quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Sonhos, uma canção de acordar, um fim de ano, duas sopas.

Durante os cinco dias que estive em Portugal, em Junho do ano passado, eu me levantava ao sentir finos raios de sol trespassando as persianas. Trocava de roupa com as luzes apagadas, dobrava meus lençóis, montava o sofá-cama de volta ao seu estado natural de palavra simples e não composta e fazia meu alongamento sobre o tapete fino e claro que escorregava pelo piso de azulejos. Ao que minha amiga entrava na sala, sorridente sempre, e começava o processo de abrir as persianas da casa, passar o café e colocar sua vasta coleção de frutas, queijos e presuntos sobre a mesa da sala. Por esses cinco dias, ela o fez cantando uma musiquinha alegre que dizia: "bom dia começa com alegria, bom dia começa com amor". Eu ria, pois ela cantava com verdadeiro entusiasmo, quase que como uma paródia de si mesma. Rimos juntas quando ela me contou que ouvira outra amiga cantando a mesma coisa nos breves dias como sua hóspede, e que a pequena canção nunca mais saíra de sua cabeça.

Canção de bruxa, deve ser, pois desde que voltei a Toronto, essa tem sido a trilha sonora de todas as minhas manhãs.

Primeiro eu me vi a cantarolar os dois versos como mera provocação. Todos achavam meio ridículo, mas aquilo que é ridículo é risível, e o riso veio, e as manhãs passaram a ficar leves com o sorriso fácil que acompanhava a música. Logo as crianças seguiram, e comecei a despertar com o canto delas, vindas do quarto, felizes pelo novo dia.

Quem fica em casa agora é igualmente amaldiçoado (ou bendito) pela canção da bruxa, e esse desejo de alegria e amor prossegue se expandindo a outros lares.

Naquela manhã, Laura entrou no quarto carregando nas duas mãos minha xícara rosa como nascer do sol repleta de cappuccino, cantarolando feliz aquelas palavras, como os pássaros de Aldous Huxley. Pulou sobre minha cama sem derramar uma gota, sentou-se ao meu lado e, passando a xícara às minhas mãos com cuidado, disse:

"Mamãe, quer saber o sonho que eu sonhei?"

Assenti com um ronronar por traz do café quente que eu sorvia.

"Sonhei que eu estava no meio da floresta. Eu tava pendurada numa árvore bem alta, num galho, porque meu casaco tava enroscado no galho. Aí tinha um monte de gente em volta, lá embaixo no chão, gritando que eu ia hurt myself, e que aquilo era muito dangerous. Mas eu não achava dangerous. Eu disse que tava tudo bem, que eu sabia o que tava fazendo, mas ninguém acreditou em mim. Aí eu cansei daquilo, porque era muito silly, e pulei pra fora do meu casaco para o galho, e saí correndo nas árvores, pulando nos galhos, lá em cima. Só que aí eu fiquei com frio. Aí eu voltei pra pegar meu casaco, que tinha caído do galho no chão, e pedi pro pessoal lá embaixo, que tava assim, em volta de mim lá embaixo, pra ver se o casaco era meu e me devolver. Mas ninguém me respondia. Aí eu gritei pra todo mundo, e eles ainda não me respondiam. Aí você apareceu, mamãe. Você pegou o casaco, viu que tinha meu nome nele, dobrou e colocou na minha mochila. Aí eu fui embora porque eu sabia onde tava o meu casaco."

"E como você se sentiu no sonho, querida?"

"Muito feliz."

"Que bom. Agora vai lá tomar café da manhã que hoje tem escola."

Muito feliz. Foi como me senti ao ouvir aquele relato. Laura sonha sonhos muito claros, de metáforas muito explícitas. Nos primeiros meses de mudança de país, sem falar a língua ou entender costumes, Laura tinha todas as noites o mesmo pesadelo: que brincava num parquinho e descia pelo escorregador, mas que no fim dele, ao invés de chão firme, era o mar aberto e arisco que a esperava. E nele ela caía, sem saber nadar, sem saber para que lado havia terra.

Naquela tarde, contei a Allex o sonho de Laura.

"Ela faz o que quer", disse ele.
"Ela SABE o que faz", corrigi. "Conhece suas capacidades. O medo dos outros não são os dela."
"And mom's got her back", acrescentou.
"Sim. Isso foi o que me deixou mais contente. Ela sabe, lá no insconscientezinho dela, lá no coração, que mamãe está lá dando suporte para o que ela precisar. Não é lindo? Não é o que a gente mais queria? Pelo menos era o que EU queria. Que eles soubessem que eu sempre vou apoiá-los."

Desde que li Man In Search For Meaning, de Viktor Frankel, comecei a pensar no que é que me movia. Ao cabo de tudo, no meu âmago, despida de todas as cobranças da sociedade, de todos os meus objetivos materiais, o que é que mantinha meu coração batendo, o que me fazia levantar de manhã e correr, e pintar, e escrever. O que é que me impelia a tentar ser hoje um ser humano menos babaca do que ontem. Então caí nessa frase, não sei bem original de quem, mas que tem sido muito usada pela Eliana Rigol em seu Instagram (que por sinal, tem sido fonte de excelentes indicações de livros): "Seja uma boa ancestral".

Era o resumo em quatro palavras de um sentimento até então sem nome. Mas que remontava às palavras de meu guru de Kriya Yoga: dê o exemplo.

Olho para meus filhos e eles são o constante lembrete de que preciso continuar tentando ser uma pessoa melhor. Penso em tantos familiares que já se foram, com suas histórias amargas de vida, suas escolhas ruins, suas infelicidades marcadas para sempre nas histórias contadas por meus pais, e chacoalho para fora tudo isso e penso: quero ser um bom exemplo. Quero ser a louca tataravó Ana, lembra dela? A que corria maratona, a que fazia aqueles quadrinhos sobre o vovô Thomas e vovó Laura? A vó Ana que mudou pro Canadá com cachorro e tudo. A vovó Ana que ensinou a gente a cozinhar. Aquela tataravó que era feliz. Lembra dela? Quero ser um parente distante que deixa uma história boa para variar. Não tenho vocação para Cautionary Tale.

Sinto vontade de curar minhas feridas para não provocar as mesmas em meus filhos. Não passar para frente dores herdadas. Rever comportamentos e destrinchar hábitos até saber o que sou eu e o que sou dos outros. Largo o dos outros, que eu me basto se for eu de verdade.

É um processo de resgate de todos os meus melhores momentos que foram perdidos na memória dessa minha vida esquizofrênica. Tantas soluções busquei, que algumas deixei na estante empoeirando, sem me dar conta de que já eram soluções boas para mim. Contei que a maior parte dos livros que a Eliana menciona, eu tinha na estante no Brasil? Nunca tinha lido. Estava lendo outras coisas. Não couberam na mala, e foram deixados para trás. Pego eles agora na biblioteca e é quase um flagelo pensar que poderia ter lido aquilo há dez anos atrás. Tanta lição adiada, tanto aprendizado esperando por mim.

Enfim.

Dou-me conta dessa responsabilidade. De não apenas criar dois seres humanos capazes de cuidar de si mesmos. Mas criar duas pessoas essencialmente boas, capazes de gentileza. Criar seres humanos esclarecidos, capazes de pensar por si mesmos, para não caírem nas armadilhas do mundo. Criar dois indivíduos capazes de continuar abrindo os caminhos que eu, em minha existência, serei incapaz de abrir sozinha. Abrir caminhos para quem vier depois deles.

Mãe de menina. Mãe de menino. Dupla responsabilidade. De desconstruir os grilhões do feminino que me foi ensinado. De desconstruir os apelos do masculino que ainda incutem nos meninos. Responsabilidade de criar duas pessoas confiantes em si mesmas e de pensamento livre.

Muitas vezes acho que o trabalho é impossível. Mas então me dou conta de que preciso começar não com eles, mas comigo. É desconstruindo isso em mim e me construindo de volta em novas imagens, que mostro a eles, pelo exemplo, o que é ser adulto. O que é ser mulher. O que é ser mãe. O que é ter relacionamentos de amor e carinho e respeito. O que é correr atrás de seus objetivos. O que é estar feliz.

Toda criança aprende pelo exemplo. Ela repete aquilo que ouve. Ela repete aquilo que vê. Se ela não conhece ninguém feliz, como ela vai aprender o que felicidade é? Olho para mim mesma e me pergunto o que meus filhos têm a aprender comigo hoje. O que eles vêm. Que lição eles tiram ao me ver ali, fazendo o que quer que esteja fazendo. O que eu quero que eles imitem? O que eles herdarão de mim? O que eles deixarão para os seus?   

Essa noite tive um sonho. Sonhei que Laura era bebê, e eu a carregava aninhada em meus braços, enroladinha em um xale azul claro, enquanto caminhava perdida por uma imensa estação de trens. Uma amiga me incumbira de ciceronear um grupo de adultos por aquela cidade desconhecida, e eu me desesperava por dentro: como posso cuidar desse bando de adultos? Eles não veem que tenho de cuidar de minha filha e sequer sei ainda o caminho? Ao fim do sonho, avisei ao grupo que eu não era responsável por eles, abracei minha Laura e saí a passos firmes buscando que trem tomar.

O caminho do que é ser mulher hoje ainda é indistinto para mim. Continuo buscando, para que minha filha tenha caminhos menores a percorrer.   

Acordei com Laura cantando ao meu lado e com cheiro de café. Bom dia começa com alegria. Bom dia começa com amor!

.....

E Novembro e Dezembro e Janeiro e a comida?

Os meses voaram. Eu tinha intenção de escrever em Dezembro, mas o mês desapareceu entre preparação para uma exposição nova, a infinidade de eventos de fim de ano da escola, e a chegada de meus pais perto do Natal. Novamente eu queria ter feito torrone, panforte, panettone, e toda a pataquada, e no fim só saiu Spekulatius dia 6 de Dezembro e uma batelada imensa de biscoitos sortidos para presentear os professores e levar no lanchinho comunitário de fim de ano da classe das crianças. Também fui convidada pela classe de ESL (English as a Second Language) do Thomas para participar de uma festa com todos os pais estrangeiros, em que cada um tinha que levar um prato típico, e escolhi Bolo de Fubá, que foi sucesso absoluto (apesar do milho norte-americano ser doce a ponto de ter gosto de açúcar, NINGUÉM usa o bendito pra sobremesa, então o bolo foi uma surpresa para todo mundo.)

A parte divertida. Decorando com Royal Icing e cranberries secas.

