domingo, 26 de julho de 2020

De um pé e de um muffin




Meus pés me sabotam. Ou me ensinam. Muito provavelmente os dois ao mesmo tempo, num movimento entrelaçado e interdependente.

Naquela manhã acordara tensa, sentindo a dor na planta do pé irradiando pela parte de trás da perna até o meio das costas, transformando o espaço de energia livre entre minhas omoplatas em um vale duro e seco, constrito e crispado, feito chão de deserto. Um som agudo atravessava minhas têmporas de um lado ao outro. O ar de verão grudava na pele. Bebi meu café sem vontade enquanto acalmava os ânimos exaltados das crianças, que discutiam sobre coisa nenhuma, exaustos do confinamento em si mesmos.

Minha mente tentava, como fizera nos últimos meses, desde o fatídico dia de março em que anunciaram a quarentena, montar as peças de nossa rotina. Quero passar o dia todo fora de casa, pedira minha filha. Como fizemos no ano passado. Suspiro. Ano passado eu tirara férias com eles. Ano passado eu usara seu tempo de escola para pintar e montar exposições e vender minhas pinturas pela cidade. Usara seu tempo na escola para trabalhar e então poder relaxar com eles no verão, criá-los, minhas criaturas, durante esses dias longos e quentes, tão preciosos numa terra onde se têm oito meses de inverno. Mas este ano não tivera o seu tempo de escola. O tempo fora quebrado e truncado, os projetos adiados, os cafés e galerias onde exibiria meu trabalho foram fechados, as horas de que precisava desapareceram pelos dedos feito areia fina.

Mas ainda podia correr. Correr era meu tempo. Meus pés em movimento pela terra, sentindo o mato e  o vento, a mente desperta e alerta na recriação da Vida Tranquila que eu construíra ao longo dos anos e que agora andava escondida por entre os becos do labirinto da Pandemia.

Quebrar o pé teria sido um desastre, não fosse a mente forte que andava no fluxo. Adapta-se. E montada na bicicleta, levei meus filhos em pequenas aventuras por essa cidade-mato-e-água. Os dias tinham aquele gosto de verão. Mas era um gosto temporário, um gosto ansioso de quem não vê a hora de meter os pés na terra novamente e correr longe.

E eles puderam correr. Por uma semana. E então a musculatura cansada fraquejou numa tarde quente e um minúsculo acidente da calçada torceu meu tornozelo. Não me soava grave o pulsar daquela dor, ignorável comparada aos roxos graves dos ossos quebrados. E depois de poucos dias, os pés voavam no mato outra vez.

Mas a dor que girava no tornozelo caminhava. Girava por cima do pé, dançava até o joelho. Passeava como quem não quer nada até o meio das costas e descansava, às vezes, nos ombros, trazendo ao pescoço  lembrança das pequenas frustrações. Quando as lições da escola acabaram e as crianças eram férias de verão, aquela dor resolvera fincar raízes na planta do meu pé. E cada dia de corrida somava ao corpo as dores de uma dúvida.

Queria correr. Mas a corrida truncava o dia. Cansava. Doía. Queria terminar meus projetos. Rápido. Mas isso excluía meus filhos de mim. Cansava. Doía.

Pensava naquelas três semanas de pé quebrado, nas aventuras de bicicleta, e o fantasma dos verões passados me acenava, ansioso, desejoso de voltar e fazer parte. Mas eu precisava abrir mão.

Naquele dia sentei-me à beira do lago, e, num esforço mitológico, olhei meu rosto na água. Cenho franzido,como se pudesse espremer pela testa a tensão suprema que se formara. Tensão de elástico velho, um segundo antes de romper. Quero ser essa pessoa produtiva. Quero fingir que não existe pandemia, que não há quarentena, que o meu tempo é meu e que é possível viver ao mesmo tempo essa vida linear e a vida múltipla. Quero fingir que priorizar não significa escolher um só, e que é possível que todos os seus fragmentos tenham igual importância.

Mas isso é infantil.

Há que se escolher.

Quando a água tremula meu reflexo, levanto o rosto, e enxergo aquela pata deslizando sobre o lago, trazendo consigo nove patinhos de brinquedo, pequenas esferas de uma penugem castanha e rajada de amarelo. Eles confiam todos na mãe e a seguem na minha direção. Surpreendo-me ao vê-los aos meus pés, a menos de um braço de distância. Fosse menos respeitosa, poderia apanhar um deles nas mãos para sentir nos dedos o bater forte de seus coraçõezinhos sob as peninhas. Ali eles ficaram por um tempo, numa observação curiosa de quem tenta entender uma aparição. E tão graciosa e casualmente como vieram, foram.

Sorrio.Talvez seja hora de parar de lutar contra. Parar de me agarrar a uma rotina que não serve mais. Parar de maltratar esses pés que buscam descanso dessa corrida infinita na roda. Parar, sair da roda e enxergar a gaiola. Abrir a porta e sair.

Enquanto caminho de volta para casa, avisto um tronco de árvore, onde alguém cortou a frase do primeiro livro que li para meus filhos: I LOVE YOU TO THE MOON AND BACK.

O universo tem enviado sinais claros demais para serem ignorados.

Na manhã seguinte, chamei as crianças para preparar muffins. Havia bananas maduras e coco ralado. Meti num pote alguns bolinhos ainda mornos e saímos de bicicleta. Para onde vamos? Não sei.Só vamos. Meu jeito favorito de ser mãe deles. Só vamos sem pressa e sem planos. Preciso sair da roda para ensiná-los a nunca entrar nela.

Paramos onde eles querem parar, explorando os matos e os lagos e as praias. Vendo esquilos e pássaros, e uma marmota, até. Paramos para brincar com pedras e colher flores,e comer muffins e melancia. Eles recolhem penas e conchas. Falamos do mundo. Passamos o dia do lado de fora, saboreando o verão fugidio e passageiro como se fosse o último dia de nossas vidas.

Quando vou ao médico, ele diz o que eu já sabia. Fascite plantar. Uma inflamação na pele que recobre o músculo da planta do pé. Você pode andar de bicicleta, mas não pode correr nem andar muito. Tudo bem. Eu já sabia. Minha ultramaratona foi cancelada. E eu já tinha escolhido parar. Parar por um tempo. Fechar os olhos e curtir criar minhas criaturas nesse verão, como nos outros anos. Criar seres humanos. Do resto dou conta depois. De outro jeito. De alguma forma. Eu dou um jeito. A prioridade agora é criar essa Vida Tranquila com eles, para que eles possam criá-la para si mesmos depois.

Está tudo bem.

Meus pés me sabotam. E me ensinam. Como filhos. Fazendo você rever seus planos, suas ideias, seu mundo. Tropeçando seu ego e pisando firme no chão para se reerguer melhor. Sou uma mãe melhor sendo feliz com eles.

Voltamos para casa e, enquanto eles leem um livro, apanho o computador, os papéis, os pincéis, o caderno, e o trabalho flui, livre, produz frutos inesperados e pequenas alegrias que eu não via antes. Criar nossa Vida Tranquila fertiliza o solo onde meus pés descansam. Largo o mato para crescer livre e ele produz flores inesperadas.

A Vida Tranquila flui. Flui como água de degelo na primavera, irrigando os vales secos e relaxando os músculos. Respiro. O ar do verão traz uma brisa refrescante de olhos fechados sorrindo sob o sol.

Esse homem que eu amo me traz um espresso "com civilidade", como ele chama o pires e o pequeno chocolate que acompanha o café quente. Um beijo e um sorriso. Amor. Cuida do teu pé. Pode deixar, eu vou.

....

MUFFINS DE BANANA COM COCO
(quase nada adaptado do site Epicurious)

Ingredientes:
  • 1 1/4 xic farinha de trigo
  • 1 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 2 bananas grandes, bem maduras, amassadas (cerca de 3/4 xic)
  • 100g (1/2 xic) manteiga se sal, derretida
  • 2/3 xic. açucar + 1 colh. (chá) para polvilhar
  • 1 ovo grande
  • 1/2 colh (chá) extrato de baunilha
  • 3/4 xic. coco ralado sem açúcar

Preparo:
  1. Forre uma forma de muffins comum com 12 cavidades com forminhas de papel, ou unte e enfarinhe as cavidades. Pré-aqueça o forno a 190oC.
  2. Numa tigela grande, misture com um fouet a banana, o ovo, a manteiga derretida e a baunilha.
  3. Acrescente os 2/3 xic. açúcar e misture até que o açúcar pareça dissolvido.
  4. Junte 1/2 xic. do coco ralado e misture.
  5. Acrescente a farinha, o fermento e o sal e misture apenas até que a farinha desapareça.
  6. Distribua a massa entre as formas. Polvilhe o restante do coco ralado por cima da massa e o açúcar.
  7. Leve ao forno por 20 a 25 minutos, até que estejam dourados e um palito saia limpo quando inserido em um dos muffins.
  8. Deixe esfriar sobre uma grade um pouco.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

A história de um acampamento



A primeira vez que tentamos marcar um acampamento neste verão foi cheia de animação e ansiedade. Parecia que depois das greves escolares do início do ano, a quarentena, o isolamento e a morte do Gnocchi, as coisas finalmente melhorariam.

Mas fomos sabotados pelo universo. O governo voltou atrás na decisão de liberar o camping, e nossa reserva foi cancelada um dia antes da viagem, em Junho, quando as malas estavam feitas e eu começava a organizar o cooler que levaria nossa comida. Um imenso balde de decepção gelada em uma família que passara por oito meses de inverno e queria um pouco de mato, lago e calor sem chegar perto de ninguém. A este cancelamento, seguiu-se uma semana de desastres miniaturas. Perdi as crianças no parque (por apenas quinze minutos), Thomas se arrebentou numa queda de bicicleta, precisei desengasgar uma rodela de pepino da garganta de Laura em estilo hollywwodiano (os últimos três em um dia só), a bóia que compráramos para usar no lago com as crianças explodiu no primeiro instante em que a colocamos no lago, revogaram nossa permissão para a churrasqueira de carvão, e, poucos dias após meu pé esquerdo se recuperar da fratura, eu torci meu pé direito.

Eu culpei o eclipse lunar de junho. Senão vou culpar quem? Não estava pronta a admitir que minha família andava passando por uma inexplicável onde de má sorte.

Quando finalmente consegui remarcar o acampamento, ainda estava na dúvida se ele de fato aconteceria. Se saíramos ou não daquela estranha maré de azar em que nos encontrávamos. Fiz as compras do acampamento e organizei as malas com alguma desconfiança, esperando o eventual telefonema com um novo cancelamento.

