sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Kimchi para melhorar aquele seu queijo-quente nhanha

Eu ouvira falar muito pouco a respeito de kimchi em algum programa de TV antigo, que mencionava o condimento como um gosto adquirido, algo apimentado e particularmente fedido. Foi com algum receio que, muitos anos depois, em um restaurante coreano do bairro da Aclimação, onde um amigo – também coreano – me levara, que experimentei kimchi pela primeira vez.

Apimentado, sim. Mas não tinha nada de fedido. Pelo menos não para mim. Era sim um condimento delicioso, um excelente complemento a todos aqueles pratos diferentes que eu jamais havia provado.

Passou-se muito tempo até que eu começasse a me aventurar no mundinho mágico do faça-você-mesmo e das conservas, e resolvesse tentar preparar kimchi pela primeira vez. O que outrora me parecera um preparado complexo feito apenas por mãos coreanas, revelou-se extremamente simples. Uma mera questão de juntar num pote uma série de ingredientes e deixar que a natureza faça seu trabalho, fermentando aquela lindeza toda.

Meu primeiro kimchi preparei há um ano, ainda grávida da Madame Bochechas, e enfrentei o problema que sempre enfrento quando resolvo lidar com fermentação (de pão, de cerveja, o que for): temperatura. Parece que é só resolver fermentar algo para o clima enlouquecer. Fermentação é sempre boa em temperaturas mais amenas, algo que não passe de 21ºC. É fechar o pote que lá vem os 30ºC fazendo meus potinhos borbulharem feito refrigerante. Nota para mim mesma: preparar kimchi no inverno.

Meu segundo problema foi com o acondicionamento nos potes. Enchi-os até a boca, como se fossem geleia, sem me dar conta de que as verduras, na salmoura, soltariam líquido, e que a fermentação produziria gases, aumentando o volume do preparado. Alguns dias depois, o líquido vermelho da salmoura vazava loucamente por baixo das tampas, criando poças imensas na bancada. Lá fui eu redistribuir tudo em mais potes, pensando que talvez tivesse arruinado minha conserva com tanta manipulação.

Três semanas depois, achei que o cheiro e o aspecto estavam já bons o bastante (considerando a vaga lembrança da única vez que experimentara aquilo anos antes)  e coloquei o kimchi na geladeira para desacelerar e interromper a fermentação. E chegara a hora de provar.

E o medo? E a intoxicação alimentar? E o pobre bebezinho na minha barriga que não escolhera comer kimchi caseiro possivelmente contaminado? Cada pote parecia diferente, um com um cheiro mais forte, outro menos, um com mais bolhas, outro sem nenhuma.

Pesquisa, pesquisa, pesquisa. Fóruns. Perguntas e respostas. Aparentemente eu não morreria com kimchi ruim, apenas teria uma tremenda dor de barriga. Manda ver. Delícia. Todo mundo sobreviveu. ;)

Daí que o kimchi foi parar no arroz, com cebolinhas e ovo frito, e virou kimchi noodle soup, e meu favorito de todos, responsável por terminar com três potes imensos durante esse ano praticamente sozinha: sanduíche de queijo.

Pense seu queijo-quente, pau pra toda obra. Agora pense nele apimentado e complexo, com um molhinho que encharca o pão e pedacinhos ainda crocantes de vegetais ali no meio. Pense até uma versão mais elaborada, com pão de centeio caseiro e algum queijo mais forte, como ementhal ou gruyère. Mas mesmo pão francês e queijo prato.

Meu
Sanduíche
Favorito.

Foi uma tristeza quando meu último vidro de kimchi acabou.

Hora de fazer mais. Assim que as acelgas apareceram na banca de orgânicos, apanhei uma do tamanho da minha filha e levei para casa com mais cenouras, gengibre e cebolinhas. Cortei a acelga, deixei de molho durante a noite e no dia seguinte cortei e preparei todos os outros vegetais e temperos. Faltava apenas a pimenta coreana em pó no pote.

E...

Ela estava mofada. Quase caí para trás. Tudo pronto, meio da semana, lotada de trabalho, fora de São Paulo, e meu pacote inteiro de pimenta parecia a parte interna de um aspirador de pó depois de limpar uma pilha de carpetes velhos usados como cama de cachorros peludos.