No meio da bagunça, teve UM projeto culinário que deixei para fazer com meus pais aqui, pois achei que eles gostariam de participar e porque me parecia um bom plano B para um dia de tempo feio: Gingerbread House. Já havíamos feito no ano passado, e resolvi repetir a receita, mas desta vez usando só Royal Icing. (No ano anterior eu resolvera ir pela rota da preguiça e comprara uns tubos de icing colorido, mas eles tinham gosto de bala velha. As crianças comeram todo biscoito decorado, mas eu não cheguei nem perto.) A receita do gingerbread que mais gosto é essa de Martha Stweart, que tem uma pancada de especiarias e fica deliciosa. Só precisa de um pouco de engenharia para fazer os moldes da casa e cortar a massa dos tamanhos certos antes de assar. O Royal Icing que eu uso é esse aqui do Alto Brown.
 
DESAPEGO é o nome dessa casa: largo na mão das crianças, a única coisa que eu faço é deixar o bicho de pé.

Esse ano, resolvi que faria toda a comilança natalina diferente: como aqui o Papai Noel chega enquanto as crianças dormem, toda aquela ceia para esperar meia-noite não fazia sentido. Bem melhor botar pimpolhada cedo na cama, para descansar direitinho e poder abrir presente de manhã cedo e brincar o dia todo, sem mau humor de sono. Mas também para não passar batido e ser o mesmo arroz com feijão de sempre, inventei de fazer Cappelletti in Brodo. Afinal, é tradição minha fazer pela primeira vez na vida alguma coisa num dia especial em que nada pode dar errado. 
Apesar dos cappelletti terem ficado desengonçados, NENHUM abriu durante o cozimento, o que considero um sucesso!
Saí com meus pais para comprar os ingredientes, e no dia 24, munidos de uma taça de vinho e olhando o dia desaparecer rapidamente lá fora, comecei a preparar tudo. O recheio é bastante simples e fácil, carnes refogadas, misturadas a queijos e temperos. A massa é onde o bicho pega. Massa recheada para seis pessoas. Já contei que aqui em Toronto a umidade do ar chega a 20% durante o inverno? Que alegria! Imagina o que acontece com massa fresca esperando nessa umidade desértica? Aquela linda fita de massa amarela fresquinha e macia vira Biju em um piscar de olhos. Para prevenir isso, pensei em chamar a família toda para fechar cappelletti, mas calhou que meu pai estava cochilando, as crianças viam desenho e Allex passeava o cachorro, e sobramos minha mãe e eu para rechear e fechar bem uns duzentos cappelletti em tempo recorde. 
Aquela refeição que parece a simplicidade em pessoa, mas que deu um trabalho do cão pra fazer.

Os cappelletti foram servidos em caldo de frango que eu deixara já preparado e congelado duas semanas antes, e, modéstia à parte, ficaram uma delícia. Achei que fosse sobrar alguma coisa, que fosse cappelletti demais para a gente que não é de comer muito, mas não teve um ser vivo na mesa que não tenha repetido o prato e só restou mesmo foi um panelão vazio.

CAPPELLETTI IN BRODO
(Do livro Fundamentos da Cozinha Clássica Italiana, de Marcella Hazan. No livro, ela chama a receita de Tortellini, mas a gente sabe que é a mesma coisa, o nome muda conforme a região. Na minha casa, em que a família veio toda do Veneto, isso chama Cappelletti.)
Rendimento: 6 pessoas

Ingredientes:
(recheio)
  • 110g carne de porco moída
  • 180g peito de frango moída
  • 2 colh (sopa) manteiga
  • sal a gosto
  • pimenta do reino
  • 3 colh. (sopa) mortadela picadinha
  • 1 1/4 xic. ricotta fresca
  • 1 gema
  • 1 xic. queijo parmesão ralado
  • noz moscada para ralar
(massa)
  • 4 ovos grandes
  • 400g farinha de trigo
  • 1 colh. (sopa) leite
(para servir)
  • 2,5 litros caldo de frango ou carne caseiro
  • parmesão ralado

Preparo:
  1. Derreta a manteiga numa frigideira em fogo médio. Quando começar a espumar, junte as carnes de porco e de frango, uma pitada de sal e pimenta, e cozinhe por seis ou sete minutos, quebrando os grumos e mexendo com uma colher de pau, até dourar. Retire da panela e deixe esfriar em uma tigela. 
  2. Junte a mortadela, ricotta, gema, o parmesão e cerca de 1/8 colh (chá) de noz moscada ralada. Misture muito bem e corrija o tempero. 
  3. Prepare a massa. Não vou dar muitos detalhes a respeito da massa por dois motivos: se você nunca fez pasta fresca na vida, essa não é a que você vai usar pra começar. Faça um fettuccine. Então se você está fazendo Cappelletti, imagino que já saiba misturar os ovos à farinha e sovar a coisa toda. O que você precisa saber é que o leite vai junto com os ovos na hora de misturar à farinha. Você vai sovar a massa até ficar lisa, embrulhar bem e deixar meia hora fora da geladeira para o glúten relaxar. Abra com o rolo ou com a máquina, seu método favorito, até que fique bem fino. Para massa recheada, costumo ir até o penúltimo número da máquina. Não faça toda a massa de uma vez, ou as tiras vão secar antes que você possa recheá-las. Você vai dividir a massa em 4 porções e abrir e rechear cada porção enquanto as outras ficam quietas embrulhadas. Se precisar de ajuda para entender como abrir a massa, há um zilhão de videos internet afora que vão ser mais úteis do que qualquer coisa que eu escreva aqui. Mesmo seguindo a receita da Marcella Hazan, eu aprendi a fazer massa vendo minha avó fazer. Ver alguém fazer é o que tira as dúvidas.
  4. Quando tiver a primeira tira de massa, apare a massa e corte em tiras compridas de 3cm de largura. Corte no sentido da largura, produzindo quadradinhos de 3cm.  Distribua 1/4 colh.(chá) de recheio sobre os quadradinhos. Dobre-os ao meio, fazendo triângulos e apertando bem pra selar. Essa parte tem que ser feita rapidamente para a massa não secar. Apoie o dedo indicador onde está o recheio, deixando a ponta maior para cima, e dobre as outras duas pontas uma sobre a outra, por sobre seu dedo. Sério, vídeos de gente fazendo tortellini. Serve o Jamie Oliver. Pelo texto é muito difícil visualizar. Como minha massa estava secando muito rápido, acabei me atrapalhando e a massa saiu cortada maior do que deveria. Mas como minha massa estendeu bem fininha, consegui produzir todos os cappelletti de que precisava. 
  5. Uma vez que você faça os cappelletti, deixe-os espalhados em uma assadeira polvilhada com farinha, sem se encostarem, para que sequem, e comece tudo de novo com o restante da massa. Você pode deixar os cappelleti secando ali em temperatura ambiente pelo dia todo até a hora de cozinhar. Eles têm menos risco de se abrirem no cozimento se tiverem secado um pouco. Ao final, você deve ter cerca de 200 cappelletti.
  6. Na hora de servir, leve o caldo à fervura. Com cuidado, coloque os cappelletti, que não devem demorar mais que 3 minutos para cozinharem, mas vai depender da espessura da massa e do quanto secaram. Vá retirando um e testando. Quando estiverem cozidos, leve à mesa IMEDIATAMENTE e sirva com parmesão ralado.
No dia seguinte, aquela bagunça de criança e presente, café da manhã, e mal deram onze horas e começamos a petiscagem. Minha família é do petisco, do antipasto, do acepipe, do cicchetti, dos tapas, e a gente consegue ficar no pãozinho com qualquer coisa em cima o dia todo e pular almoço e jantar. E era esse o objetivo: petiscagem até o meio da tarde, para só colocar o assado no forno para o fim do dia. 
Eita, foto fora de foco!
Servi salames e presuntos, incluindo um exótico salame de alce com mapple syrup que comprara especialmente para meus pais. Brinquei que mais canadense que salame de alce com mapple, só se o alce tivesse sido morto por um lenhador canadense barbudo, usando camisa de flanela e chapéu de guaxinim. Servi também patê de fígado de frango, que é um clássico familiar, uvas, tomates, queijos e castanhas. E vinho. E caipirinha, claro. As crianças passaram o dia petiscando junto, entretidas com seus presentes, e sobrou para os adultos a arte da conversação.

O jantar principal foi simples, um lombo assado com batatas e uma salada de folhas amargas com maçã, que eu já tinha tido trabalho o bastante no dia anterior. Sobremesa foi uma torta de peras e chocolate que prometia muito mas não achei aquilo tudo não. 
Passado o Natal, vêm os passeios no parque, no museu, almoço aqui e ali, e pronto, que já é Ano Novo! Recebemos um casal de amigos que trouxeram um Caldo Verde para complementar a já sabida petiscagem, repeteco do Natal, acrescida de guacamole com tortillas e uma quiche de brócolis que acabou sobrando inteira para a ressaca do dia seguinte. Brownie com sorvete sempre dá conta do recado com a criançada (e com os adultos), e foi uma noite maravilhosa, com karaokê improvisado e todo mundo acompanhando Bon Jovi e Backstreet Boys com Kazoos, e dobrando no chão de tanto rir. Tem que ser criativo em Reveillon canadense, que aqui mal se soltam fogos e ninguém "vai pra Paulista" nem pula sete ondinhas a doze graus negativos.

Os dias que se seguiram exigiram criatividade também. Que eu programara diversos passeios que dependiam dos trocentos centímetros de neve que sempre caem no início de janeiro. Mas o que tivemos (e continuamos tendo) é um inverninho mixuruca, ameno e chocho, sem neve nem dia bonito, com muita chuva que vira gelo na calçada e tempo cinza-depressão. Daí que nada de fazer snow-shoeing, nada de descer barranco com trenó, nada de boneco de neve no parque. Pelo menos teve um dia, antes do lago descongelar, que, de confiança alimentada pela marca de passos sobre a neve antiga depositada no lago, fomos Allex, meu pai e eu caminhar por sobre o lago congelado. Que afinal, se você vai para um lugar em que um lago inteiro vira uma pedra de gelo, não dá pra perder a oportunidade de ficar em pé em cima dele, mesmo que morrendo de medo de cair lá dentro e virar picolé. 

Meu pai trouxe os tênis de corrida, depois de eu muito insistir durante o ano todo, e foi uma das coisas mais legais que fiz poder correr 9km do lado dele, ao longo do lago, em temperatura negativa. Orgulho do papai! Setenta anos e firme e forte, melhor que muito amigo meu de quarenta!
Teve uma nevinha nos últimos dias, quase prêmio de consolação. E meus pais pelo menos puderam passear no parque e ver como fica lindo assim branquinho. Foi minha mãe quem se animou a descer no meio da noite quando a neve caiu mais forte e brincar de snowball fight. Bando de adulto de pijama na frente do prédio rindo e tomando bola de neve na cara, e canadense passando por nós com aquela cara de quem não entende o por quê de tanta alegria. 