O telefonema, no entanto, jamais veio.

Colocamos tudo no carro, estranhando não termos mais de reservar espaço para o Gnocchi ou não precisarmos programar paradas para que o cão fizesse xixi. É de fato uma nova fase. Tive certeza de dar o remédio de enjoo da Laura, e partimos, três horas e meia de distância em direção ao primeiro acampamento do ano. A previsão era de chuva na nossa chegada, então fomos o caminho todo acompanhando o movimento das nuvens, que Thomas dizia terem formas de dragão.

Normalmente olhamos no mapa as cidades que existem pelo caminho, e procuramos um lugar para comer meio que no improviso. Mas por conta da pandemia, tivemos de nos planejar melhor. Eu escolhera um restaurante à beira de um dos inúmeros lagos em Ontario, que estava aberto e servindo as refeições no pátio externo, obedecendo às restrições do Estágio 2 da reabertura da província. Dirigimos trinta minutos para fora da estrada principal em direção ao restaurante. Durante todo o trajeto, conversávamos sobre histórias de viagem. Sobre viajar sem planos versus viajar com tudo organizadinho (eu gosto mais do primeiro tipo). Expliquei que preferia chegar na cidade e escolher onde comer olhando as opções disponíveis ao vivo, sentir o local. Não gostava de planejar antes de sair de casa, pois passava o caminho todo aflita sem saber se aquilo que eu escolhera daria certo ou não.  Ao chegarmos, meu desconforto se revelou realidade: o restaurante fazia parte de um resort e era aberto apenas para hóspedes. Fué.

Não era um bom sinal.

Apanhei meu celular e comecei a procurar outras opções, e o lugar aberto mais próximo naquele domingo era a meia hora dali.Lá fomos nós. Criançada no banco de trás perguntando quando é que a gente ia almoçar.

O restaurante era um lugarzinho simples à beira da estrada. Saímos do carro, e Allex entrou sozinho para comprar a comida enquanto nos acomodávamos nos bancos do lado de fora. Saiu de mãos vazias, no entanto, dizendo que precisava entrar na fila na lojinha de cigarros do outro lado do estacionamento para pagar e levar a notinha de volta ao restaurante. Dez minutos depois, ele saiu novamente, de mau humor: "Pessoal é enrolado demais, e minha intuição tá começando a sugerir intoxicação alimentar. Vamos tentar outro lugar."

"Vamos para a próxima cidade a caminho do parque", sgueri. "Qualquer coisa, a gente senta numa praça na próxima cidade e monta um sanduba com o que a gente trouxe na mala."
Gaivotas sempre dispostas a roubar batatas-fritas.

A cidade seguinte tinha opções. Conseguimos comer do lado de fora de um restaurante pequenino, numa mesa à sombra de um guarda-sol que parecia esperar por nós. E não fosse pelas picadas de black-fly que tomei debaixo da mesa, diria que havia sido um sucesso. Pimpolhada tomou sorvete, lavou as mãos numa lagoa ali ao lado (pois os banheiros públicos estavam fechados), e pudemos seguir viagem.
Laura e seu cabelo novo, que ela quis cortar igual ao do pai,

Conforme nos aproximávamos do parque, as nuvens de chuva se afastavam, e tudo parecia melhorar. Meus filhos ficam muito tranquilos em longas viagens de carro, acostumados a todo o trâmite desde pequenos, ouvindo nossa música, cochilando, ou olhando a paisagem em busca de animais selvagens. Mas depois de quase quatro horas e meia, Laura entrara no módulo padrão "Já chegamos? Quanto falta pra gente chegar? Quanto tempo já passou de quando você falou que faltava trinta minutos? Já chegamos? Falta muito?"

Pronto, Laura! Chegamos!

Apanhamos nossa permissão no escritório do parque, um mapa, e alguma lenha para a fogueira, e dirigimos até o espaço que havíamos reservado.

O lugar era uma área de terra batida, semi-coberta pelas sombras das árvores da floresta, e com uma pequena abertura no meio dos juncos e mato alto para uma faixa estreita de água que ligava um lago pequeno a outro mais amplo. Aquela faixa de lago tinha o fundo de areia macia e lamacenta, sem as pedras que machucam pés tão típicas do Lake Ontario, uma água muito cristalina que entrevia peixes pequenos e rãs, e uma série de pequenas ninféias prestes a florescer. As nuvens haviam desaparecido, como cortinas de um grande palco, exibindo orgulhosas o céu azul brilhante de verão que haviam escondido até então. Havia uma mesa de madeira com bancos sob uma sombra larga, uma corda de acampamento amarrada entre duas árvores que usaríamos de varal, e um local para a fogueira já delimitado por um círculo de pedras. Afastado daquela clareira, uns vinte metros para trás, seguindo a estrada de terra, estava nosso banheiro particular: uma casinha de madeira com uma fossa séptica que me surpreendeu por seu estado: era limpo e não tinha cheiro. Mas também não tinha luz. Quem quisesse ir ao banheiro à noite precisaria usar um head-lamp. Ainda bem que tínhamos cada um o seu.

Allex e eu montamos a barraca, uma tenda leve para quatro pessoas, enquanto as crianças correram para explorar a área e molhar os pés na água.

Conforme jogávamos os sacos de dormir e os isolantes térmicos para dentro da barraca, no entanto, começamos a sentir que não estávamos sozinhos. Pernilongos, mutucas e black-flies, um tipo de mosca maldita da América do Norte que corta a pele feito uma formiga, estavam ali conosco aos montes, e estavam com fome.

Dá-lhe repelente em todo mundo.

Pimpolhada foi para a água com as boias novas, que Allex comprara para substituir aquela danada que estourara por um defeito de fabricação, e lá ficaram, por muito tempo, boiando, um puxando o outro feito barquinho de porto arrastando transatlântico, até que tudo estivesse arrumado no acampamento e Allex e eu pudéssemos nos unir a eles. Aágua era limpa e gelada, e as ninféias faziam cócegas em nossas pernas enquanto andávamos por entre eles.

O tempo todo eu perscrutava a mata escura do outro lado do lago, em busca de um alce que nunca apareceu.

Aos tapas e sacolejos para afastar as mutucas, nos divertimos no lago, vendo a mãe pato guiar seus patinhos pequeninos para o mato ao nosso lado e ouvindo os sapos começando seu coral de chamados do fim do dia. "Sabe quando aquele BlueMen Group brincava de tambor em tubos de PVC?", perguntou Allex, começando a acender a fogueira. Fiz que sim, sabia. "Esses sapos soam exatamente assim."  Ri. Era verdade. "São bull-frogs!", explicou Thomas, brincando de imitar os sapos. Told. Told. Told. Eles faziam.

Não eram apenas mutucas. Havia uma profusão de borboletas, inclusive essa estrupiada que acompanhou nosso acampamento todo.


Coloquei os maiôs e toalhas para secar naquele varal improvisado, e comecei a passar repelente em todo mundo de novo. Havia muito mais insetos ali do que imagináramos. Laura corria pela clareira, gritando impropérios para os mosquitos e tentando fugir deles. "Black-fly te segue, Laura, não adianta fugir, tem que dar um tabefe", eu explicava, ligeiramente irritada com os insetos, mas tentando não perder o bom humor. "Não era você que queria morar da floresta, Laura?", perguntava Allex. "Taí,filha, floresta no verão é isso."

"I HATE MOSQUITOES!!", ela gritava, enfurecida, fugindo das black-flies novamente.

Thomas continuava na dele, se divertindo horrores em estapear nossas pernas quando via uma mutuca pousada nelas. Foi quem menos reclamou dos mosquitos e quem mais tomou picadas.

A fumaça da fogueira afugentou parte dos insetos. Allex puxou algumas brasas para debaixo da grelha de metal, e pôs-se a fazer queijo coalho, linguiça e batatas-bolinha, enquanto eu cortava pepinos e tomates-cereja para beliscarmos.

Comemos perto do fogo, espantando os mosquitos, e olhando os chipmunks que se aproximavam, na esperança de surrupiarem um tomatinho. Vendo o modo como Thomas se comportava, Allex decidiu dar a ele um presente que vinha guardando havia já um tempo: seu próprio canivete suíço. Mostrou a ele como o canivete funcionava e pediu a ele que apanhasse galhos na floresta e afiasse suas pontas, para que pudéssemos usá-los para assar marshmallows. A expectativa é que Laura mostre maturidade o bastante para ganhar o seu no próximo acampamento.

Ela ajudou Allex a cuidar do fogo, enquanto Thomas estreava seu canivete, orgulhoso. Assamos marshmallows junto às brasas e ficamos ouvindo o cantar alto dos sapos e dos pássaros, até que o dia começasse a se apagar em luzes cor-de-rosa e baunilha. "Mãe, eu vou dormir. Tô cansado", disse Thomas. "Eu também", concordou Laura. Eram nove da noite, e o horizonte ainda cantava cinco da tarde. Entrei na barraca com eles, lemos juntos uma história curta, e eles dormiram sobre os sacos-de-dormir abertos, ao som do farfalhar das folhas secas no chão da floresta, por onde os esquilos passavam.

Allex e eu ficamos ali ainda ao lado do fogo, esperando aquela noite preguiçosa finalmente aparecer. Abri um vinho rosé que eu trouxera, e bebemos nas tigelas plásticas do conjunto da panela de camping. O rosa do céu era lilás, que era azul cobalto, e marinho e profundo, e enegrecendo apenas quando nossos relógios já diziam onze e meia. Told, Told, Told, diziam os sapos. Cri. Cri. Cri. Os grilos. Havia pios agudos de morcegos e corujas em meio a alguns pássaros que esqueceram de ir dormir. Os mosquitos davam uma trégua e abriam espaço para insetos que eu não via desde a infância: vagalumes,  pontinhos verde-fluorescentes que acendiam e apagavam de vez em quando, num vôo errático que sugeria teletransporte. Eles piscavam devagar de dentro dos arbustos escuros, que às vezes chacoalhavam, revelando presenças noturnas ali cujos olhos nunca vimos.Quando olhei o céu, uma lua quase cheia não nos impedia de ver uma inifnitute de estrelas que eu não conhecia. Onde estão as Três Marias? E o Cruzeiro do Sul? Ficaram lá no Brasil. Me disseram que na América do Norte a gente vê Andrômeda. Mas ainda não sei encontrá-la.

