segunda-feira, 8 de junho de 2020

Mudanças de olhar, aprender sem escola, focaccia de panela.


A pandemia por aqui anda um bocado esquisita. O governo faz finta de relaxar algumas políticas, mas quando o povo relaxa também, ele volta atrás. Os parques urbanos andam cheios. Não tão cheios quanto estariam nesse junho lindo de céu azul e temperaturas veranis, mas indubitavelmente cheios, quando nos lembramos de que deveríamos ficar distantes uns dos outros. Tentamos. Chamo a atenção das crianças para não se aproximarem de outras pessoas, vamos ao parque em horários mais tranquilos, onde não fico estressada por uma pessoa sem noção estar perto demais na hora de atravessar a rua. Nos fins de semana, quando a cidade inteira parece esquecer a quarentena em nome de um banho de sol, fugimos para o mato, para os parques provinciais que estão abertos para quem gosta de andar em trilhas na solidão da natureza.

Os números aqui no Canadá começam a dar esperanças de que logo (espero!) algumas coisas cheguem a uma nova realidade menos surreal, e que possamos, se não marcar um piquenique com os amigos, pelo menos programar um acampamento em família.

Mas o governo tem sido cauteloso, e há grandes chances de que a escola não volte (ao menos não em sua integralidade) a funcionar em Setembro, quando as crianças começam um novo ano letivo. Sinceramente, já não espero mais. Não espero, de verdade, coisa alguma. Desde o início dessa bizarrice toda, o mundo tem me ensinado a não esperar nada, a viver um dia de cada vez, sem grandes planos. Ou mesmo pequenos. Esse foi o tema das conversas desse fim de semana, quando dividimos um com o outro, Allex e eu, a coleção de pequenas, médias e grandes frutrações dos últimos meses, que parecem terem ficado ainda mais intensas em frequencia e variedade desde que Gnocchi morreu. Como uma aceleração do karma, eu disse. Ele concordou.

Mas desde Março, quando a escola fechou,eu já repetia: não sei quanto tempo isso vai durar, não sei o que vai acontecer amanhã, então não espero nada e sigo o fluxo; e se tiver perrengue, e se der tudo errado, e se o universo me tropeçar de novo, dou risada, aceito, e trabalho com o que tenho.

Porque no fim é isso. A gente faz o que pode com o que tem. E se a gente tira o olhar da falta que gera a frustração e o dirige para aquilo que está presente, descobre que tem um bocado, e que está tudo bem. Ou que tem apenas um pouco, mas esse pouco é o bastante para segurar a onda enquanto a onda não quebra na praia e vira marolinha.

Não ando focando na falta da escola. Ando olhando para a curiosidade natural das crianças, para a oportunidade de tomar um pouco as rédeas da educação deles, para reafirmar alguns valores e hábitos que andavam se perdendo no estressante ambinte escolar.

Nem que seja o hábito de almoçar. Eles estão felizes por poder almoçar todos os dias num ambiente sem pressa nem gritaria, ainda que a mãe, na TPM, às vezes solte um grito apressado.

Ando lendo um bocado a respeito de Unschooling, ou Desescolarização, não porque pretenda tirar as crianças definitivamente da escola, mas porque os diferentes processos de aprendizagem das crianças fora da escola, quando bem estimulados, tormam-me uma mãe mais tranquila e menos preocupada com pressões acadêmicas. Principalmente num momento em que a principal preocupação deveria ser o bem estar mental e físico das crianças (e dos adultos).



Um exemplo simples. Thomas e Laura aprenderam frações cozinhando. Medindo ingredientes com xícaras e colheres-medida. Tentando descobrir como obter 1/8colh(chá) de sal tendo em mãos apenas uma colher que comporta 1/4. Fazendo contas mentais para saber quantas vezes precisam usar o medidor de 1/3xic para obter 1 xícara e 2/3 de leite. Quando enfim precisaram sentar na frente do computador e fazer suas lições de fração, bastou lembrá-los dos bolos que haviam preparado, e não foi precisa mais nenhuma explicação.

Um exemplo complexo. Thomas e Laura adoram bichos. Começou com os dinossauros de Thomas, há muito tempo. Todos os livros que ele pegava na biblioteca eram de dinossauros. Na primeira série, ele tinha preguiça de ler os livros da escola, mas conseguia ler sem dificuldades os nomes científicos mais escalafobéticos de seus dinossauros. E os dinossauros o transformaram num leitor. Os dinossauros levaram, por conta do Mosassauro, seu dinossauro aquático favorito, aos animais marinhos. E lá foi ele ler em letras miúdas, palavras multissilábicas, medidas, nomes científicos, comparando quem é maior que quem, quem come quem, quem mora onde. Por causa dos dinossauros e dos animais marinhos, ele logo se interessou pelos nomes dos continentes e dos oceanos. Seu livro favorito de animais marinhos também mostrava pássaros, que ele logo relacionou aos dinossauros com penas e quadris de aves, e quando ele ouviu falar de Evolução e Seleção Natural pela primeira vez, aquilo tudo já fazia sentido.

Por conta de Thomas, Laura hoje tem a mesma paixão por bichos.Quando saímos para passear no mato, eles me explicam que libélulas são mais antigas que dinossauros, Laura me pergunta se as amoras do nosso snack são da mesma família do milho, por terem estrutura parecida, e pesquiso no celular sobre a estranha pedra que vemos por toda parte no rio que cruza o parque em Scarborough, e que descobrimos que é ardósia, e conversamos sobre os tipos de formações rochosas que vimos no museu de História Natural em Ottawa. Laura pergunta se pode usar uma lâmina de ardósia como faca, e quando acha uma fogueira, descobre que carvão serve para escrever, e que se ela esmagá-lo e misturá-lo com água do lago, faz uma tinta preta que ela pode usar para desenhar com os dedos nas pedras. Explico pinturas rupestres e tinta azul feita com lapis-lazuli (a pedra que carrego em meu anel favorito) e tinta vermelha feita com cochonilhas, aqueles mesmos bichinhos que Laura se lembra de ver sob as folhagens de nossa horta no Brasil, e que as joaninhas adoram comer.\


Quando encontramos uma toupeira morta no meio da trilha, paramos para examiná-la, e eles ficam fascinados pelo formato das patas, pelas unhas fortes, e pelo fato de que ela é de fato tão cega que não conseguimos encontrar seus olhos em meio aos pelos. Falamos sobre o processo de decomposição. Isso eles já sabem bem. No Brasil, uma vez, encontramos um gambazinho que fora morto por uma pedra de gelo durante uma geada forte. Todos os dias íamos ao terreno baldio onde ele estava para vermos em que estágio o bicho se encontrava: formigas primeiro, moscas depois, então larvas, então o corpo parecia desaparecer sob a pele que afundava, como um balão desinflando, e num belo dia, encontramos apenas o esqueleto, perfeito, branco como se tivesse sido polido em laboratório, e tufos de pelos espalhados pelo vento. No crâniozinho dele, uma rachadura feia marcando onde a pedra de gelo o acertara. Ninguém nunca esqueceu daquela lição de como a morte alimenta a vida de tantos outros seres, de como todos voltamos à terra para alimentá-la e prosseguir num ciclo infinito de vida-morte-vida tão maior do que qualquer indivíduo. Laura lembrou do gambazinho e de tudo o que conversamos naquela época para me consolar quando Gnocchi morreu: "Ele virou terra de novo, mamãe, ele vai alimentar as plantas e as plantas vão florir e vão ter frutas por causa dele. E a energia dele desmanchou e voltou pro Universo, ele está no ar, mamãe, então ele está em todo lugar agora. Se você respirar agora, ele está com você."



Quando paramos para descansar na trilha ao lado de um rio, as crianças, enfiadas até os bumbuns no leito gelado, de roupa e sapatos, embaixo do sol forte, procuram bichos embaixo da água. Girinos, pequenos peixes, caracóis. Thomas grita, de repente, que viram uma lagosta, e por um momento me assusto, achando que se tratava de um escorpião. Mas vejo Laura de cócoras no rio, concentrada, dando patadas rápidas na água como um urso, e de repente os dois voltam gritando de alegria, correndo em nossa direção, Laura com as mãos fechadas em concha. Ela abre as palmas como uma ostra, e me mostra o que parece um lagostim bem pequeno e escuro. E depois de passada a fascinação, eles devolvem o bicho ao rio, são e salvo, enquanto pesquiso que bicho era aquele. Crayfish!, exclamo feliz.
Laura pergunta se o Crayfish é um inseto como as aranhas e explico que nem um nem outro é inseto, e passamos uns bons minutos na trilha brincando de descobrir quem é inseto e quem é aracnídeo pelo número de patas, pelas divisões do corpo.


Um dia no mato com os dois me obriga a buscar na memória as coisas que aprendi na escola e, quando a mente falha, buscar no Google. Passar tempo com eles me faz querer ver o mundo com olhos frescos também. E ao invés de olhar um passarinho e só dizer "que passarinho bonito", volto a fazer perguntas como eles fazem. Qual é o nome dele? Onde ele faz ninho? Ele migra como os gansos ou fica por aqui no inverno como o Chickadee? O que é que ele come? De que cor são seus ovos? Será que ele é da época dos dinossauros? Ok, essa última pergunta seria mais do Thomas mesmo.

Minha própria curiosidade às vezes quebra silêncios, e gera de novo conversa interessada. E criança é um bicho que gosta de pergunta, e às vezes basta a gente fazer uma para eles criarem mais vinte. E se eles tiverem liberdade de explorar, experimentar, mexer, quebrar, construir, e tempo para criar, tempo para ler o que lhes interessa de fato, eles aprendem tanto que a gente às vezes cai sentado de susto.

E mesmo quando a informação é demais, é difícil, eles tiram algo daquilo. Assistimos à série Cosmos, e de repente Laura vira para mim e diz: "Mamãe, não tô entendendo nada do que esse moço tá explicando, mas tá divertido mesmo assim." E apanhou seu caderno e começou a desenhar. "Ó, mamãe, eu tô desenhando as coisas do filme: isso é uma nebulosa! Esse é um buraco negro! E essa é uma cadeia de DNA!"

Ela não faz ideia do que de fato seja uma cadeia de DNA nem tem condições ainda de entender. Mas desenhou aquilo que seu cérebro conseguiiu compreender daquelas imagens, e quando ela de fato quiser estudar a respeito, o conceito está ali, aquela imagem presa à memória, gravada permanentemente pelo processo daquele desenho expontâneo. No dia seguinte ela me pediu para ter um livro sobre o espaço. "Um que você consiga ler sozinha ou um que eu precise ler pra você?', perguntei para alinhar expectativas. "Um pra eu ler sozinha." Apanhei um livro da National Geographic chamado "My Fisrt Space Book". Junto desse, aproveitei para comprar um lindíssimo chamado Maps, com mapas do mundo inteiro ilustrados de forma divertida e cheio de informações sobre cada país (muito útil já as crianças têm amigos de todas as partes do mundo, na escola daqui) e um outro livrão ilustrado chamado Curiositree Natural World, que é uma espécie de enciclopédia da natureza, com lições simples de biologia, botânica, ecologia, e curiosidades sobre animais. Laura já me pediu um outro sobre elementos. Ela tem um de pedras preciosas, mas queria um que mostrasse todos os elementos em seus estados naturais, porque ela quer encontrá-los na floresta.