Alegria foi também levar minha mãe no The Rex, o bar de jazz mais antigo de Toronto. Com cara de de pub velho atrás de igreja, lotado da terceira idade no domingo na hora do almoço, surpreendeu pela qualidade da banda. Uma banda igualmente composta por gente que passou por duas guerras, tocando um Dixieland delicioso, num show animado e divertido por três horas. De deixar o sorrido no rosto até doerem as bochechas. Acho que nunca vi minha mãe tão contente, e esse foi para mim o ponto alto da visita toda. 
Quando eles foram embora bateu aquela depressão, a casa vazia e não saber quando vou vê-los de novo. Eles voltaram para o Brasil no mesmo dia em que as crianças voltaram para a escola e Allex para o trabalho, e de repente eu estava sozinha, olhando para a cara do cachorro. Vou retomar minha rotina, pensei. Corrida, meditação, pintar feito louca, procurar um novo lugar de exposição, terminar meu livro, montar minha loja no Etsy, participar daqueles concursos, fazer aquelas aulas. 

Só que não. 

Passou Ano Novo, tem aniversário da Laura. SETE ANOS. Mamãe, quero chamar minhas amigas.

E lá vou eu. Mamãe, no dia do meu birthday, quero levar a sopa da vovó de almoço na escola. E de jantar, quero cachorro-quente do papai, aquele na churrasqueira. E bolo de chocolate. E na minha festa quero pão de queijo, pipoca e cupcake de baunilha. E quero almoçar no japonês. 

Tinha que ser minha filha, só pensar na comida do aniversário.

E lá fui eu passar minha semana fazendo bolo, cupcake, comprando coisa pro cachorro-quente, lembrancinha pra escola, lembrancinha pra festinha, balão pra encher, bandeirinha pra pendurar, e o tal do kit de pintura de rosto que ela andava pedindo pra ter no aniversário dela desde o ano passado. 

Contei que também tinha trabalho encomendado pra entregar essa semana?

E que o marido ficou doente de cama um dia todo? 

Pois é. 

Veio aniversário e deu tudo certo e ela ficou felicíssima com tudo. Festa aqui no Canadá é super simples e dura duas horinhas, mais playdate que festa. Pão-de-queijo, pipoca, cupcake e suco de laranja. Pintei o rosto da criançada toda (os meus mais quatro amigas da Laura) de tudo quanto é bicho, e já vi que se tudo der errado na vida, ainda posso ganhar uns trocados fazendo face-painting em festa infantil. Talento escondido, olha só! 

Janeiro prosseguiu assim, comigo tentando voltar para a rotina e alguma coisa aparecendo pra não me deixar. Teve coisa boa, como uma viagem rápida para Ottawa, e teve coisa ruim, como a escola estar em greve por conta dos cortes na educação que o Ford, nosso digníssimo governador de direita, andou fazendo e que não anda agradando ninguém. 

E agora escrevo assim correndo, enquanto as crianças estão no banho, porque amanhã tem greve de novo, e se fosse deixar esse post para outro momento mais calmo, ele sairia apenas em março. Ufa!

A sopa da vovó é uma canja com arroz e legumes e peito de frango que comi durante a vida toda. E que aqui ocasionou grandes mudanças, pois depois de enviá-la de almoço na escola, as crianças FINALMENTE voltaram a comer COMIDA no almoço e não sanduíche. Isso me facilita horrores a vida, pois é só requentar o jantar do dia anterior e colocar na marmita deles, ao invés de ter de ficar inventando moda e me estressando com o valor nutricional do pão com queijo. 

A sopa da vovó que a vovó faz fica mais soltinha, mais líquida, e mais clarinha, pois ela usa peito de frango. Eu que já tinha caldo de frango feito e todas as aparas da carcaça que eu usara o caldo (depois de cozinhar a carcaça saio tirando todo fiapinho de carne cozida dela, e você junta bem umas duas xícaras de frango desfiado), fiquei com dó de botar o peito do bicho na sopa e resolvi guardar para fazer filés. O caldo deixou a sopa mais dourada (e igualmente gostosa, ainda que mais forte.) Também errei na quantidade de arroz, que achei que era muito pouco, e a sopa quase que virou risotto. Hahah!Ainda assim, foi devorada, com parmesão ralado por cima e croutons, que é como os netos sempre comeram na casa da vó.

Prometo voltar mais rápido na próxima vez. ;) Obrigada a quem lê, por continuar por aqui.



SOPA DA VOVÓ
(A canja da minha mãe é daqueles pratos feitos a olho, com o que sobrou na geladeira, então todos os ingredientes são adaptáveis em quantidades. Quanto rende? Rende no mínimo para quatro pessoas.Você pode cozinhar o arroz direto na sopa, desde que fique de olho pra que ele não passe do ponto - você não quer que ele desmanche, apenas que fique macio. Nesse caso use 1/3xic. arroz branco cru quando as cenouras estiverem já macias e acrescente 1 xícara de água à panela para compensar a absorção de líquido do arroz. Se quiser trocar o arroz por um macarrãozinho pequeno pra sopa, pode. Se quiser não usar nem o arroz nem o macarrão, também pose. Se vc já tiver frango desfiado na geladeira, ótimo: refogue com os legumes para dourar um pouquinho, e use a cenoura ralada grossa para acelerar o cozimento.)

Ingredientes:
  • azeite de oliva 
  • sal e pimenta do reino
  • Meio peito de frango, cortado em 3 ou 4 pedaços (para cozinhar mais rápido)
  • 1 cebola, picada
  • 1 cenoura, descascada e cortada em cubinhos bem pequenos
  • 2-3 batatas médias cortadas em cubinhos 
  • 1 xícara de arroz branco JÁ COZIDO
  • salsinha picada
  • queijo parmesão ralado e croutons para servir  (minha mãe doura os cubinhos de pão em azeite e orégano)

Preparo:
  1. Numa panela grande, aqueça um fio de azeite generoso, em fogo médio, e refogue a cebola e a cenoura com uma pitada de sal até que comecem a dourar. 
  2. Junte o frango, dourando todos os lados, e temperando com sal e pimenta conforme for pegando cor. 
  3. Junte a batata, remexa algumas vezes, e então junte água suficiente para cobrir o frango e os legumes, cerca de 6 xícaras. Leve à fervura, abaixe o fogo e cozinhe por trinta a quarenta minutos. 
  4. Cheque o frango. Se ainda não estiver cozido por dentro, volte para a panela e continue cozinhando. Se já estiver bom, retire os pedaços da panela, coloque na tábua e desfie com a ajuda de garfos.
  5. Volte o frango desfiado para a panela, mexa algumas vezes e acerte o tempero. Cheque as cenouras e as batatas, que devem estar bastante macias, quase derretendo. Se já estiver tudo bom, junte o arroz já cozido, misture bem, deixe cozinhar por mais uns cinco minutos e acerte o tempero. A sopa pode ficar mais rala ou mais consistente, dependendo da quantidade de líquido. Acerte isso também, a seu gosto, lembrando de corrigir o tempero. (Minha mãe costumava usar um amassador de batatas para espremer as cenouras e as batatas, e até um pouco do frango junto, para servir uma sopa mais cremosa quando meus filhos eram bem pequenininhos.)
  6. Junte a salsinha, misture e sirva imediatamente com croutons e parmesão ralado por cima. 
 MINHA ADAPTAÇÃO: como eu tinha já uns dois litros de caldo de frango e umas duas xícaras de frango desfiado da carcaça da preparação do caldo, refoguei os legumes, o frango, juntei as batatas e cobri com o caldo. Quando os legumes estavam macios, juntei o arroz. Meu pecado foi colocar arroz demais, pois havia bastante caldo e achei que a sopa ficaria muito rala. Mas o arroz absorve bastante líquido, e a sopa terminou mais cremosa do que eu pretendia. Com o caldo de frango, a sopa fica com um gosto mais forte. A sopa da minha mãe tem um gosto mais delicado.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

40 anos, 42km, um Dahl, um Frango


Acordei  àquela manhã de quinta-feira ao som de Parabéns A Você, cheiro de cappuccino quentinho e lambidas de cachorro usando chapéu de festa. Levantei um tanto atordoada, pois fora dormir tarde na noite anterior, e, saboreando pequenos goles do meu café, ri da cara do Gnocchi enquanto andava em direção à sala. Eu já sabia que eles tinham aprontado alguma, pois na hora do Boa Noite, Laura sussurrara ao meu ouvido: "Mamãe, amanhã, quando você acordar, fica na cama, tá, não pode levantar se não você vai ver sua surpresa!"

Abençoada inocência infantil.

Mas nem esse aviso me preparou para o que Allex montara na sala. Havia bandeirinhas e balões de látex coloridos por toda a parte onde se lia "Happy 40th Birthday!", e outros balões de hélio variados, incluindo um enorme unicórnio de crina cor-de-rosa (segundo Allex era para ter uma lhama também, mas o moço da loja esqueceu), e outros ainda amarrados com fitas coloridas numa sacola no meio da sala que tinha meu presente: um relógio de corrida, pra eu parar de correr carregando o celular. No aparelho de som, tocava uma playlist especial só de músicas lançadas em 1979. Laura me entregou um caixa inteira de cartões de aniversário que ela fizera durante um mês todo. Thomas pulou em cima de mim e colocou uma enorme coroa de plástico dourado na minha cabeça. "Porque você é a Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o Que Importa, então precisa de uma coroa!"

Eu ria compulsivamente.

Feliz Quarenta Anos.


Naquela manhã, as crianças foram para a escola normalmente, ainda que àquele dia tivessem uma prova de corrida (para o qual vinham treinando havia dois meses) em um parque distante. Allex tirara dois dias de férias especialmente para meu aniversário e veio logo perguntar, enquanto tomávamos um café com mais calma, só nós dois: "O que você quer fazer no seu aniversário?"

"Correr. Primeiro, correr."

Explicando... Logo ao fim da visita de minha irmã, em Agosto, Allex veio empolgado: "Estou me inscrevendo na Maratona de Toronto, do Scotiabank!"
"Certeza? Você nunca correu mais do que 25km..."
"Ah, mas fiz 25km em trilha, com altimetria. A maratona é reta, asfalto... Acho que rola."
"Ok. Divirta-se."
"Tô inscrevendo você também."
"Mas hein?"
"É, ué. Vamos! A gente faz nossa primeira maratona juntos!"
"Vixe... Hmmm... Será?"
"Você já correu 30km, são só mais doze... hahah... Vai, você consegue!"
"Eita. Tá bom. Quando é?"
"Vinte de outubro."
"P*ta que pariu. Tem dois meses pra treinar, é isso?"
"É. Vai, pronto, já te inscrevi. Aqui ó... camiseta? Tamanho M... feminino... Motivação... Wine and Pasta!"
"Ei!"
"Ué..."
"É. Verdade. Você tá certo. Bora treinar então. Vixe..."

Até o fim das férias escolares continuei correndo como era possível. Às vezes as crianças montavam em suas bicicletas e pedalavam pelas ciclovias à minha frente, parando e olhando para trás para ter certeza de que mamãe ainda estava ali, ou me esperando para atravessar ruas e avenidas. Eles pedalavam e eu corria 10, 12, 16km, dependendo do dia, parando ocasionalmente para brincar um pouco num parquinho ou numa praia.