De repente, ouvimos uivos de lobo à distância.

Liguei meu head-lamp para uma caminhada solitária na floresta em direção ao banheiro, olhando por entre as árvores, buscando na escuridão os fantasmas que eu sabia estarem lá.

Na barraca, nos ajeitamos entre as crianças. Fazia um calor gostoso,com uma brisa suave que entreva pela rede fina da camada interna da tenda. A lua iluminava as águas e a mata lá fora. Sem os amarelos da fogueira, o mundo era branco e preto, do reflexo nas folhas circulares dos lírios d'água às estrelas por sobre a massa negra e densa da floresta.

Aninhada em meu saco de dormir, sentia o chão duro de terra colocando minha coluna no lugar. Era natural dormir ali. Eu gostava de estar perto do chão. Talvez isso tivesse motivado meu surto psicótico no dia em que resolvi vender nossa cama e voltar a dormir num colchão no chão, como nos primeiros anos em que moramos juntos, quando meus pais diziam que Allex e eu não tínhamos um casamento, mas uma república. Eu gostava dessa nossa República. Virei o rosto para olhar meus filhos, dormindo naquele chão batido como se fosse uma cama de hotel. República independente da família do meio do mato.

"Gosto do silêncio do mato", Allex sussurrou, sem querer acordar as crianças. Eu ri, pois sabia do que ele falava. Era um silêncio composto de barulhos. Estalos, sibilos, zunidos, pios, guinchos, uivos, sons graves e agudos, galhos quebrados, árvores ao vento, folhas arrastadas por patas que não vemos, um tchibum e glup no lago, e os sapos e os grilos naquela conversa animada até a madrugada. E ainda era silêncio. E nele adormeci, num sono estranho, semidesperto, incorporando em meus sonhos os cantos dos bichos. Sonhei com Gnocchi latindo ao meu lado, e acordei com os sons de algum animal desconhecido que fugiu tão logo despertei. Fiquei ali ainda um tempo, ouvindo o tagarelar feliz dos pássaros. A luz amarelo-pálida da manhã tinha cheiro de terra úmida e árvore de natal.

Allex acendeu um foguinho tímido, para espantar os mosquitos. Esquentei água na panelinha de camping para nosso mingau instantêno com bananas e morangos e uvas frescas que eu trouxera. Eu levara um vidrinho de nescafé, mas achei cafeína desnecessária. A noite fora restauradora, e estava completamente desperta.

"Vamos tentar fazer uma trilha agora de manhã?", sugeriu Allex. Ele correra 28km naquele mato no ano anterior, e estava ansioso para nos mostrar o caminho lindo que percorrera. Preparei sanduíches, trail mix e frutas num pote e levei na mochila, para almoçarmos na trilha.Besuntamo-nos de repelente comos e não houvesse amanhã. Mas os mosquitos eram tão agressivos que decidimos todos irmos passear de calças e mangas compridas.

Trilha linda e miserável.

Quarenta e cinco minutos trilha adentro, no entanto, e estávamos todos já sem humor. Laura reclamava sem parar dos mosquitos e nós três tolerávamos em silêncio. Queríamos olhar os animais e as plantas em volta, mas assim  que parávamos de andar, mosquitos entravam em nossos olhos e ouvidos. O único som que ouvíamos era o zunir constante de suas asas à nossa volta. Fazia trinta graus na floresta e estávamos com roupas de Outono-Inverno.

"Eu não estou me divertindo", disse Allex, decepcionado."Não esperava esse nível de mosquitos. Nem em Intervales, no Brasil, eu vi isso."
"Tá ruim mesmo."
"Vamos voltar?"
"Sim."

Foram quarenta e cinco minutos de suplício pra voltar ao carro e uma sensação de desistência e decepção semelhante ao cancelamento do primeiro acampamento. "Eu quero um acampamento relaxante", dissera Laura, ainda em Toronto, no dia anterior. Leváramos uma rede para pendurarmos nas árvores, e livros para lermos. Queríamos deitar e descansar enquanto as crianças brincavam no lago. Queríamos vê-las se embranhando no mato, construindo estruturas com galhos, como sempre fazem em bosques. Mas os mosquitos não permitiam que ficássemos parados. No carro, dirigindo de volta ao camping, Allex foi sincero: "Se a gente chegar no camping e estiver com esse nível de mutucas... acho que prefiro voltar para Toronto."

Meu coração afundou. Eu entendia. Mas não queria me dar por vencida.

"Tenho uma ideia: o que vocês acham de a gente chegar no camping, acender um fogo para esquentar nossos sandubas, brincar um monte no lago, e quando chegar o horário tenso de mosquitos, a gente entrar na barraca e tirar um cochilão delícia? Aí a gente acorda quando estiver começando a escurecer, quando não tem mais black-fly e mutuca, faz o jantar, e vocês vão conseguir ficar acordados para ver as estrelas e os vagalumes!"

"SIIIIIIIIIIIM!!!"

E assim foi.

Comemos nossos sanduíches e brincamos MUITO no lago. Espantei um chipmunk danado que subira na mesa para roubar nossos morangos. Ele saiu assim, boca cheia, morango vermelho escapando de cada bochecha, de volta para seu mato. Quando cansei de estapear mutucas, entramos na barraca. O cochilo foi longo e delicioso, e cheguei mesmo a sonhar sonhos estranhos e lindos.

Mato.

Laura e eu fomos as primeiras a levantar. Terminamos com os morangos, enquanto conversávamos, e fomos flutuar no lago, juntas, cada uma em sua bóia, falando da casa na floresta onde ela vai morar um dia. Ela segurava meus pés, um de cada lado de sua cabeça, enquanto eu remava com as mãos, para longe, para o outro lado do lago, buscando sinais na escuridão selvagem da floresta fechada, e então de volta, meus dedos tocarem as ninféias novamente e ouvirmos os alertas dos patos de que estávamos próximos demais de seu ninho.

Quando voltamos à margem, os meninos estavam de pé. Estranhamente, havia menos mosquitos do que no dia anterior.

"Vocês vão fazer o fogo hoje", Allex disse às crianças. "Já me viram fazer o suficiente; vamos ver se vocês aprenderam alguma coisa." E eles juntaram gravetos, pequenos, médios e grandes. E fizeram uma pilha, discutindo a melhor forma de fazê-lo. E criaram uma estrutura em volta, com toras de madeira, como Jenga. E enrolaram jornal, e o encostaram à chama do pequeno fogareiro aceso, e sem medo, colocaram o jornal em chamas entre os gravetos. Eles viram seu fogo pegar, e dele cuidaram por toda a noite.


Jantamos a mesma comida simples, assamos os mesmos marshmallows. Allex e eu olhávamos na distância as crianças brincarem com o fogo. Criavam brasas na ponta de galhos, jogavam folhagens diferentes na brasa. Allex apanhou um galho fresco de pinheiro e o jogou à fogueira, e ouvimos as agulhas estourarem como pipoca, desaparecendo em instantes. "Viu?", Allex explicou. "É por isso que precisamos tomar cuidado com o fogo aqui.Viu quão rápido um pinheiro desses pega fogo?"

Vieram os sapos, e as corujas, e com a noite, os vagalumes e as estrelas. Contamos histórias de luas e cometas. As crianças uivaram de volta para os lobos. Allex levou-os para andar no escuro na floresta. Laura não teve medo de nada. "O que está na floresta está nos olhando, papai", disse Thomas.

Agradeci a Lua, quase cheia.

Um sono bom. De silêncio do mato. De cheiro de noite. De luz do lago. Um sono guardado pelo que nos olhava da floresta.

Acordo alerta e descansada novamente. Um fenômeno estranho esse, de descansar mais dormindo no chão do que numa cama confortável. O mato revigora. Reintegra. Reinicia.

Sinto como o inicio de um novo ciclo.

Um mingau de café. Umas uvas que restaram aos chipmunks. Uma saudação aos patos. O último toque nas águas cristalinas do lago.

Está tudo no carro? Laura tomou o remédio de enjoo? Foi todo mundo no banheiro?
Ótimo. A gente chega em Toronto em três horas e meia.

Olho a mata densa do outro lado das águas. Obrigada.

Mas ainda estou esperando meu alce.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Mudanças de olhar, aprender sem escola, focaccia de panela.


A pandemia por aqui anda um bocado esquisita. O governo faz finta de relaxar algumas políticas, mas quando o povo relaxa também, ele volta atrás. Os parques urbanos andam cheios. Não tão cheios quanto estariam nesse junho lindo de céu azul e temperaturas veranis, mas indubitavelmente cheios, quando nos lembramos de que deveríamos ficar distantes uns dos outros. Tentamos. Chamo a atenção das crianças para não se aproximarem de outras pessoas, vamos ao parque em horários mais tranquilos, onde não fico estressada por uma pessoa sem noção estar perto demais na hora de atravessar a rua. Nos fins de semana, quando a cidade inteira parece esquecer a quarentena em nome de um banho de sol, fugimos para o mato, para os parques provinciais que estão abertos para quem gosta de andar em trilhas na solidão da natureza.

Os números aqui no Canadá começam a dar esperanças de que logo (espero!) algumas coisas cheguem a uma nova realidade menos surreal, e que possamos, se não marcar um piquenique com os amigos, pelo menos programar um acampamento em família.

Mas o governo tem sido cauteloso, e há grandes chances de que a escola não volte (ao menos não em sua integralidade) a funcionar em Setembro, quando as crianças começam um novo ano letivo. Sinceramente, já não espero mais. Não espero, de verdade, coisa alguma. Desde o início dessa bizarrice toda, o mundo tem me ensinado a não esperar nada, a viver um dia de cada vez, sem grandes planos. Ou mesmo pequenos. Esse foi o tema das conversas desse fim de semana, quando dividimos um com o outro, Allex e eu, a coleção de pequenas, médias e grandes frutrações dos últimos meses, que parecem terem ficado ainda mais intensas em frequencia e variedade desde que Gnocchi morreu. Como uma aceleração do karma, eu disse. Ele concordou.

Mas desde Março, quando a escola fechou,eu já repetia: não sei quanto tempo isso vai durar, não sei o que vai acontecer amanhã, então não espero nada e sigo o fluxo; e se tiver perrengue, e se der tudo errado, e se o universo me tropeçar de novo, dou risada, aceito, e trabalho com o que tenho.