Tenho tentado ampliar a biblioteca dos dois, que até então tinha mais livros de histórias, para livros de consulta. Os dois passam muito tempo no sofá ou no tapete, folheando os livros informativos, discutindo sobre as figuras, comparando com outras coisas que aprenderam. Acho que o livro folheado sem pressa é uma experiência diferente de buscar informação na Wikipedia. Ainda que tenha ensinado Thomas a pesquisar seus assuntos de interesse nela e registrar sua pesquisa em forma de perguntas e respostas.

Quando paro de pensar nas pequenas e nas grandes frustrações da quarentena e da pandemia, olho para os tesouros encontrados à minha frente.Ver o modo como as crianças aprendem (todas elas, não apenas meus filhos, porque ninguém aqui é especial), e o quanto eles de fato aprendem quando estão genuinamente interessados num assunto e podem explorá-lo do seu jeito e no seu ritmo, sou invadida por essa tranquilidade a respeito das lições da escola, do passar de ano, do desinteresse que a criança mostra ao ter de escrever uma redação sobre a Primavera ou calcular perímetros e áreas quando na verdade queria estar lendo sobre dinossauros e nebulosas.

Durante todas as semanas de escola ã distância, Thomas fez drama para fazer redação. Reclamações, pequenas revoltas, bufadas e cadernos ao chão. "Ele não gosta de escrever", repeti a mim mesma e às outras mães inúmeras vezes, revirando os olhos. Então, cansada de colocar a falha nele, resolvi colocar a falha no método e tentei algo novo: "Seguinte, gente, eu acho as redações da escola uma chatice. Então eu quero o seguinte: todo dia, eu quero uma redação, caprichada, letra pequena, com data, mínimo de cinco frases, SOBRE O QUE VOCÊS QUISEREM. Inclusive se quiserem escrever como a mamãe é chata porque ela está obrigando vocês a escrever, pode. Desde que usem cinco frases para reclamar. Tá bom?"

Thomas tinha que fazer UMA redação por semana para a escola, e era sempre aquele teatro, aquela briga, aquela frustração. Das redações diárias de tema livre ele reclamou só da primeira. Tentou ainda roubar no jogo, e copiou um trecho inteiro de um de seus livros favoritos. "Você copiou?", perguntei. "Sim, desse livro aqui.", ele respondeu, com um sorriso espertalhão. Devolvi o caderno para ele. "Tá muito caprichado. Gostei que você escolheu um trecho com palavras bem difíceis. Muito bem."

E as batalhas para escrever terminaram. Tem dia que ele transforma a redação em história em quadrinhos, fazendo os textos no meio de desenhos. Tem dia que é sobre batalhas entre super heróis que ele inventa. Tem dia que é a descrição dos poderes de um dragão. Laura escreve, ainda sem acertar muito a ortografia, em adivinhações fonéticas, sobre a casa na floresta em que vai morar, sobre um livro do aplicativo da escola que mostrava bolos de formatos divertidos, sobre gostar de cozinhar e sobre seus desenhos favoritos.

O governo de Ontario estabeleceu que as escolas daqui não vão avaliar as crianças do ensino elementar durante o período da pandemia. Até porque só se repete ano a partir dos dez anos e mesmo assim só se for muito necessário, já que até o ensino médio espera-se que as crianças cheguem no resultado esperado em seu próprio ritmo. Valho-me disso para relaxar um pouco e não obrigar as crianças a fazer todas as atividades propostas pelos professores. Mas tenho plena consciência de que essa abordagem do governo é condição sine-qua-non para que eu possa levar com leveza o assunto escola ã distância por aqui. Eu já tentava ensinar meus filhos dessa forma no Brasil e não levar a escola tradicional tão a sério, mas era muito, muito mais difícil, e eu sentia que tanto as crianças quanto os pais sofriam muito mais cobranças por resultados não condizentes com a maturidade emocional dos pequenos alunos. Justamente por me lembrar dessa pressão, tento não soltar as rédeas assim de um vez, porque eu não sou tonta nem nada e olho o curriculum da semana e saio propondo brincadeiras e questões relativas ao assunto, para mantê-los razoavelmente alinhados com o sistema, mas não subjugados por ele. Foi assim com as frações. Agora tenho que sacar da estante os jogos de tabuleiro e RPG que envolvem dados, porque Thomas vai começar a estudar Probabilidade.

Enfim.


É bom sentir menos pressão sobre os ombros, menos pressão pelo resultado, pelo "sucesso", pelo desempenho, pelas notas do boletim. Tem sido enriquescedor mergulhar com as crianças no processo, no desenvolvimento, na exploração, no imprevisível, no aleatório, no caos desenfreado da curiosidade. Tem sido importante parar de pensar em enfiar informações em suas cabeças "na ordem certa" e, ao invés disso, ensiná-los a gostar de aprender, ensiná-los a não terem medo de perguntar nem vergonha de propor uma solução. E principalmente, ensiná-los a pensar, a juntar informações que na escola são ensinadas separadas uma da outra mas que no mundo de verdade são inseparavelmente conectadas.

Num dia cheio de pequenos perrengues, Thomas quis fazer a salada do jantar enquanto eu preparava uma torta de verduras. Pensei em voz alta meu estranhamento de a tal "Focaccia" de  panela não levar fermento biológico. Ele me fez algumas perguntas, e comecei a explicar os tipos de fermento. Como o biológico é um ser vivo minúsculo comendo açúcares e soltando pum na massa (isso sempre faz as crianças rirem), e como o fermento químico é feito de um sal e um ácido que se transformam quando você os dissolve em líquido, produzindo gases. Ficamos falando sobre outros tipos de sal e outros tipos de ácido, e o fiz lembrar do dia em que fizemos um vulcão de massinha e enchemos ele de vinagre e bicarbonato de sódio.

Cozinha aliás, foi um hobby que durante anos alimentou também minha curiosidade infantil, e vorazmente estudei como eram os processos químicos por trás das transformações dos alimentos. Até hoje me pergunto porque a cozinha não é usada nas escolas como ponto central para todas as matérias. (Só fui entender botânica de verdade quando aprendi a fazer cerveja e tivemos de estudar a fisiologia do grão de cevada. Imaginei uma classe cheia de adolescentes aprendendo a fazer cerveja.) Na comida estuda-se química, biologia, matemática, história, geografia...

A gente nunca para de aprender enquanto for curioso.


E nessa cozinha a gente aprende a fazer torta na frigideira.Taí uma coisa que eu nunca fizera antes, mas passarinho que tem medo de novidade nunca sai do ninho. Fiz essa torta, que Benedetta chama de focaccia recheada, mas que nada tem a ver com a focaccia genovesa que nos vem à mente, pela primeira vez há um mês atrás e mais duas vezes depois e considero ela um clássico instantêno. Verdadeiramenre instantâneo, pois é a torta mais rápida do mundo: uns dez minutos para preparar, dez minutos na frigideira e pimba! Jantar. Como a massa não leva ovo, leite nem manteiga, se rechada apenas de verduras e legumes ainda por cima é vegana. Isso tem sido meio importante pra mim, pois tenho tentado manter a cozinha plant-based durante a semana. (Fiz isso por pura curiosidade, e no fim das contas, tem sido muito bom para mim.) Até hoje fiz com recheio de verduras com queijo, mas quero fazer umas versões só de verduras a partir de agora. Allex já imaginou a torta recheada com queijo, presunto e tomate, como um bauru. Enfim, o recheio é livre, só não coloque nada muito úmido, pois a massa ainda crua pode rasgar ao ser transferida para a frigideira. Divirta-se. Aproveite para clicar no link da receita para ver Benedetta preparando a focaccia, mesmo que você não fale italiano.


FOCACCIA RIPIENA IN PADELLA
Rendimento: 4 porçoes fartas para acompanhar uma saladinha ou 6 como parte de uma refeição mais completa

Ingredientes:
  • 400g farinha de trigo
  • 250ml água
  • 3 colh(sopa) azeite de oliva
  • 1 colh (chá) sal
  • 1 colh. (chá) bicarbonato de sódio
(recheio)
  • 350g verdura da sua escolha (escarola, espinafre, almeirão...), refogada do modo que preferir
  • 150g queijo de sua escolha (mozzarella, provolone, queijo prato...)

Preparo:
  1. Misture todos os ingredientes da massa numa tigela grande, usando os dedos, e então transfira para a bancada e sove até que fique lisa. Cubra com um pano para não ressecar, e prepare o recheio de sua escolha.
  2. Coloque a frigideira em fogo médio. Benedetta usa uma frigideira antiaderente de 30cm. A minha tem 25cm e é de inox. Costumo untar a frigideira toda por dentro com um fio de azeite e a torta nunca grudou. O fato de minha frigideira ser menor quer dizer que a torta fica com bordas mais grossas, mas ninguém nunca reclamou.
  3. Divida a massa em duas partes iguais e abra com um rolo em uma bancada enfarinhada até ficar um pouco maior que a frigideira. Esopalhe o queijo e então a verdura e depois mais queijo sobre uma das massas e cubra com a outra. Dobre as bordas das massas uma sobre a outra, apertando para o selar bem.
  4. Quando a frigideira estiver bem quente, transfira a torta para a frigideira com cuidado. Tampe e deixe cozinhar por cinco minutos, até sentir cheiro de farinha tostando. Tire a frigideira do fogo e, sem destampar, num movimento rápido, vire a frigideira de cabeça para baixo para que a torta fique apoiada na tampa. Deslize a torta agora invertida de volta para a frigideira,tampe novamente e cozinhe por mias cinco minutos.
  5. Desenforme a torta em uma tábua e deixe descansar alguns minutos antes de cortar e servir.


quinta-feira, 14 de maio de 2020

Tempo liberto

Num dia de parque vazio e temperatura amena, levei as crianças para o primeiro piquenique do ano, num gramado onde estávamos só nós três. Percebi que nunca fizera um piquenique de primavera, pois eles estariam na escola nesse horário. O verão com eles é aquilo que mais representa a relação com o tempo que me nutre e que quero para sempre em minha vida. O piquenique foi breve, pois voltamos para casa assim que outras pessoas começaram a chegar, para manter as recomendações do governo de distanciamento social. Mas fazer este piquenique ontem foi importante, por breve que tenha sido.


Meu tempo mudou.

Minha quarentena começou finalmente, brinco. Rio porque só resta rir. Perguntam-me o tempo todo se estou bem, e eu me pergunto o que em mim parece mal.

Estou deitada num colchão de ar flutando nas águas calmas de uma piscina, em silêncio, olhando o movimento das nuvens. Espiritual e figurativamente, claro. Adoraria que essa fosse a descrição física de meu estado atual, mas não tenho tanta sorte. É essa suspensão, essa quietude, essa introspecção observadora que parece temporariamente instalada, como se meu universo aguardasse meu pulo na água.

De pé quebrado, não pulo a lugar nenhum.

O único mergulho possível é em mim mesma.

Meu tempo mudou e ele se espalha e transforma, como as nuvens, num movimento lento e constante, indefinido, à mercê das vontades de meu olhar para que eu lhes confira forma e significado. Num momento me assusto com a ausência dos pilares da minha rotina, e de repente percebo que sem pilares não há teto que se sustente, e sem teto, enxergo o céu. Há um estranho princípio de alívio e liberdade que relutei em sentir. Como o bicho de cativeiro que tem sua gaiola aberta de repente, olho para fora com desconfiança.

O tempo mudou porque ele muda. Enfim.

