas e queimando comida em panelas deslizantes porque a conta não fechava, não dava pra resolver. Assim que deu, deu. Vendi o que dava pra vender pra não morrer no prejuízo, e resolvi o que eu podia. Precisava ser o panelão vermelho? Precisar, não precisava, eu poderia ter ido atrás de outra panela de inox de qualidade. Mas confesso que fiquei com tanto medo de ela estragar igual à outra, que, como Allex disse, fui atrás de uma solução mais definitiva. Chega de solução provisória. Ferro fundido não entorta. Ela é pesada pra chuchu, então não desliza. E cabe uma quantidade abissal de comida dentro. E dois pés de escarola. Então pronto. Estou feliz com o bichinho na minha cozinha. 

Maio foi mês de coisas novas, novas receitas. Agora só precisa vir o calor de uma vez por todas, porque essa coisa de frio já virou velharia e cansou.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Abril, sorvete de Gianduia, Focaccia de morangos, melhores almôndegas, criança na cozinha, saudade de comida de vó

FLORES FINALMENTE!
A Primavera parece ter finalmente chegado. Depois da última nevasca no começo de Abril, que pegou todo mundo de surpresa, finalmente os pássaros voltaram, as formigas ressurgiram e as flores começam a nascer novamente. Só quem passa por um Inverno rigoroso conhece a alegria de ver um tufo de grama verde. Sair finalmente sem gorro, com o vento soprando pelos cabelos no topo da cabeça é um alívio.

O começo de Abril também trouxe o aniversário de oito anos de meu Matador de Dragões. Oito anos. Olho para esse menino comprido do meu lado e me assusto com a velocidade do tempo. É uma delícia acompanhar seu amadurecimento, essa montanha russa comportamental, que o leva da risonha bobeira infantil à opinião forte e respondona mais típica de um adolescente em milissegundos.  

Quase que  não sobra bolo para fotografar. Era o bolo de baunilha de sempre da Alice Medrich, ao qual acrescentei 1/4xic. de coco ralado hidratado em um pouquinho de água quente. Chocolate Fudge frosting da Alice também. A ideia do bolo foi do Thomas: um bolo de coco, com cobertura de chocolate, com coco ralado em cima e morangos.

Numa manhã recente, enquanto eu tomava meu cappuccino, braços cruzados, quadris repousados contra a pia, observei a movimentação silenciosa de meus filhos. Thomas veio até a cozinha a passos certeiros, apanhou a frigideira da gaveta de panelas e deixou-a sobre o fogão. Continuei apenas observando, sem dizer nada. Pegou uma fatia de pão. Não, duas. Tirou o pote de vidro de manteiga da geladeira e, com uma pequena faca afiada, tirou-lhe um naco, cuidadosamente depositado no centro da frigideira. Esticou o braço por cima da frigideira, erguendo seu corpo apenas a alguns centímetros do chão sobre a ponta dos dedos, e ligou a boca sob a panela, após um segundo de pausa, enquanto lembrava para que lado girar o botão. Quando a manteiga começou a derreter, segurou firme o cabo de metal com as duas mãos, fazendo um movimento circular com a frigideira, para que a gordura se espalhasse por sobre todo o fundo. Depositou ali suas duas fatias de pão, pressionando-as com as pontas dos dedos para que absorvessem a manteiga, e então cruzou a minha frente em direção à cafeteira automática, onde posicionou sua caneca favorita, de dinossauros, e se preparou um pouco de leite quente com espuma, que bebericou aos poucos, enquanto esperava suas torradas dourarem. Quando desligou o fogo e colocou seu café da manhã no prato para levar à mesa, voltei meus olhos para Laura, que àquele dia resolvera, não sei por quê, já que nunca peço isso a ela, esvaziar a lava-louças. Foi tirando cuidadosamente todos os pratos, tigelas, copos, talheres e panelas pesadas da máquina, e arrumando cada item em seu lugar no armário lá no alto, empoleirada num banquinho, de forma organizada, deixando sobre a bancada apenas os potes que eu precisaria para seus lanches escolares.  Terminada a tarefa, ela abriu o freezer, apanhou um saco de mirtilos congelados, despejando um punhado deles sobre a peneira que ela tirara da lava-louças, e abrindo a torneira de água quente da pia, finalmente ao seu alcance. Depois de deixar a água quente correr sobre as frutas o bastante para que descongelassem, ela as espalhou sobre colheradas de iogurte natural retiradas do pote tamanho família da geladeira, e seguiu contente e em silêncio para a mesa, onde saboreou seu café da manhã com seu irmão, enquanto conversavam sobre tipos de monstros e demônios que desenhariam em seguida.

