segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Quando as coisas desandam e quando voltam a andar de novo e um biscoito de aveia para uma criança de três anos fazer


Tudo vai bem. Quando chove e faz frio, calçamos galochas e vestimos casacos impermeáveis e saímos a pular nas poças e passear o cachorro na rua molhada, e nos enfiar nos terrenos vazios para brincarmos de pega-pega, para atirarmos pinhas uns nos outros, para brincar de só poder caminhar pisando em raízes de árvores. Então o Matador de Dragões para ao lado de um formigueiro para fuçar com um galho no que os minúsculos bichinhos fazem lá dentro (apesar de eu dizer repetidamente que é maldade desmanchar o formigueiro). E Madame Bochechas se demora sob a última amoreira ainda com frutas na vizinhança. E eu observo o cão a cheirar o mato, sinto a chuva fina como agulhinhas na ponta do meu nariz, encharcando alguma mecha de cabelo que escapou ao capuz. E tudo vai absolutamente bem.

Até que de repente não vai mais.

E eu me pego irritada na hora do café porque Thomas está - de novo - brincando com a comida e pensando na vida, e berro com Laura que, ao invés de escovar os dentes, está - de novo - apertando todo o tubo de pasta pela pia, esfregando a meleca azul em brinquedos e nos cabelos. E eu sinto o sangue ferver na cabeça quando peço pela oitava vez para que vistam as meias e calcem os sapatos, e para que larguem a poça de lama e entrem no carro, e para que parem de se provocar durante todo o caminho até a escola, e para que desçam do carro sem fazer manha, e para que entrem nas salas sem jogar as mochilas no meio do corredor.

E quando volto pra casa, não sinto vontade de treinar, nem de meditar, nem de pintar, nem de passear o pobre cão que esperou toda essa pataquada, e, à tarde, quando as crianças estão de volta, irrito-me com Thomas brincando com a comida - de novo - e com Laura usando as mãos para comer o arroz - de novo - e eu não quero fazer biscoitos nem quero passear na chuva, nem quero brincar de pega-pega, e quando eles me pedem para ler uma história, me ressinto do fato de que queria sentar e ler um livro meu. Mas a verdade é que a cabeça dói e o que quero mesmo fazer é dormir.

Então eu paro.

O que diabos aconteceu?

Como se passa de um estado tão positivo para outro tão negativo de forma tão rápida sem ter a desculpa de sofrer de algum transtorno de personalidade?

Eu paro e penso. E respiro. E tiro um dia inteiro só para arrumar a casa. Tarefa mecânica e necessária, que permite que minha mente se acalme e organize no mesmo passo que o ambiente. Livre da irritação da bagunça e da sujeira externa, consigo olhar para bagunça e para a sujeira interna. E percebo que normalmente esse desandar não vem de repente. Você não acorda de uma boa noite de sono imediatamente imerso num mau humor imutável. Acontece como alguém que caminha numa linda floresta, absorto com o movimento das folhas, encantado com um passarinho inquieto que voa de galho em galho cantarolando. E você cantarola junto, e tudo vai bem. E o passarinho pousa num arbusto mais para o canto do caminho, e você percebe que depois daquele arbusto tem uma florzinha que você nunca viu. E você, distraído, vai lá ver aquela florzinha. E, ainda distraído, acaba se embrenhando cada vez mais na mata escura até o ponto em que não se lembra mais onde era o caminho ou mesmo por que caminhava por ele.

Desta vez, ao contrário de tantas outras vezes em que me senti perdida numa floresta escura por tanto tempo a ponto de precisar ser resgatada, eu me lembrei do caminho. Sabia onde ele estava e lembrava dos motivos de seguir por ele. E fui galgando novamente cada galho e pedra que me distraíra até estar com os pés plantados outra vez em solo fértil e ensolarado.

Dei-me conta de que o que me distraíra primariamente fora o fato de Gnocchi, meu cãozinho do coração, ter ficado doente. Foi toda uma situação esquisita, que teminou com ele sendo castrado e tendo todas as possíveis complicações. Foi um mês tenso. Mas desta vez me dei conta de que é sempre isso, gente que eu gosto doente (cachorro também é gente!) o estopim para o meu desandar emocional. E perceber isso foi ótimo.