Marido me traz o café preto, e eu ainda na cama, sento e a memória vem. Você lembra quando a gente juntou os trapos, que você tinha que pegar o fretado e eu já era freelancer, não tinha o cão, não tinha criança, e eu ainda não corria, e eu ficava enrolando na cama porque não tinha nenhum compromisso, e você me trazia o café naquela xicarazinha pequena de espresso, para que eu acordasse cedo junto com você? Lembro. Pois é, me sinto assim de novo.

Quando vou ajudar com as lições das crianças, o cérebro puxa novas memórias. De quando Thomas nasceu. De como eu o colocava no sling, juntinho a mim, e saía para tomar café com amigos, e ia a jantares, e fazíamos viagens bate-e-volta de improviso. Lembrei de como me orgulhava de não considerar meu filho um empecilho para nada. De como eu amava levá-lo para cima e para baixo comigo, participando-o integralmente na minha vida. E me dei conta de que não fora o mesmo com Laura. Por que não? Ah. Porque Thomas estava na escola. Pela primeira vez eu tinha horários, de levar e de buscar, sempre em desacordo com o ritmo natural da família. Eu trabalhava enquanto Laura cochilava. Mas precisava interromper meu trabalho e seu cochilo para buscar Thomas na escola. Na volta, os dois dormiam no carro, e eu precisava novamente acordá-los para então tentar dar almoço para duas crianças cansadas e irritadas. Por conta dos horários da escola, perdera a mobilidade que eu tivera no puerpério de Thomas. Eu morava fora da cidade, e se levasse Laura comigo até São Paulo para ver um amigo ou passear num parque, não voltaria a tempo para apanhar Thomas na saída. Matriculara Thomas na escola com promessas de liberdade, mas o resultado fora oposto.

Essa bibliotecária que vive em meu cérebro anda passeando pelos corredores e catando memórias nas estantes, empilhando momentos nos braços e me contando como conectar todos eles. Leia esse aqui também, aquele dia em que você precisou sair cedo do evento porque tinha que passear o cachorro. Também tem esse sábado que você queria muito fazer um bate-e-volta com as crianças na praia mas não fez porque tinha aquela festa da escola que você achava idiota mas foi mesmo assim com medo da retaliação da coordenadora.

Eu não tinha condições de saber disso àquela época, pois demoraria ainda anos para entender-me de fato. Mas hoje sei que fui contra mim mesma ao tão cedo limitar nossa vida aos horários fixos da escola, dos cursos e de todo o resto que veio como consequência. Pego-me relembrando com força minhas vidas esquecidas e me dando conta, surpresa, de que vesti o personagem da mulher metódica, organizada e rotineira por mais tempo do que minha essência podia suportar, e exalo um suspiro de imenso alívio ao perceber que as palavras que usei para me definir por todos esses anos eram repetidas em voz alta na tentativa de convencer a mim mesma.

Não acredito em arrependimentos, a vida é o que é, e nós somos hoje o resultado de nossas escolhas.
Quero escolher um tempo novo, um tempo fluido.

Conforme enxergo minha relação com meu tempo mudar, vejo a relação das crianças com o tempo com ainda mais clareza... ou seria o contrário? Enxergá-las hoje como eu talvez não visse antes provoca mudanças no modo como me vejo? Prover-lhes liberdade me faz entender os grilhões que criei para mim mesma ao longo dos anos? Talvez tudo.

Não são apenas as crianças que precisam de seu tempo e seu ritmo. Todos nós precisamos. Eu preciso.

Tempo livre. Não livre de afazeres e tarefas e trabalho, mas livre de imposições, livre de rigidez, livre de autoridade, livre de cobrança, livre para escolher.

Repasso essa liberdade às crianças, ignorando a forma como elas, primeiro, trouxeram-na de presente. Mamãe, a gente pode fazer a lição à tarde hoje ao invés de de manhã? Pode, ué.

Organizei numa lousa as atividades escolares da semana de cada um e é responsabilidade deles escolher o que fazer e por quanto tempo e entregar tudo até sexta-feira. Eles têm demonstrado autonomia e responsabilidade na mesma medida em que lhes damos liberdade. Com alguma orientação, tudo é entregue a tempo. No seu tempo.

Conforme nosso tempo relaxa, minha mente se sente mais à vontade para criar espontaneamente. A ansiedade de esperar por duas horas inteiras de paz, a palpitação da expectativa da interrupção, aos poucos esses padrões se dissipam. Aos poucos. Começo a enxergar oportunidades em curtos minutos. Minha mente desbloqueia quando paro de ver o tempo em blocos.

A liberdade do tempo tem soltado amarras. O último bastião de controle caiu por terra. Meu controle do tempo era controlado pelo controle que o tempo tinha sobre mim. Sem cão, sem escola, sem corrida, o tempo não tem dono nem é dono de ninguém.

É tudo novo, e ainda me encolho arfando, dentro da gaiola, perdida na possibilidade do tempo do dia. Serve respirar. Serve a entrega. Serve a curiosidade e a confiança. Não sei como vai ser meu dia amanhã. E está tudo bem. Afinal, quando decidimos mudar de país, disse a Allex: se ficarmos aqui, nesse lugar, nessa casa, dessa forma, eu sei como serão todos os dias da minha vida até o fim deles. Se sairmos, morro de medo porque não sei como será amanhã. Mas acho que a graça é essa.


....


Em tempo: não tenho meios de agradecer a todos pelo imenso carinho e preocupação, por dividirem comigo as histórias de seus bichinhos que também se foram, por todas as mensagens de amor e apoio e suporte. Não consegui responder a todos individualmente, pois mensagens vieram de todos os lados, em comentários, emails, instagram, mas saibam que li todos, mais de uma vez, e que suas palavras foram um abraço quente que eu muito precisei nos dias mais difíceis. Obrigada, obrigada, obrigada.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

O universo é um mensageiro insistente


Em Cartas a um Jovem Poeta, Rainer Maria Hilke faz um elogio à melancolia. Há que se deixar mergulhar na melancolia para se colher frutos criativos. E imersa numa melancolia intermitente, sei que há nela, de fato, uma estranha busca por poesia, um olhar atento a qualquer coisa de mágico, uma ânsia natural por detalhes que elevem o espírito, que não existe em outro estado emocional. Como se o corpo inteiro soubesse que a pisque se equilibra num fio delicado, e os dedos buscassem nas flores e pássaros apoios para atravessarem o abismo em segurança e superarem o perigo.

Flores de primavera num dia cinzento. Chuva leve que faz a grama nova brilhar. O ninho de um cisne à beira do lago.

Detalhes que não teriam significado para alguém imerso num êxtase veranil. Para o melancólico, são a mão que resgata a concha delicada na areia do mar, filtrando a água e areia que escorre devagar por entre os dedos. 

Na melancolaia encontram-se as delicadezas da vida.

A melancolia recolheu-se de repente a seu canto e abriu espaço para a raiva. Uma raiva sem começo ou fim, sem direção, que apenas era e surgia e explodia assim que alguém a tocasse, como se por sob minha pele crua e permeável, se escondessem pequenas e letais minas terrestres.

Foram dias difíceis. As crianças vinham pedir mas eu não tinha nada que pudesse dar. Recolhi-me dentro de mim, das histórias dos filmes e dos livros, buscando compreender a nova história se escrevendo aos meus pés.

Nos meus pés ela se escreveu então, na forma de um pequeno acidente doméstico, um escorregão à toa saindo da cama, um pé apoiado às pressas que se torceu e provocou o tombo, o tombo do universo, desmoronamento de um mundo. Duas semanas depois da morte do cão, que removeu da minha rotina os principais pilares que sustentavam meu dia, um dedo do pé quebrado me tira o chão. E quando acordo, muito tarde, e olho essa estranha neve de primavera que cai lá fora no mesmo dia em que os parques são reabertos, pergunto-me se compreendi a mensagem do universo completamente desta vez ou se ele ainda pretende uma rasteira por trâs, um golpe na têmpora, um tiro de misericórdia.

Sem o cão para passear e sem poder correr, abro meus olhos ainda coberta de lençóis e observo o teto. Ouço, como se fosse em outra casa, os sons das crianças preparando o próprio café da manhã e trocando detalhes de seus planos infantis em um tom casual que me faz questionar quando é que minhas crianças se tornaram adultas. Tento imaginar motivos convincentes para sair da cama. Os relógios contam o tempo aos pulos com ponteiros que giram ao contrário em velocidades intermitentes. A perspectiva do novo dia parece envolto em névoa, difuso, desfocado, sem forma, sem contornos, como tinta em papel molhado.

Respiro fundo e espero a tinta secar. O tempo fixa as manchas e cria linhas delicadas às bordas das pinceladas. Quando me afasto dos borrões e observo à distância, uma imagem se configura.

No caderno, pinto as cores do dedo quebrado. Quem eu sou quando não sou alguém com um cão? Quem eu sou quando não sou alguém que corre?

Assisto a um filme sobre o delicado equilibrio de ecossistema, uma fazenda tradicional, em que cada novo elemento traz um novo problema, e cada resolução de problema traz um novo elemento. Observo no silêncio de minha taça de vinho, a movimentação antes previsível e agora errática dos elementos do meu ecossistema. Minha casa. Meu corpo. Na ausência de um elemento ou dois, como o sistema recupera o equilíbrio? Quão quieta preciso estar para conseguir enxergar à distância o momento em que os elementos se reorganizam?

Só posso ficar quieta. E olhar. Esperar que os elementos encontrem novos modos de interagir até encontrar um novo padrão. Esperar que a tinta pare de correr sobre bolhas d'água e escolha o seu lugar.

Fico quieta. Espero. Aceito.

A raiva se dissipa. A melancolia é uma visita acenando à distânia enquanto se afasta. Sorrio um sorriso que basta. O futuro é comichão de curiosidade.

sábado, 2 de maio de 2020

Saudade é uma sala de porta aberta que venta pra fora




As cerejeiras floriram e o parque foi fechado dois dias depois de sua morte. A vida sem ele segue a passos mancos. Há buracos vazios por toda a casa.

Sua partida foi rápida, muito mais rápida do que jamais esperei. Mas toda morte acontece em um instante. Ele está ali. Ele não está.

Ele não está.

Meu corpo,acostumado à sua presença ao meu lado a todo momento, por toda minha vida adulta, se retorce ao buscar seu flanco sob minha palma, sofre um choque ao ser avisado de novo e de novo e de novo e de novo que ele não mais está, e dói. Apenas dói.

Dou-me conta do quanto meus dias foram criados em torno dele, de seus passeios, de suas carências. Ele estava para me fazer companhia na mesma intensa medida em que eu estava para fazer companhia a ele. Restam lacunas onde antes ficavam os pilares de minha rotina.

Já não me lembro mais o que é ser alguém que não o tem ao lado. Num momento em que faço esforços para reencontrar quem sou, esta passagem sente como a última fronteira.

Continuo sentada ao sofá esperando que ele suba desajeitada e pesadamente junto a mim, para que eu afague os pelos grossos de seu pescoço enquanto leio meu livro. O tecido áspero do sofá onde minha mão repousa agora abandonada me arranha por dentro. Falo sozinha. Sempre falei sozinha. E então olhava seus olhos redondos em mim e, na tentativa de parecer menos louca, arrematava aquele pensamento alto com um vocativo: né, Gnocchi?

Agora só uma louca que fala sozinha.

Ele era um espelho amoroso. Todo o meu afeto depositado nele reverberava de volta. Agora meu amor, sem objeto, vibra e se afasta, se esvai, dissolve no ar, eternamente sem retorno.