Ri por dentro, contentíssima e surpresa. 

Meus filhos cresceram. Com seis e oito anos, não há mais crianças pequenas em casa. 

Sempre estimulei sua independência, por motivos altruístas (quero que desenvolvam diferentes habilidades e autoconfiança) e por motivos completamente egoístas (quanto mais independentes eles são, mais tempo eu tenho para mim). Se eles mostram capacidade física e emocional para uma tarefa, quero mais é que façam sozinhos. Começando com arrumar as próprias camas e se vestirem sozinhos quando eram bem pequenos, comerem sozinhos, usarem louça de adulto sem quebrar (sempre fui contra prato de plástico e copo antirespingo, porque não ensina a ter cuidado com os objetos e com a sujeira - a única pessoa da casa que quebrou prato e copo desde que as crianças nasceram fui eu)... passando por tomarem banho sozinhos e escovarem os dentes (o último precisa de uma avaliação materna e paterna e às vezes mandamos eles refazerem). 

Lembro de uma mãe reclamando que não tinha tempo pra nada. Quando descobri que ela ainda dava banho no filho de nove anos, entendi: se eu tivesse de parar meu dia pra ficar dando banho nos dois, eu também teria pouco tempo. Aqui é justo o contrário: enquanto eles tomam banho, eu tenho sossego. (Escrevo isso enquanto Laura está no chuveiro e Thomas fazendo lição.)

Facas sempre foram motivo de discussão: tinha gente que me xingava porque eu dava faca na mão do meu filho quando ele tinha uns três anos (aquelas facas comuns de jogo de jantar).  Desde pequenos eles tinham as facas comuns para que aprendessem a cortar a própria comida no prato ou ajudar a empurrar a comida para cima do garfo - até hoje eu chamo isso de escavadeira e parede: a escavadeira (garfo) tem que empurrar a comida em direção à parede (faca) - e eles aprenderam a comer feito gente grande super rápido. Tenho um orgulho bem besta dos dois por saberem enrolar spaghetti no garfo sem precisar de outros talheres ou por saberem comer alface dobrando a folha sob o garfo com a ajuda da ponta da faca, sem cortá-la. Besta, besta, mas fico super contente. (No entanto, ainda tenho que pedir pra mastigarem de boca fechada e não falarem de boca cheia, em TODA REFEIÇÃO.)

Faz um tempo, comprei-lhes uma tábua de corte menor e uma faca de frutas bem afiada e bem leve, para que não precisem fazer força para cortar as coisas nem usar as minhas facas de corte, que são muito pesadas. Essa faquinha lá embaixo na foto é a faca das crianças, que Laura usa para picar cebolas para mim (ela corta uma cebola inteira em cubinhos ainda devagar, mas com muito capricho) e cortar a parte verde dos morangos quando os trago do mercado. A faca é bem afiada, então eles não precisam fazer FORÇA (o que diminui o risco de acidentes). E é do tamanho exato para que, proporcionalmente ao tamanho de suas mãos, eles possam usar como uma faca de Chef.

Todo restaurante japonês por aqui serve fatias de laranja de sobremesa. As laranjas daqui são muito doces e perfumadas, e foi nos restaurantes que aprendi esse corte: Você corta a laranja como se ela fosse uma melancia, e passa a faca da mesma forma para soltar a polpa da casca. O truque é deixar um cantinho ainda preso. Você pode mandar as fatias de laranja de lanche, e a casca ajuda a mantê-las intactas e ainda ajudam na hora de comer: você segura pela casca, entorta ela um pouquinho para a polpa se separar e come o gomo de fruta assim numa bocada só. A pimpolhada adora, inclusive Thomas, que anda resistente à frutas frescas.
Já cortaram os dedos? Claro que sim. E aprenderam a tomar mais cuidado depois disso. No começo eles só faziam comigo do lado. Hoje em dia eles têm autorização para usar a faca para cortar uma fruta se quiserem, sozinhos. As regras são claras: é um de cada vez na tábua de corte, sempre olhe onde estão os dedos, não pode fazer força com a faca, e a faca não sai de cima da tábua nunca. 