Vi que ao sentir o descontrole da vida, tentei controlar - de novo - outras esferas. Voltei a estressar com horários. Voltei a estressar com o andar da minha carreira. Voltei a estressar com a minha rotina e a das crianças. Voltei mesmo a estressar com a comida - isso tem legumes o bastante? tem fibras o suficiente? será que tem glúten demais? será que eles estão comendo muita sobremesa?

Parei. Parei tudo.

Respira.

Número 1: vá lavar o cabelo, use aquela máscara que sua amiga te deu e que dá aquela sensação maravilhosa de ter uma pele de nenê no rosto, mesmo que só por quinze minutos, vá deitar cedo e ler um livro bom na cama. Amanhã você pensa na vida. O cão está bem agora e você de fato não tem nenhum problema grave. Agradeça por isso.

Número 2: volte a treinar. Em algum momento do dia, mesmo que de noite antes de dormir, cate aquele kettlebell e faça alguma coisa. Vá fazer turkish get up, vá gastar energia e fazer força, e seu corpo vai agradecer por isso. É bom se sentir forte. Olha só! Você conseguiu fazer TGU com 16kg. Nunca tinha feito isso. Não é bom se sentir forte? É sim.

Número 3: vá meditar. Cinco minutinhos. Cinco minutinhos para relaxar a mente e fazer as coisas mais devagar. Largue a mão da preguiça. Cinco minutos não matam ninguém. Pronto. Melhor, né?

Número 4: pergunte o que as crianças querem comer de jantar e faça. Pão com queijo? Faça. Quem se importa? Eles vão ficar felizes, vão se sentir ouvidos, vão comer sem problemas. Amanhã você faz sua polenta com ratattouille. Hoje é pão com queijo. Spaghetti? Mas ontem já teve macarrão? E daí? O molho é feito em casa, vocês são de família italiana e na Itália se come massa todo dia e ninguém morre por isso. Ai, o glúten! Ninguém em casa é celíaco, enfia o pé no glúten e seja feliz.

Número 5: trabalhe com afinco e dê o braço a torcer. Você odeia Facebook, mas sua irmã e seu marido há tempos te enchem para criar uma conta no Instagram. "É ótimo para divulgar seu trabalho, Ana", diz sua irmã. "Você não precisa passar o dia fuçando nele como o Facebook", diz seu marido. "As pessoas raramente vão a sites para ver se tem material novo", dizem os dois, quando rebato que já tenho um portfólio online (www.anaelisagg.com e http://desenhoque.blogspot.com - sim, voltou a se chamar Desenhoquê). Respiro fundo e crio a danada da conta. Ok, de fato, é mais tranquilo que Facebook e não me deixa presa ao celular ou ao computador. A perspectiva de mais gente conhecer e comprar meu trabalho por conta disso me anima um bocado. Mergulho no trabalho. Entro num ritmo de produção que me deixa incrivelmente contente. Vendo dois quadros na abertura de uma exposição num clube. :)

Chove lá fora. A cântaros. Não dá pra passear lá fora nem brincar de pega-pega. Thomas pede para ler livros com ele. Um após o outro. Então paramos para fazer biscoitos de aveia da Tessa Kiros, tão fáceis que Laura faz sozinha. Fico orgulhosa em vê-la quebrar ovos sem romper a gema. Ela constantemente enfia o dedo dentro da massa para experimentar duas, três vezes a cada adição de ingrediente. Duas semanas atrás eu teria ficado irritada. Desta vez me contenho. Dou uma bronca quando a sujeira passa dos limites. Ela me ajuda a amassar as bolinhas de biscoito na assadeira enquanto Thomas está jogando um jogo da Lego no video-game. Direito dele, por ter se comportado bem e ter ganhado uma estrelinha no dia anterior. Quando os biscoitos ficam prontos, Laura come um leva vários para o irmão. Como sempre acontece, aquele um biscoito será o único que Laura provará. Ela adora fazer biscoitos mas prefere lanchar cenouras e morangos. Thomas, biscoiteiro, terá todo o fruto de nosso trabalho para ele.

Desliga-se o jogo e eles começam a correr loucamente pela casa. Não consigo entender as regras da brincadeira inventada. Dão cambalhotas na minha cama, escondem-se embaixo da mesa, jogam bola no corredor, e eu me sento no sofá junto do Gnocchi, que finalmente está livre do Cone da Vergonha. Abro meu livro à meia luz prateada do dia chuvoso e leio boas trinta páginas do Modernidade Líquida, de Zigmut Bauman. Excelente livro. Percebo que não lera nada direito durante aquele mês estranho. Faço um cafuné no cão. "Você precisa de um banho", digo, sentindo seu pelo empoeirado e grosso sob os dedos.