Em outros dias, quando não queriam sair de bicicleta, acordava mais cedo e ia correr trajetos mais curtos enquanto Allex se arrumava para o trabalho.
Vista para o lago, de uma das trilhas onde gosto de correr.

Mas o treino de verdade só começou quando as aulas voltaram, em Setembro.

Foi um mês atabalhoado. É sempre estranho voltar à rotina da escola, depois de dois meses de férias de verão. Além disso, Laura está agora na primeira série, e os horários dela finalmente são os mesmos dos do Thomas. Voltam as aulas, voltam os eventos escolares. Volta o preparar almoço de todo mundo logo de manhã cedo. Voltam os gostos e desgostos que transforma a montagem do lanche num quebra-cabeça de 5 mil peças. Thomas não gosta de fruta fresca. Laura não gosta de nada "cheesy" (sim, Laura anda se revoltando contra queijo.) Thomas não come comida quente na marmita, Laura não gosta de levar sanduíche. Eu quero esganar todo mundo e mandar comer o que a mamãe preparou e parar de encher os pacová e me arranjar sarna pra coçar. Mas né? A gente faz aquele esforço zen para não matar a prole.

Eu tinha vários projetos envolvendo ilustração e novas exposições engatilhados para Setembro, mas além da adaptação à rotina escolar, as reuniões com professor, a anual caça às roupas de inverno que não cabem mais porque as crianças cresceram dois números de calça e de bota em quatro meses, minha cabeça só pensava em uma coisa... Maratona.

Eu não sou tonta nem nada, e por mais que me jogue loucamente em algumas empreitadas, gosto de pesquisar onde estou me metendo para não me estrepar muito lá na frente. Até então eu vinha correndo muito mais esporadicamente, 5km por dia, dez de vez em quando, e num sábado me dava a louca e eu ia correr vinte e um. Assim, come um donut, sai pra correr, volta três horas depois, pro espanto da família que não sabia das minhas intenções. Ou corre até o centro da cidade, toma uma cerveja na Steam Whistle, a cervejaria que fica em frente à CN Tower, e volta correndo tudo de novo. Manda uma foto da cerveja pro marido, pra ele dar risada e saber quando começar a preparar o almoço.

Decidi que ia tentar fazer mais ou menos direito. Vi videos e li textos sobre maratonistas e ultra-maratonistas, gente de trail running e povo de Iron Man. Lembrei de tudo o que eu fazia na época em que tinha treinador. Peguei os pontos em comum dos treinos e da alimentação e vi como melhor adaptar isso tudo à minha realidade.

E lá fui eu.

Allex achava graça que, se antes meu feed do YouTube só tinha video de comida, agora só tinha video falando sobre fascite plantar e síndrome do trato iliotibial. Quem corre vai entender. ;) O marido, enquanto isso, fazia seus treinos e trocava figurinhas com amigos ultramaratonistas (e quando paro pra pensar, me surpreendo com a quantidade de gente que a gente conhece que corre 70km em montanha...)

Comecei a planejar melhor meus treinos, para ir aumentando as distâncias um pouco por semana. Li em várias fontes que meus treinos longos não poderiam ser maiores que 30% do treino total da semana, então logo me dei conta de que isso de correr meia horinha por dia não ia mais rolar.

Conforme as distâncias aumentavam, percebi que aquela dieta que a nutricionista fizera para mim dez anos antes, quando corria com treinador no Brasil, era insuficiente. Eu andava com fome, e o objetivo não era emagrecer. Era correr bem.
Café da manhã de corrida. Torrada com tahini, banana e mel, pêssego e uvas.
Meu café da manhã mudou muito pouco. Continuei na minha torradinha com cappuccino, mas colocando um pouco mais de frutas no prato. Às sextas-feiras, quando fazia algo entre 18 e 26km, acrescentava mais uma torrada com queijo ao prato. Levava na pochete de corrida sempre duas bananinhas (aquele docinho de banana e açúcar) trazidos do Brasil por minha mãe, pois nunca na vida aquele Gel bizarro de corrida me desceu.
Café de treino longo: Torrada com tahini, banana e mel, torrada com manteiga e queijo, pitaya e uvas. E Cappuccino, claro.

"Você vai ter que mudar o trajeto. A Maratona sai do centro e vem pra esses lados pelo lago, você vai achar chato fazer o mesmo caminho...", avisou Allex.

E por isso saí me enfiando em novas ciclovias e trilhas que me levassem por parques e caminhos que eu nunca percorrera. Descobri pedaços lindos de Toronto, que me fizeram ainda mais grata pela oportunidade de morar aqui.




Os treinos longos são sempre meus favoritos. Lembro de um amigo nosso avisando: "Correr longa distância é mais cabeça do que perna - você tem que se acostumar com a ideia de que vai passar MUITO tempo correndo. É a cabeça que quebra primeiro, o corpo depois." No melhor estilo Dorie, quando estou perto de chegar na distância a que me propus a correr àquele dia (pois acordo e decido assim, de supetão, "Hoje eu vou correr 25km, porque é isso que me deu vontade") saio cantarolando: "Just keep running... Just keep running..."

Correr virou para mim muito mais que um exercício físico, mas um momento completa e unicamente meu, que não serve a mais ninguém a não ser... eu. É meu cuidado comigo. Meu momento de silêncio, de solitude, de botar a cabeça no lugar. Eu corro sorrindo. Assobiando uma música. Parando para olhar o mirante ou procurar um bicho selvagem ao ouvir um farfalhar de folhas ao meu lado na trilha. Correndo, já tive encontros com guaxinins, coelhos, esquilos, chipmunks, cobras, falcões, gaviões, corujas, corvos, garças pretas, uma raposa e dois coiotes. Coisas de Toronto. Há muitos corredores verdes no meio da cidade, e a bicharada simplesmente circula por aí.

Volto pra casa cansada e feliz, cheia de endorfina. O ritual é sempre o mesmo. Ainda suando, sento pra comer meu iogurte com fruta, agora com manteiga de alguma castanha e sementes de cânhamo. Banho, e seguir com a vida normal.
Iogurte natural, pêssegos, manteiga de amêndoa, sementes de cânhamo e mel.
Na hora do almoço, durante a primeira semana inteira de treino segui uma receita de um livro ayurvédico que Allex me dera de presente há muitos anos e que minha irmã trouxera para mim em sua visita. Arroz integral e legumes no vapor temperados com ghee e cúrcuma. Simples demais e muito bom.  Só isso mesmo. Quando os legumes estão prontos, você esquenta o ghee numa panelinha, dissolve um pouco de cúrcuma em pó e derrama isso por sobre os legumes. Nham!
Arroz integral com legumes no vapor e ghee com cúrcuma.
Como isso era bem mais que minha usual torrada com abacate, eu não tinha fome no meio da tarde. Se tivesse, comia uma fruta. Os pêssegos e nectarinas do fim do verão estavam um desbunde!
Dahl de lentilhas e legumes no vapor com ghee, castanhas e coco ralado.
O jantar eram aqueles mesmos legumes no vapor e ghee, polvilhados com castanha de caju picado e coco ralado, e um fenomenal dahl de lentilhas cuja receita deixo aqui. As crianças amaram a refeição, para quem servi também arroz.

DAHL AYURVEDICO TRI-DOSHA
(Do livro You Are What You Eat, Cooking for body, mind and soul, de Sandra Herber-Percy)

Ingredientes:
  • 1 xic. lentilhas (vermelhas, amarelas ou qualquer outro tipo - usei uma mistura da vermelha, preta, marrom e verde)
  • 8 xic. água
  • 2 xic. abóbora ou abobrinha em cubos
  • 1 xic. cenoura fatiada
  • 1/2 colh.(chá) assafétida (se não tiver, use 1/4 cebola pequena bem picadinha, que foi o que fiz. O sabor é ligeiramente diferente e não é uma substituição autêntica, porque há muitos indianos que não usam cebola e alho de jeito nenhum. No entanto, fica delicioso igual.)
  • 2 colh. (sopa) ghee ou óleo vegetal
  • 1 colh. (chá) cúrcuma em pó ou fresca, ralada
  • 1 colh. (chá) suco de limão
  • 1 colh. (chá) sal marinho
  • 1/2 colh (chá) gengibre fresco ralado
  • 2 pimentas verdes, sem sementes, picadas (aqui, vai no gosto, na verdade, e dependendo do tipo de pimenta verde que você encontrar. Comprei uma pimenta verde que era grande e forte, e usei apenas uma e foi o bastante)
  • 1 colh (chá) sementes de mostarda
  • 1 colh. (chá) sementes de cominho
  • 1 colh (sopa) coentro fresco
  • 1 colh (sopa) de coco ralado fresco

Preparo:
  1. Aqueça 1 colh (sopa) do óleo ou ghee numa panela grande. Junte a assafétida, cúrcuma e suco de limão e refogue em fogo baixo por 30 segundos. Junte as lentilhas e refogue por 1-2 minutos.
  2. Junte os legumes, e misture bem por 1-2 minutos.
  3. Junte a água, pimenta, sal e gengibre. Leve à fervura,  cubra, abaixe o fogo e mantenha em fervura branda por 45 minutos, ou até que as lentilhas estejam se desmanchando.
  4. Aqueça o óleo restante em uma frigideira pequena. Junte o cominho e sementes de mostarda e cozinhe até que as sementes de mostarda comecem a pular. Desligue o fogo e adicione o óleo e sementes às lentilhas.
  5. Sirva o Dahl com coentro e coco ralado por cima.  

Variei os legumes durante a semana, usando também berinjela e brócolis e temperando o ghee não só com cúrcuma, mas também com um pouco de gengibre fresco picado. Castanhas por cima e tudo cobrindo arroz.
Arroz integral, berinjela e brócolis no vapor, com castanhas e gengibre.
Noutro dia, já sem arroz, fiz novamente aquelas mesmas berinjelas, mas sobre soba, e temperado também com um nada de shoyu e folhas de coentro.

Soba com berinjelas no vapor.
Essas primeiras semanas comendo mais leve me deram um gás para de fato engatar os treinos. Pela primeira vez desde o nascimento do Thomas, eu estava correndo consistentemente e melhorando. Eu me sentia bem, forte e motivada. Junto dos treinos de força de kettlebell para evitar lesões, comecei a ver meu corpo reagir bem àquela nova rotina.

E lá estava eu, no meu aniversário, a 17 dias da maratona, querendo sair para correr.

Chovia leve. O dia estava feio. Allex saiu para correr comigo, mas não sem antes apanhar dois chapéus de festa e colocá-los em nossa cabeça.

"Você acha que eu vou sair assim?"
"Vai. É seu aniversário."

E lá fomos nós correr na chuva de chapéuzinho colorido.