Ando pela casa sem saber o que fazer comigo mesma, perdida no meu dia sem relógios. Galinha sem cabeça.

Surpreendo-me procurando sua coleira de manhã, ao meio dia, no fim da tarde. Desligar a televisão e ir para cama, sem seu último passeio, é o golpe de misericórdia num dia alquebrado.

Treze anos.

Respira.

As palavras de minha amiga vibram dentro de mim: agradece.

E enquanto corro, e corro para gastar a angústia, para suar lágrimas que já me dóem a garganta, enquanto corro, agradeço. Se antes cada passo sobre a terra gelada de início de primavera me fazia refletir sobre a sorte que tenho, agora o som do peso de meus pés sobre o asfalto que cerca o parque fechado traz gratidões múltiplas, que, devagar, apaziguam o cérebro que ainda tenta negociar sua ausência em racionalizações impossíveis, e devagar abre espaço para uma doce saudade melancólica.

Obrigada pelos treze anos de amor doce e incondicional.
Obrigada pela companhia constante, por me seguir a todos os cômodos, cuidando de mim, cruzando seus olhos com os meus e vindo deitar aos meus pés. Minha humana está bem.
Obrigada por ter sido a desculpa que eu precisava para sair do confinamento da casa, tantos anos antes da possibilidade de uma quarentena, na quarentena que é a solidão do freelancer, do artista, do puerpério, da migração.
Obrigada por ter transformado um casal em uma família.
Obrigada por apoiar teu fuço rosa nos meus joelhos quando a tristeza transbordava e por ter lambido minhas lágrimas quando elas eram muitas.
Obrigada por me tornar responsável por você e assim me ensinar a ser adulta.
Obrigada por ter tornado mais leve meu recomeço, por ter me apresentado teus amigos no parque e os donos dos teus amigos, por ter criado uma rotina no caos da migração.
Obrigada por nos ter acompanhado em tantas aventuras.
Obrigada por ter me levado para passear pelos parques e por ter me levado para correr quando acreditei que nunca mais correria na vida.
Obrigada por ter sido feliz e amoroso até o teu último dia, por ter suportado com dignidade o que acontecia dentro de você e que você não deixou transparecer.
Obrigada por ter escolhido para ir embora esse momento em que não estou sozinha e que a dor de sua ausência pode ser amenizada com a presença dos teus outros humanos.
Obrigada por fechar esse teu ciclo no mesmo instante em que tantos outros se fecham, como se cosmicamente alinhado para que a transformação não seja apenas sua mas universal.
Obrigada por abrir caminho para o novo.
Obrigada pelo modo como tua partida nos trouxe imediata consciência do que precisa ser transformado.
Obrigada, muito obrigada, por aquele teu último sorriso amoroso, teus olhos brilhantes de confiança e doçura que eu vou carregar comigo para sempre.
Obrigada por ter sido o melhor ser vivo.
Obrigada por ter feito parte.
Por ter vindo.
Por ter sido meu e por permitir que eu fosse sua.

Meu cãozinho.

A vida segue estranha sem você, mas segue. Permeada do amor que você deixou. Os espaços vazios serão preenchidos de alegria.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Conversas de Páscoa



Na manhã de Páscoa Laura me pediu para admitir que era eu quem comprava os chocolates. Um riso nervoso e um encolher de ombros depois, desconversei. Ela insistiu. Olhei para Thomas, sentado no sofá, lendo seu livro que chegara pelo correio dois dias antes. Parecia desinteressado na conversa.Olhei Laura de novo, seus olhos flamejantes de certeza. Perguntei-lhe o por que de achar isso. Porque se a Fada do Dente não existe, então o Coelho não existe também, ela disse, cruzando os braços.

A Fada do Dente morreu esse ano. Ela já estava moribunda quando ocorreram uns lapsos da parte dos adultos, em que precisei explicar às crianças como a Fada é do sindicato e não trabalha de domingo, e que portanto só troca dente durante a semana. Ela morreu de morte matada no dia em que Thomas foi apanhar os fones de ouvido na gaveta do pai e achou os potinhos com os dentes que haviam sido magicamente trocados por moedas. Isso aconteceu enquanto eu não estava em casa, e como papai não é versado em realidade criativa como a mamãe, não soube dar uma explicação lá muito convincente de como é que os dentes levados pela Fada tinham ido parar na gaveta do papai. Thomas deixou o assunto quieto com incomodada desconfiança, mas Laura juntou lé com cré. Era ela quem vinha perguntar qual era o tamanho da Fada, já que ela passava a noite carregando dente e moeda por aí. E se ela era grande o bastante pra carregar muitas moedas de uma vez, como entrava em casa sem a gente ouvir. Ou como ela entrava em casa se a gente mora em apartamento e portas e janelas estão sempre trancadas. Ou o que diabos a Fada fazia com esse bando de dente de criança.

Fala a verdade, mamãe. É você que bota o dinheiro lá.
É, filha, sou eu.

Ela ficou contentíssima em ter descoberto. Dava pra ver a aura de orgulho por ter sido mais esperta que os adultos, por pegar a gente no pulo, descobrir a mentira, resolver o mistério. Thomas só apareceu pra perguntar se ele ainda ia ganhar dinheiro pelo dente que tinha caído. Claro, filho.

Aí veio a pergunta: Mas por que os pais mentem para os filhos? Porque inventam isso de Fada?

Porque tem criança que tem medo disso de perder dente, filha, e a história da Fada e a perspectiva de ganhar uma moeda pelo dente caído torna a experiência mais suave. Só por isso.

Mas mãe, eu nunca tive medo do meu dente cair. Por que você mentiu pra mim então?

Porque você era muito pequena, e não ia entender se eu te dissesse que Fada não existe mas todos os seus amiguinhos da escola acreditam que tem Fada sim. Imagina como seria? Você com certeza falaria com seus amigos, e estragaria a brincadeira das famílias das outras crianças. Então tive que meio que botar você nessa também. Entende?

Sim. Tá tudo bem.

Que bom. 

Meses depois, ela concluía isso, que se a Fada é invenção, o Coelho também. Como você prova isso?, perguntei. Eu acho que você come a cenoura e o papai toma a cerveja, ela disse, e colocam as pistas e os ovos.

Temos nossa própria caça aos ovos aqui em casa, que começou quando imigramos, quando Thomas já começava a aprender a ler. É uma caça ao tesouro em que escondo pistas em forma de charadas dentro de ovos de plástico que eles têm que ir encontrando na ordem certa, um levando ao outro, começando pelo que deixo na porta do quarto deles para não ter erro, e o último levando ao local onde os chocolates foram escondidos. A cada ano as charadas ficam mais difíceis, e é minha parte favorita da Páscoa, criar as pistas.

A cerveja para o Coelho veio na verdade do Natal. Ainda no Brasil, influenciadas por toda a propaganda natalina norte-americana, as crianças acharam graça de deixar um prato de biscoitos e um copo de leite para o Papai-Noel, não esquecendo de uma cenoura para as pobres renas que fazem todo o trabalho pesado. Daí que um dia brinquei, tadinho do Papai Noel, trabalhando madrugada adentro nesse calorão do Verão brasileiro, e é recebido com um copo de leite em temperatura ambiente? Põ, deixa uma cerveja gelada pra ele, né?

As crianças acharam que aquilo que era pra ser piada fazia sim muito sentido e passaram a deixar uma cerveja para o Papai Noel. Os adultos que antes teriam de beber um copo de leite em temperatura ambiente não reclamaram de ter uma cerveja gelada para acomoanhar a cenoura crua e com casca.

Na Páscoa seguinte houve a discussão: Thomas queria deixar para o Coelho uma cenoura, e Laura insistia em deixar uma cerveja.

Mas é o Papai Noel quem toma cerveja!
Ué, o Coelho também pode querer uma!
É nada! Coelho é um bicho e bicho não toma cerveja!

Quando a coisa começou a esquentar, interferi: Gente, a gente tá falando de um coelho que bota ovo e sai distribuindo chocolate mundo afora durante a noite. Vamos combinar que ele pode beber Piña Colada que vai continuar não fazendo sentido igual, né?

E Thomas concordou em deixar a cerveja para o Coelho.

Daí que agora Thomas insistia que o Coelho tinha sim tomado a cerveja e mordido a cenoura. Afinal, a cenoura estava pela metade e havia várias marcas de roído na casca.
Laura insistia que não, que era tudo obra do Papai e da Mamãe.

Como você prova isso?, perguntei.

Hmmm... Ela pensou, segurando o queixo com os dedos e fazendo uma careta cartunesca.

Que EVIDÊNCIAS você tem?, repeti, me divertindo. Thomas diz que foi o Coelho que comeu a cenoura, porque a cenoura tem marcas e está pela metade. Como você prova o contrário?

Ela deu um pulo, e disse: Encontrando o resto da cenoura!

E com isso foi ao lixo da cozinha, onde, extasiada, encontrou as cascas da cenoura retiradas com o descascador de legumes para simular os dentinhos do coelho. A-HÁ!

Ah, não, Laura. Mas tá faltando metade da cenoura! Eu acho que foi o Coelho mesmo!, eu provoquei.

Não foi, mamãe! Foi você!

E eu ia ficar mastigando cenoura crua de madrugada só pra te enganar? Tenho mais o que fazer, né?

E ela correu desta vez à geladeira, procurando, procurando, abrindo a gaveta de legumes e retirando dela o saco de cenouras. Olhou, olhou, comparou, e retirou do saco uma ponta de cenoura que, demonstrou, encaixava-se perfeitamente à metade deixada no prato do Coelho.

A-HÁ! Te peguei, mamãe! Te peguei! Fala a a verdade! É você que compra o chocolate e faz tudo isso!

É, Laura, sou eu mesma.

EU SABIA!

Aquele orgulho de novo, aquela satisfação consigo mesma. Olho para Thomas e ele parece, novamente, desinteressado.

O que você acha disso, Thomas?

Ah, eu acho que tem Coelho sim.

Thomas... você vai continuar ganhando chocolate.

Ah, então não tem Coelho não.

Ri e seguimos com a vida. Passeio no parque antes do café, comilança de chocolate vendo desenho, ligar para os parentes. Enquanto as crianças brincavam, Allex preparou uma tradição de Páscoa da sua avó, que ele nunca fizera antes: Pumpernickel com ovos e maionese. Simples assim: fatias desse pão preto alemão denso e forte, fatias de ovos cozidos, uma colherzinha de maionese, salsinha picada para decorar. Como ele queria fazer esses acepipes alemães, resolvi que pela primeira vez na vida não faria um almoço de Páscoa. Não me apeteceu pensar em nada no meio daquela quarentena. Os canapés puxaram queijos e frios e pãozinho e guacamole e tortillas e uvas e tomatinhos e caipirinha. Uma Páscoa tranquila.



Durante o almoço que não era almoço, conversamos sobre a chegada da Primavera, sobre a simbologia do ovo e do coelho, sobre solstícios e equinócios, sobre a alegria de ter passado por mais um inverno. Conversas que eu tinha no Brasil com eles mas que só fizeram sentido aqui. Aqui eu não preciso explicar muita coisa. Eles experimentam e concluem sozinhos. A escola deles também fala dos ciclos da natureza e religiões são mencionadas a título de curiosidade e respeito com a variedade de credos no país.

Laura passa todo o almoço contente por ter me descoberto.