E tudo vai bem.

E no que tudo vai bem, me dou conta de que o estar relaxada na cozinha contribui e muito para o meu relaxamento no restante do dia. Produzir um biscoito simples (e gostoso) de aveia ao invés de grandes empreitadas. Servir um simples arroz integral com igualmente simples brócolis refogado em alho e coberto de molho de tomate, também do livro da Tessa e chamar de refeição. E não ficar me desgastando demais com grandes planejamentos e grandes expectativas gastronômicas e grandes pressões nutricionais. Simplesmente produzir uma refeição gostosa. Ganhei um abraço imenso do meu pimpolho mais velho quando apanhei um punhado de morangos já querendo passar, misturei duas colherinhas de açúcar e processei com meio tablete de manteiga sem sal: manteiga de morango para passar no pão no café da manhã. Foi um daqueles sucessos estrondosos que eu sei que gerarão lembranças de infância calorosas. E no fim, é isso o que eu quero.

A foto da manteiga de morangos está no meu Instagram, ou "a nova geladeira de mãe", como eu costumo chamar: @anaelisagg.

Com menos livros, pude parar de assinar o Eat Your Books, apesar de adorar o serviço, e voltei a fazer o que eu amava fazer quando comecei minha coleção de culinária: sentar-me no sofá ao lado da janela e folhear meus livros acompanhada de uma xícara de chá, decidir o que fazer durante a semana de forma relaxada.

Por isso estou refazendo aqui a lista dos livros que estou tirando da estante. Os que são bons, já usei muito, mas não preciso mais. Podem ser infinitamente mais úteis na estante e na cozinha de outra pessoa. Acrescentei alguns outros itens à lista anterior.

Se alguém se interessar, mande um email para lacucinetta@gmail.com com seu endereço completo. :)


LIVROS 

R$50,00 + frete
-Sunday Suppers at Lucques - Suzanne Goin
-One Good Dish - David Tanis
-Green Kitchen Travels - David Frenkiel & Luise Vindahl
-The Self-Sufficient Life And How to Live It - John Seymour
-House Industries (livro completamente ilustradio sobre design de tipografia)
-Aquarela (a cor da memória) - Cla Editora
-Cozinhando para Amigos - Heloísa Bacelar
-Cozinhando para Amigos 2 - Entre Panelas e Tigelas (1a edição) - Heloísa Bacelar
-The Greens Cookbook - Deborah Madison
-Vegetarian Everyday - David Frenkiel & Luise Vindahl
-A Change of Appetite - Diana Henry

R$35,00 + frete
-Baked Explorations  - Matt Lewis e Renato Poliafito 
-In Tuscany - Frances Mayes
-O Poder de Cura deVitaminas, Minerais e Outros Suplementos - Editora Seleções 
The Homemade Flour Cookbook -Milk - The Surprising Story of Milk Through the Ages - Anne Mendelson
My Bread - Jim Lahey
Complete Indian Cooking - Editora Hamlyn
Bill's Everyday Asian - Bill Granger

R$25,00 + frete
-The Multi-Cultural Cuisine of Trinidad e Tobago
-Medium Raw - Anthony Bourdain
-Augustin Skecthbook - reprodução do sketchbook de Virginie Augustin
-Mamãe e Eu Na Cozinha - Publifolhinha
-Pâtes a tartiner - Rachel Khoo (em francês)
-Tart & Sweet - Jessie Knaddler
-O Homem que Comeu de Tudo - Jeffrey Steingarten

OUTROS LIVROS DE TEMAS VARIADOS - R$15,00 + frete
-All Natural - A Skeptic's Quest to Discover if the Natural Approach do Diet, Childbirth, Healing and the Environment Rea;;y Keep Us Healthy and Happier - Nathanael Johnson
-Cleaving - Julie Powell
-A place of my own - Michael Pollan (sobre arquitetura)
-Vampire Stories - Penguin Publishers (uma coletânea bem legal)
-The Vampire Enciclopedia - Mathew Bunson
-Vampires Are - Kaplan
-Not that kind of girl - Lena Dunhan
-Celtic Design - A Beginner's Manual - Aidan Meehan
-Structural Package Designs  (livro com facas variadas para embalagens - acompanha cd's com pdf's)