Foram os 12km mais engraçados da minha vida. Todo canadense que passava por nós desejava Happy Birhtday! Caminhões buzinavam. Velhinhas riam da nossa cara. E nós ríamos de volta. Foi sensacional.

Saímos para almoçar só nós dois depois disso, e então fomos buscar as crianças na escola. Depois de algum descanso, saímos para comer uma pizza numa das poucas pizzarias da cidade que usam forno à lenha. Apesar de estar caindo de sono, foi um bocado divertido. Principalmente porque a família toda usava chapeuzinhos coloridos e eu, claro, fui a louca andando por aí de coroa dourada na cabeça. "Vocês foram ao Medieval Times?", perguntou a garçonete, servindo-me meu segundo Spritz da noite. "Não", respondeu Allex, "É o aniversário de 40 anos dela e a gente tá fazendo ela passar vergonha." Por conta disso, ganhamos sorvete de chocolate com uma vela de aniversário em cima. ;)

Na manhã seguinte, com crianças na escola e Allex ainda de férias, arrastei o marido para o treino longo. O dia estava lindo e ensolarado. Subimos o rio Humber e eu ria apontando para ele todos os locais que haviam usado como cenário na série Handmaid's Tale. Achava engraçadíssimo que os personagens quisessem fugir para Toronto mas já estivessem aqui. (Explico: Toronto e Vancouver são cidades canadenses amplamente usadas pela indústria cinematográfica americana para fingir que são Nova York ou outras cidades americanas, pois elas se parecem muito e são mais baratas.)


Paramos sobre uma ponte abaixo da ferrovia para comer uma bananinha e voltamos. Nos separamos num certo ponto, pois ele queria voltar logo para casa indo por cima, e eu queria fazer todo o trajeto de volta pela margem do lago. Ele correu 21km, eu queria fazer 30.

Sozinha, descendo à margem do rio, ri novamente da minha sorte com bichos. Aproximei-me do rio ao ver um acumulado de gente batendo fotos, quando me dou conta do que está acontecendo: a piracema do salmão. Lá iam os salmões imensos rio acima, se debatendo nos ares, cheios de convicção e coragem, tentando infinitas vezes ultrapassar a pequena queda d'agua que os separava de seu objetivo.


Quando o primeiro deles conseguiu, dei um gritinho de alegria com braços para o ar e continuei a correr. Se o salmão consegue subir aquele rio, eu vou conseguir correr minha maratona. Just keep running! Just keep running!

Na última semana antes da prova, minha sogra veio visitar. Consegui correr uma ou duas vezes, mas no restante do tempo simplesmente passeamos. As crianças faltaram dois dias na escola para que pudéssemos ir até Algonquin Park, pois lá o Outono já chegara oficialmente e as árvores estavam todas coloridas. Alugamos um chalezinho simples perto do parque, à beira de um lago, e fomos passear pelo parque imenso, lindo, inteiro dourado e vermelho.


Passávamos o dia fora, em trilhas pelo parque. Capas de chuva protegendo do tempo ruim mas que não desanimou nossos espíritos. Eu ia na frente com o cão e com Thomas, que ia "Kilian-Jornando" * todo o caminho íngreme de pedra e lama. Mais tarde eu me inspiraria nessa visão do meu filho correndo a trilha sem medo, mas estou me adiantando.

*Procure vídeos do Kilian Jornet, se não sabe quem é, e vai entender do que estou falando.

O último local a que fomos antes de voltarmos a Toronto foi à pedra mais antiga do mundo. É um morro rochoso cuja datação de carbono é tão antiga que o local inteiro parece ter sido importado de Marte.


Foi uma viagem curta mais deliciosa. Não há nada que eu goste mais do que me enfiar no mato, principalmente com minha família.
De volta a Toronto, as primeiras árvores a ficarem vermelhinhas.
No dia da Maratona, minha sogra ficou com as crianças. O outono começara a dar as caras também em Toronto, e estava frio. Fazia oito anos que eu não participava de uma prova de rua, sendo a última a Meia-maratona do Rio, que eu corri sem saber que estava grávida de Thomas. Fiquei impressionada com a participação popular durante toda a prova. Muita gente por todo o trajeto carregava cartazes engraçados, como "You payed to do this!", "It seems like a huge effort just for a banana!", "Pain is only the french word for bread!", "You think your legs hurt, my arms are killing me!" "You already ran 40km, I can't run even 1", "There's beer at the end!", "The faster you run, the sooner you're drunk!"e tantos outros. Havia grupos de música tocando e dançando em vários pontos do caminho. Crianças distribuindo pretzels e bananas para os corredores com suas mães. Gente fantasiada torcendo e soltando bolhas de sabão. A energia toda da prova era muito boa, e me lembrou da sensação de participar da São Silvestre, há tantos anos atrás.
Preparando para a largada em Downtown.
Allex se machucou no quilômetro 21, e por um instante fiquei triste, achando que ele abandonaria a prova. Mas logo se recompôs e me alcançou e por algum tempo corremos juntos outra vez até ele me dizer para ir no meu ritmo, que ele iria mais devagar. E assim fui. Assobiando, sorrindo, feliz.

Quando cheguei ao quilômetro 32, conhecido como o "paredão", eu estava me sentindo ótima, o que me empolgou ainda mais. O problema desses últimos dez quilômetros, é que eles consistiam de loooooongas retas em áreas industriais, feias e sem sombra. O frio fora embora, e os dezoito graus ao meio dia começavam a cobrar pedágio. O calor (sim, 18oC é quente) sob minha camiseta preta incomodava. E aquelas retas eram infinitas. Você via os quilômetros passando e não via a curva de retorno. A cabeça começava a pirar, pensando que tudo o que a gente ia, teríamos de voltar.

Foi no quilômetro 37 que a pilha começou a acabar. Meus quadris doíam. Meus joelhos doíam (Olá, iliotibial!). Meu abdome doía. Lembrava dos videos de corrida, treinadores avisando: "você vai cansar de simplesmente passar tanto tempo em pé".

Comecei a desacelerar. Então pensei em Allex: "o negócio é não pensar nos 42. Pensar que são só dez. E dez é um treino de terça-feira. Cinco K é uma volta no parque. Você consegue dar uma volta no parque."

Eu consigo dar uma volta no parque. É só uma volta no parque. São só 5k.

Não parei de correr. A reta industrial acabou e subi um viaduto de volta a Downtown. As ruas se fechavam por entre prédios altos novamente. Eu ouvia de longe gente torcendo. Eu ouvia o narrador da corrida falando, empolgado, o nome de quem terminava. Meu sorriso se abriu largo de felicidade e de repente havia força para aqueles últimos dois quilômetros. Acelerei. Acelerei mais. Fiz a curva para a praça da prefeitura, e ali estava a multidão torcendo atrás das barricadas vermelhas, a linha de chegada, e todo mundo gritava e aplaudia como se me conhecesse. Meus olhos se encheram de lágrimas. Energia tão boa. Ouvir aquela voz no microfone dizendo meu nome quando cruzei a linha dos 42km foi uma das coisas mais fantásticas da minha vida. Felicidade plena.

Foi perfeito.

Foram 4 horas e 48 minutos correndo sem parar. Muito longe de ser um tempo impressionante. Mas foi o bastante para mim. Eu fiz. Eu terminei. Eu queria muito, fui lá e fiz. Quarenta quilômetros para comemorar meus quarenta anos. E mais dois de lambuja.

Allex terminou depois de mim.

Voltamos, exaustos, pernas duras, medalha pesada no peito, de metrô para casa. Ríamos. Meu deus do céu, como tinha sido difícil! Mas como era legal! Vixe, imagina povo que faz 50? E 100? Nossa, não rola. 42 acho que já foi o bastante.

A cerveja e o macarrão em casa eram divinos. Eu me sentia bem.

Passado o cansaço, que perdurou por alguns dias, não sobrou nenhuma lesão. Sobrou a surpresa de me dar conta de que meu abdome e meus braços doíam mais que as pernas.

Fazer uma maratona foi como parir. Tanto tempo de preparo, chegou a hora, acelera, acelera, parece que não vai, eita, que maravilha!, terminou, você conseguiu. Também é como parir porque depois que passa o efeito do primeiro filho, você esquece o sofrimento e decide ter o segundo. Por isso, na semana seguinte, me inscrevi para minha primeira ultra. Cinquenta quilômetros em trilha, daqui a um ano. Muito tempo para treinar. Para fazer maratonas em parques. Para melhorar minha velocidade, para passar menos tempo correndo. Mas em trilha. Chega de asfalto. Correr em asfalto foi chato. Gosto de mato.

Três semanas depois, fiz minha primeira prova de trail running. 25km no mato. Lama e pedras e limo e raízes escondidas pelas folhas mortas de outono. Lembrei de Thomas "Kilian-Jornando", levantei os braços na altura do ombro pra me equilibrar e simplesmente soltei o corpo. Vai. Pula de pedra em pedra. Aceite o fato de que você vai cair em algum momento, dizia um video de uma ultra-maratonista numa entrevista. Aceito. Eu sei que vou cair. Não vou ter medo. Só pula. Pulei. Caí. Duas vezes. Xinguei, ri, limpei a lama das luvas (porque fazia -7oC àquele dia) e continuei correndo. Meu eu de vinte anos atrás, se borrando de medo de altura nas trilhas, ficaria orgulhosíssima.

Feliz Quarenta Anos.

....


Uma das abóboras, design da Laura.

No meio do caminho, claro, teve Halloween. Laura me pediu para mandar um lanche "scary", e pela primeira vez na vida me dei ao trabalho de fazer isso. Eu não curto essa coisa de fazer comida parecer outra coisa. Pra mim comida tem que parecer comida. Mas... enfim. Foi divertido.

Preparei muffins de abóbora (com o miolo da abóbora que virara Jack-O-Lantern), com o glacê de açúcar e limão em forma de teia de aranha.  Improvisei aranhas com uvas verdes e salsão. Thomas comeu o muffin e deixou a uva, Laura comeu a uva e deixou o muffin. Né? Minha sina. (Improvisei os muffins usando de base aquela mesma receita-base da Martha Stewart que já linkei aqui várias vezes. Mas esqueci de escorrer e apertar a abóbora cozida e o purê ficou muito úmido, o que afetou toda a receita...)



 Também mandei ovos cozidos, com lascas de azeitonas encaixadas em buraquinhos que escavei com a ponta da faca para fazer os olhos e a boca. Ghost-eggs. Esse fez sucesso com os dois.

Teve sanduíche de queijo e salame demoníaco, com lascas de tomate-cereja como olhos brilhantes. Thomas adorou. Laura reclamou que foi difícil de comer, porque seus dedos tocavam o salame ao invés do pão. Ai, ai...

 
Por último, Cheesy Feet da Nigella, suuuuuuuuper fáceis e deliciosos. Por que pés? Porque eu não tinha nenhum cortador de biscoito assustador. Eles foram tão fáceis de fazer e ficaram tão gostosos, que pretendo prepará-los mais vezes para mandar de lanche da escola. Apesar de bem "cheesy", Laura aprovou.