Porque no fim é isso. A gente faz o que pode com o que tem. E se a gente tira o olhar da falta que gera a frustração e o dirige para aquilo que está presente, descobre que tem um bocado, e que está tudo bem. Ou que tem apenas um pouco, mas esse pouco é o bastante para segurar a onda enquanto a onda não quebra na praia e vira marolinha.

Não ando focando na falta da escola. Ando olhando para a curiosidade natural das crianças, para a oportunidade de tomar um pouco as rédeas da educação deles, para reafirmar alguns valores e hábitos que andavam se perdendo no estressante ambinte escolar.

Nem que seja o hábito de almoçar. Eles estão felizes por poder almoçar todos os dias num ambiente sem pressa nem gritaria, ainda que a mãe, na TPM, às vezes solte um grito apressado.

Ando lendo um bocado a respeito de Unschooling, ou Desescolarização, não porque pretenda tirar as crianças definitivamente da escola, mas porque os diferentes processos de aprendizagem das crianças fora da escola, quando bem estimulados, tormam-me uma mãe mais tranquila e menos preocupada com pressões acadêmicas. Principalmente num momento em que a principal preocupação deveria ser o bem estar mental e físico das crianças (e dos adultos).



Um exemplo simples. Thomas e Laura aprenderam frações cozinhando. Medindo ingredientes com xícaras e colheres-medida. Tentando descobrir como obter 1/8colh(chá) de sal tendo em mãos apenas uma colher que comporta 1/4. Fazendo contas mentais para saber quantas vezes precisam usar o medidor de 1/3xic para obter 1 xícara e 2/3 de leite. Quando enfim precisaram sentar na frente do computador e fazer suas lições de fração, bastou lembrá-los dos bolos que haviam preparado, e não foi precisa mais nenhuma explicação.

Um exemplo complexo. Thomas e Laura adoram bichos. Começou com os dinossauros de Thomas, há muito tempo. Todos os livros que ele pegava na biblioteca eram de dinossauros. Na primeira série, ele tinha preguiça de ler os livros da escola, mas conseguia ler sem dificuldades os nomes científicos mais escalafobéticos de seus dinossauros. E os dinossauros o transformaram num leitor. Os dinossauros levaram, por conta do Mosassauro, seu dinossauro aquático favorito, aos animais marinhos. E lá foi ele ler em letras miúdas, palavras multissilábicas, medidas, nomes científicos, comparando quem é maior que quem, quem come quem, quem mora onde. Por causa dos dinossauros e dos animais marinhos, ele logo se interessou pelos nomes dos continentes e dos oceanos. Seu livro favorito de animais marinhos também mostrava pássaros, que ele logo relacionou aos dinossauros com penas e quadris de aves, e quando ele ouviu falar de Evolução e Seleção Natural pela primeira vez, aquilo tudo já fazia sentido.

Por conta de Thomas, Laura hoje tem a mesma paixão por bichos.Quando saímos para passear no mato, eles me explicam que libélulas são mais antigas que dinossauros, Laura me pergunta se as amoras do nosso snack são da mesma família do milho, por terem estrutura parecida, e pesquiso no celular sobre a estranha pedra que vemos por toda parte no rio que cruza o parque em Scarborough, e que descobrimos que é ardósia, e conversamos sobre os tipos de formações rochosas que vimos no museu de História Natural em Ottawa. Laura pergunta se pode usar uma lâmina de ardósia como faca, e quando acha uma fogueira, descobre que carvão serve para escrever, e que se ela esmagá-lo e misturá-lo com água do lago, faz uma tinta preta que ela pode usar para desenhar com os dedos nas pedras. Explico pinturas rupestres e tinta azul feita com lapis-lazuli (a pedra que carrego em meu anel favorito) e tinta vermelha feita com cochonilhas, aqueles mesmos bichinhos que Laura se lembra de ver sob as folhagens de nossa horta no Brasil, e que as joaninhas adoram comer.\


Quando encontramos uma toupeira morta no meio da trilha, paramos para examiná-la, e eles ficam fascinados pelo formato das patas, pelas unhas fortes, e pelo fato de que ela é de fato tão cega que não conseguimos encontrar seus olhos em meio aos pelos. Falamos sobre o processo de decomposição. Isso eles já sabem bem. No Brasil, uma vez, encontramos um gambazinho que fora morto por uma pedra de gelo durante uma geada forte. Todos os dias íamos ao terreno baldio onde ele estava para vermos em que estágio o bicho se encontrava: formigas primeiro, moscas depois, então larvas, então o corpo parecia desaparecer sob a pele que afundava, como um balão desinflando, e num belo dia, encontramos apenas o esqueleto, perfeito, branco como se tivesse sido polido em laboratório, e tufos de pelos espalhados pelo vento. No crâniozinho dele, uma rachadura feia marcando onde a pedra de gelo o acertara. Ninguém nunca esqueceu daquela lição de como a morte alimenta a vida de tantos outros seres, de como todos voltamos à terra para alimentá-la e prosseguir num ciclo infinito de vida-morte-vida tão maior do que qualquer indivíduo. Laura lembrou do gambazinho e de tudo o que conversamos naquela época para me consolar quando Gnocchi morreu: "Ele virou terra de novo, mamãe, ele vai alimentar as plantas e as plantas vão florir e vão ter frutas por causa dele. E a energia dele desmanchou e voltou pro Universo, ele está no ar, mamãe, então ele está em todo lugar agora. Se você respirar agora, ele está com você."



Quando paramos para descansar na trilha ao lado de um rio, as crianças, enfiadas até os bumbuns no leito gelado, de roupa e sapatos, embaixo do sol forte, procuram bichos embaixo da água. Girinos, pequenos peixes, caracóis. Thomas grita, de repente, que viram uma lagosta, e por um momento me assusto, achando que se tratava de um escorpião. Mas vejo Laura de cócoras no rio, concentrada, dando patadas rápidas na água como um urso, e de repente os dois voltam gritando de alegria, correndo em nossa direção, Laura com as mãos fechadas em concha. Ela abre as palmas como uma ostra, e me mostra o que parece um lagostim bem pequeno e escuro. E depois de passada a fascinação, eles devolvem o bicho ao rio, são e salvo, enquanto pesquiso que bicho era aquele. Crayfish!, exclamo feliz.
Laura pergunta se o Crayfish é um inseto como as aranhas e explico que nem um nem outro é inseto, e passamos uns bons minutos na trilha brincando de descobrir quem é inseto e quem é aracnídeo pelo número de patas, pelas divisões do corpo.


Um dia no mato com os dois me obriga a buscar na memória as coisas que aprendi na escola e, quando a mente falha, buscar no Google. Passar tempo com eles me faz querer ver o mundo com olhos frescos também. E ao invés de olhar um passarinho e só dizer "que passarinho bonito", volto a fazer perguntas como eles fazem. Qual é o nome dele? Onde ele faz ninho? Ele migra como os gansos ou fica por aqui no inverno como o Chickadee? O que é que ele come? De que cor são seus ovos? Será que ele é da época dos dinossauros? Ok, essa última pergunta seria mais do Thomas mesmo.

Minha própria curiosidade às vezes quebra silêncios, e gera de novo conversa interessada. E criança é um bicho que gosta de pergunta, e às vezes basta a gente fazer uma para eles criarem mais vinte. E se eles tiverem liberdade de explorar, experimentar, mexer, quebrar, construir, e tempo para criar, tempo para ler o que lhes interessa de fato, eles aprendem tanto que a gente às vezes cai sentado de susto.

E mesmo quando a informação é demais, é difícil, eles tiram algo daquilo. Assistimos à série Cosmos, e de repente Laura vira para mim e diz: "Mamãe, não tô entendendo nada do que esse moço tá explicando, mas tá divertido mesmo assim." E apanhou seu caderno e começou a desenhar. "Ó, mamãe, eu tô desenhando as coisas do filme: isso é uma nebulosa! Esse é um buraco negro! E essa é uma cadeia de DNA!"

Ela não faz ideia do que de fato seja uma cadeia de DNA nem tem condições ainda de entender. Mas desenhou aquilo que seu cérebro conseguiiu compreender daquelas imagens, e quando ela de fato quiser estudar a respeito, o conceito está ali, aquela imagem presa à memória, gravada permanentemente pelo processo daquele desenho expontâneo. No dia seguinte ela me pediu para ter um livro sobre o espaço. "Um que você consiga ler sozinha ou um que eu precise ler pra você?', perguntei para alinhar expectativas. "Um pra eu ler sozinha." Apanhei um livro da National Geographic chamado "My Fisrt Space Book". Junto desse, aproveitei para comprar um lindíssimo chamado Maps, com mapas do mundo inteiro ilustrados de forma divertida e cheio de informações sobre cada país (muito útil já as crianças têm amigos de todas as partes do mundo, na escola daqui) e um outro livrão ilustrado chamado Curiositree Natural World, que é uma espécie de enciclopédia da natureza, com lições simples de biologia, botânica, ecologia, e curiosidades sobre animais. Laura já me pediu um outro sobre elementos. Ela tem um de pedras preciosas, mas queria um que mostrasse todos os elementos em seus estados naturais, porque ela quer encontrá-los na floresta.

Tenho tentado ampliar a biblioteca dos dois, que até então tinha mais livros de histórias, para livros de consulta. Os dois passam muito tempo no sofá ou no tapete, folheando os livros informativos, discutindo sobre as figuras, comparando com outras coisas que aprenderam. Acho que o livro folheado sem pressa é uma experiência diferente de buscar informação na Wikipedia. Ainda que tenha ensinado Thomas a pesquisar seus assuntos de interesse nela e registrar sua pesquisa em forma de perguntas e respostas.

Quando paro de pensar nas pequenas e nas grandes frustrações da quarentena e da pandemia, olho para os tesouros encontrados à minha frente.Ver o modo como as crianças aprendem (todas elas, não apenas meus filhos, porque ninguém aqui é especial), e o quanto eles de fato aprendem quando estão genuinamente interessados num assunto e podem explorá-lo do seu jeito e no seu ritmo, sou invadida por essa tranquilidade a respeito das lições da escola, do passar de ano, do desinteresse que a criança mostra ao ter de escrever uma redação sobre a Primavera ou calcular perímetros e áreas quando na verdade queria estar lendo sobre dinossauros e nebulosas.