Sirvo a sobremesa, abro uma cerveja, troco a música que está tocando no aparelho de som. Eles pedem Frozen de novo. E Moana.

Quando levanto para me recolher ao quarto e ler um pouco, ouço uma discussão entre as crianças.

Mamãe! Mamãe!

Que é?

Mas se a Fada do Dente e o Coelho não existem... e o Papai Noel?

Putz, não sei, Laura. Qual é a sua teoria?

domingo, 12 de abril de 2020

Estranhezas e renascimentos



Vamos comigo pegar minhas cordas, disse Allex.

Ele comprara cordas de guitarra pela internet. Não na Amazon ou coisa assim, mas na mesma loja de rua em que adquirira seu amplificador uns meses antes. A mesma loja que agora mantém as portas fechadas, com grandes avisos na vitrine sobre Covid-19, sobre lavar mãos, sobre manter distância, sobre não entrar mais de três por vez e agora, sobre não poder deixar ninguém entrar. Um museu de todas as fases da pandemia. Loja que, como quase todo o pequeno comércio de Toronto, está fazendo o possível para sobreviver.

Depois de mandar o email para a loja com os dados do cartão, metemo-nos no carro e fomos em direção ao centro até a tal loja. Fazia tempo que não via o restante da civilização, mesmo que através da janela, tendo passado o último mês no trajeto casa-parque-casa-mercado-casa.

Pouca gente na rua. Uns transeuntes passeando os cachorros, outros tantos em filas espaçadas para seus cafés de bairro favoritos, na esperança de contribuir o bastante para que seus coconut-milk-chai-lattes continuem existindo no fim da distopia. Vitrines de luzes apagadas e cartazes escritos à mão às portas. Fitas policiais nos bancos.

Estacionamos em frente à loja e, sem sair do carro, Allex telefonou para o vendedor.

"Oi. Vim pegar minha compra."
"Oi, bom dia. Confirma seus dados pra mim. Obrigado. Confirma sua compra pra mim. Obrigado. O senhor está de carro ou a pé?"
"De carro."
"Ok, ótimo. Então por favor espere no nosso estacionamento atrás da loja. Nosso vendedor vai até você e vai confirmar sua identidade. Por favor deixe o porta-malas aberto e não saia do carro."
"Ahn... ok."

Allex dirigiu o carro até o estacionamento, desligou o motor e abriu o porta-malas sem sair.
Mantivemos os olhos na porta traseira da loja, em silêncio, uma sensação de nervoso no ar. Como se estivéssemos fazendo algo errado.

"Feche seu vidro, senhor!", gritou o vendedor, de luvas e máscara, muitos metros à distância. "Posso ver sua identidade?", ele continuou, enquanto Allex fechava o vidro apressadamente, num riso nervoso de quem agora sabe que fez algo errado. Tirou do bolso a carteira de motorista e a pressionou contra o vido com a ponta dos dedos, enquanto o vendedor se aproximava para verificar, em segurança.

"Ok", ele disse num tom severo, saindo de nossa vista rapidamente. Ouvimos um som seco batucado vindo do porta-malas e o som dos passos apressados do vendedor correndo de volta para a loja. Ele acabara de jogar o pacote de cordas para dentro do carro.

Olhamos um para o outro e rimos um riso azedo e preocupado, desacreditando aquela cena.

"Meus deus! Parece que a gente comprou drogas!", eu digo e ele concorda.

Dirigimos de volta de corações pesados, pensando em todas as estranhezas.

De volta ao apartamento, distraio a cabeça preparando pudim. Deve haver uma explicação psicológica para eu voltar minha atenção às receitas antigas, do caderno, do blog. Leio os textos de dez, doze anos atrás, quando sequer sabia que queria ter filhos, quando sequer sabia que mudaria para outro país e quando não desconfiava que aquela fala minha repetida, de aprender a cozinhar para não depender de ninguém durante o apocalipse zumbi, um dia poderia ser comprovada.

Mas o retorno ao passado através da cozinha tem me mantido mais ainda consciente do presente. Faço o "pudim do moreco", aquele da Dorie Greenspan, de baunilha com ganache no fundo, e à primeira colherada Laura e eu o achamos doce demais. Doce demais. Como quase tudo o que preparo de tantos anos atrás e que era tão sensacional àquela época. O passado fica ainda mais distante quando me dou conta do quanto mudei, do quanto mudamos, passado e presente contínuo. Mudamos a cada respiração, e mudando estamos. Todo fim é um começo, e se esse é o começo do fim, então é melhor embarcar no ciclos, aceitar o movimento e lembrar que toda a mudança é estranha, todo estranho é desconhecido, e é o desconhecido que traz o medo.

Chacoalha o medo.

Olha pra ele.

Respira.

Nunca pensei que meus filhos fossem passar por esses tempos estranhos. Nunca pensei que eu... não, talvez eu sim.Talvez sempre tenha havido em mim esse sentimento apocalíptico de quem leu ficção científica demais, de quem já era ecologista (quando se usava o termo ecologista) aos doze anos, de quem teve a personalidade não conformista agravada por uma criação católica que espera punição por seus pecados.

Talvez eu esperasse passar por isso. Mas não meus filhos.

Distraio-me preparando pudim doce demais. Distraio a mente na minha rotina, no mato, no cuidar do que é vivo e me é querido, distraio-me na arte. A vida é leve aqui dentro. Então a ida ao mercado, aquela fila longínqua, aqueles olhares sombrios por trás das máscaras e dos lenços, aquela vibração de medo da mulher que espera você sair da frente das latas de tomate para que ela possa se aproximar e escolher seu molho, a rádio do mercado ligada no canal de notícias, espalhando números e dados e histórias de hospitais e valas, tudo isso junto e misturado cria vida num arrepio que começa na base da nuca, e o silêncio pesado no seu peito se concentra e toma forma dum ruído elétrico à distância, um zumbido grave que chega cada vez mais perto e sobe até a cabeça, e perfura suas têmporas como uma furadeira.

Volto para casa com comida e dor de cabeça.

Distraio-me com bolo. Com bolo e com escrita, e com lições da escola e com música na sala para dançar. Distraio-me com chá quente e com vinho,com beijo e com abraço, com passeio do cachorro no mato onde tento ouvir apenas passarinhos.

E quando vou dormir, quando deito a cabeça no travesseiro e suspiro profundamente, sentindo o corpo relaxar, as distrações se acabam, e não resta mais nada a não ser deixar a cabeça lembrar de todas as estranhezas do dia, todos os rostos mascarados, todas as notícias catastróficas e preocupações. A lembrança atinge o peito como quem lembra, depois de um dia bom, que o menino de quem você gosta está namorando uma amiga sua. Meu coração se parte toda noite outra vez.

Nunca pensei que meus filhos passariam por isso.

Mas crianças são resilientes, diz meu coração partido. Eles não são como a gente, não juntaram peças o bastante no quebra-cabeça do seu mundo para acreditar que as peças estranhas não têm lugar. Seu mundo é feito de estranhezas, tudo é novo e diferente o tempo todo, e há menos resistência em seu olhar e mais acolhimento em seus corações.

Minhas frustrações não são as deles. Eles estão bem. Correm e brincam e criam e se divertem, mesmo sabendo explicar no detalhe o que está acontecendo no mundo. Eles encontram seus meios de seguirem sendo, assim como a natureza que nos visita em nossos passeios ao parque.

Quando fomos cedo na manhã de Páscoa ao parque vazio, buscar nas trilhas ainda úmidas a companhia dos coelhos e dos esquilos, encontramos um imenso falcão, ali pousado no carro de manutenção à porta do parque, olhando-nos com curiosidade. À busca de coelhos, encontramos o bicho que os come. Esse sinal da natureza, essa lembrança da deusa-mãe que tudo que é vivo morre, que a vida é impermanência, que estranho é esperar constância.

Voltamos para casa e rego minhas tulipas. Esses bulbos que só brotam com a força de vulcões num verde iridescente em direção ao céu se passarem pela morte congelante do solo duro de um inverno rigoroso.

Sinais da primavera. Sinais da natureza. Natureza segue sendo. Crianças seguem sendo.

Deixo-me levar por sua curiosidade inocente, sua resiliência aventurosa. Escondo o calendário. Evito contar os dias de quarentena. Evito referir-me ao meu tempo em casa como confinamento. Como cárcere. Como prisão. Quem conta os dias que passam risca as paredes da prisão, prende a respiração esperando a liberdade que não tem dia para chegar e se alimenta de ansiedade e angústia.

Não conto dias. Não espero futuro. Olho para as crianças e tento viver neles. No presente. O presente que muda a cada respiração. O presente permanente em sua inconstância.

O passado é doce demais. O futuro ainda não tem sabor. O presente é a medida.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Escola em casa e repeteco de thumbprint cookies



Quando a gente está à deriva, qualquer pedra é terra firme, qualquer galho é barco para te levar à segurança, ou à ilusória sensação de estar seguro.

Ilusão, aqui, é palavra-chave.

Sensação de segurança vem de quando a gente se convence de estar no controle.

Quando jovenzinha, primeiros anos da faculdade, brincava com meus amigos que tinham dois anjos (e eu nem acredito em anjo) que gostavam de espiar minha vida lá das nuvens, e rolavam de rir, apontando para baixo, toda vez que eu dissesse a frase "eu tenho certeza". Bastava as palavras tomarem vida para o rumo da mesma mudar e aquela certeza esfarelar feito biscoito velho.

E na certeza da minha rotina e dos meus rituais, acreditando tirar de letra essa tal de quarentena, vem isso de escola em casa, vem essa atividade que não se encaixa, esse trabalho que eu não queria, essa função extra além de todas as outras que eu já tenho.

Vejo muita gente internet afora reclamando do tédio da quarentena, e eu olho pro marido e o marido olha pra mim e a gente se pergunta se ainda vai chegar o dia em que dá tempo de sentir tédio.
Tem tanta coisa para fazer, primeiro todas as responsabilidades (trabalho, casa, cozinha, filho, cachorro), depois os hobbies (correr,ler, escrever, pintar, desenhar, tocar música, ouvir música, podcast, ver filme, série, ler livro e notícia, e cozinha, claro) e o estar junto com filho e cachorro e marido, brincando, dançando, batendo papo, contando história, falando no Skype com a família e os amigos longe. E tomar banho. Sabe, tomar banho? Se a gente for sincero, sincerão, vou dizer que tem dia que não dá tempo. Tem dia que tem mais obrigação que hobby, e a gente usa o que sobrou pra ficar junto. (Se eu não tomar banho imediatamente depois de correr, pode ter CERTEZA de que vou deitar na cama e me dar conta de que esqueci completamente de entrar no chuveiro.)

Toda a noite, quando a gente vai dormir, se vê fazendo lista de tudo o que quer fazer no dia seguinte e que não deu tempo de fazer no dia anterior.

Tem dia que eu só sento para almoçar.
Tem dia que o marido come de pé porque não aguenta mais trabalhar sentado.

Mas vai tudo bem, porque se a gente for, de novo, ser sincero, sincerão, a vida sempre foi assim.

Daí que aqueles dois anjos que ficavam me ouvindo falar e esperando dar risada da minha cara lá das nuvens são certamente leitores do blog. Basta escrever "esse é meu jeito defintivo de fazer (insira aqui o que quiser)" que lá vem bordoada do universo.

E a bordoada da vez foi a coisa do home schooling.