Então, um dia, Thomas pediu para fazer as panquecas sozinho. Expliquei a receita e ele mediu os ingredientes, misturou e então cozinhou, virou e serviu todas as panquequinhas sem minha ajuda. E quando vi que ele já alcançava os botões do fogão, que aqui ficam lá atrás das bocas, perto da parede, expliquei que ele só poderia usar o fogão quando eu estivesse do lado, sem exceção. Ele entendeu. Aliás, esse tipo de regra eles sempre entendem e respeitam muito bem, o que faz com que eu confie ainda mais nos dois. Só não achei que ele sairia assim, fazendo seu próprio café com tanta segurança tão rápido. 😜

Enfim. Ele já se queimou? Claro que sim. Laura também. Thomas anda interessadíssimo no processo de auto-cura do corpo humano, observando o progresso de uma bolha em seu dedo mindinho, queimado quando ele encostou sem querer na borda da panela. Eu gosto que eles se machuquem? CLARO QUE NÃO. Fico preocupada? MAS É ÓBVIO QUE SIM. Ao mesmo tempo, eu conheço meus filhos e sei do que eles são capazes. Nunca deixo que façam nada em dias em que estão cansados ou distraídos, por exemplo, e nunca forço ninguém a ajudar na cozinha - faz só quem quiser. Mas sei que se você não deixa a criança correr e cair, ela nunca vai aprender que o chão é duro e precisa ser evitado. A gente aprende errando. E quando você toma a primeira queimada no antebraço, aprende a manter o cotovelo pra cima enquanto mexe a panela com a colher. Eles têm maturidade o bastante (pelo menos nessa área, no resto tá longe ainda) para saber que a gente não brinca com faca e não brinca com fogo. Quando estão na cozinha, eles são sérios e respeitam os perigos. E acho isso lindo. Quando começa a bagunça, eu já berro: na cozinha só tem UM CHEF! Vocês são ajudantes, e ajudante faz o que pedem, não o que quer. E pronto. Tudo volta ao normal. E se não volta, mando todo mundo pra fora da cozinha e acaba a brincadeira.

Talvez vê-los crescendo e se virando assim tão rápido seja o motivo do meu recente saudosismo culinário. Talvez seja um reflexo natural da idade e dessa busca por comida mais simples. 

Começou quando me dei conta de que havia muito tempo não usava castanhas na minha cozinha, por causa de todo o problema de alergias na América do Norte. Meus filhos são proibidos de levar castanhas e amendoins para a escola, e Allex não levava nada do tipo para o trabalho desde o incidente em que eu quase matei uma colega dele por causa de um biscoito de amendoim. 

Eu e Thomas somos apaixonados por castanhas (coisa que aprendi a comer com meu pai), e sempre inclui um bom punhado delas em nossas refeições e lanches. Meus bolos e biscoitos sempre tiveram amêndoas e nozes. Sempre comemos pesto com castanha do Pará (pois pinolis eram muito caros) e as crianças sempre foram as primeiras a devorarem as castanhas de caju trazidas de Fortaleza por meu pai. (Até hoje castanha de caju é a única que Laura come sem reclamar.)

Mas por que, Ana, você não faz o biscoito com castanha e simplesmente não manda pra escola? Porque, caro leitor, as crianças passam o dia todo fora e todos os lanches são feitos fora de casa, e não há um momento no dia, na verdade, que comporte biscoitos que não possam ser levados para a escola. Seu consumo não se encaixa no nosso dia-a-dia e usar meu tempo pra fazer um doce com nuts e um nut-free sempre me pareceu um abuso.

Mas no embalo das sobremesas de fim de semana, me dei conta de que podia reincorporá-las dessa forma sem correr o risco de mandar coisa errada pra escola sem querer. Resolvi fazer aquele sorvete de amêndoas com cerejas em calda do post anterior. Laura tomaria o sorvete sem reclamar da textura crocante das amêndoas. O sorvete gerou conversas interessantes com meus filhos, e foi quando eles disseram não saber o que era Gianduia que dei um basta. Ok. Mamãe vai voltar a cozinhar com nozes e castanhas. Porque terem família italiana e não conhecerem Gianduia é um crime. Castanhas fazem parte de quem somos (tanto brasileiros quanto de ascendência italiana) e eu não vou abdicar disso.
Quando a gente decide comer sorvete à noite, assistindo Masterchef no computador, a foto não fica lá essas coisas.

E como sorvete é mandatório no fim de semana, preparei um de Gianduia para as crianças imediatamente. Adaptei muito a receita de David Lebovitz. Porque depois de muito fazer sorvete, decidi que prefiro texturas mais delicadas. Os sorvetes dele, apesar de deliciosos, costumam levar mais gemas e gordura do que um gelato normal, e mesmo as crianças comentaram que o sorvete de amêndoas ficou um pouco pesado (Laura também achou muito doce). Adapto sem dó, usando sempre a mesma proporção de gemas para leite e creme a partir de agora, que produz um sorvete mais leve e delicado, mais de acordo com o meu paladar e o das crianças. E o resultado ficou excelente.