Durante todas as semanas de escola ã distância, Thomas fez drama para fazer redação. Reclamações, pequenas revoltas, bufadas e cadernos ao chão. "Ele não gosta de escrever", repeti a mim mesma e às outras mães inúmeras vezes, revirando os olhos. Então, cansada de colocar a falha nele, resolvi colocar a falha no método e tentei algo novo: "Seguinte, gente, eu acho as redações da escola uma chatice. Então eu quero o seguinte: todo dia, eu quero uma redação, caprichada, letra pequena, com data, mínimo de cinco frases, SOBRE O QUE VOCÊS QUISEREM. Inclusive se quiserem escrever como a mamãe é chata porque ela está obrigando vocês a escrever, pode. Desde que usem cinco frases para reclamar. Tá bom?"

Thomas tinha que fazer UMA redação por semana para a escola, e era sempre aquele teatro, aquela briga, aquela frustração. Das redações diárias de tema livre ele reclamou só da primeira. Tentou ainda roubar no jogo, e copiou um trecho inteiro de um de seus livros favoritos. "Você copiou?", perguntei. "Sim, desse livro aqui.", ele respondeu, com um sorriso espertalhão. Devolvi o caderno para ele. "Tá muito caprichado. Gostei que você escolheu um trecho com palavras bem difíceis. Muito bem."

E as batalhas para escrever terminaram. Tem dia que ele transforma a redação em história em quadrinhos, fazendo os textos no meio de desenhos. Tem dia que é sobre batalhas entre super heróis que ele inventa. Tem dia que é a descrição dos poderes de um dragão. Laura escreve, ainda sem acertar muito a ortografia, em adivinhações fonéticas, sobre a casa na floresta em que vai morar, sobre um livro do aplicativo da escola que mostrava bolos de formatos divertidos, sobre gostar de cozinhar e sobre seus desenhos favoritos.

O governo de Ontario estabeleceu que as escolas daqui não vão avaliar as crianças do ensino elementar durante o período da pandemia. Até porque só se repete ano a partir dos dez anos e mesmo assim só se for muito necessário, já que até o ensino médio espera-se que as crianças cheguem no resultado esperado em seu próprio ritmo. Valho-me disso para relaxar um pouco e não obrigar as crianças a fazer todas as atividades propostas pelos professores. Mas tenho plena consciência de que essa abordagem do governo é condição sine-qua-non para que eu possa levar com leveza o assunto escola ã distância por aqui. Eu já tentava ensinar meus filhos dessa forma no Brasil e não levar a escola tradicional tão a sério, mas era muito, muito mais difícil, e eu sentia que tanto as crianças quanto os pais sofriam muito mais cobranças por resultados não condizentes com a maturidade emocional dos pequenos alunos. Justamente por me lembrar dessa pressão, tento não soltar as rédeas assim de um vez, porque eu não sou tonta nem nada e olho o curriculum da semana e saio propondo brincadeiras e questões relativas ao assunto, para mantê-los razoavelmente alinhados com o sistema, mas não subjugados por ele. Foi assim com as frações. Agora tenho que sacar da estante os jogos de tabuleiro e RPG que envolvem dados, porque Thomas vai começar a estudar Probabilidade.

Enfim.


É bom sentir menos pressão sobre os ombros, menos pressão pelo resultado, pelo "sucesso", pelo desempenho, pelas notas do boletim. Tem sido enriquescedor mergulhar com as crianças no processo, no desenvolvimento, na exploração, no imprevisível, no aleatório, no caos desenfreado da curiosidade. Tem sido importante parar de pensar em enfiar informações em suas cabeças "na ordem certa" e, ao invés disso, ensiná-los a gostar de aprender, ensiná-los a não terem medo de perguntar nem vergonha de propor uma solução. E principalmente, ensiná-los a pensar, a juntar informações que na escola são ensinadas separadas uma da outra mas que no mundo de verdade são inseparavelmente conectadas.

Num dia cheio de pequenos perrengues, Thomas quis fazer a salada do jantar enquanto eu preparava uma torta de verduras. Pensei em voz alta meu estranhamento de a tal "Focaccia" de  panela não levar fermento biológico. Ele me fez algumas perguntas, e comecei a explicar os tipos de fermento. Como o biológico é um ser vivo minúsculo comendo açúcares e soltando pum na massa (isso sempre faz as crianças rirem), e como o fermento químico é feito de um sal e um ácido que se transformam quando você os dissolve em líquido, produzindo gases. Ficamos falando sobre outros tipos de sal e outros tipos de ácido, e o fiz lembrar do dia em que fizemos um vulcão de massinha e enchemos ele de vinagre e bicarbonato de sódio.

Cozinha aliás, foi um hobby que durante anos alimentou também minha curiosidade infantil, e vorazmente estudei como eram os processos químicos por trás das transformações dos alimentos. Até hoje me pergunto porque a cozinha não é usada nas escolas como ponto central para todas as matérias. (Só fui entender botânica de verdade quando aprendi a fazer cerveja e tivemos de estudar a fisiologia do grão de cevada. Imaginei uma classe cheia de adolescentes aprendendo a fazer cerveja.) Na comida estuda-se química, biologia, matemática, história, geografia...

A gente nunca para de aprender enquanto for curioso.


E nessa cozinha a gente aprende a fazer torta na frigideira.Taí uma coisa que eu nunca fizera antes, mas passarinho que tem medo de novidade nunca sai do ninho. Fiz essa torta, que Benedetta chama de focaccia recheada, mas que nada tem a ver com a focaccia genovesa que nos vem à mente, pela primeira vez há um mês atrás e mais duas vezes depois e considero ela um clássico instantêno. Verdadeiramenre instantâneo, pois é a torta mais rápida do mundo: uns dez minutos para preparar, dez minutos na frigideira e pimba! Jantar. Como a massa não leva ovo, leite nem manteiga, se rechada apenas de verduras e legumes ainda por cima é vegana. Isso tem sido meio importante pra mim, pois tenho tentado manter a cozinha plant-based durante a semana. (Fiz isso por pura curiosidade, e no fim das contas, tem sido muito bom para mim.) Até hoje fiz com recheio de verduras com queijo, mas quero fazer umas versões só de verduras a partir de agora. Allex já imaginou a torta recheada com queijo, presunto e tomate, como um bauru. Enfim, o recheio é livre, só não coloque nada muito úmido, pois a massa ainda crua pode rasgar ao ser transferida para a frigideira. Divirta-se. Aproveite para clicar no link da receita para ver Benedetta preparando a focaccia, mesmo que você não fale italiano.


FOCACCIA RIPIENA IN PADELLA
Rendimento: 4 porçoes fartas para acompanhar uma saladinha ou 6 como parte de uma refeição mais completa

Ingredientes:
  • 400g farinha de trigo
  • 250ml água
  • 3 colh(sopa) azeite de oliva
  • 1 colh (chá) sal
  • 1 colh. (chá) bicarbonato de sódio
(recheio)
  • 350g verdura da sua escolha (escarola, espinafre, almeirão...), refogada do modo que preferir
  • 150g queijo de sua escolha (mozzarella, provolone, queijo prato...)

Preparo:
  1. Misture todos os ingredientes da massa numa tigela grande, usando os dedos, e então transfira para a bancada e sove até que fique lisa. Cubra com um pano para não ressecar, e prepare o recheio de sua escolha.
  2. Coloque a frigideira em fogo médio. Benedetta usa uma frigideira antiaderente de 30cm. A minha tem 25cm e é de inox. Costumo untar a frigideira toda por dentro com um fio de azeite e a torta nunca grudou. O fato de minha frigideira ser menor quer dizer que a torta fica com bordas mais grossas, mas ninguém nunca reclamou.
  3. Divida a massa em duas partes iguais e abra com um rolo em uma bancada enfarinhada até ficar um pouco maior que a frigideira. Esopalhe o queijo e então a verdura e depois mais queijo sobre uma das massas e cubra com a outra. Dobre as bordas das massas uma sobre a outra, apertando para o selar bem.
  4. Quando a frigideira estiver bem quente, transfira a torta para a frigideira com cuidado. Tampe e deixe cozinhar por cinco minutos, até sentir cheiro de farinha tostando. Tire a frigideira do fogo e, sem destampar, num movimento rápido, vire a frigideira de cabeça para baixo para que a torta fique apoiada na tampa. Deslize a torta agora invertida de volta para a frigideira,tampe novamente e cozinhe por mias cinco minutos.
  5. Desenforme a torta em uma tábua e deixe descansar alguns minutos antes de cortar e servir.


quinta-feira, 14 de maio de 2020

Tempo liberto

Num dia de parque vazio e temperatura amena, levei as crianças para o primeiro piquenique do ano, num gramado onde estávamos só nós três. Percebi que nunca fizera um piquenique de primavera, pois eles estariam na escola nesse horário. O verão com eles é aquilo que mais representa a relação com o tempo que me nutre e que quero para sempre em minha vida. O piquenique foi breve, pois voltamos para casa assim que outras pessoas começaram a chegar, para manter as recomendações do governo de distanciamento social. Mas fazer este piquenique ontem foi importante, por breve que tenha sido.


Meu tempo mudou.

Minha quarentena começou finalmente, brinco. Rio porque só resta rir. Perguntam-me o tempo todo se estou bem, e eu me pergunto o que em mim parece mal.

Estou deitada num colchão de ar flutando nas águas calmas de uma piscina, em silêncio, olhando o movimento das nuvens. Espiritual e figurativamente, claro. Adoraria que essa fosse a descrição física de meu estado atual, mas não tenho tanta sorte. É essa suspensão, essa quietude, essa introspecção observadora que parece temporariamente instalada, como se meu universo aguardasse meu pulo na água.

De pé quebrado, não pulo a lugar nenhum.

O único mergulho possível é em mim mesma.

Meu tempo mudou e ele se espalha e transforma, como as nuvens, num movimento lento e constante, indefinido, à mercê das vontades de meu olhar para que eu lhes confira forma e significado. Num momento me assusto com a ausência dos pilares da minha rotina, e de repente percebo que sem pilares não há teto que se sustente, e sem teto, enxergo o céu. Há um estranho princípio de alívio e liberdade que relutei em sentir. Como o bicho de cativeiro que tem sua gaiola aberta de repente, olho para fora com desconfiança.

O tempo mudou porque ele muda. Enfim.

Marido me traz o café preto, e eu ainda na cama, sento e a memória vem. Você lembra quando a gente juntou os trapos, que você tinha que pegar o fretado e eu já era freelancer, não tinha o cão, não tinha criança, e eu ainda não corria, e eu ficava enrolando na cama porque não tinha nenhum compromisso, e você me trazia o café naquela xicarazinha pequena de espresso, para que eu acordasse cedo junto com você? Lembro. Pois é, me sinto assim de novo.