Depois de maldizer a natureza, que uma hora ajuda e noutra atrapalha, prossegui. Joguei o pacote de pimenta fora e fiz o kimchi sem ela. Afinal, a pimenta não era necessária para a fermentação. O bichinho poderia começar o processo sem ela. E o kimchi dera certo da primeira vez mesmo tendo que manipulá-lo e reacondicioná-lo no meio do processo, então eu poderia bem meter a pimenta ali depois. E foi o que eu fiz. Minha mãe foi extremamente gentil em ir até a Liberdade e comprar um novo saco para mim e trazer alguns dias depois. Quando abri o pote, o cheiro já era característico, fazendo minha boca salivar, e o kimchi chiava e borbulhava como uma garrafa de refrigerante. Lá foi a pimenta; mistura, mistura, bota em potes menores. Agora resta esperar mais um tempinho até a coisa estar bem curtida.

E nham! Kimchi Grilled Cheese Sandwich por mais um ano! :D

KIMCHI
(Do livro de conservas Tart and Sweet, de Kelly Geary e Jessie Knadler)
Tempo de preparo: 20 minutos + 3-4 semanas de fermentação
Rendimento: cerca de 4 litros

Ingredientes:
  • 2-3 acelgas médias
  • 1/4-1/2 xic. sal marinho*
  • 2 maços de cebolinhas fatiadas fino
  • 2 xic. cenouras cortadas em palitinhos bem finos
  • algumas fatias grossas de galangal (se você encontrar; eu não usei)
  • 1 1/2 xic. pimenta em pó coreana (um pó vermelho forte, vendida em sacos de 500g na Liberdade ou pela internet)
  • 1/4 xic. molho de peixe (nam pla)
  • 1/4 xic. alho picado finamente
  • 1/4 xic. gengibre fresco ralado
  • 2 colh. (sopa) shouyu

*Na primeira vez que preparei, usei 1/2 xic, e a acelga demorou mais tempo para começar a fermentar; agora, com 1/4 xic, em 3 dias ela já fermentava loucamente. Use o bom senso ou experimente.

Preparo:
  1. Corte a acelga em quartos no sentido do comprimento, retire a parte central dura e descarte, e corte as folhas em tiras de 5cm de largura. Lave para tirar qualquer resquício de terra ou sujeira e coloque em uma tigela grande. Polvilhe o sal por cima, misture bem e cubra com água filtrada. Coloque um prato por cima, para garantir que todas as folhas estejam submersas e deixe em temperatura ambiente durante a noite.
  2. No dia seguinte, escorra a acelga, reservando o líquido da salmoura, que será usado depois. 
  3. Numa tigela bem grande, junte a acelga, a cenoura, o galangal (se estiver usando e misture bem. 
  4. Numa tigela pequena, misture a pimenta, o nam pla, o alho, o gengibre e o shoyu até virar uma pasta. Junte isso à acelga e misture bem com as mãos, para que tudo fique recoberto. 
  5. Divida a mistura em potes de vidro limpos, não preenchendo mais que 2/3 da capacidade, e apertando bem as verduras no fundo. Cubra com o líquido da salmoura, novamente, não enchendo mais que 2/3 ou 3/4 da capacidade do vidro.
  6. Limpe as bordas e tampe e deixe em temperatura ambiente por 3-4 semanas. (Por segurança, deixe os potes dentro de uma travessa com bordas ou assadeira, para o caso de algum pote transbordar.) Depois de alguns dias, comece a checar diariamente, e empurre com o dedo qualquer vegetal que esteja para fora do líquido. Experimente todos os dias. O gosto tem que ser apimentado, salgado, asiático, os legumes mantém alguma crocância. Não pode haver espuma, bolor, ou gosto ácido. Mas é fedido, tem cheiro forte de repolho fermentado. Para quem gosta de sauerkraut, é um cheiro reconhecível no meio dos temperos fortes. Assim que estiver suficientemente fermentado para você (isso pode acontecer até antes de 3 semanas), coloque os potes na geladeira. Ali, eles ficam indefinidamente, sem prazo de validade.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Spätzle de alcachofra para bebê comilão e família

Na esperança de que o bebê fofo distraia o povo da foto horrível de comida.
Um dia a frescura passa. Aí ela volta. Mas parece de fato ter passado. Aquela criança que catava salsinha do prato e jogava na mesa, com cara de nojo, tentando desvencilhar das pontinhas dos dedos os pedacinhos verdes, não existe mais. O Matador de Dragões agora experimenta. Pode não gostar. Pode não comer tudo. Mas fica curioso. Quer saber que gosto tem. Quase não preciso oferecer. É ver a mãe, o pai e a irmã comendo e, devagarinho, lá vai ele experimentar. Enchi-me de orgulho e alívio ao vê-lo matando uma pratada de salada de farro com tomate e pimentão-verde, e fritatta cheinha de couve, um pote inteiro de pepinos e cenouras, soba com gergelim, e até fundo de alcachofra, essa coisa cinza com cara de nada mas que é uma delícia. Quando se fala de criança enjoada para comer, agora fico quieta, porque o pequeno parece ter tomado jeito, movido talvez pelo ciúme da irmã, apesar de esse mesmo ciúme às vezes provocar birras à mesa.