GELATO DI GANDUIA
Rendimento: cerca de 1 litro

Ingredientes:
  • 2 xícaras de avelãs inteiras, com casca (assadas por 10 minutos a 180oC, esfregadas para liberar as cascas)
  • 115g chocolate ao leite de qualidade (ao menos 40% de cacau), picado
  • 4 gemas
  • 200g açúcar
  • 750ml leite
  • 250ml creme de leite fresco
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 1/4 colh  (chá) extrato de baunilha

Preparo:
  1. Pique muito bem as avelãs e coloque-as numa panela com o açúcar e o leite. Leve à fervura branda, misturando, desligue, tampe e deixe descansar por 1 hora pelo menos.
  2. Passado esse tempo, passe a mistura por uma peneira fina (se alguns pedacinhos de avelã passarem não tem problema). Reserve as avelãs para outro uso (você pode secá-las no forno para que durem mais na despensa, mas eu apenas coloquei-as no freezer como estavam).  
  3. Bata as gemas em uma tigela. 
  4. Em outra tigela maior, coloque o chocolate e reserve. 
  5. Reaqueça o leite de avelã até a fervura branda e desligue o fogo. 
  6. Tempere as gemas, acrescentando uma concha de leite quente por vez, misturando bem com um fouet. Depois de três ou quatro conchas, junte toda a mistura à panela, e ligue o fogo médio-baixo e mexa bem com uma colher de pau ou espátula, riscando um 8 no fundo da panela, por 8-10 minutos, ou até que a mistura engrosse o bastante para recobrir as costas da colher. As avelãs vão apressar esse processo, na verdade. Fique atento para não deixar o creme ferver ou talhar. 
  7. Passe por uma peneira sobre a tigela com o chocolate e misture bem até que o chocolate esteja todo derretido.
  8. Misture à tigela o creme de leite, o sal e a baunilha. Continue misturando até que o vapor pare de sair. Deixe a tigela em temperatura ambiente até que esfrie e então leve à geladeira por pelo menos 4 horas. 
  9. Passado esse tempo, coloque a mistura na sorveteira segundo as instruções do fabricante.

É CLARO que eu não joguei fora as avelãs picadinhas que foram peneiradas. Misturei-as a uma receita simples de granola, para assarem junto com a aveia logo do começo, e o resultado ficou delicioso. Pronto, mais castanhas incorporadas no nosso dia-a-dia.
Granola, banana e iogurte depois da corrida. Nham.
A empolgação com as castanhas me fez buscar novamente as receitas abandonadas de bolos e biscoitos italianos que eu andava ignorando em detrimento das preparações nut-free. Foi aí que voltei a preparar bolos feitos não com o intuito de serem lanche de escola, mas sim café da manhã. Pois assim poderia colocar todas as castanhas que quisesse, sem peso na consciência. Mas acontece que acabei apaixonada pelos bolos italianos, leves, pouco doces, cheios de fruta, que não parecem uma indulgência logo pela manhã, e esqueci-me de que a ideia era ter castanhas ali.

Além disso, bolos italianos costumam ser ridiculamente fáceis de preparar. Os dos livros de Marcella Hazan são praticamente todos feitos com uma tigela e uma colher, e as crianças gostaram de todos até agora.

Outra coisa boa para o café da manhã, que Laura me fizera prometer preparar no dia em que folheou meu livro e viu a foto é essa focaccia rápida de morangos. Rápida porque fermenta apenas uma vez e por apenas 1 hora e meia, indo direto para o forno. Ainda assim ela fica macia por dentro, ligeiramente crocante por fora, e com esses morangos mornos e macios, quase como uma compota. Ótimo para o fim de semana, quando todo mundo acorda meio sem fome e com vontade de ir brincar, e pode esperar duas horinhas para tomar café. (Mamãe não. Mamãe toma cappuccino enquanto prepara a focaccia.)