Para não dizer que o universo me odeia (porque já estabelecemos no post anterior que eu tenho plena consciência de que o universo é danado de bom comigo), até rolou uma sincronicidade mágica que me permitiu ter um laptop para poder colocar a criançada nas aulas online. Sincronicidade que veio aliada à promessa de escrever mais no blog. Então eis aqui: escrevendo mais no blog.

O problema todo do home schooling não é de fato ter de cuidar dos estudos das crianças. Isso, sejamos francos, já faço faz tempo. Sou eu quem senta lá pra ler e tomar lição de casa, eu que fui voluntária na escola durante um ano inteiro, aprendendo como funciona a alfabetização no Canadá e os estilo de ensino dos professores. Eu que li livros de pedagogia infantil. Eu que saio explicando as perguntas cabeludas, eu que induzo os dois por dialética socrática a concluir as próprias respostas e saio criando experimentos científicos para sanar as dúvidas deles.Fora a parte de tomar lição de casa, eu de fato GOSTO de fazer todo o resto. Vê-los aprendendo, APREENDENDO, juntando lé com cré e aplicando o que aprenderam é fenomenal.

O problema problemático que problematizei na minha cabeça está dividido em duas partes: a primeira delas é como enfiar na nossa vida mais essa tarefa. Porque aqui no Canadá quase não se tem lição de casa até os dez anos. No máximo ler um livro. Exceção foi a professora louca alucinada que Thomas teve ano passado e que dava lição de casa todos os dias. Mas mesmo minha sogra, que trabalha em escola, ficou negativamente impressionada com a quantidade de lição que ele tinha na segunda-série: era coisa de quinze minutos por dia, em comparação com a uma hora e meia de atividade que é normal em escolas particulares no Brasil. Logo não temos na rotina da casa uma hora inteira já designada ao estudo em formato tradicional. Eles lêem porque gostam, e aplicam e praticam o que aprenderam na escola porque acham útil ou interessante.

Enfiar outra tarefa num dia em que já não temos tempo de fazer tudo o que precisamos ou queremos é complicado. Esse dia que eu dirijo não é ônibus da CMTP, lata de sardinha, apertou cabe mais um: é fretado de empresa, lugar limitado, pra entrar um, outro tem que sair.

Imagina essa criança no apartamento o dia todo. Vai escalar a geladeira, se deixar.

 Se entra a lição da escola, sai o quê? Brincadeira? De jeito nenhum. Bicicleta no parque, que é o exercício diário dos dois? Nem a pau, que eu sei como meus filhos ficam quando acumulam energia. O mais óbvio seria tirar o horário de video-game. Mas isso seria um imenso tiro no pé, pois significa eliminar meu horário de trabalho. E aí, meus queridos, digam adeus a cartoons no Instagram e textos no blog até a pandemia acabar.

Além disso, se a gente for ser sincero, sincerão, a hora do video-game é essa palavra mágica tipo Abracadabra que faz todo o resto acontecer:
"Só tem TV quem guardar a roupa limpa!"
"Só vai ver desenho quem tiver arrumado a cama!"
"Só joga video-game quem recolher os brinquedos da sala!"

Não sou nem doida de abrir mão disso.

Minha cabeça dói resolvendo esse quebra-cabeça. Como alterar a rotina sem perdermos as coisas boas que criamos juntos e estão mantendo essa quarentena tranquila?

A segunda parte do problema é como cumprir com a expectativa dos professores.A escola espera que as crianças façam uma hora por dia de atividade, mais as aulas online e os tais aplicativos. Por enquanto não há muita cobrança, pois está tudo em fase de adaptação. Mas e depois?

Primeira expectativa frustrada foi o login do Google Classroom do Thomas não funcionar. De jeito nenhum. E ninguém consegue arrumar. E se tem uma coisa que me tira do sério é coisa que não funciona como deveria.

Segunda frustração foi o tal aplicativo de matemática que a professora da Laura pediu para usarmos. Não passa de um jogo de video-game em que a criança passa mais tempo escolhendo roupa de personagem e ouvindo contexto de batalhas sem pé nem cabeça do que de fato respondendo quantos vértices tem um triângulo. Ela passou uma hora na frente da tela, resolveu meia dúzia de questões e, quando fui ver, descobri que, com preguiça de ler o texto que era além de suas capacidades de primeira série, ela estava apenas clicando randomicamente o botão do mouse. Se é para fazer lição por uma hora, então façamos lição por uma hora. Se é para tornar o processo lúdico, coisa que apoio integralmente, então prefiro que ela use tintas e papéis e mateirais diversos do que uma tela e um mouse.

Talvez (com certeza) fosse a entrada na minha fase minguante, mas surtei na batatinha e precisei de um abraço, um vinho e uns berros histéricos para não sair escrevendo para a escola mandando todo mundo lamber sabão, que eu acho que nessas circunstâncias, botar criança para aprender tabuada é a última das prioridades.

Mas... também sei que a rotina da escola, para muitas famílias, é a pedra que parece terra firme. Cada um se agarra onde pode para se sentir seguro.

E essa foi a primeira vez em que realmente me desestabilizei nessa quarentena. Fui chutada para fora do barco e saí nadando sem pedra e galho e ilha e canoa e coisa nenhuma. Bagunçaram meu coreto. Estragaram minha quarentena, que estava indo tão dentro dos conformes, porque eu já tinha achado meus galhos lá boiando e construído uma jangada.

Um vinho, um abraço, uma noite bem dormida e uma sessão de meditação depois, e resolvi tomar as rédeas dessa pataquada.

Se ninguém na escola conseguiu resolver o login do Thomas (nem eu), então fica assim até alguém resolver. Está fora do meu controle. A classe deles tem um website bonitão feito pela professora, com todo o curriculum do mês. Consigo adaptar o conteúdo (que é bem simples, bem diferente do que ensinam em escola no Brasil) para um jeito que eu sei (acho) que ele vai fazer sem muita reclamação. Como sei que ele adora ler mas detesta escrever, comecei justo por isso. Pois sei que a prioridade do terceiro ano é interpretação de texto e redação. Mas ao invés daquelas redações sem graça de "o que eu gosto na primavera", pedi para ele escrever um número X de frases que me explicassem a história do livro que ele estava lendo (Dragon Masters - uma série de livros infantis que já tem pelo menos treze volumes). Então resumir o mesmo em um número X de palavras-chave e por fim fazer um desenho que comportasse essas palavras-chave e fosse uma boa capa que explicasse o livro para quem não leu. Rolou uma preguiça, depois de três semanas sem aulas, mas ele fez direitinho, enquanto Laura usava o aplicativo de leitura no meu laptop (Raz-Kids, esse é um bom app, em que a criança lê livros do seu nível e responde perguntas de interpretação de texto, sem firulas, sem perda de tempo - os dois adoram e já estão adaptados porque usam na escola, e a professora tem acesso ao login deles e sugere livros da lista como atividade da semana).

Amanhã eu preciso inventar alguma atividade de matemática, como quando pedi a Laura para montar uma vendinha para brincarmos com as moedas do cofrinho dela, pois ela estava com dificuldade de entender os valores delas. Usamos a brincadeira para treinar não só as moedas, mas também operações básicas e skip counting (contar de 5 em 5, 10 em 10, 25 em 25...) Porque eu jurei de pé junto a mim mesma que Laura não encosta mais naquele app de matemática.

Uma imagem estranha que explica melhor as coisas aqui em Toronto: tudo o que tem grades está com cadeados. Todos os playgrounds da cidade estão assim, fechados como cena de crime.

Hoje funcionou porque fomos ao parque de bicileta mais cedo, e enquanto eles faziam as tais lições, eu preparei o almoço. Amanhã, não sei. Talvez tenha de levá-los comigo para correr (e eles de bicicleta) para termos mais tempo de manhã para essas lições. Talvez eu tenha de sair para correr mais cedo de novo e transformar meu dia em ônibus na hora do rush. Chega mais cedo pra se apertar aí, sobe logo, segura firme, bota a mochila pra frente e vambora, que o ônibus tá mexendo. Me avisa quando tudo isso parar pra eu poder descer, moço. Obrigada.

Não sei.

Vejo um galho ao longe. Uma pedra aqui e outra ali. Lá vou eu fazer minha jangada outra vez.

(Você não adora quando eu misturo metáforas? Tive uma professora de português que jogaria o apagador na minha testa por isso.)

....

Tem receita? Era para ter de bolo de fubá, tirado lá do meu caderno desmontante e suicida, largando folhas e receitas por aí. Mas o bolo só deu certo porque tive de sair consertando o danado no meio do caminho. Ele ficou gostoso? Ficou. Mas eu precisaria testar ele de novo e ver se rola fazer desde o começo do jeito que eu consertei. Mas eu nçao vou fazer isso, porque, sinceramente, tem receita de bolo de fubá bem mais fácil que essa. Então não, hoje é só textão mesmo.

Mas posso deixar uma recomendação. Fiz recentemente esses Thumbprint Cookies desse meu post antigo, antigo, da época em que, ao invés de listar toda a sorte que eu tenho no meio de uma pandemia mundial, eu listava todas as bizarrices que me aconteciam no pandemônio que é ter dois filhos pequenininhos. Desta vez fiz com recheio de goiabada, exatamente como sugeria no post original. Acabou tudo em dois dias, pois o sucesso foi unânime aqui em casa. Nham! RECEITA AQUI.

Não rolou assim um master capricho na hora de botar a goiabada, confesso. 😜


domingo, 5 de abril de 2020

Segunda semana de quarentena, sorte e bolo de aniversário


Ando pelo parque com o cachorro no domingo de manhã, dando bom dia à distância para as pessoas que, meio tímidas, passam por mim com seus cães, enfiando-se no mato para dar passagem "socialmente distante" na trilha estreita. E penso.

Penso como tenho sorte.  E isso parece um repeteco do texto anterior, mas é essa frase - TENHO SORTE - que tem mais me ajudado. O tempo todo, todos os dias, enquanto ando ouvindo os sons da primavera que enfim chegou, a cada passo, acrescento um item à lista: tenho sorte porque...

Tenho sorte de estar aqui. De o governo ter dado a proporção correta à crise e de termos um certo senso de segurança conforme essa estranha distopia se desenrola.

Tenho sorte por ter imigrado há quase três anos e já ter aprendido a manter próximas de mim as pessoas que estão distantes. Skype e Whatsapp são velhos amigos.



Tenho sorte de morar num apartamento perto de um parque onde ainda posso passear com meu cachorro e onde ainda posso levar as crianças para andarem de bicicleta sem me aproximar de ninguém, dando alô aos policiais que agora povoam as ruas e os gramados, fazendo valer as regras da quarentena.  (Foi a primeira vez que vi um policial canadense gritando - deu medo; ele mandava duas pessoas levantarem da mesa de piquenique e manterem distância.)

Tenho sorte, veja bem, de morar. Mesmo que seja um apartamento, e não uma casa com quintal. Mesmo que seja alugado e não meu. Tenho sorte de poder pagar o aluguel e ter um teto confortável. Um apartamento de 70m2, pequeno o bastante para ser fácil de limpar.

Tenho sorte de nunca ter tido empregada e ficar tranquila em limpar minha própria bagunça. Ou de ter aprendido a fazer a própria unha e cortar o próprio cabelo. Sorte de depender pouco do serviço dos outros.

Tenho sorte por me sentir bonita sem maquiagem e sem esmalte. 