Quando vou ajudar com as lições das crianças, o cérebro puxa novas memórias. De quando Thomas nasceu. De como eu o colocava no sling, juntinho a mim, e saía para tomar café com amigos, e ia a jantares, e fazíamos viagens bate-e-volta de improviso. Lembrei de como me orgulhava de não considerar meu filho um empecilho para nada. De como eu amava levá-lo para cima e para baixo comigo, participando-o integralmente na minha vida. E me dei conta de que não fora o mesmo com Laura. Por que não? Ah. Porque Thomas estava na escola. Pela primeira vez eu tinha horários, de levar e de buscar, sempre em desacordo com o ritmo natural da família. Eu trabalhava enquanto Laura cochilava. Mas precisava interromper meu trabalho e seu cochilo para buscar Thomas na escola. Na volta, os dois dormiam no carro, e eu precisava novamente acordá-los para então tentar dar almoço para duas crianças cansadas e irritadas. Por conta dos horários da escola, perdera a mobilidade que eu tivera no puerpério de Thomas. Eu morava fora da cidade, e se levasse Laura comigo até São Paulo para ver um amigo ou passear num parque, não voltaria a tempo para apanhar Thomas na saída. Matriculara Thomas na escola com promessas de liberdade, mas o resultado fora oposto.

Essa bibliotecária que vive em meu cérebro anda passeando pelos corredores e catando memórias nas estantes, empilhando momentos nos braços e me contando como conectar todos eles. Leia esse aqui também, aquele dia em que você precisou sair cedo do evento porque tinha que passear o cachorro. Também tem esse sábado que você queria muito fazer um bate-e-volta com as crianças na praia mas não fez porque tinha aquela festa da escola que você achava idiota mas foi mesmo assim com medo da retaliação da coordenadora.

Eu não tinha condições de saber disso àquela época, pois demoraria ainda anos para entender-me de fato. Mas hoje sei que fui contra mim mesma ao tão cedo limitar nossa vida aos horários fixos da escola, dos cursos e de todo o resto que veio como consequência. Pego-me relembrando com força minhas vidas esquecidas e me dando conta, surpresa, de que vesti o personagem da mulher metódica, organizada e rotineira por mais tempo do que minha essência podia suportar, e exalo um suspiro de imenso alívio ao perceber que as palavras que usei para me definir por todos esses anos eram repetidas em voz alta na tentativa de convencer a mim mesma.

Não acredito em arrependimentos, a vida é o que é, e nós somos hoje o resultado de nossas escolhas.
Quero escolher um tempo novo, um tempo fluido.

Conforme enxergo minha relação com meu tempo mudar, vejo a relação das crianças com o tempo com ainda mais clareza... ou seria o contrário? Enxergá-las hoje como eu talvez não visse antes provoca mudanças no modo como me vejo? Prover-lhes liberdade me faz entender os grilhões que criei para mim mesma ao longo dos anos? Talvez tudo.

Não são apenas as crianças que precisam de seu tempo e seu ritmo. Todos nós precisamos. Eu preciso.

Tempo livre. Não livre de afazeres e tarefas e trabalho, mas livre de imposições, livre de rigidez, livre de autoridade, livre de cobrança, livre para escolher.

Repasso essa liberdade às crianças, ignorando a forma como elas, primeiro, trouxeram-na de presente. Mamãe, a gente pode fazer a lição à tarde hoje ao invés de de manhã? Pode, ué.

Organizei numa lousa as atividades escolares da semana de cada um e é responsabilidade deles escolher o que fazer e por quanto tempo e entregar tudo até sexta-feira. Eles têm demonstrado autonomia e responsabilidade na mesma medida em que lhes damos liberdade. Com alguma orientação, tudo é entregue a tempo. No seu tempo.

Conforme nosso tempo relaxa, minha mente se sente mais à vontade para criar espontaneamente. A ansiedade de esperar por duas horas inteiras de paz, a palpitação da expectativa da interrupção, aos poucos esses padrões se dissipam. Aos poucos. Começo a enxergar oportunidades em curtos minutos. Minha mente desbloqueia quando paro de ver o tempo em blocos.

A liberdade do tempo tem soltado amarras. O último bastião de controle caiu por terra. Meu controle do tempo era controlado pelo controle que o tempo tinha sobre mim. Sem cão, sem escola, sem corrida, o tempo não tem dono nem é dono de ninguém.

É tudo novo, e ainda me encolho arfando, dentro da gaiola, perdida na possibilidade do tempo do dia. Serve respirar. Serve a entrega. Serve a curiosidade e a confiança. Não sei como vai ser meu dia amanhã. E está tudo bem. Afinal, quando decidimos mudar de país, disse a Allex: se ficarmos aqui, nesse lugar, nessa casa, dessa forma, eu sei como serão todos os dias da minha vida até o fim deles. Se sairmos, morro de medo porque não sei como será amanhã. Mas acho que a graça é essa.


....


Em tempo: não tenho meios de agradecer a todos pelo imenso carinho e preocupação, por dividirem comigo as histórias de seus bichinhos que também se foram, por todas as mensagens de amor e apoio e suporte. Não consegui responder a todos individualmente, pois mensagens vieram de todos os lados, em comentários, emails, instagram, mas saibam que li todos, mais de uma vez, e que suas palavras foram um abraço quente que eu muito precisei nos dias mais difíceis. Obrigada, obrigada, obrigada.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

O universo é um mensageiro insistente


Em Cartas a um Jovem Poeta, Rainer Maria Hilke faz um elogio à melancolia. Há que se deixar mergulhar na melancolia para se colher frutos criativos. E imersa numa melancolia intermitente, sei que há nela, de fato, uma estranha busca por poesia, um olhar atento a qualquer coisa de mágico, uma ânsia natural por detalhes que elevem o espírito, que não existe em outro estado emocional. Como se o corpo inteiro soubesse que a pisque se equilibra num fio delicado, e os dedos buscassem nas flores e pássaros apoios para atravessarem o abismo em segurança e superarem o perigo.

Flores de primavera num dia cinzento. Chuva leve que faz a grama nova brilhar. O ninho de um cisne à beira do lago.

Detalhes que não teriam significado para alguém imerso num êxtase veranil. Para o melancólico, são a mão que resgata a concha delicada na areia do mar, filtrando a água e areia que escorre devagar por entre os dedos. 

Na melancolaia encontram-se as delicadezas da vida.

A melancolia recolheu-se de repente a seu canto e abriu espaço para a raiva. Uma raiva sem começo ou fim, sem direção, que apenas era e surgia e explodia assim que alguém a tocasse, como se por sob minha pele crua e permeável, se escondessem pequenas e letais minas terrestres.

Foram dias difíceis. As crianças vinham pedir mas eu não tinha nada que pudesse dar. Recolhi-me dentro de mim, das histórias dos filmes e dos livros, buscando compreender a nova história se escrevendo aos meus pés.

Nos meus pés ela se escreveu então, na forma de um pequeno acidente doméstico, um escorregão à toa saindo da cama, um pé apoiado às pressas que se torceu e provocou o tombo, o tombo do universo, desmoronamento de um mundo. Duas semanas depois da morte do cão, que removeu da minha rotina os principais pilares que sustentavam meu dia, um dedo do pé quebrado me tira o chão. E quando acordo, muito tarde, e olho essa estranha neve de primavera que cai lá fora no mesmo dia em que os parques são reabertos, pergunto-me se compreendi a mensagem do universo completamente desta vez ou se ele ainda pretende uma rasteira por trâs, um golpe na têmpora, um tiro de misericórdia.

Sem o cão para passear e sem poder correr, abro meus olhos ainda coberta de lençóis e observo o teto. Ouço, como se fosse em outra casa, os sons das crianças preparando o próprio café da manhã e trocando detalhes de seus planos infantis em um tom casual que me faz questionar quando é que minhas crianças se tornaram adultas. Tento imaginar motivos convincentes para sair da cama. Os relógios contam o tempo aos pulos com ponteiros que giram ao contrário em velocidades intermitentes. A perspectiva do novo dia parece envolto em névoa, difuso, desfocado, sem forma, sem contornos, como tinta em papel molhado.

Respiro fundo e espero a tinta secar. O tempo fixa as manchas e cria linhas delicadas às bordas das pinceladas. Quando me afasto dos borrões e observo à distância, uma imagem se configura.

No caderno, pinto as cores do dedo quebrado. Quem eu sou quando não sou alguém com um cão? Quem eu sou quando não sou alguém que corre?

Assisto a um filme sobre o delicado equilibrio de ecossistema, uma fazenda tradicional, em que cada novo elemento traz um novo problema, e cada resolução de problema traz um novo elemento. Observo no silêncio de minha taça de vinho, a movimentação antes previsível e agora errática dos elementos do meu ecossistema. Minha casa. Meu corpo. Na ausência de um elemento ou dois, como o sistema recupera o equilíbrio? Quão quieta preciso estar para conseguir enxergar à distância o momento em que os elementos se reorganizam?

Só posso ficar quieta. E olhar. Esperar que os elementos encontrem novos modos de interagir até encontrar um novo padrão. Esperar que a tinta pare de correr sobre bolhas d'água e escolha o seu lugar.

Fico quieta. Espero. Aceito.

A raiva se dissipa. A melancolia é uma visita acenando à distânia enquanto se afasta. Sorrio um sorriso que basta. O futuro é comichão de curiosidade.

sábado, 2 de maio de 2020

Saudade é uma sala de porta aberta que venta pra fora




As cerejeiras floriram e o parque foi fechado dois dias depois de sua morte. A vida sem ele segue a passos mancos. Há buracos vazios por toda a casa.

Sua partida foi rápida, muito mais rápida do que jamais esperei. Mas toda morte acontece em um instante. Ele está ali. Ele não está.

Ele não está.

Meu corpo,acostumado à sua presença ao meu lado a todo momento, por toda minha vida adulta, se retorce ao buscar seu flanco sob minha palma, sofre um choque ao ser avisado de novo e de novo e de novo e de novo que ele não mais está, e dói. Apenas dói.

Dou-me conta do quanto meus dias foram criados em torno dele, de seus passeios, de suas carências. Ele estava para me fazer companhia na mesma intensa medida em que eu estava para fazer companhia a ele. Restam lacunas onde antes ficavam os pilares de minha rotina.