EQUIPAMENTO DE COZINHA
-Moedor de grãos de ferro Botini - R$75,00 + frete
-Canudos de alumínio para cannoli pequenos (10cm), 12 unidades - R$25,00 + frete

COLEÇÃO DE REVISTAS

-DONNA HAY (do número 52 ao 76, sem interrupção, total de 25 revistas em excelente estado) - R$50,00 + frete

-GOURMET MAGAZINE  (de Novembro 2008 a Novembro 2009, sem interrupção, sendo esse o ÚLTIMO ANO de existência da revista, + os números de Setembro 2008, Março 2008 e Agosto 2007, total de 16 revistas com sinais de uso) - R$25,00 + frete

-LA CUCINA ITALIANA (Revista EM ITALIANO - Números Janeiro 2005, Setembro 2009, Fevereiro 2007, Março 2007, Junho 2007 e as duas edições comemorativas Piatti Freddi Per L´Estate e Dolci, Torte e Dessert, totalizando 7 revistas em ótimo estado) - R$15,00 + frete






BISCOITOS DE AVEIA PARA QUALQUER CRIANÇA DE 3 ANOS FAZER
(Do meu livro favorito, Apples for Jam, de Tessa Kiros)
Rendimento: 25 - 30 biscoitos, dependendo do tamanho

Ingredientes:

  • 1 ovo
  • 2/3 xic açúcar mascavo apertado no medidor
  • 1 colh (chá) extrato natural de baunilha
  • 5 1/2 colh (sopa) manteiga em temperatura ambiente, amolecida
  • 1/2 xic. farinha de trigo
  • 1/3 xic. farinha de trigo integral
  • 1 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1 pitada de sal
  • 1 xic. aveia em flocos (se só tiver em lâminas, como era o meu caso, basta bater no processador ou liquidificador até obter flocos mais finos)
  • 1 1/2 colh (sopa) leite


Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Forre uma assadeira grande com papel manteiga ou silpat. 
  2. Numa tigela, bata o ovo, o açúcar e a baunilha com um fouet até que o açúcar esteja dissolvido. 
  3. Junte a manteiga, misturando, e então as farinhas, o fermento e o sal, misturando com uma colher de pau. 
  4. Junte a aveia e então o leite. 
  5. Com mãos úmidas, faça bolinhas do tamanho de nozes (cerca de 25 delas) e coloque na assadeira com espaço para que espalhem. Achate-as para que pareçam mini-hamburguerzinhos.
  6. Leve ao forno por cerca de 15 minutos, ou até que estejam com as beiradas douradas. Podem ainda estar um pouco molinhos no centro, desde que secos ao toque. 
  7. Deixe que esfriem sobre uma grade antes de guardá-los num pote fechado. Duram bem uns 5 dias e são ótimos para o lanche da escola.






terça-feira, 20 de setembro de 2016

TV quebrada e soufflé de chocolate

Foto tirada às pressas antes de o soufflé desinflar...
A cabeça anda fervilhando como nunca e tem sido difícil sentar em frente ao computador por tempo bastante para organizar todos os pensamentos. (Acho que há meses começo posts assim.)

As férias escolares foram maravilhosas. Jamais pensei que diria isso, mas sem uma viagem sequer, foram de fato maravilhosas.

Todos tiraram férias juntos: crianças, mamãe e papai, e juntos gozamos da total e completa ausência de compromissos e horários, podendo aproveitar ao máximo o silêncio das manhãs, o sol da tarde, o vento à noite, a grama nos pés, os abraços, os cafunés, as brincadeiras no quintal, as leituras na rede, o fogo crepitando na lareira, as sonecas ocasionais sem hora para acabar.

Foram dias de almoços sem pressa, de explorar trilhas, de aprender a escalar barrancos íngremes, subir em árvores, dias de parquinho, de se pendurar de ponta cabeça, de se escalavrar no asfalto em quedas de bicicleta, de sentar no tapete da sala para ler O Hobbit.

A televisão quebrou no primeiro dia de férias. E o que pareceu um castigo celeste a todos aqueles a quem contei o evento ("Como você vai fazer com as crianças, as férias inteiras sem tv???") revelou-se providencial e transformador.