Daí que eu preparara alcachofras, e sempre que limpo as danadas morro de dó de jogar todas aquelas folhas fora. E esse livrinho que eu adorei, de uma italiana louca com a coisa toda do desperdício de comida (e que tem um blog em inglês e um em italiano, que é mais atualizado), tinha justamente a solução – não uma solução simplesinha, convenhamos, mas uma que eu estava disposta a bancar: bastava apanhar as folhas e os talos das alcachofras e cozinhar por uns 40 minutos, até amaciarem um pouco e então passar aos pouquinhos pelo passa-verdura, para espremer a polpa para fora e separar das partes fibrosas [essa, por acaso, é a parte "não-simplesinha", porque haja braço para virar a manivela do passa-verdura...]. Fiz isso e consegui de aparas de 3 alcachofras um purê cinzento mas saboroso, equivalente a mais uns 3 fundos de alcachofra extras amassados. Havia ainda instruções para colocar as fibras no forno muito baixo (60ºC) por várias horas até secarem bem e então moer no processador para obter uma farinha de alcachofra, pela qual muito me interessei. Mas meu forno não mantém temperaturas tão baixas, e eu sabia que ia esturricar as fibras e gastar gás à toa. As fibras foram para o minhocário, alimentar minhocas felizes, para depois virarem adubo feliz para plantinhas felizes.

Congelei meu purezinho com intenção de usar num molho de macarrão, mas ele acabou virando receita do mesmo livro: Spätzle de alcachofra com sálvia. O livro (traduzido para o português) falava de usar uma "nhoqueira", mas eu sabia que ele se referia mesmo àquele utensílio engraçado de se fazer essa massinha alemã, e que já vi ser vendido no Brasil como se fosse um ralador (!!!). Não é um ralador. Eu tinha menos purê do que a receita pedia, e minha massa ficou muito espessa, e tive de acrescentar um nadinha de água só para dar o ponto.

Ficou uma delícia, sucesso com o pequeno guerreiro ítalo-germânico, pequena justiceira ítalo-germânica e com o marido... germânico. O fato de ter polvilhado com parmesão por cima foi o toque italiano, mas segundo os três germânicos da casa, tudo fica bom com parmesão por cima. ;)

Spätzle andou aparecendo bastante por aqui nos últimos meses, sempre na versão com espinafre na massa, rendendo bolotinhas muito verdes que eram sempre devoradas pelo meu filho numa época em que nem salsinha ele comia. Era o jeito de enfiar alguma folha verde em sua dieta. Toda vez que preparava, fotografava para publicar aqui, mas esse Spätzle de maquininha nunca fica bem na foto. Além de poder meter na massa verduras e legumes, ele ainda supre a necessidade de independência da pequena-gigante-Madame-Bochechas. Ela quer comer tudo sozinha, e as bolotinhas douradas na manteiga são perfeitas para seus dedinhos desajeitados.

Aliás, no post anterior me perguntaram sobre a alimentação da pequena, e a resposta ficou tão longa que achei mais fácil colocá-la aqui. Laura ficou pouco mais de um mês naquele esquema de papinhas mais simples, para apresentar os sabores diferentes do leite materno a um bebê que ainda mama. Mas logo que metade de suas refeições eram feitas conosco, comecei a preparar nosso jantar pensando nos elementos que eu queria em sua papinha. Comemos muito minestrone nesse inverno, com legumes, feijões, grãos, caldo caseiro, ervas, couves e queijo. Risotto também. Qualquer prato único onde eu pudesse colocar vários elementos e que ficasse bem transformado em papinha. E ela sempre comia o que nós comíamos. Ou o contrário.