Já não me lembro mais o que é ser alguém que não o tem ao lado. Num momento em que faço esforços para reencontrar quem sou, esta passagem sente como a última fronteira.

Continuo sentada ao sofá esperando que ele suba desajeitada e pesadamente junto a mim, para que eu afague os pelos grossos de seu pescoço enquanto leio meu livro. O tecido áspero do sofá onde minha mão repousa agora abandonada me arranha por dentro. Falo sozinha. Sempre falei sozinha. E então olhava seus olhos redondos em mim e, na tentativa de parecer menos louca, arrematava aquele pensamento alto com um vocativo: né, Gnocchi?

Agora só uma louca que fala sozinha.

Ele era um espelho amoroso. Todo o meu afeto depositado nele reverberava de volta. Agora meu amor, sem objeto, vibra e se afasta, se esvai, dissolve no ar, eternamente sem retorno.

Ando pela casa sem saber o que fazer comigo mesma, perdida no meu dia sem relógios. Galinha sem cabeça.

Surpreendo-me procurando sua coleira de manhã, ao meio dia, no fim da tarde. Desligar a televisão e ir para cama, sem seu último passeio, é o golpe de misericórdia num dia alquebrado.

Treze anos.

Respira.

As palavras de minha amiga vibram dentro de mim: agradece.

E enquanto corro, e corro para gastar a angústia, para suar lágrimas que já me dóem a garganta, enquanto corro, agradeço. Se antes cada passo sobre a terra gelada de início de primavera me fazia refletir sobre a sorte que tenho, agora o som do peso de meus pés sobre o asfalto que cerca o parque fechado traz gratidões múltiplas, que, devagar, apaziguam o cérebro que ainda tenta negociar sua ausência em racionalizações impossíveis, e devagar abre espaço para uma doce saudade melancólica.

Obrigada pelos treze anos de amor doce e incondicional.
Obrigada pela companhia constante, por me seguir a todos os cômodos, cuidando de mim, cruzando seus olhos com os meus e vindo deitar aos meus pés. Minha humana está bem.
Obrigada por ter sido a desculpa que eu precisava para sair do confinamento da casa, tantos anos antes da possibilidade de uma quarentena, na quarentena que é a solidão do freelancer, do artista, do puerpério, da migração.
Obrigada por ter transformado um casal em uma família.
Obrigada por apoiar teu fuço rosa nos meus joelhos quando a tristeza transbordava e por ter lambido minhas lágrimas quando elas eram muitas.
Obrigada por me tornar responsável por você e assim me ensinar a ser adulta.
Obrigada por ter tornado mais leve meu recomeço, por ter me apresentado teus amigos no parque e os donos dos teus amigos, por ter criado uma rotina no caos da migração.
Obrigada por nos ter acompanhado em tantas aventuras.
Obrigada por ter me levado para passear pelos parques e por ter me levado para correr quando acreditei que nunca mais correria na vida.
Obrigada por ter sido feliz e amoroso até o teu último dia, por ter suportado com dignidade o que acontecia dentro de você e que você não deixou transparecer.
Obrigada por ter escolhido para ir embora esse momento em que não estou sozinha e que a dor de sua ausência pode ser amenizada com a presença dos teus outros humanos.
Obrigada por fechar esse teu ciclo no mesmo instante em que tantos outros se fecham, como se cosmicamente alinhado para que a transformação não seja apenas sua mas universal.
Obrigada por abrir caminho para o novo.
Obrigada pelo modo como tua partida nos trouxe imediata consciência do que precisa ser transformado.
Obrigada, muito obrigada, por aquele teu último sorriso amoroso, teus olhos brilhantes de confiança e doçura que eu vou carregar comigo para sempre.
Obrigada por ter sido o melhor ser vivo.
Obrigada por ter feito parte.
Por ter vindo.
Por ter sido meu e por permitir que eu fosse sua.

Meu cãozinho.

A vida segue estranha sem você, mas segue. Permeada do amor que você deixou. Os espaços vazios serão preenchidos de alegria.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Conversas de Páscoa



Na manhã de Páscoa Laura me pediu para admitir que era eu quem comprava os chocolates. Um riso nervoso e um encolher de ombros depois, desconversei. Ela insistiu. Olhei para Thomas, sentado no sofá, lendo seu livro que chegara pelo correio dois dias antes. Parecia desinteressado na conversa.Olhei Laura de novo, seus olhos flamejantes de certeza. Perguntei-lhe o por que de achar isso. Porque se a Fada do Dente não existe, então o Coelho não existe também, ela disse, cruzando os braços.

A Fada do Dente morreu esse ano. Ela já estava moribunda quando ocorreram uns lapsos da parte dos adultos, em que precisei explicar às crianças como a Fada é do sindicato e não trabalha de domingo, e que portanto só troca dente durante a semana. Ela morreu de morte matada no dia em que Thomas foi apanhar os fones de ouvido na gaveta do pai e achou os potinhos com os dentes que haviam sido magicamente trocados por moedas. Isso aconteceu enquanto eu não estava em casa, e como papai não é versado em realidade criativa como a mamãe, não soube dar uma explicação lá muito convincente de como é que os dentes levados pela Fada tinham ido parar na gaveta do papai. Thomas deixou o assunto quieto com incomodada desconfiança, mas Laura juntou lé com cré. Era ela quem vinha perguntar qual era o tamanho da Fada, já que ela passava a noite carregando dente e moeda por aí. E se ela era grande o bastante pra carregar muitas moedas de uma vez, como entrava em casa sem a gente ouvir. Ou como ela entrava em casa se a gente mora em apartamento e portas e janelas estão sempre trancadas. Ou o que diabos a Fada fazia com esse bando de dente de criança.

Fala a verdade, mamãe. É você que bota o dinheiro lá.
É, filha, sou eu.

Ela ficou contentíssima em ter descoberto. Dava pra ver a aura de orgulho por ter sido mais esperta que os adultos, por pegar a gente no pulo, descobrir a mentira, resolver o mistério. Thomas só apareceu pra perguntar se ele ainda ia ganhar dinheiro pelo dente que tinha caído. Claro, filho.

Aí veio a pergunta: Mas por que os pais mentem para os filhos? Porque inventam isso de Fada?

Porque tem criança que tem medo disso de perder dente, filha, e a história da Fada e a perspectiva de ganhar uma moeda pelo dente caído torna a experiência mais suave. Só por isso.

Mas mãe, eu nunca tive medo do meu dente cair. Por que você mentiu pra mim então?

Porque você era muito pequena, e não ia entender se eu te dissesse que Fada não existe mas todos os seus amiguinhos da escola acreditam que tem Fada sim. Imagina como seria? Você com certeza falaria com seus amigos, e estragaria a brincadeira das famílias das outras crianças. Então tive que meio que botar você nessa também. Entende?

Sim. Tá tudo bem.

Que bom. 

Meses depois, ela concluía isso, que se a Fada é invenção, o Coelho também. Como você prova isso?, perguntei. Eu acho que você come a cenoura e o papai toma a cerveja, ela disse, e colocam as pistas e os ovos.

Temos nossa própria caça aos ovos aqui em casa, que começou quando imigramos, quando Thomas já começava a aprender a ler. É uma caça ao tesouro em que escondo pistas em forma de charadas dentro de ovos de plástico que eles têm que ir encontrando na ordem certa, um levando ao outro, começando pelo que deixo na porta do quarto deles para não ter erro, e o último levando ao local onde os chocolates foram escondidos. A cada ano as charadas ficam mais difíceis, e é minha parte favorita da Páscoa, criar as pistas.

A cerveja para o Coelho veio na verdade do Natal. Ainda no Brasil, influenciadas por toda a propaganda natalina norte-americana, as crianças acharam graça de deixar um prato de biscoitos e um copo de leite para o Papai-Noel, não esquecendo de uma cenoura para as pobres renas que fazem todo o trabalho pesado. Daí que um dia brinquei, tadinho do Papai Noel, trabalhando madrugada adentro nesse calorão do Verão brasileiro, e é recebido com um copo de leite em temperatura ambiente? Põ, deixa uma cerveja gelada pra ele, né?

As crianças acharam que aquilo que era pra ser piada fazia sim muito sentido e passaram a deixar uma cerveja para o Papai Noel. Os adultos que antes teriam de beber um copo de leite em temperatura ambiente não reclamaram de ter uma cerveja gelada para acomoanhar a cenoura crua e com casca.

Na Páscoa seguinte houve a discussão: Thomas queria deixar para o Coelho uma cenoura, e Laura insistia em deixar uma cerveja.

Mas é o Papai Noel quem toma cerveja!
Ué, o Coelho também pode querer uma!
É nada! Coelho é um bicho e bicho não toma cerveja!

Quando a coisa começou a esquentar, interferi: Gente, a gente tá falando de um coelho que bota ovo e sai distribuindo chocolate mundo afora durante a noite. Vamos combinar que ele pode beber Piña Colada que vai continuar não fazendo sentido igual, né?

E Thomas concordou em deixar a cerveja para o Coelho.

Daí que agora Thomas insistia que o Coelho tinha sim tomado a cerveja e mordido a cenoura. Afinal, a cenoura estava pela metade e havia várias marcas de roído na casca.
Laura insistia que não, que era tudo obra do Papai e da Mamãe.

Como você prova isso?, perguntei.

Hmmm... Ela pensou, segurando o queixo com os dedos e fazendo uma careta cartunesca.

Que EVIDÊNCIAS você tem?, repeti, me divertindo. Thomas diz que foi o Coelho que comeu a cenoura, porque a cenoura tem marcas e está pela metade. Como você prova o contrário?

Ela deu um pulo, e disse: Encontrando o resto da cenoura!

E com isso foi ao lixo da cozinha, onde, extasiada, encontrou as cascas da cenoura retiradas com o descascador de legumes para simular os dentinhos do coelho. A-HÁ!

Ah, não, Laura. Mas tá faltando metade da cenoura! Eu acho que foi o Coelho mesmo!, eu provoquei.

Não foi, mamãe! Foi você!

E eu ia ficar mastigando cenoura crua de madrugada só pra te enganar? Tenho mais o que fazer, né?

E ela correu desta vez à geladeira, procurando, procurando, abrindo a gaveta de legumes e retirando dela o saco de cenouras. Olhou, olhou, comparou, e retirou do saco uma ponta de cenoura que, demonstrou, encaixava-se perfeitamente à metade deixada no prato do Coelho.

A-HÁ! Te peguei, mamãe! Te peguei! Fala a a verdade! É você que compra o chocolate e faz tudo isso!