No meio disso tudo, dos curries ayurvédicos e tranqueiras de halloween, continuo no meu surto de cozinha saudosista. Rolaram panquequinhas de ricotta e espinafre, um dos pratos que minha mãe mais fez para mim e para o Allex em nossa fase mais vegetariana. Quando eu era criança, elas eram recheadas de carne moída e eram deliciooooosas. Acabei usando a receita de um dos livros da Tessa Kiros, mas apesar de amar os crepes doces dela, a versão salgada foi meio difícil de acertar e achei que molho branco MAIS molho de tomate ficou meio pesado. Delicioso, mas pesado. Próxima vez vou na receita simples da minha mãe para a massa dos crepes e faço como ela, servindo apenas com molho de tomate.
Amor puro, panqueca de ricota e espinafre.
 Quando Allex viaja a trabalho, sempre aproveito para preparar frango, pois ele não gosta, mas as crianças sim. A pedido deles, resolvi preparar o frango frito da minha mãe, uma das coisas que ela mais preparou para mim e para meus filhos desde que nasci. É a quintessência da casa dos meus pais.

Liguei para ela e pedi a receita. Ao contrário das panquequinhas, nesse caso, tinha que ser a receita da mamãe.

Como sempre, muito didática e solícita, minha mãe preparou o frango na casa dela e fotografou todos os passos, explicando minuciosamente o preparo.

Fui ao mercado comprar peito de frango, mas quando cheguei lá, quase caí pra trás com o preço de dois peitinhos orgânicos. Era o preço do frango inteiro. Vai o frango todo, então, que pelo menos rende mais refeições e faço caldo com a carcaça. Fora que sempre me divirto destrinchando o bicho. Ok, acho que perdi um zilhão de leitores veganos e vegetarianos agora. A técnica. A técnica eu acho divertida. De separar as partes. Ah, você entendeu.

Estava tudo bem não fosse o fato de a geladeira estar vazia, pois eu acabara de passar por uma daquelas minhas semanas divertidas de "rapa-despensa". Fui vendo a lista e botando no carrinho. Vendo e botando. Na hora de pagar, fui encaixando tudo nas duas grandes sacolas que levo comigo e na minha mochila.

"Quer ajuda pra levar até o carro?", perguntou a caixa.
"Eu tô a pé", respondi. Ao que ela me lançou um olhar desconfiado."Eu aguento. Sou mais forte do que pareço."

Faz a conta... 1 frango inteiro, 4 litros de leite, 2 litros de água de coco, meio quilo de queijo, 1,7kg de iogurte, 1,5kg de maçã, 1,5kg de pêssego, meio quilo de tomate, meio quilo de cenoura, 2 caixas de ovos, 1 abóbora, 1 couve-flor... Pois é. Esse 1,5km carregando essa tralha no braço pareceram MUITO mais longos do que os 42 correndo... ;)

Aí no fim do dia, Allex me pede ajuda para ROLAR (literalmente) os pneus de neve pra fora do nosso armário e até a garagem, para que ele pudesse aproveitar a revisão do carro e já trocar os pneus.

"Vai, Ana! É cross fit!", brincou ele.
"Minha vida é um cross fit, Allex."


 Durante a viagem dele, destrinchei o frango e com o peito preparei o franguinho frito, macio e suculento, de crostinha crocante e com gosto de comida de vó. Servi com macarrão gratinado e couve refogada. Foi a alegria da pimpolhada. "Mamãe, agora faz a sopa da vovó? E o rocambole?" Tá na lista, filho.
E outro amor puro: frango frito.
 O que sobrou do frango virou uma caçarola com molho de tomate, também da Tessa. E a carcaça foi cozida com legumes para virar 2 litros de caldo de frango que foram direto para o freezer. Contei o causo para meu pai, que ria, perguntando se o frango era do tamanho de um cisne, tanta comida tinha vindo dele.

Para arrematar a seção saudade, bolinho de chuva, que meus filhos nunca tinham comido na vida. Usei a receita da Rita Lobo e o sucesso foi retumbante. A única reclamação foi que a receita rendia muito pouco.



FRANGO FRITO DA MINHA MÃE

Ingredientes:
  • 2 peitos de frango sem pele
  • 1 colh. (chá) sal
  • leite (cerca de 2 xic)
  • 2-3 ovos
  • 2 xic. farinha de rosca
  • óleo para fritar

Preparo:
  1. Limpe bem o frango, tirando qualquer nervura. Corte em pedaços mais ou menos iguais, do tamanho de uma bolinha de ping-pong, lembrando que o frango encolhe depois de cozido. (Prefiro tamanhos menores, pois é garantia de que o frango vai cozinhar por dentro sem ficar seco ou queimado.)
  2. Numa tigela grande, misture o leite ao sal e coloque ali o frango já cortado. Cubra com um prato e leve à geladeira por pelo menos meia hora. 
  3. Retire da geladeira uns quinze minutos antes de usar, para perder um pouco o gelo. 
  4. Numa outra tigela, bata com um garfo dois ovos com cerca de meia xícara do leite do frango (aprendi a não desperdiçar nada com minha mãe e meu pai, veja bem.) até que fique misturadinho. (Segundo minha mãe, o leite na mistura de ovos para empanar deixa a casquinha mais fina e leve). Num prato, disponha metade da farinha de rosca.
  5. Retire o frango do leite (reserve o resto do leite, para se precisar bater com aquele ovo que sobrou). Pegue um pedaço de frango por vez, passe na farinha de rosca, então no ovo, e depois na farinha de rosca novamente e deixe num prato ao lado. (O leite, também, segundo mamãe, impede que o ovo faça aquele rabicho pingando quando a gente está empanando - a mistura fica mais homogênea.)
  6. Quando todo o frango estiver empanado (use o último ovo com um pouco daquele leite, e o resto da farinha de rosca, se precisar), coloque uns dois dedos de altura de óleo vegetal numa frigideira grande e aqueça em fogo médio-alto. Coloque um fósforo lá dentro. Quando o fósforo acender, o óleo está a 180oC. (Minha mãe não gosta de fritura com muito óleo, então usa um pouco de azeite e manteiga, mas desse jeito precisa ficar com uma colher banhando o os pedaços de frango. Esse jeito dela prefiro fazer quando é filé e não nuggets.)
  7. Enquanto isso, ligue o forno a 180oC.
  8. Coloque os franguinhos no óleo quente, sem encher muito a frigideira, para que a temperatura não abaixe. Cozinhe até dourar embaixo e vire-os com uma colher. Deve demorar uns dois a três minutos de cada lado, se os nuggets estiverem pequenos e o óleo na temperatura certa. Retire os franguinhos prontos, coloque-os numa assadeira e leve ao forno. Isso vai garantir que continuem cozinhando, para que nenhum fique cru por dentro, e a casquinha continue crocante. Termine de preparar o restante. 
  9. Simples e bom. 




quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Verão, visita, gatilhos positivos, acampamento, livros que transformam e ghee


Eu me lembrava do verão passado com carinho: longas caminhadas com as crianças, descoberta de novas prainhas, novos parquinhos, trilhas escondidas; piqueniques sem pressa no meio do caminho, pés na areia, horas sem fim de leitura silenciosa enquanto meus filhos brincavam soltos por aí.
Mas o tempo passa, a novidade se esvai, e as caminhadas deixam de parecer uma exploração para virarem rotina. Dos parquinhos cada um tem seu preferido, e escolher aonde ir provoca quase sempre conflitos. As crianças agora têm amigos com os quais fazem questão de encontrar, e eu fecho o meu livro para passar longas horas em conversas de elevador com pais de coleguinhas. Não, talvez isso seja injustiça: algumas dessas conversas foram realmente boas em dias que eu precisava trocar figurinhas. Mas sendo a eterna introvertida que sou, preciso de um dia de silêncio para me recuperar de um dia de constante falatório. E esse dia de silêncio calhou que nunca veio. Porque mesmo que você não marque nada com ninguém, os bairros de Toronto são como mini cidades do interior: todo mundo que estuda naquela escola mora no mesmo bairro e frequenta os mesmos parquinhos. Logo, você está sempre fadado a encontrar alguém conhecido.

Além disso, boa parte dos amiguinhos dos meus filhos estava em creches ou summer camps (os tais programas de férias que servem para ocupar seu filho em horário comercial quando você tem que trabalhar ou não está afim de passar seus dias no playground). E como as tais crianças só saem dos camps às 3h30 da tarde, precisei mudar toda aquela rotina boa de sair sem destino por aí, gastar energia logo cedo, almoçar piquenique, e voltar exausto no meio da tarde pra tomar banho e ver um desenho... para o completo oposto: ver desenho de manhã, almoçar em casa, sair pro parque com horário marcado no parquinho de sempre, voltar tarde pra casa, fazer manha pra tomar banho, jantar tarde, ainda querer jogar jogo de tabuleiro depois do jantar com o papai e ir dormir às dez da noite.

Um dos vários almoços piquenique: frutas, wrapp de abacate, queijo e legumes, coco fresco em pedaços, amêndoas e tâmaras, frutas da estação.
O dormir tarde não seria um problema, afinal são férias, tudo bem. Mas quando eles dormem as dez da noite e continuam acordando às seis da manhã, a falta de sono vai acumulando, e Laura, principalmente, vira um bicho quando está cansada (exatamente como eu). Além disso, o meu tão prezado "horário de adulto", tão importante para a manutenção de minha sanidade mental, foi também pro beleléu. Ao invés de ir dormir às dez e meia (porque as crianças estariam na cama desde as oito), vi-me indo pra cama à meia noite, uma da manhã. Pra acordar às seis no dia seguinte ao som de criança brincando e/ou brigando.

Isso poderia ter transformado o verão num estresse.

Mas eu me mantive concentrada nos meus gatilhos positivos. Pois é, aquelas pequenas coisas que você faz para te manter no rumo. Acordar cantando uma musiquinha besta que faz todo mundo dar risada da minha cara. Alongar antes do café para botar a coluna no lugar e fazer a energia fluir. Alongar parece ser o passo número um para me lembrar de me cuidar o resto do dia. Quando não alongo tendo a esquecer de fazer outras coisas importantes para a manutenção da minha sanidade. Uma coisa puxa a outra. Quando alongo, acabo meditando. Quando medito, acabo indo correr. Quando corro, tenho vontade de comer comida fresca e leve. Quando como bem, me sinto melhor ao longo do dia e acabo pintando mais. Quando pinto, sinto-me competente e satisfeita. Quando me sinto competente e satisfeita, sinto-me mais calma para lidar com os conflitos com as crianças. Lidando de forma zen com as crianças, me sinto uma mãe melhor. No fim do dia tomo minha cerveja porque quero e não porque preciso. Vou dormir cedo. Durmo bem. E o dia seguinte já começa com o pé direito.