Assim que seu primeiro dente nasceu, percebi que ela começava a fazer um movimentozinho de camelo com a mandíbula, tentando mastigar com as gengivas, levando a língua de um lado ao outro da boca. A partir desse dia parei de amassar sua comida e comecei a testar as texturas. Ela conseguia comer fritatta de legumes, ela deixava nacos de parmesão derreterem na boca, ela comia frutas moles em pedaços, e eventualmente aprendeu, como o irmão, a comer uma banana inteira sozinha. Ela come spaghetti que nem adulto [um adulto sem talheres e sem educação, que eventualmente acha graça em chacoalhar os fios de spaghetti no ar como uma cheerleader italiana louca e jogá-los no chão].

Tenho quase certeza de que ela descobriu Deus no dia em que comeu pão pela primeira vez, pois pãozinho em suas mãos (qualquer tipo) é felicidade instantânea, com direito a gritinhos agudos que sempre me lembram gatos brigando.  E come qualquer pão, até italiano, deixando a casquinha dura derreter na boca. Ela come soba com gergelim, acelga gratinada, queijo roquefort, salada de tomates, ovo frito e pizza feita em casa.

Ela tem 10 meses e já faz uns dois que eu simplesmente dou a ela um prato exatamente igual ao nosso (quase sempre com uma porção maior que a do irmão, cujo apetite diminuiu muito depois dos 2 anos, ainda que sempre haja espaço para sobremesa, o safado). Ainda bem, pois ela fica visivelmente brava quando estamos comendo algo diferente.

O que ela pode cortar ou amassar com as gengivas, dou em pedaços maiores. O que pode engasgá-la, corto em pedacinhos bem pequenos, principalmente folhas cozidas. Mas de vez em quando deixo que engasgue um pouquinho, e aprenda a não ser tão esganada. Ou que aprenda a desengasgar sozinha. Parece horrível, mas funciona. E eu nunca deixo ela sozinha comendo qualquer coisa que possa engasgá-la.

Nunca forcei meus filhos a comer feito adultos. Apenas fui observando e testando, observando e testando. Seguindo o ritmo deles. Isso foi ótimo, pois quão fácil é pensar num jantar único para dois adultos, uma criança e um bebê? Também nunca achei que fazia muito sentido ficar dando purê de berinjela sem tempero. Que ser humano come berinjela sem tempero? Se você sempre faz berinjela com missô na sua casa, quanto antes seu filho aprender a comer berinjela com missô, melhor.

Isso me facilitou muito com o Thomas, pois notei que, na fase mais chatinha dele, o que ele recusava não eram os sabores, mas a aparência da comida. Daí comer o Spätzle verde de espinafre mas não as folhas de espinafre, por exemplo.

Eventualmente Laura chegará na fase do não quero, não gosto. Mas agora estou mais escolada e já sei que vai rolar muito Späztle nesse época também. Ninguém reclama, pois é sempre uma delícia. Com ou sem alcachofra.

SPÄTZLE DE FOLHAS DE ALCACHOFRA
(do ótimo Cozinhando sem Desperdício, de Lisa Casali)
Rendimento: 3-4 porções pequenas

Ingredientes:
  • Folhas externas e talos de 4 alcachofras
  • 200g farinha de trigo
  • 2 ovos grandes
  • sal e noz-moscada a gosto
  • 100g manteiga
  • algumas folhas de sálvia
  • queijo parmesão ralado na hora, para polvilhar
  • pimenta-do-reino moída na hora

Preparo:
  1. Ferva as folhas e os talos das alcachofras em pouca água, na panela de pressão, por 20 minutos, contados a partir do momento em que a panela começar a chiar, ou em panela comum por 40 minutos. Escorra, e passe aos poucos por um passa-verdura, obtendo um purê (cerca de 1/2 xícara). 
  2. Coloque o purê numa tigela e adicione a farinha, os ovos, sal e noz moscada, e misture vigorosamente com uma espátula até obter uma mistura homogênea, com textura de massa de panqueca americana. Se ficar líquida demais, junte um pouquinho de farinha extra. Se ficar muito espessa, difícil de mexer, junte umas colheradinhas de água. 
  3. Ferva bastante água numa panela grande e cozinhe o spätzle com a ajuda da maquininha ou à mão, despejando um pouquinho de massa numa tábua e cortando fiozinhos com a faca, direto para dentro da panela
  4. Em uma frigideira grande, que comporte todo o Spätzle depois, derreta a manteiga com a sálvia. Conforme o Spätzle for ficando pronto, vá retirado uma escumadeira e jogando na frigideira, para que doure. 
  5. Distribua nos pratos e sirva com o parmesão e a pimenta por cima. 

Cozinhe isso também!

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