A focaccia da foto é apenas meia receita, que basta para 4 pessoas. (Eu não tinha fermento para uma receita inteira)
FOCACCIA RÁPIDA DE MORANGOS
Do livro Recipes and Dreams from an Italian Life, de Tessa Kiros)
Rendimento: 8 porções

Ingredientes:
  • 2 colh. (sopa) fermento biológico seco
  • 1 1/4 xic. àgua morna
  • 5 colh. (sopa) cheias de açúcar
  • 2 2/3xic. farinha de trigo
  • 1 pitada de sal
  • 2 1/2 colh. (sopa) azeite
  • 450g morangos maduros
  • açúcar de confeiteiro para polvilhar

Preparo:
  1. Junte o fermento à agua com 1 colh. (sopa) açúcar e deixe uns minutinhos para espumar. 
  2. Junte a farinha e o sal e sove ligeiramente dentro da tigela, obtendo uma massa macia e mais grudenta que o normal.
  3. Espirre um pouco de água numa assadeira e forre-a com papel-manteiga (a água vai ajudar o papel a grudar lisinho no lugar). Unte o papel com o azeite, espalhando com as mãos (o azeite nas mãos ajuda a massa a não grudar depois).
  4. Espalhe a massa sobre o papel, e comece a esticá-la sobre ele usando os dedos, empurrando o centro da massa para fora. Se a massa estiver elástica e voltando para o lugar, deixe descansar por 5 minutos e tente de novo. Espalhe com os dedos e as palmas das mãos até que cubra boa parte da assadeira (uns 33cm de comprimento).
  5. Cubra com um pano apoiado a copos, para que o pano não encoste na massa, e deixe levedar por 1 hora a 1 hora e meia. 
  6. Enquanto isso, corte ao meio os morangos grandes e deixe os menores inteiros. Numa tigela, misture-os a 2 1/2colh. (sopa) açúcar. Deixe macerar.
  7. Pré-aqueça o forno a 205oC. Quando a massa tiver crescido bem, espalhe os morangos com seu suco sobre ela, com cuidado para não desinflá-la. Polvilhe com o restante do açúcar, inclusive as bordas, e leve ao forno por 25 minutos, ou até que a massa esteja dourada e assada. Tenha certeza de que a parte do meio está assada, mas não cozinhe demais, ou os morangos vão virar uma geleia. 
  8. Retire do forno, deixe amornar e polvilhe com o açúcar de confeiteiro antes de servir.


Foi justo num fim de semana cansado, depois de muita correria, em que eu só queria parar e não pensar muito em nada enquanto tomava minha cerveja, que resolvi assistir a um programa do Jamie Oliver em que ele vai (de novo) para a Itália. Jamie já me deu um bode imenso, mas a proposta do programa era fofa: ir atrás das vovós italianas e suas receitas.

Pronto, eu estava apaixonada. Aquelas avós que eram iguais às minhas, cortando cebola na palma da mão com uma faquinha de fruta fizeram minha saudade explodir. Fiquei mais bodeada ainda com Jamie, pois depois de anos e anos enchendo todo mundo pra aprender a picar legume com faca de chef, cheio de técnica, agora ele estava ali, se debulhando em elogios à "técnica fantástica" de cortar batata com faca de bife na palma da mão, e de picar os legumes sem qualquer espécie de padrão de tamanho "porque dá mais textura para o prato".

😒



Sério?

Ok, então.

Eu assisti com deleite às senhorinhas preparando seus pratos regionais com carinho e dei um fast-foward nas adaptações escalafobéticas do Jamie Oliver. E quando terminei de ver todos os episódios, cheia de lembranças carinhosas de minhas avós e de minhas viagens à Itália, o YouTube me recomendou um canal italiano com videos de receitas de Nonna. E ali estava uma linda Ciambella, um bolo de furo no meio, e eu não resisti.

O video é uma delícia. A carinha da cozinha, os utensílios, a relação da Nonna com o Nonno que só senta lá pra dar palpite, a toalha de plástico, a Nonna esfriando bolo no chão da cozinha. (Se eu fizesse isso, o Gnocchi seria o primeiro a experimentar o bolo, com certeza!) E desse videozinho fui para vários outros, e descobri que depois de passar tantos anos da minha vida vendo Chefs de cozinha preparando comida com precisão científica e empilhando ingredientes no prato, dá um alívio infinito ver uma velhinha italiana sovando massa e batendo bolo até o glúten arrebentar. Ri muito quando uma das avós soltou em italiano a expressão "uma vez a cada morte de Papa", porque eu falo isso o tempo todo e não fazia ideia de onde eu tinha tirado.