E tudo começa com a minha saudaçãozinha ao sol. Um alongamento de nada. Meu gatilho.

E mesmo num dia ruim, sei que esse alongamentozinho de dois minutos e meio é aquela migalhinha no caminho de que preciso. Quando as coisas saem do controle e me vejo querendo ir atrás daqueles famosos "confortos" que no fim pioram minha autoestima (os doces, o álcool, o famoso "hoje não vou correr porque meu dia está ruim e eu mereço não fazer nada"), troco por cuidados comigo: ler um livro, tomar um chá, lavar o cabelo, uma caminhada no mato, um lanche que seja bonito e me faça sentir que estou cuidando de mim e me dando amor de verdade, ao invés de me punir com aquilo que a mídia ensina que é amor (se entupir de sorvete no sofá chorando as mágoas - isso resolve como?). Ou simplesmente peço um abraço. Quantas vezes, num dia ruim, a gente lembra de simplesmente pedir um abraço?

Meus gatilhos positivos me mantiveram de bom humor para lidar com as pequenas coisas do verão que não eram de acordo com minhas expectativas (expectativa é uma m*rda). Ajudou também marido chegar em casa num horário bom para jantar conosco e jogar jogos com as crianças enquanto eu relaxava a cabeça passeando o cachorro no parque. Oito horas da noite e a luz era de quatro e meia, as cigarras cantando, os passarinhos se aninhando para encerrar o dia.

Enfim, lá pelo meio das férias o que ajudou mesmo foi a liberdade das crianças. Havia visto internet afora um video sobre Free Range Parenting, um termo meio piada para tratar da liberdade das crianças no mundo moderno, e caí num livro da jornalista Lenore Skenazy: Free Range Kids. O livro compara a liberdade das crianças de décadas anteriores com as atuais, fala dos medos modernos dos quais mães e pais sofrem e combate tudo isso com dados e fatos, mostrando que, pelo menos na América do Norte e na Europa, o mundo está mais seguro para as crianças. Fala sobre confiança. A mesma confiança que tenho em dar facas nas mãos dos meus filhos para que cortem as próprias frutas, ou que tenho em Thomas para usar o fogão e preparar seu próprio ovo frito com torradas de manhã.

Foi num dia no meio das férias, em que Allex estava em casa trabalhando e nós atravessávamos o parque para ir a uma padaria vinte minutos dali que, cansada de ouvir as reclamações de Thomas, virei e perguntei: "Se eu te desse a chave de casa agora e mandasse você pra casa pra ficar com seu pai, o que você faria?" Ao que ele se empertigou todo o respondeu que voltaria numa boa. "Como você volta pra casa daqui?", perguntei. E ele descreveu todo o caminho, incluindo os momentos em que teria de parar para atravessar a rua olhando para os lados e respeitando a sinalização. Explicou como entrar no prédio e como abrir a porta. E disse que ficaria em casa brincando de Lego enquanto papai trabalha. Pensei por um instante. Mas ele acabou indo para a padaria comigo, reclamando até ganhar um croissant de chocolate, que fez toda a andança valer a pena.

Foram dois os motivos que me impediram de mandar meu filho de oito anos para casa sozinho: primeiro, eu não havia discutido esse passo importante com Allex ainda (parecia-me uma decisão que deveria ser tomada junto) e segundo, eu não sabia se isso era legalmente permitido, uma vez que há alguns lugares do mundo que podem botar uma mãe na cadeia por deixar uma criança dessa idade saracoteando sozinha por aí. (Eu pesquisei a lei de Ontario, claro, e é uma mera questão de bom senso.)

Esse episódio me fez pensar bastante a respeito do meu controle sobre meus filhos e olhá-los de uma outra forma: sob a ótica de suas reais capacidades e não das minhas preocupações. Morar numa cidade segura ajuda um bocado, claro.

E a partir daquele dia, comecei a soltá-los um pouco mais. Ciente de que eles são extremamente responsáveis e não saem mexendo no que não devem nem se inventando encrenca, comecei a a deixá-los experimentarem um pouco de liberdade conforme a oportunidade aparecia, sempre conversando muito a respeito de perigos reais e como reagir a cada um deles (desde a abordagem de estranhos até fogo no prédio). Ao fim do verão eu já estava podendo deixá-los em casa enquanto ia ao mercado rapidamente sem o menor problema. E ir ao mercado sozinha é o tipo de sonho de verão que só uma mãe em tempo integral entende.

Hoje, com as aulas já começadas, a alegria do meu filho é poder ir para casa fazendo um caminho diferente do meu. 

As pequenas liberdades deles trouxeram mais paz aos nossos dias e nosso relacionamento. Fui me vendo mais segura deles e de mim mesma. Num outro dia, Thomas veio me pedir um lanche. Olhei para ele e, rindo, expliquei: "Filho, você tem quase nove anos. Quando você era pequeno, eu precisava escolher o que você comia e quando, pra garantir que você ia crescer forte, porque você ainda não sabia fazer essas coisas. Agora você sabe. Tá com fome? Você sabe abrir a geladeira, usar o fogão e a air fryer. Go crazy. Se alimente. Só peço algum bom senso pra não sair fazendo lanche perto da hora do jantar, por favor, e avisar quando alguma coisa acabou ou está prestes a acabar pra eu poder comprar mais."

Ele demorou alguns minutos pra entender o que eu tinha dito e assimilar aquilo. E saiu correndo pra fazer um enorme sanduíche de tudo o que ele encontrou na geladeira.

Claro, ajuda o fato da minha casa não ter comida "porcaria", como Laura diz. E quando tem, eles perguntam se pode pegar. 

Cafés da manhã tem sido assim ultimamente. Aquela época de "hoje tem mingau" não existe mais. Cada um prepara o seu conforme seus gostos. Se pedem ajuda, ajudo. Hoje quiseram montar o próprio almoço para levar para a escola. Aos fins de semana já aconteceu de eu acordar e os dois já terem tomado café da manhã. A mesa estava posta com as coisas que eu costumo comer de manhã e Laura tinha feito meu cappuccino (ok, a máquina é automática, mas ela ainda tem que lembrar a ordem certa de apertar os botões e lembrar de conectar o reservatório de leite que fica na geladeira).

Eu respiro fundo e fecho os olhos quando eles exageram na quantidade de mel na torrada ou quando resolvem colocar maple syrup no cereal que já vem ligeiramente adoçado. Tá tudo bem. Larga. Sei que sou mais feliz controlando menos e tento abafar o monstro Control-Freak dentro de mim quando ele começa a dar as caras novamente, o que sempre acontece quando estou ou muito cansada ou frustrada com outra situação que saiu do meu controle.

Ao invés de estressar com a bagunça e ficar pedindo um milhão de vezes pra tomar cuidado pra não derrubar o leite na mesa, simplesmente peço pra limpar quando acontece. Agora é automático. Eles sempre limpam a mesa quando cai comida e nem preciso pedir mais. E ninguém mais fica estressado.

Um outro livro que me ajudou com isso foi da Rebeca Wild. Eu já havia lido o Calidad de Vida, sobre ritmos de desenvolvimento infantil, e, achando que precisava reler, peguei outro dela por engano, sobre a vida escolar: The Pestalozzi Experiment, que terminou sendo fantástico, lembrando-me de olhar meus filhos sob outros pontos de vista e compreendê-los melhor.

Em termos de olhar as coisas sob outros pontos de vista e entender melhor, dois outros livros foram fundamentais para mim: Wild Power, de Sjane Hugo Wurlitzer e Alexandra Pope (que fala sobre o ciclo feminino como se fossem estações do ano e como a compreensão de cada fase pode ser usada a seu favor como fonte de força ao invés de limitação) e Mulheres que correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Estés, PhD (não é só hype, o livro é de fato EXCELENTE - eu tinha pego na biblioteca, mas no meio da leitura resolvi me comprar uma cópia para ler e reler quando precisar e eventualmente dá-lo à Laura).

O verão que se seguiu à minha viagem à Portugal foi uma jornada de reencontro com minha criança interior e a força feminina escondida embaixo de cobranças e expectativas. Foi um verão repleto de energia, força e alegria.

Foi nessa fase boa que minha irmã chegou, depois de dois anos sem vê-la. Fiquei esses dois anos esperando para tomar Aperol Spritz com ela novamente.



Concentramos em parcos sete dias tudo o que queríamos mostrar a ela. Cataratas de Niagara, Niagara on The Lake (uma cidadezinha linda quase com cara de cenográfica), piquenique e "tubing" (descer o rio de bóia) em Elora Gorge park, longos passeios de bicicleta por Toronto, hambúrguer, brunch e ramen nos nossos restaurantes favoritos, muita cerveja e conversa e muitos, muitos jogos de cartas  e tabuleiro com as crianças.
Elora Gorge Park.
Almoço-piquenique, a quintessência do verão canadense.(Muffins de mirtilo, Pão de queijo, Blue corn tortilla chips, melancia, pepinos.)


Niagara Falls
Quando minha irmã foi embora, deixando na gente essa impressão de o tempo ter passado muito rápido, tratamos de nos inventar coisa pra fazer. Aproveitamos as promoções de fim de verão para comprar algo que queríamos havia muito tempo: equipamento de acampar. Costumávamos acampar antes das crianças nascerem. Mas seja por excesso de trabalho, falta de grana, medo pela segurança ou qualquer outro motivo, enquanto moramos no Brasil, o único lugar em que as crianças acamparam foram na sala de casa.

Estava na hora de corrigir isso.

Reservamos um espaço num parque a pouco tempo daqui e lá fomos nós. Compramos nosso equipamento não pensando nos car-campings que os canadenses costumam fazer durante o verão, mas sim nas trilhas que pretendemos fazer com as crianças um dia. Barraca pra quatro ultraleve, saco de dormir que aguenta frio e isolante térmico. Um fogareirozinho potente e minúsculo e uma panela pequenininha, só pra esquentar água. Foi também uma lona e cordas para poder fazer um abrigo do sol e da chuva além da barraca. Allex se arranjou um livro que ensina a fazer nós e se divertiu descobrindo formas diferentes de amarrar a lona às árvores.

No quesito comida, no entanto, confesso que exagerei. Querendo tornar a experiência suficientemente gostosa para que eles quisessem repetir, levei milho e linguiças e queijo haloumi (que parece o coalho) para fazermos no fogo, itens para sanduíches no almoço, legumes e frutas (banana, melancia e mirtilos) de snack, chips, e para o café da manhã, iogurtes e mingau instantâneo, que me trouxe uma lembrança calorosa dos acampamentos com Allex, durante nosso namoro. (Acho até que tem foto aqui no blog de nós dois comendo gororoba em acampamento).