O apartamento, de novo, que tenho sorte. Sorte de ele ser grande o bastante para seus cinco moradores (quatro seres humanos e um ser canino) conviverem sem nenhum arranca-rabo. Tenho sorte por esses cinco moradores, eu inclusa, nos amarmos um bocado. Sorte de gostarmos de passar tempo juntos.

Tenho sorte por estarmos todos saudáveis. 

Tenho sorte por sermos cinco moradores introspectivos, cachorro incluso, que, ainda que precisem mexer os corpos para liberar energia, não surtam na batatinha por terem de passar um tempo do lado de dentro.

Tenho sorte por sermos cinco moradores, cachorro incluso, que não precisam de momentos grandiosos para se divertirem. Temos sorte de gostarmos de catar galhos no caminho e de parar para olhar os patos.  

Tenho sorte por sermos quatro moradores (desta vez o cachorro está de fora) que gostam de criar. Criar desenhos, pinturas, histórias, músicas, danças, jogos, esculturas, poemas, brincadeiras. Porque criar processa as caraminholas internas, criar desestressa, criar transforma o impossível em possível, um sentimento incômodo numa ideia tangível, e ajuda a comunicar tudo isso que borbulha disforme na gente e poderia virar intriga, briga e picuinha.

Tenho sorte de podermos criar também para nos entreter, assim não dependendo tanto da tela para isso. 

Tenho sorte por ter crianças independentes que se viram e sabem inventar os próprios projetos.

Tenho sorte porque meus filhos não faziam nenhum curso nem aula nem nada depois da escola, então não sentem falta de atividade extra nem acham estranho encontrar no próprio quarto algo novo para fazer. Tem sempre algo novo para fazer. 

Tenho sorte por ter crianças GRANDES, porque se eles tivessem um e três anos, ao invés de sete e nove, esse texto se desenrolaria de um jeito bem diferente. 

Tenho sorte de ter um marido com quem posso "delargar" a cria para poder me concentrar num projeto meu por um dia inteiro.

Tenho MUITA sorte por meu marido não ter perdido o emprego. 

Tenho sorte por ter trabalhado de casa a vida toda, e por ter aprendido assim a gerenciar meu tempo e a estar só.

Tenho sorte por ter aprendido a cozinhar qualquer coisa que tenha na geladeira, por ter lido tantos livros sobre economia doméstica em tempos de guerra, por ter aprendido a fazer pão e bolo e biscoito e iogurte e por saber inventar e improvisar na falta de literalmente qualquer coisa.

Tenho sorte por poder comprar comida. Sorte de ter poder aquisitivo suficiente para fazer a compra a cada duas semanas, evitando assim ir ao mercado o tempo todo (e o mercado é o ÚNICO lugar fechado a que vou, assim, de duas em duas semanas), e sorte por ter uma sobra no orçamento que me possibilitou fazer um estoque de comida para um mês no caso de interrupção de fornecimento. Um mês, sem exageros, um mês realista, porque eu tenho sorte, mas tem gente (MUITA GENTE) que não tem, e vai ter de comprar comida aos pouquinhos, indo no mercado o tempo todo, e se eu comprar mais do que preciso, quem não tem sorte tem azar, e ao invés de arroz e feijão, vai encontrar uma prateleira vazia.

Tenho sorte de ter aprendido a meditar, a respirar devagar, a não entrar em pânico.

Tenho sorte de ter um cachorro velho, que não vai aprender aos treze anos a mijar dentro de casa, e que me obriga, no sol, na chuva, no vento, na neve, a sair de casa quatro vezes por dia, nem que seja só para descer até a porta do prédio e voltar. Tenho sorte de saber aproveitar esses cento e cinquenta e dois segundos de ar livre e saber olhar para cima, procurando as gaivotas que cruzam o céu em bando, barulhentas, em direção ao lago.

Tenho sorte de ter passado por toda uma jornada de auto-conhecimento que me deixou suficientemente centrada, ainda que capengando às vezes, para entender e aceitar que sou o pilar emocional da casa, e que se eu ruir, a família toda desmorona em volta.

Tenho sorte de ter entendido que, sem me cuidar, não posso cuidar de ninguém. Que para passarmos por esses dias, semanas, meses estranhos mantendo a sanidade, é preciso ser leve dentro de suas circunstâncias. Pois se formos leves, a casa será leve, as crianças acompanham sua dança, o marido segue tranquilo, e a vida flui ainda que limitada.

Tenho sorte de ter aprendido a dar proporções corretas às coisas. A não gritar quando minha filha quebrou sem querer minha xícara favorita, ou quando ela, distraída, derrubou o pote inteiro de iogurte da mesa, fazendo voar aquela coisa branca por todo o chão da sala, parede, embaixo da mesa, sofá. Que adianta gritar, espernear, ficar brava, lutar contra, achar culpado? Derrubou, quebrou, sujou. Aconteceu. Como é que a gente limpa isso junto agora? 

Tenho sorte. Tenho sorte por tanta coisa. Tenho sorte por ter tido tanto privilégio na vida, e por esses privilégios terem me trazido até aqui. Tenho consciência da minha sorte. Lembro dela todos os dias. E é por isso que a quarentena tem sido... ok. Quando o prefeito disse que as pessoas só poderiam sair de casa para ir ao mercado e à farmácia uma vez por semana e para se exercitarem mantendo-se distantes uns dos outros, brinquei com Allex: o prefeito basicamente descreveu a minha vida antes da quarentena.

Sim, eu tenho rido muito de mim. Temos rido muito de nós mesmos aqui em casa. Tenho fingido que isso é para sempre e buscado o melhor de mim nessa situação. Tenho colocado Blondie para tocar enquanto estou no chuveiro, para dançar embaixo da água, chacoalhando a cabeleira molhada no melhor estilo Flash Dance. Tenho colocado a trilha sonora do Frozen II no repeat para as crianças, pois isso as deixa imensamente felizes, cantando alto e rodopiando em cima do sofá. Tenho baixado a guarda, largado um pouco, dito mais sim do que não, mas com limites.

Tenho recriado meus rituais. As pequenas coisas que, como hora de almoço e jantar, marcam as fases do dia, como sino de igreja, como fita amarrada em árvore na beira da trilha. Pequenas coisas que guiam você e quem mora com você pelo tempo.

Correr de manhã. As crianças brincam livres enquanto Allex se preparar para se enfurnar no computador e suas reuniões. Enquanto isso, corro. Corro enquanto me permitem. Todos os dias. Pelos caminhos mais ermos, bem cedo, que é para não esbarrar com alma viva. A luz lá fora ainda um lusco-fusco azulado e frio.

Volto e tomo meu banho. No banho, Blondie. Banda boa de dançar as cadeiras de quem pariu dois filhos, de olho fechado, cantando e sentindo o peso da água escorrer no cabelo.

Hora do chá. São nove da manhã. Beberico ele com calma, ouvindo a voz abafada do marido em sua primeira reunião do dia vinda do quarto de porta fechada. Checo meu celular, notícias do dia, pessoas que me deixam de bom humor. Tomo meu chá sentada. Preciso sempre lembrar de sentar, ou então passo o dia todo de pé, fazendo três coisas ao mesmo tempo. Senta pro chá, p*rra.

É meu ritual, o chá depois da corrida. Preciso dele para marcar o início do dia de verdade. E parando nesse momento foi que me veio essa ideia de tirar as crianças de casa enquanto a gente ainda pode. 

Chamo as crianças para sua dose diária de exercício. Esse é um ponto crítico, e quando o prefeito disse que os parques seriam fechados, foi por conta desse ponto que chorei. Chorei quietinha, e quando Allex me disse que eu tinha entendido errado, que eu ainda podia ir ao parque, ri de mim mesma, ali chorando pelas árvores e pelos patos que me fariam falta.

EU PRECISO DE MATO.

E meus filhos também. Não importa o quão estressada eu esteja com a bagunça das crianças - basta levá-las ao mato e tudo se resolve. Eu lido MUITO BEM com eles do lado de fora. Eles podem estar histéricos ou o que for. Do lado de fora tá tudo bem. Do lado de dentro eu surto junto.

Que sorte que eu tenho de poder tira-los de casa. Que sorte por termos mato perto.

Antes estava chamando para andar nas trilhas. Mas quando fecharam o Off-Leash Park (a área em que se solta cachorro da coleira), os donos começaram a levar os cães pelas trilhas, e, de repente, a trilha vazia encheu. Logo, comecei a levá-las para andar de bicicleta. Por terem de segurar as bicicletas, eles não encostam em mais nada, e, em alta velocidade na ciclovia, não passam perto de ninguém. (Para todos os efeitos, digo a eles que as paredes são lava e as pessoas são zumbis, o que funciona muito bem.) Na maioria das vezes pedalam 6km. Eu levo o cão e eles se comprometem a ir parando nas faixas de pedestre, sumindo na distância mas sempre esperando por mim.

Quando voltamos, cansados e contentes, é hora do almoço. Pronto, outro marco do dia, e não tive nem de pensar muito. Mãos muito bem lavadas, e eles ou vão brincar mais ou vêm me ajudar com o preparo.

Depois do almoço, cada um tem sua hora de tela, que pode ser desenho ou video-game. Eles se resolvem. Enquanto isso, me enfio no quarto ao lado do marido para pintar, desenhar, escrever ou o que quer que eu precise fazer. Definir o horário de começo e fim do uso de telas aliviou nosso relacionamento: eles sabem que terão a tela e não ficam perguntando o tempo todo, e eu sei que vou ter tempo pra mim, então consigo de fato ESTAR com eles sem me sentir ansiosa por aquele tempo sozinha que não vem.

Terminado o tempo de tela, antes mesmo que eles peçam por mais, vou até eles e sugiro um jogo de tabuleiro. Isso evita o "efeito rebote". Não sei se é com todo mundo, mas meus filhos ficam histéricos quando a gente desliga a tv. Não porque fiquem bravos ou algo assim. Parece que absorveram tanta informação de uma vez sem mexerem o corpo, que tudo fica acumulado querendo sair numa explosão.

Para evitar que eles comecem a correr pela casa num movimento caótico, comecei isso de sugerir o jogo de tabuleiro. Isso parece ajudá-los a focar de novo e os mantém calmos. Uma ou duas partidas depois de algum jogo (temos muitos), mando os dois para o banho e começo o jantar. Nessa hora entra outro ritual, começado há meses atrás, e que chamo de "A música acalma as feras". É hora de Enya, hora de Debussy, Eric Satie, Chopin, Madeleine Peyroux, hora de bossa nova, tango, chançon frainçaise... músicas que acalmem. Músicas que avisem os cérebros infantis que é hora de desacelerar. Quando não tomam banho juntos, acabam indo desenhar, ler, brincar tranquilos enquanto o outro está no chuveiro, ou mesmo me ajudam a picar legumes ou abrir o pacote de macarrão.


Terminado o jantar, que é sempre cedo, é é o momento de escovar os dentes e ler histórias. Estamos lendo As Crônicas de Nárnia, um capítulo por dia. Se ainda é cedo, Allex terminou de trabalhar e vem tocar guitarra ou violão, fazer alguma bagunça com os dois enquanto eu me recolho por uns minutinhos, vou responder uns emails, fuçar no Instagram, ler um capítulo de livro meu.

Crianças na cama, é hora de adulto.

Rinse and repeat.