Ver aquilo me fez pensar na minha avó paterna que me ensinou a fazer pasta fresca, na materna, que sempre preparava meus pratos favoritos, na avó do Allex que me ensinou a fazer seu Apfelstrudel, na avó da minha melhor amiga na infância, que sempre preparava arroz doce quando sabia que eu viria e fazia bolinhos de chuva para nosso lanche da tarde... Fez com que eu lembrasse que comecei esse blog dizendo que eu era uma Nonna em treinamento, e que, no fim, o objetivo era chegar nessa cozinha de amor, nutrição e conforto que as avós fazem tão bem. No mundo de hoje em que cozinha é de mostrar pros outros, de show, de exibição, lembrar da cozinha fria de azulejos azuis da minha avó paterna e de suas mãos pequenas sovando massa sobre a mesa de fórmica branca me trouxe um chão e um norte que eu vinha buscando com força há muitos anos e mais ainda desde que mudei de país.

Munida de amor por aquelas velhinhas, resolvi tentar me ater àquela cozinha simples e carinhosa, e com certeza meu prazer na cozinha se multiplicou.

O YouTube normalmente só me recomenda bizarrice, razão pela qual às vezes passo semanas sem nem abri-lo. Mas uma vez que volto a assistir Masterchef Brasil (que é o único Masterchef que gosto hoje em dia), abre-se a porteira novamente e lá vou eu ficar fuçando em video tonto ao invés de ler meus livros (foi justamente aí que caí na série do Jamie Oliver). Mas ás vezes ele acerta: acertou na Ciambella da Nonna e acertou numa pequena série de videos de um outro canal italiano chamado Italia Squisita. Trata-se de uma seriezinha de chefs italianos reagindo aos videos mais assistidos do mundo de receitas de seus pratos regionais. Então você tem três pizzaiolos napolitanos assistinto os videos mais famosos da internet sobre como fazer pizza napolitana. Achei que seria algo só muito metido a besta, mas ver os italianos reclamando dos crimes cometidos contra sua comida é hilário. De quebra, eles dão algumas dicas do preparo "correto" dos pratos. É melhor para quem fala italiano, mas as legendas em inglês estão bem adequadas.

Uma das dicas que os pizzaiolos de Napoli dão é a respeito da pizza em forno caseiro. Eles sugerem que se coloque o molho sobre a massa e leve a pizza ao forno pela maior parte do tempo, colocando o queijo apenas no final, para derreter por pouquíssimos minutos, sem dourar. Queijo dourado, para eles, é um defeito. Não vou entrar no mérito de certo e errado, aqui o que vale é o gosto pessoal: se você gosta do queijo dourado, faça a pizza com queijo dourado. (Até porque, pizza romana é crocante, e em Napoli pizza crocante é defeito. Então, cada um que faça o que gosta e seja feliz. Eu sou do time napolitano: pouco recheio, queijo suculento e não dourado e massa por baixo fina e macia com bordas pãozudinhas. É disso que eu gosto. Outra dica era colocar o queijo em pedaços maiores, para que não perdesse tanta umidade no forno.


Pizza depois de 12 minutos de forno a 225oC, apenas com molho de tomate, voltando para o forno com parmesão ralado, o queijo mozzarella em tiras, manjericão e um fio de azeite.
Eu tentei. Mas oito minutos para o queijo em pedaços teve o mesmo efeito que o queijo ralado e ele dourou mesmo assim.



Na próxima vez vou tentar deixar a pizza por uns 15-16 minutos e deixar o queijo apenas por 4-5 e ver o que acontece. :)

Os videos desse canal também mostram como abrir a pizza com as mãos, sem o rolo. Segundo eles, o segredo está em manipular a massa o menos possível. Vou dizer que minha pizza nunca saiu tão uniforme e redonda. :D

Depois de me esborrachar de rir com os italianos reclamando e aprender alguns truques novos, vi-me novamente sentada no sofá folheando meus livros de cozinha italiana. Vi-me comprando polenta de novo e arroz arbóreo novamente, ingredientes que andavam meio esquecidos nos últimos tempos.

Num dia em que eu tinha uma quantidade grande de cogumelos na geladeira, dourei-os todos com um pouco de alho e os cobri com o que restara do molho de tomate que eu fizera em dobro para um spaghetti de fim de semana. Esse "ragù" de cogumelos acompanhou polenta molinha e fumegante.

Ragù rápido de cogumelos com polenta.

O spaghetti al sugo que sobrara do fim de semana virou doze mini-frittate, feitas na forma de muffins muito bem untada de manteiga para nada grudar. Dividi o spaghetti (tinha bastante) entre as formas já untadas (o spaghetti retornado à temperatura ambiente fica molinho de novo e fácil de separar uns fios dos outros), e fiz uma mistura de 8 ovos, um splashzinho de leite, sal, noz mocada e pimenta-do reino, um punhado de parmesão, e dividi entre as formas, que devem ficar preenchidas algo entre metade e 3/4 da capacidade. Polvilhei cada uma com salsinha e mozzarella ralada e levei ao forno médio por uns 15-20 minutos, até que inflassem, dourassem e estivessem cozidas. Esperei que esfriassem um pouco antes de desenformar com a ajuda de uma faquinha. As frittate que não foram jantadas viraram lanche da escola no dia seguinte.