As crianças aceitaram muito rapidamente a ausência da tv. E entendi que os verdadeiros dependentes necessitados de desintoxicação eram os adultos. Dei-me conta do quanto me apoiava na televisão, Santo Netflix da Paz Duradoura, nos momentos em que julgava que a presença das crianças pudesse ser um estorvo. "Como você vai fazer o jantar com eles correndo em volta?", perguntavam minhas caraminholas. E ficou claro que o único estorvo era a ansiedade que eu cultivava ao ficar presumindo possibilidades de incômodo. Na hora de preparar o jantar, eles sentavam-se à mesa para observar e muitas vezes ajudar. Picavam legumes, rasgavam alfaces, quebravam ovos, mexiam panelas, apanhavam na geladeira os ingredientes que eu requisitava, colocavam os pratos à mesa, os talheres sobre o guardanapo dobrado. Seu interesse era encantador, e enquanto eu não pretendesse ter pressa em terminar o processo, tudo fluía divertidamente como um comercial da tv quebrada. Em outras ocasiões, eu me via cozinhando em silêncio ou conversava com meu marido e as crianças permaneciam desaparecidas em algum canto da casa, imersas em suas brincadeiras e completamente alheias à nossa presença e o que quer que estivéssemos fazendo.

Não havia estorvo nenhum e rapidamente a ansiedade foi substituída por calma e a certeza de que meus filhos não precisavam ser "distraídos" da minha rotina, mas sim, precisavam participar dela.

Essa calma foi como uma chuva lenta de fim de tarde lavando a sujeira das janelas, e aos poucos meus olhos pareceram começar a enxergar os eventos como eles eram de fato, sem os velhos padrões maculando meu julgamento. Comecei a observar. E ao observar mais, passei a reagir menos.

Num fim de tarde, nos jardins do clube, após nosso piquenique, as crianças chapiscavam os dedos numa pequena fonte de água cristalina com pedras lisas ao fundo. Alguns passantes lançavam olhares de reprovação para aquela interação com o patrimônio do clube, mas eu apenas olhava em silêncio, lembrando-me de como também eu na mesma idade adorava brincar com fontes, e pensando na falta que faz um riacho. Como seria se houvesse um trecho de mato com um riacho limpo, um córrego que fosse, que eles pudessem explorar, enfiar os pés, cutucar as pedras, acariciar o limo, entender a água, fazer experiências e usar toda aquela curiosidade para desenvolver o potencial de seu espírito. Pensei nos parques públicos. Pensei nos lagos sujos. Deixei que enfiassem as mãos na água limpa da fonte até alcançar as pedras do fundo, pois aquele era seu riacho, o riacho de quem vive na cidade.

Naquele instante em que eu parabenizava a mim mesma por ser uma mãe legal (porque a gente sempre faz isso), os dois se viraram para o jardim, apanharam algumas folhas secas e retorcidas e jogaram na fonte. Meu corpo todo retesou-se e ergui um dedo acusador em sua direção, mas por algum motivo minha boca permaneceu aberta, as palavras duras de repreensão flutuando entre a língua e a garganta, sem soarem moralismos, vergonhas, lições de bom comportamento. E por um segundo, um micro segundo, observei. E naquele micro segundo meus filhos abriram sorrisos largos e ergueram seus olhos grandes e incandescentes de alegria para mim, e disseram: "Olha, mamãe! São barcos!!" E aqueles barcos carregaram sementes que eram bichos e flores que eram pessoas, através de um oceano vasto e cheio de perigos, enfrentando ondas e dragões marinhos, naquele espelho d´água de noventa centímetros, o grande oceano da cidade grande, o portal mágico para um mundo fantástico que poderia ter se arruinado e fechado para sempre ao mero soar de um retumbante "NÃO!".

Meu corpo relaxou, recolhi meu dedo, engoli meu julgamento e minha boca aberta sorriu, enquanto acompanhava a brincadeira. Houve mais olhares reprovadores em volta, mas não me importei. Quando outro elemento aleatório atraiu seu interesse, suas mãozinhas recolheram as folhas molhadas e as devolveram ao jardim sem que eu precisasse dizer nada, e enquanto corriam para longe, observei o oceano infinito retornado ao seu estado original de fontezinha de jardim, sem qualquer prejuízo ao patrimônio e, principalmente, sem nenhum prejuízo à imaginação das crianças.