Lá, as crianças se divertiram ajudando a acender a fogueira e depois esculpindo galhos com serra e canivete para fazer os próprios espetos de marshmallow. Claro, esqueci: também houve uma quantidade absurda de Smores (os marshmallows tostados no fogo que vão dentro de dois biscoitos doces com um quadradinho de chocolate que derrete devagar). Vê-los lidando com as lâminas cuidadosamente, focados, me encheu de orgulho. E temos já um canivete para cada um, que ganharão de presente no próximo acampamento.

Desligamos o celular durante toda a viagem. O silêncio era delicioso. Na hora de dormir, confesso que fiquei aflita. As crianças se incomodariam de dormir no chão duro? Há muita gente que leva colchões infláveis, mas quisemos mostrar a eles como se faz de verdade, como nós costumávamos acampar. Para minha surpresa, entraram exaustos na tenda e dormiram imediatamente, a noite toda. Quando acordei, brinquei com Allex, não sabia se o chão duro havia entortado minhas costas ou finalmente colocado elas no lugar. ;) Sei que não dormi a noite toda. Lembrava-me disso dos nossos acampamentos. De acordar toda vez que me virava no saco de dormir. De ouvir os insetos do lado de fora. De ter essa impressão de despertar por 1 minuto a cada meia hora e então voltar a dormir. Ainda assim, acordei descansada e cheia de energia pela primeira vez em muito tempo.

O tamanho desse menino.
Acender o fogo às cinco e meia da manhã e comer o mingau-gororoba quentinho ouvindo o despertar dos pássaros, pés no mato. Sentia-me em casa. Gnocchi parecia feliz e relaxado ali no mato. Raspando as patas e cavocando a terra e o mato antes de dormir como faz em casa, e ríamos: "É, bichinho, faz muito mais sentido fazer isso aqui do que no apartamento, né?" Celular desligado por dois dias. Mato. Cigarras. Pássaros. Aquela sensação de precisar de tão pouco que o acampamento dá. Acordar descansada, mesmo dormindo no chão. É o silêncio do mato que descansa, ou é o silêncio do celular?

Foi bom ter encontrado um mingau-gororoba de uma empresa orgânica de British Columbia que faz misturas de fato gostosas. Porque aquele da Dr. Oetker que a gente costumava levar em trilhas no Brasil tinha gosto de papelão molhado. :P

Estava tudo indo bem até sermos surpreendidos pela chuva no meio de uma trilha. A desvantagem de desligar o celular é não ter acesso à previsão do tempo. Encharcados, precisamos criar uma estratégia inteligente para não enlamearmos a barraca por dentro. Ajudei as crianças, que ficaram secas e quentinhas na barraca lendo gibis enquanto Allex e eu consertávamos a lona que caíra pelo peso da água e tentávamos usar o que havia de carvão molhado para improvisar um churrasco debaixo da lona, protegidos pela chuva. Gnocchi, cheio de lama, aos nossos pés, assistiu por duas horas a saga para acender o fogo já na escuridão da noite. Allex se afastava e oferecia o lugar mais perto do fogo tímido para que eu tentasse secar meus pés e me esquentar. Meus cabelos ainda pingavam da chuva e naquele momento, vendo meu casaco pesado e encharcado a me cobrir, decidi que era hora de investir numa jaqueta de chuva decente.

As crianças correram rápido da barraca seca para debaixo da lona e sentaram-se conosco para comer. Um cruzamento de mariposa gigante e besouro do inferno voou na nossa direção, atraído pelos head-lamps e Allex quase tacou fogo na própria camiseta com o susto. É um monstro-inseto!, Thomas gritou. Conseguimos manter o fogo aceso tempo bastante para assar as últimas linguiças e espigas de milho e prometemos às crianças Smores de café da manhã, já que seria impossível fazê-los debaixo da chuva.

A chuva caiu intensa e cheia de raios e trovões até as quatro da manhã. Gnocchi, com medo, ficava subindo em cima de mim e tentando dormir em cima da minha cara. Mais uma noite de sono intermitente. Mais uma manhã em que parecia renovada e capaz de conquistar o mundo.

Fizemos Smores até acabar com todos os marshmallows do pacote. As crianças brincaram apagar o fogo com arminhas de água e vieram nos ajudar a desmontar a barraca. Gnocchi, que é boy de apê, era o único ansioso para ir para casa e ficou esperando na porta do carro.

Quando voltamos para Toronto e entramos em casa, ansiosos por um banho quente, aqueles dois dias fora pareciam dois meses.

A melhor parte do verão foi acampar, disseram as crianças. "Mas eu quero ficar mais no meio do mato da próxima vez", disseram.

Ok.

O verão ainda está aí apenas como dias num calendário. Setembro começa, as aulas retornam, piscinas públicas são esvaziadas, há mais chuva que dias de sol. O lago está frio demais para convidar a um mergulho. Acabaram os piqueniques. Mas a sensação de ser eu, de ser forte, de poder correr longe continua. A vontade de ver meus filhos crescendo e aprendendo me move cada vez mais. Quando confio neles, vejo suas posturas mudarem, vejo quando olham o mundo de peito aberto. Eles acreditam em si mesmos quando acredito neles. E acredito neles quando acredito em mim.

Não vejo a hora de me enfiar no mato de novo. De dormir e acordar com os pássaros. De sentir o chão. É bom sentir os pés firmes no chão. É essa segurança que te dá vontade de tirá-los do chão e alçar vôo.

Ou talvez sejam os quarenta chegando. Sempre disse a meu marido que depois dos quarenta eu iniciaria meu processo de me tornar a velha louca que pretendo ser.  Taí. Velha louca em formação.


.....

E a comida? Isso ainda é um blog de cozinha? Já não sei bem. Tenho cada vez menos vontade de ficar testando receitas por aí. Às vezes acho mesmo é que precisava fazer um post compilando meus favoritos de todos os tempos e que viraram clássicos insubstituíveis. Porque é desses clássicos que tenho vivido. E o que é invencionice, é feito assim de supetão, valendo-me completamente da intuição e daquilo que aprendi nos últimos vinte anos de cozinha. Não tenho lá muitas receitas para dividir aqui, mas talvez tenha sugestões de como pensar a refeição. Será que basta?

Nas últimas incursões da churrasqueira, resolvi fazer camarões, que estavam fresquinhos e em promoção. Ensinei Laura a limpar os camarões e ela se armou de uma faca com ponta afiada e abriu as costas de um por um, tirando os intestinos deles com precisão. Thomas ficou encarregado de temperá-los e passá-los pelo espeto. Uma marinada rápida em azeite, alho picado e salsinha antes de levá-los ao fogo, uns poucos minutos de cada lado. Acompanharam as últimas espigas de milho da estação, também feitas na churrasqueira, e uma salada simples.


Num outro dia, assei diferentes batatas-doces temperadas com azeite e sal até dourarem, em fogo médio, numa assadeira grande. Quando prontas, afastei as batatas para o lado e depositei ali um filé inteiro de salmão selvagem com a pele para baixo, e que eu já tinha temperado com uma salsa verde improvisada, com muito dill e salsinha e raspas de limão. Juntei um punhado de ervilhas congeladas. Assei por uns dez minutos, até peixe e ervilhas estarem cozidos e servi com salada verde. Achei que faltou sal. Ainda tenho dificuldade de salgar apropriadamente cortes grandes de carnes de qualquer animal, por falta de prática.



Num dia em que eu não achei que tivesse muita coisa na geladeira, grelhei fatias finas da única berinjela grande que eu tinha. Recheei com fatias de queijo, que era para ser mozzarella, mas nem sei mais se usei cheddar branco ou Havarti, que eu considero como sendo "o queijo Prato do Canadá". A gente usa o que tem, substitui com o que pode, e faz tempo que parei com frescuras e preciosismos com ingredientes. Libertação emocional começa também com menos perfeccionismo na cozinha. Enrolei as berinjelas em volta do queijo, coloquei os rolinhos na travessa untada com azeite e reguei com uma mistura de tomates cereja, cebola, salsinha e manjericão, que eu temperara com sal e azeite e deixara meia hora sorando e criando o próprio caldinho. Levei ao forno para gratinar e servi com arroz integral e salada verde.

A foto é feia mas a comida é gostosa. :)

Num almoço tranquilo só com as crianças, antes de ir para o parque, dourei mandioca cozida  (sim! aqui acho mandioca no supermercado!) em muito ghee (porque ando fazendo ghee toda semana para terapia ayurvédica dessa minha família de Vhattas, e ando adorando cozinhar com isso, pois o ghee doura tudo lindamente sem queimar como a manteiga). Tirei a mandioca e foi a vez da batata-doce. Voltei tudo para a panela quente para servir com ervilhas-tortas branqueadas. Tudo polvilhado de salsinha, uma espremida de limão, pimenta-do-reino e acompanhado de uma saladinha rápida de tomates, abacates e queijo.


Ghee e uma joaninha que pelo jeito veio com a gente pra Toronto lá do acampamento.
Para quem quiser fazer ghee, eu considero o melhor jeito (e mais prático) ESSE AQUI.

No restante, a comida aqui em casa tem sido, como há já muitos meses, essencialmente improviso. Algo aconteceu durante toda essa transformação de verão que meio que matou minha vontade de comer doces. Ando me refestelando com frutas de um jeito que nunca havia feito antes. Talvez inspirada pelos lindos pratos de fruta fresca que minha filha se prepara de manhã cedo. Talvez as recomendações ayuvédicas, que me fizeram interromper a febre dos biscoitos e dos bolos há uns meses atrás, tenham influenciado minha cozinha mais do que eu imaginava que fariam. Talvez seja a abundância de frutas frescas e gosotas do verão, que depois desaparecem ao primeiro sinal do outono.

A vontade de ficar fazendo bolos e tortas e afins anda meio sumida. Engraçado, ninguém anda sentindo muita falta. As únicas sobremesas que me aventurei a fazer em agosto (e que não eram sorvetes de fruta) ou não deram certo (como a pamonha de forno que nunca firmou) ou ficaram doces demais e ninguém quis (como o crumble de pêssegos da Alice Medrich - aliás, mesmo os doces da Alice, que sempre me pareceram pouco doces, andam puro açúcar para mim ultimamente. Bizarro.)

Agora a cozinha volta à velha rotina: o famoso quebra-cabeça dos almoços escolares, com dois filhos que gostam e desgostam tudo diferente, precisando pensar em comida que não vire paçoca dentro da lancheira revirada, onde não posso enviar nada com castanhas, e onde tento manter a coisa toda relaxada e enviar lanches que "pareçam" as porcarias industrializadas dos amiguinhos mas que não são.

O verão acabou.

PS: eu havia escrito todo um outro post antes desse que eu escrevi e editei tantas vezes que tinha ficado completamente sem pé nem cabeça e eu não gostei dele. Mas apertei Publish sem querer. Deve ter gente que recebeu por email. Desconsidera a loucura da cabeça da pessoa. No fim eu estava muito mais empolgada em contar as desventuras do verão do que ficar elucubrando sobre processos emocionais. 

Cozinhe isso também!

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