As melhores almôndegas que já fiz (ou comi) na vida.

Na semana seguinte não me aguentei e quando vi Grass Fed Beef em promoção, catei um pacote na gôndola. Porque aqui tem disso: tem carne de boi de pasto e carne de boi que come soja. O de pasto é claro que é mais caro. Então espero as promoções para poder comprar boi feliz pelo preço de boi triste. Como tivesse repolho crespo igualmente em promoção (repolho crespo = savoy cabbage), decidi preparar as almôndegas de inverno da Marcella Hazan. Tantas, tantas receitas maravilhosas que eu nunca havia feito, preocupada demais em me entulhar de livros da última moda culinária. Eita, se eu tivesse cabeça de 40 anos quando tinha corpo de 20...

Enfim. Claro que servi as almôndegas com polenta. Preparei as almôndegas com antecedência, num momento tranquilo da minha manhã, enquanto esperava a tinta da minha ilustração secar, e deixei para preparar o restante do molho no fim do dia, junto com a polenta. (Polenta, aliás, que depois que esfria, você corta em tirinhas e frita, ou tempera com azeite e coloca 18 minutos na Air Fryer até que fiquem crocantes por fora.)

O veredito da Laura para esse prato: "Mamãe, essa comida está SENSACIONAL!"

Adoro quando ela usa essas palavras, que parecem saídas da boca de um adulto e não de uma criança do Kindergarten. ;)

Elas são de fato absolutamente deliciosas, mesmo antes de acrescentar o molho de repolho e tomate. Muito suculentas e saborosas. As melhores que já preparei na vida e ouso dizer as melhores que já comi.

ALMÔNDEGAS DE INVERNO COM REPOLHO CRESPO (OU COUVE)
(Do livro Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana, de Marcella Hazan)

Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 1/3 xic. leite quente
  • 1 fatia de pão sem casca
  • 500g carne moída (de preferência de 1a)
  • 50g pancetta (usei bacon) picado pequenininho
  • 1 ovo
  • sal a gosto
  • pimenta-do-reino a gosto
  • 2 colh. (sopa) cebola picadinha
  • 3 colh. (sopa) queijo parmesão ralado
  • 1 colh. (sopa) salsinha picada
  • 1 xícara de farinha de rosca
  • Óleo ou azeite para fritar
  • 550-600g repolho crespo ou couve, em tiras de 0,6cm, sem o miolo (eu piquei o miolo junto, porque desperdiçar comida fazendo um prato italiano é um paradoxo)
  • 2 colh. (sopa) azeite
  • 2 colh. (sopa) alho picado
  • 2/3 xic. tomates pelados em lata (eu usei 1 xícara e meia, pois queria mais molho e meu repolho não soltou muita água)

Preparo:

  1. Coloque o pão no leite quente e deixe ali até que ele o absorva todo. Quando isso acontecer, amasse bem com um garfo até que vire uma papa.
  2. Junte a papa de pão à carne moída, bacon picado, o ovo, salsinha, queijo e cebola. Tempere com sal e pimenta e misture bem com as mãos até que dê liga e os temperos estejam distribuídos.
  3. Forme bolinhas de 3,5cm e passe-as ligeiramente na farinha de rosca.
  4. Aqueça cerca de meio centímetro de altura de óleo ou azeite numa frigideira. Frite as almôndegas, algumas de cada vez, até que dourem de todos os lados. Deixe-as secando num prato com papel toalha. (Eu fiz até aqui e deixei o prato em temperatura ambiente até a hora de preparar o restante do jantar.)
  5. Descarte adequadamente o óleo. Você vai precisar de uma frigideira ou panela grande o bastante para comportar todas as almôndegas em uma só camada. Aqueça o azeite nela e junte o alho picado, cozinhando até perfumar. Junte a couve ou repolho em tirinhas, tempere com um pouco de sal, mexa duas ou três vezes e tampe a panela. Passe para o fogo baixo.
  6. Cozinhe por cerca de 40 minutos (enquanto isso você faz a polenta, se quiser), mexendo de vez em quando. Experimente e corrija o tempero adicionando sal e pimenta-do-reino.
  7. Passe para fogo médio, destampe a panela e continue a cozinhar até que o repolho escureça um pouco. Junte os tomates, mexa bem e cozinhe por uns quinze minutos em fogo baixo.
  8. Junte as almôndegas, vire-as na panela algumas vezes, tampe e cozinhe por mais uns dez minutos. Sirva imediatamente.