Depois desse episódio, comecei a prestar mais atenção. A quebra da tv, que nos desintoxicou do hábito de ficar assistindo a bobagens no YouTube à noite, me jogou de volta aos livros com tamanha força que hoje me orgulho em ter novamente o mesmo ritmo de leitura de dez anos atrás, quando celulares só faziam ligações telefônicas, e uma hora de internet ligada custava uma fortuna. "Aqui e Agora! Atenção!", dizem os pássaros do Aldous Huxley, no excelente livro A Ilha. E é com atenção no Aqui e no Agora que você permanece, às vezes naturalmente, outras vezes, com algum esforço, quando tenta acompanhar as crianças com a mente despida dos antigos padrões e diretrizes que normalmente criam essa verborragia de NÃOs e PAREs.

Ao parar de presumir que as crianças sujarão a fonte, quebrarão os copos, matarão as joaninhas, cairão das cadeiras, cortarão os cabelos das bonecas, ao interromper essa torrente de preocupações e julgamentos, muitas das quais foram incutidas sem razão em nossas mentes por toda uma vida, podemos quebrar o hábito do NÃO irracional, o NÃO e o PARE cuspido sem dar chances à experiência, e de repente damos oportunidade às crianças de navegar barcos, de criar música com uma colher e dois copos com água, de sentir uma joaninha lhes fazer cócegas ao subir por seu braço, de ter a autonomia de pegar uma banana sobre a mesa ficando em pé na cadeira, de aprender a recortar formas sem nome em papéis e explorar a resistência de materiais (inclusive os cabelos da boneca), e colar tudo de volta para criar algo completamente novo. Sua alegria, sua curiosidade, seu olhar refrescante sobre aquilo que para nós é já maçante, torna-se nossa alegria e nossa curiosidade, e rejuvenesce nossa relação com o mundo.

Meu NÃO ficou mais ocasional e ganhou força por conta disso. Minha disciplina tornou-se uma educação mais tranquila e amorosa. Aos poucos tento deixar para trás alguns moldes que me engessavam e engessavam meu relacionamento com meus filhos. Tirei-os da natação depois de uma conversa em que me dei conta de que eles ansiavam pela piscina livre do clube, para brincar, e não queriam mais um adulto lhes dizendo como se mexer na água. Eles já sabem o que fazer se forem jogados dentro d´água, e por enquanto isso basta. Sem ir tanto a São Paulo, agora suas tardes são longas e seu tempo é vasto, e depois da escola não há mais pressa para almoçar nem horário para sair do parquinho.

E no parquinho, enquanto eles brincam na areia, cutucam flores e escalam a rampa do escorregador, eu leio, sem pressa. Mais um livro que me esperou por anos na estante, esperou que eu perdesse o interesse pela internet, pelo celular, pela expectativa dos outros, pela norma imposta de fora. E num dia de parquinho, já passando das cinco, pensei naquele conceito que ouço repetido à exaustão, de que para quem tem filhos o fim de tarde é o pior, pois estamos exaustos e as crianças começam a fazer birra. Conheço isso por experiência, pois foi o que vivi nos últimos cinco anos. Mas não nos últimos meses. Eram cinco e meia e as crianças brincavam, e eu lia meu livro, e havíamos feito uma infinidade de coisas àquela tarde depois da escola, e ainda assim sentia em minha veias uma energia vibrante que me propelia a voltar para casa e fazer o jantar, e ler para as crianças, e brincar mais um pouco e, ao invés de cair moribunda no sofá depois de eles dormirem, continuar produzindo, pintando, conversando, lendo mais. Está claro para mim que a exaustão que senti nos últimos cinco anos partiu de mim mesma e do modo com tentei controlar as coisas à minha volta. Do modo como deixei meus velhos padrões impulsionarem minhas ações e reações sem de fato me permitir estar presente e atenta. Sem me permitir desfrutar de fato da companhia de meus filhos e de tudo o que eles têm a oferecer. Até então eu estava "criando" meus filhos. Agora estamos vivendo juntos.

Naquela tarde, voltando para casa, comecei a preparar as vagens branqueadas e temperadas de muito azeite que acompanhariam um soufflé de queijo. Thomas se aproxima e me diz, como ele sempre diz, escandindo sílabas e colocando toda a tonicidade no início da frase, num tom de novidade e maravilhamento: "VOCÊ NUN-CA FEZ um soufflé de chocolate, mamãe!" Respondi que de fato nunca fizera. "Faz soufflé de chocolate, mamãe? Faz hoje?"