É, Laura, sou eu mesma.

EU SABIA!

Aquele orgulho de novo, aquela satisfação consigo mesma. Olho para Thomas e ele parece, novamente, desinteressado.

O que você acha disso, Thomas?

Ah, eu acho que tem Coelho sim.

Thomas... você vai continuar ganhando chocolate.

Ah, então não tem Coelho não.

Ri e seguimos com a vida. Passeio no parque antes do café, comilança de chocolate vendo desenho, ligar para os parentes. Enquanto as crianças brincavam, Allex preparou uma tradição de Páscoa da sua avó, que ele nunca fizera antes: Pumpernickel com ovos e maionese. Simples assim: fatias desse pão preto alemão denso e forte, fatias de ovos cozidos, uma colherzinha de maionese, salsinha picada para decorar. Como ele queria fazer esses acepipes alemães, resolvi que pela primeira vez na vida não faria um almoço de Páscoa. Não me apeteceu pensar em nada no meio daquela quarentena. Os canapés puxaram queijos e frios e pãozinho e guacamole e tortillas e uvas e tomatinhos e caipirinha. Uma Páscoa tranquila.



Durante o almoço que não era almoço, conversamos sobre a chegada da Primavera, sobre a simbologia do ovo e do coelho, sobre solstícios e equinócios, sobre a alegria de ter passado por mais um inverno. Conversas que eu tinha no Brasil com eles mas que só fizeram sentido aqui. Aqui eu não preciso explicar muita coisa. Eles experimentam e concluem sozinhos. A escola deles também fala dos ciclos da natureza e religiões são mencionadas a título de curiosidade e respeito com a variedade de credos no país.

Laura passa todo o almoço contente por ter me descoberto.

Sirvo a sobremesa, abro uma cerveja, troco a música que está tocando no aparelho de som. Eles pedem Frozen de novo. E Moana.

Quando levanto para me recolher ao quarto e ler um pouco, ouço uma discussão entre as crianças.

Mamãe! Mamãe!

Que é?

Mas se a Fada do Dente e o Coelho não existem... e o Papai Noel?

Putz, não sei, Laura. Qual é a sua teoria?

domingo, 12 de abril de 2020

Estranhezas e renascimentos



Vamos comigo pegar minhas cordas, disse Allex.

Ele comprara cordas de guitarra pela internet. Não na Amazon ou coisa assim, mas na mesma loja de rua em que adquirira seu amplificador uns meses antes. A mesma loja que agora mantém as portas fechadas, com grandes avisos na vitrine sobre Covid-19, sobre lavar mãos, sobre manter distância, sobre não entrar mais de três por vez e agora, sobre não poder deixar ninguém entrar. Um museu de todas as fases da pandemia. Loja que, como quase todo o pequeno comércio de Toronto, está fazendo o possível para sobreviver.

Depois de mandar o email para a loja com os dados do cartão, metemo-nos no carro e fomos em direção ao centro até a tal loja. Fazia tempo que não via o restante da civilização, mesmo que através da janela, tendo passado o último mês no trajeto casa-parque-casa-mercado-casa.

Pouca gente na rua. Uns transeuntes passeando os cachorros, outros tantos em filas espaçadas para seus cafés de bairro favoritos, na esperança de contribuir o bastante para que seus coconut-milk-chai-lattes continuem existindo no fim da distopia. Vitrines de luzes apagadas e cartazes escritos à mão às portas. Fitas policiais nos bancos.

Estacionamos em frente à loja e, sem sair do carro, Allex telefonou para o vendedor.

"Oi. Vim pegar minha compra."
"Oi, bom dia. Confirma seus dados pra mim. Obrigado. Confirma sua compra pra mim. Obrigado. O senhor está de carro ou a pé?"
"De carro."
"Ok, ótimo. Então por favor espere no nosso estacionamento atrás da loja. Nosso vendedor vai até você e vai confirmar sua identidade. Por favor deixe o porta-malas aberto e não saia do carro."
"Ahn... ok."

Allex dirigiu o carro até o estacionamento, desligou o motor e abriu o porta-malas sem sair.
Mantivemos os olhos na porta traseira da loja, em silêncio, uma sensação de nervoso no ar. Como se estivéssemos fazendo algo errado.

"Feche seu vidro, senhor!", gritou o vendedor, de luvas e máscara, muitos metros à distância. "Posso ver sua identidade?", ele continuou, enquanto Allex fechava o vidro apressadamente, num riso nervoso de quem agora sabe que fez algo errado. Tirou do bolso a carteira de motorista e a pressionou contra o vido com a ponta dos dedos, enquanto o vendedor se aproximava para verificar, em segurança.

"Ok", ele disse num tom severo, saindo de nossa vista rapidamente. Ouvimos um som seco batucado vindo do porta-malas e o som dos passos apressados do vendedor correndo de volta para a loja. Ele acabara de jogar o pacote de cordas para dentro do carro.

Olhamos um para o outro e rimos um riso azedo e preocupado, desacreditando aquela cena.

"Meus deus! Parece que a gente comprou drogas!", eu digo e ele concorda.

Dirigimos de volta de corações pesados, pensando em todas as estranhezas.

De volta ao apartamento, distraio a cabeça preparando pudim. Deve haver uma explicação psicológica para eu voltar minha atenção às receitas antigas, do caderno, do blog. Leio os textos de dez, doze anos atrás, quando sequer sabia que queria ter filhos, quando sequer sabia que mudaria para outro país e quando não desconfiava que aquela fala minha repetida, de aprender a cozinhar para não depender de ninguém durante o apocalipse zumbi, um dia poderia ser comprovada.

Mas o retorno ao passado através da cozinha tem me mantido mais ainda consciente do presente. Faço o "pudim do moreco", aquele da Dorie Greenspan, de baunilha com ganache no fundo, e à primeira colherada Laura e eu o achamos doce demais. Doce demais. Como quase tudo o que preparo de tantos anos atrás e que era tão sensacional àquela época. O passado fica ainda mais distante quando me dou conta do quanto mudei, do quanto mudamos, passado e presente contínuo. Mudamos a cada respiração, e mudando estamos. Todo fim é um começo, e se esse é o começo do fim, então é melhor embarcar no ciclos, aceitar o movimento e lembrar que toda a mudança é estranha, todo estranho é desconhecido, e é o desconhecido que traz o medo.

Chacoalha o medo.

Olha pra ele.

Respira.

Nunca pensei que meus filhos fossem passar por esses tempos estranhos. Nunca pensei que eu... não, talvez eu sim.Talvez sempre tenha havido em mim esse sentimento apocalíptico de quem leu ficção científica demais, de quem já era ecologista (quando se usava o termo ecologista) aos doze anos, de quem teve a personalidade não conformista agravada por uma criação católica que espera punição por seus pecados.

Talvez eu esperasse passar por isso. Mas não meus filhos.

Distraio-me preparando pudim doce demais. Distraio a mente na minha rotina, no mato, no cuidar do que é vivo e me é querido, distraio-me na arte. A vida é leve aqui dentro. Então a ida ao mercado, aquela fila longínqua, aqueles olhares sombrios por trás das máscaras e dos lenços, aquela vibração de medo da mulher que espera você sair da frente das latas de tomate para que ela possa se aproximar e escolher seu molho, a rádio do mercado ligada no canal de notícias, espalhando números e dados e histórias de hospitais e valas, tudo isso junto e misturado cria vida num arrepio que começa na base da nuca, e o silêncio pesado no seu peito se concentra e toma forma dum ruído elétrico à distância, um zumbido grave que chega cada vez mais perto e sobe até a cabeça, e perfura suas têmporas como uma furadeira.

Volto para casa com comida e dor de cabeça.

Distraio-me com bolo. Com bolo e com escrita, e com lições da escola e com música na sala para dançar. Distraio-me com chá quente e com vinho,com beijo e com abraço, com passeio do cachorro no mato onde tento ouvir apenas passarinhos.

E quando vou dormir, quando deito a cabeça no travesseiro e suspiro profundamente, sentindo o corpo relaxar, as distrações se acabam, e não resta mais nada a não ser deixar a cabeça lembrar de todas as estranhezas do dia, todos os rostos mascarados, todas as notícias catastróficas e preocupações. A lembrança atinge o peito como quem lembra, depois de um dia bom, que o menino de quem você gosta está namorando uma amiga sua. Meu coração se parte toda noite outra vez.

Nunca pensei que meus filhos passariam por isso.

Mas crianças são resilientes, diz meu coração partido. Eles não são como a gente, não juntaram peças o bastante no quebra-cabeça do seu mundo para acreditar que as peças estranhas não têm lugar. Seu mundo é feito de estranhezas, tudo é novo e diferente o tempo todo, e há menos resistência em seu olhar e mais acolhimento em seus corações.

Minhas frustrações não são as deles. Eles estão bem. Correm e brincam e criam e se divertem, mesmo sabendo explicar no detalhe o que está acontecendo no mundo. Eles encontram seus meios de seguirem sendo, assim como a natureza que nos visita em nossos passeios ao parque.

Quando fomos cedo na manhã de Páscoa ao parque vazio, buscar nas trilhas ainda úmidas a companhia dos coelhos e dos esquilos, encontramos um imenso falcão, ali pousado no carro de manutenção à porta do parque, olhando-nos com curiosidade. À busca de coelhos, encontramos o bicho que os come. Esse sinal da natureza, essa lembrança da deusa-mãe que tudo que é vivo morre, que a vida é impermanência, que estranho é esperar constância.

Voltamos para casa e rego minhas tulipas. Esses bulbos que só brotam com a força de vulcões num verde iridescente em direção ao céu se passarem pela morte congelante do solo duro de um inverno rigoroso.

Sinais da primavera. Sinais da natureza. Natureza segue sendo. Crianças seguem sendo.

Deixo-me levar por sua curiosidade inocente, sua resiliência aventurosa. Escondo o calendário. Evito contar os dias de quarentena. Evito referir-me ao meu tempo em casa como confinamento. Como cárcere. Como prisão. Quem conta os dias que passam risca as paredes da prisão, prende a respiração esperando a liberdade que não tem dia para chegar e se alimenta de ansiedade e angústia.

Não conto dias. Não espero futuro. Olho para as crianças e tento viver neles. No presente. O presente que muda a cada respiração. O presente permanente em sua inconstância.

O passado é doce demais. O futuro ainda não tem sabor. O presente é a medida.

Cozinhe isso também!

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