E aquelas polpettine, aquele monte de polenta, claro que me mantiveram com a mente fixa em minhas avós. Fiquei pensando nas tradições familiares, nas lembranças. Em como meus filhos jpa pedem constantemente a canja de galinha da avó (que eu já prometi preparar diversas vezes mas ainda não fiz), que é o prato de que mais sentem falta desde que vieram para o Canadá.

Fiquei buscando nos livros receitas que me lembrassem das minhas avós, algo que reproduzisse aqueles gostos de infância, aquelas histórias de cozinha, já que minhas avós não me deixaram praticamente receita nenhuma.

E então liguei para minha mãe e lhe pedi todas as suas.

"Mas minha comida é simples", disse ela. " É alho e cebola, não tem nada de muita invenção."
"Eu sei, e é isso o que eu quero. Não quero que aconteça com a sua comida a mesma coisa que aconteceu com a da vovó, que ninguém sabe preparar igual. Tô com saudade do estrogonofe, do couscous, daquele frango com pimentão e batata, a sopa de frango com legumes, da Braciola, daquela carne de panela que você botava tomate e azeitona..."
"Carne lessa?"
"É esse o nome?"
"É."
"Carne lessa". Carne cozida. Fui procurar no tio Google. Bolito di manzo. A carne bovina que se cozinha em muita água por muito tempo até ficar macia. Que quando pronta, é separada do caldo, resfriada e transformada em salada de carne (com tomates e azeitonas, por exemplo) ou desfiada para virar bolinhos ou é misturada a molho de tomate para um macarrão. E o caldo vira outra coisa: vai para uma sopa, um ensopado, um risotto, exatamente como faziam minhas avós. Um prato que vira dois. Cozinha esperta.

Essa carne fria com tomates e azeitonas foi um ícone da minha infância, tantas vezes que comemos sanduíches dela. Minha pergunta gerou histórias. Quem fazia, aprendeu com quem, como servia. Juntar as informações da família com as dos livros e mesmo as da internet, explicaram melhor aquele prato simples que, antes de ser típico da Itália, era típico da minha mãe, que é avó dos meus filhos. Comida de Nonna.

Essa semana ela começou a me mandar as fotos do passo-a-passo de suas receitas, começando com a tal Carne Lessa.

....

Agora, apesar da brincadeira dos videos de chefs italianos, levanta a mão quem está meio cansada de comida de chef.

o/

Foi divertido aprender por todos esses anos todas as técnicas de corte, de cozimento, as combinações clássicas e as escalafobéticas, os modismos de ingredientes, o vegetariano, o vegan, o cru, o natureba, o pode, o não-pode, o típico e o bastardo, o autêntico e a adaptação.

Certamente parte do meu prazer em cozinhar todo dia advém do fato de eu ter aprendido a picar uma cebola inteira em trinta segundos ou conhecer o preparo de molhos básicos sem ter que ficar olhando receita.

E isso é muito bom e sou grata pela curiosidade (e pretensão e preciosismo, digamos de passagem) que me fez correr atrás de tanta informação ao longo desses anos. Sinto que posso explicar melhor a meus filhos hoje porque mamãe faz isso ou aquilo. Como ontem, quando acabou o fermento que Thomas tinha de acrescentar ao bolo e eu disse que estava tudo bem, pois havia muito suco de limão na massa (ácido) e se usássemos bicarbonato de sódio (sal), a massa cresceria mesmo assim (e cresceu).

Mas agora eu meio que cansei. Agora que eu já sei tudo isso, só tenho vontade de voltar às origens. Ao arroz com feijão e creme de espinafre, à farofa de ovo com azeitona e à canja que comi toda semana quando criança na casa de minha mãe; ao frango com batatas de minha avó materna, ao tagliatelle fresco de minha avó paterna; aos bolos simples de café da manhã e aos torcidinhos de lanche da tarde. Alguém lembra dos torcidinhos? Era uma receita do livro da Dona Benta. Um biscoito salgado com sementes de erva-doce,comprido e torcido, que minha avó fez todos os domingos durante os quinze anos em que minha vida e a dela se intercalaram. É uma receita que todo mundo tem, mas é a quintessência de minha relação com minha avó.

Está na hora de preparar torcidinhos.

Cozinhe isso também!

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