Daí que quando a escola mandou emails avisando que segunda-feira agora começariam as aulas online, tive um pequeno siricotico. Minha família está funcionando lindamente, caramba! Por que diabos você me joga essa bola curva assim de repente? E sim, eu fiquei uns dois dias incomodada tentando cavocar meu cérebro em busca da expressão idiomática brasileira equivalente à essa metáfora de baseball que se usa na América do Norte: "throw me a curveball" (quando vem algo inesperado). Eu não lembrei de nenhuma. Se você lembrar, me fala, porque estou aqui arrancando os cabelos de nervoso.

Enfim.

Comida simples. Batata doce e aspargo assado, cevadinha cozida com salsão e cenoura e ervilhas refogadas com cebola.
Que Laura resolveu servir assim no prato dela. Árvores, terra, pedras.
Fiquei uns dias tentando criar o quebra-cabeça da nova rotina com criança tendo aula no computador  e eu tomando lição (eu odeio lição de casa e odeio cobrar lição de casa de criança), ao mesmo tempo mantendo o tempo de brincar, tempo de exercício lá fora e tempo de tela necessário para que EU possa trabalhar duas horas por dia.

Respirei no saquinho e entendi que esse podia ser o momento em que eu entraria em pânico. Então não deixei. Concluí que eu não fazia ideia de como seriam as aulas, e que não adiantava eu tentar fazer quebra-cabeça com peças que eu ainda não tinha.

E, ainda que continue ansiosa sem saber como vai ser a primeira aula amanhã, decidi parar de pensar nisso e me concentrar em coisa melhor: o aniversário do meu Matador de Dragões.

Ele fez nove anos (NOVE ANOS) na sexta-feira. Filho meu que é, claro que quis escolher todas as comidas do seu aniversário. Panquecas com bacon de manhã, hamburguer no almoço e pizza de gorgonzola no jantar. Não me pergunte para onde vai tanta comida naquele corpinho magrelo.

Ele obviamente não teve festa, mas pendurei as bandeirinhas e decorações que guardara do aniversário da Laura e Allex passara a noite anterior enchendo o imenso pacote de balões que eu comprara. Thomas passou o dia todo usando minha coroa de Rainha do Universo e Imperatriz de Tudo o que Importa. (Ele disse que era o Rei do aniversário, aí brinquei que a Rainha era eu e ele era só o Príncipe Regente.)  Ficou feliz por conversar ao telefone com seu melhor amigo, combinando play dates e sleep overs para quando tudo isso acabar.

Comemos bolo e fomos dar, nós cinco (cachorro incluso) um longo passeio no parque vazio. Quando voltamos, ele quis comer pizza assistindo ao seu filme de dinossauros favorito.

Foi um bom aniversário. Temos muita sorte.



Thomas pedira um bolo de três camadas de tamanhos diferentes, de baunilha, com recheio de baunilha e morango, cobertura de chocolate e gelatina de morango por cima. Foi preciso todo um esforço de comunicação para convencer o menino de que não, eu não ia fazer um bolo de CASAMENTO para ele, que três camadas de tamanhos diferentes não iam rolar, e que não dava para botar gelatina de morango em cima do bolo. Ele ficou contente com apenas morangos e duas camadas iguais. E estava uma delícia.

O bolo é mais do mesmo. O bolo de baunilha da Alice Medrich que se faz no processador (mas que quero testar fazer na mão ou na batedeira um dia), o Chocolate Fudge Frosting também dela, e o creme de confeiteiro do mesmo livro. Acho que todos esses componentes eu já postei aqui de uma forma ou de outra, mas para não deixar ninguém louco procurando, vou colocar tudo aqui de uma vez. Fiz a cobertura de chocolate de memória, no entanto, e errei o chocolate: era para usar chocolate 100% e usei 70%. Fiquei feliz em saber que, ainda que fique mais doce, a cobertura funciona da mesma forma. 

BOLO DE ANIVERSÁRIO DO MATADOR DE DRAGÕES
(receitas separadas tiradas do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, da Alice Medrich)

Ingredientes:
(bolo)
  • 1 xic farinha de trigo (125)
  • 3/4 xic + 2 colh (sopa) açúcar (175g)
  • 1 1/4 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 3 ovos grandes
  • 1/3 xic creme de leite fresco
  • 3 colh (sopa) manteiga (45g), derretida e ainda quente
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha

(creme de confeiteiro)
  • 1 colh. (sopa)farinha de trigo
  • 1 colh (sopa)amido de milho
  • 2 colh. (sopa)açúcar
  • 2 ovos
  • 2/3 xic leite
  • 1/2 colh (chá) baunilha 

(cobertura de chocolate)
  • 55g chocolate de 70 a 100%, picado
  • 2 1/2 colh (sopa) manteiga (40g)
  • 1/2 xic creme de leite
  • 1/2 xic açúcar
  • 1 pitada de sal
  • Morangos para decoração e recheio

Preparo:
(bolo)
  1. Posicione a grade do forno no terço inferior e aqueça o forno a 180oC. Unte as laterais de uma forma de 20cm com manteiga, polvilhe com farinha, e forre o fundo com papel-manteiga.
  2. No processador, coloque a farinha, açúcar, sal e fermento e pulse algumas vezes para misturar. 
  3. Junte o creme e a manteiga e pulse 8 a 10 vezes até que esteja tudo misturado. 
  4. Junte os ovos e a baunilha e pulse mais 5 a 6 vezes. Raspe as laterais com uma espátula e pulse mais 5 vezes, apenas até que fique homogêneo.
  5. Passe para a forma, alisando a superfície, e asse por 30 a 35 minutos, até que esteja dourado e um palito saia limpo quando espetado no bolo. Deixe esfriar numa grade por 10 minutos antes de desenformar. 
  6. Quando frio, embrulhe em filme plástico e leve à geladeira até o dia seguinte, quando será mais fácil cortá-lo ao meio com uma faca serrilhada.
(creme de confeiteiro)
  1. Numa tigela, misture com um batedor de arame a farinha, o amido e o açúcar. Junte os ovos e bata bem até que fique claro e homogêneo.
  2. Numa panela pequena, aqueça o leite até que comece a borbulhar nas laterais. 
  3. Misture o leite quente aos ovos aos poucos, para que os ovos não cozinhem. Volte a mistura à panela e cozinhe em fogo médio, mexendo sempre com uma colher de pau até que comece a engrossar. Quando começar a ferver baixinho, cozinhe por 1 minuto mexendo sempre. 
  4. Imediatamente retire da panela, passando por uma peneira em uma tigela. Se houver quaisquer carocinhos, não os aperte pela peneira. Misture a baunilha e deixe que o creme esfrie completamente antes de cobri-lo com filme plástico (encostando no creme) e levá-lo à geladeira até a hora de usar.
(cobertura)
  1. Numa tigela, coloque o chocolate picado e a manteiga em pedacinhos.
  2. Numa panela, aqueça o creme de leite, açúcar e sal, mexendo sempre, em fogo médio, até que levante fervura. Abaixe o fogo e cozinhe, mexendo, por 4 minutos. 
  3. Derrame o creme sobre o chocolate, misturando com um batedor de arame até que a mistura esteja homogênea e brilhante. Deixe descansar, sem mexer, em temperatura ambiente, por 2 a 3 horas, ou até que firme. Leve à geladeira até a hora de usar.
(montagem)
  1. Corte o bolo ao meio com uma faca serrilhada e separe as metades. 
  2. Na metade de baixo, espalhe todo o creme de confeiteiro. Corte tantos morangos ao meio quantos forem necessários para cobrir o creme, a parte cortada virada para baixo. Isso vai depender do tamanho dos morangos. 
  3. Cubra com a segunda metade do bolo e aperte ligeiramente. 
  4. Espalhe a cobertura de chocolate por cima. Se ela estiver fora da geladeira há um tempo, estará mole o bastante para escorrer devagar pelas laterais. Se você quiser que a cobertura fique firme apenas em cima do bolo, leve à geladeira por uma meia hora antes de espalhar a cobertura. 
  5. Decore com morangos inteiros. 

No meio disso, tenho revisitado meu caderno de receitas antigas, antigas, que anda desmontando, perdendo páginas, e resolvi começar a finalmente cozinhar alguma coisa dele para só deixar as receitas que valem a pena. Porque tenho receita ali de desde antes de juntar os trapos, coisa de vinte anos atrás, que recortei e colei no caderno para fazer depois e ficou lá, só ocupando espaço no meio do bolo de cenoura da minha mãe e da receita de panetone da minha tia-avó que nunca funcionou. Tem receita da época em que eu achava que minha vida comportava sobremesa com oito técnicas de confeitaria diferentes, ou sorbet de tomate. Tem a desgraça do linguado com molho de maracujá e risotto de alho poró da revista Gula que eu guardei porque queria fazer um Dinner Party e cozinhar isso para os convidados, mas nunca fiz porque morria de medo de fazer risotto. E a receita ficou lá, e a ironia da coisa é que hoje não preciso mais de receita para fazer nem o risotto nem o linguado.

Quero preparar tudo o que couber na minha realidade. Estou estabelecendo uma guilhotina culinária: se não for DELICIOSO, tá cortado. Fora do meu caderno.

Essa semana resolvi fazer esses "pães de leite condensado". Que, no fim, são apenas pincelados com o leite condensado e não levam nenhum na massa. Ficaram bonitos e ficaram gostosos.



Mas também ficaram absurdamente maçudos e essa pincelada de leite condensado no pão pronto NUNCA seca, escorre no prato ainda por dias e mela a mão de um jeito irritante quando você vai comer. GUILHOTINA. Foi para a guilhotina um bolo de maçã que também não rolou, cujo processo coloquei lá no Instagram. (@anaelisagg)

No meio disso, estou com planos de transformar as receitas vencedoras do caderno, as que passaram pela guilhotina, em algo especial lá na minha loja da Etsy. (Aliás, tem muita arte à venda ali disponível para download e impressão, que não precisa de frete nem nada, inclusive um poster da Nonna que eu sei que muita gente já me pediu. https://www.etsy.com/shop/AnaElisaGG)
Enfim.

Se as coisas por aí andam mais difíceis, primeiro de tudo, lembre-se de respirar. Devagar. Prestando atenção no ar que entra e no ar que sai.

Segundo, ao invés de tentar estabelecer uma rotina, tenta estabelecer pequenos rituais. Rituais seus. Só para marcarem melhor o modo como você passa no tempo. Um guia. Aí vai encaixando as necessidades da família em volta dos seus rituais. Assim você tem certeza de que, nessa maré incerta, não vai nem ficar à deriva, nem desaparecer.

Lembra das sortes que você tem. Eu sei que a gente anda falando muito em privilégios, e é lógico que muito da sua situação se baseia em quanto privilégio você tem. E eu sei que esse papo faz a gente se sentir culpado porque tem gente sofrendo mais que a gente. Se você pode ajudar, ajude. SE a única coisa que pode fazer, dentro da realidade e das diretrizes do país e da cidade em que mora, é ficar em casa, então FICA EM CASA. Mas se cuide. Cuide dos seus. Encontre pequenas alegrias. Encontre um propósito que faça você passar por isso com mais leveza. Porque ficar sofrendo pelo que está acontecendo lá fora não vai fazer isso passar. No fim, a gente só consegue controlar o modo como passamos por isso, como nos sentimos e como reagimos a toda essa bizarrice.

Escolhe leveza. Como puder. Não é poliana, não é ignorar tudo de ruim que está acontecendo. É ter consciência da sua sorte. Das pequenas coisas. Se agarra nelas. As pequenas coisas não te deixam afundar.

Muito amor e luz a todos vocês.  

Cozinhe isso também!

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