Eu pretendia dizer NÃO. Que faria outro dia. Que o jantar já era soufflé e que não fazia sentido. Mas novamente as palavras se dissolveram na minha boca antes de formarem som. Por que não?

POR QUE NÃO?

É a pergunta que mais figura em minha mente. E quase nunca a resposta se forma. E até minha filha de três anos sabe e repete aos quatro ventos que Porque Não e Porque Sim não são respostas.

Então separei mais ovos e preparei soufflé de chocolate pela primeira vez na vida, assim, de supetão. E descobri que soufflé de chocolate pode ser feito com antecedência, então fiz uma receita inteira e sobrou sofflé de chocolate para comer no dia seguinte também. Também descobri que soufflé de chocolate é perigosamente fácil de fazer e mais ainda de comer, principalmente essa receita da titia Alice Medrich, o que comprova que foi muito certeira a decisão de colocar esse livro de sobremesas fáceis dela na minha lista de Livros Para Levar Para uma Ilha Deserta.

E foi assim que uma tv quebrada nas férias produziu meu primeiro soufflé de chocolate e uma vida mais feliz.

E para quem já me perguntou sobre livros de "Parenting", indico de coração cheio de alegria o livro Calidad de Vida, da alemã Rebeca Wild. Sobre ritmos de desenvolvimento e qualidade de vida. Mudou meu jeito de ver meus filhos, a escola, e mesmo minha infância e minha vida adulta. Se quiser depois ler Vigiar e Punir, do Michel Foucault, será um ótimo contraponto.

SOUFFLÉ DE CACAO
(do sempre ótimo Sinfully Easy Delicious Desserts, da Alice Medrich)
Rendimento: 8 porções em ramequins de 150-180ml.

Ingredientes:
  • Manteiga amolecida e açúcar para os ramequins
  • 1/2 xic + 3 colh (sopa) açúcar
  • 2 colh. (sopa) farinha de trigo
  • 1/8 colh (cha) sal
  • 2/3 xic leite
  • 1/2 xic cacao em pó (sem açucar)
  • 3 colh. (sopa) água
  • 2 ovos grandes, separados + 2 claras
  • 1 colh (chá) extrato de baunilha
  • 1/8 colh (chá) cremor tártaro (se não tiver, 1/2 colh (cha) suco de limão ou vinagre bastam - só é preciso algo ácido para estabilizar as claras)
  • 75g chocolate meio-amargo ou amargo picado finamente ou 1/2 xic chips de chocolate

Preparo:
  1. Coloque a grade do forno no terço inferior e pré-aqueça a 190oC. 
  2. Unte com manteiga todos os ramequins e polvilhe açúcar no interior para recobrir e o fundo e as paredes, descartando o excesso.Posicione os ramequins sobre uma assadeira grande. 
  3. Com um fouet, misture 1/2 xic do açúcar com a farinha e o sal em uma panela pequena. Junte um pouco do leite para formar uma pasta grossa. Então continue adicionando o restante do leite, mexendo para não empelotar.
  4. Ligue o fogo médio-baixo, mexendo com uma colher de pau até que surjam bolhas nas laterais. Então continue cozinhando, mexendo sempre para não pegar no fundo, até que engrosse um pouco, cerca de 2 minutos. 
  5. Despeje a mistura numa tigela grande. Junte o cacau, água, GEMAS de ovo e baunilha e misture para formar uma pasta grossa. Reserve.
  6. Numa batedeira, bata as quatro claras com o cremor tártaro em velocidade média até que picos moles apareçam ao se levantar o batedor. Gradualmente junte as 3 colheres de açúcar restantes, batendo em velocidade alta até que as claras estejam firmes, mas não ressecadas.
  7. Incorpore cerca de 1/4 das claras na pasta de cacau de forma grosseira, para tornar a massa mais leve. Junte o restante das claras e então incorpore rápida e delicadamente com a espátula. Junte o chocolate picado. 
  8. Divida a massa entre os ramequins, até que estejam quase completamente cheios. Nesse ponto, os soufflés podem ser refrigerados por até 24 horas, cobertos com filme plástico. Para assar, basta retirar o filme e ir direto ao forno, deixando uns 3 minutos a mais. 
  9. Asse os soufflés por 12 minutos até que inflem (eles podem rachar no topo)e um palito inserido no meio saia com apenas um pouquinho de massa espessa grudada. Sirva imediatamente. 

Cozinhe isso também!

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