sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Quiche sem massa e Ana sem paciência

Minha vida funciona mais ou menos como no filme O Grande Garoto: atividades estrategicamente divididas em unidades de tempo durante o dia. Correr: 2 unidades. Passear o cachorro: 1 unidade. Meditar: Trabalhar: 4 unidades. Almoçar: 1 unidade. E por aí vai. Além do quebra-cabeça do tempo, em que um dia deve comportar todos os meus compromissos pessoais e profissionais, tarefas domésticas e afins, há ainda o quebra-cabeças do espaço. Há dias em que considero uma benção morar num apartamento pequenininho: ele exige organização, planejamento e auto-controle no quesito consumo. Chega uma hora que não cabe mais tralha e pronto.

No entanto, isso de ter de desmontar toda a despensa e rearrumar tudo pela enésima vez cada vez que vou ao supermercado, para que nada desmonte em minha cabeça, pode ser incrivelmente cansativo. É exaustivo ter de planejar e organizar tudo o tempo todo. A sina da "mulher moderna" [Argh!], que tem de fazer tudo e tem de ser excelente em tudo. Então, de repente, como um PC velho com coisas demais acontecendo ao mesmo tempo, eu travo, dou tilt. De tempos em tempos, minha atitude zen com relação aos quebra-cabeças de minha vida se esvai como areia entre os dedos, e me vejo frustrada, desorientada e sem vontade.

Antigamente, deixava-me levar por essa claustrofobia, mas ao longo do tempo aprendi que ela vem, mas logo vai, e toda a paciência e método retornam com força total para mais uma temporada de tira, põe, organiza, cuida, planeja, arruma, faz listas, gerencia, mantém em ordem.

Aprendi que quando bate essa vontade de deixar tudo desabar, é melhor simplesmente fazer um chá, abrir um livro e ficar quieta, quietinha, durante uns dois ou três dias. Sem compromissos sociais, sem lidar com trabalho (a não ser os mais urgentes), sem arrumar mais sarna para se coçar. Quanto menos gente em volta, melhor. Silêncio, quietude, paz, tempo para mim e apenas para mim. Ok, para o cãozinho que precisa ser passeado também. Ele me deixa de bom humor, então não tem problema.

A única coisa que tenho de fato vontade de fazer é cozinhar. Vai entender.... é o único planejamento que suporto e que me acalma, mesmo em momentos de nervos à flor da pele. De resto, sei que qualquer coisa que tente fazer me irritará sobremaneira. Então, para quê? Melhor deixar para o dia seguinte.

Quando vi uma receita de quiche sem massa numa revista Gourmet, sabia que era aquilo que queria comer. Simples, rápido, leve. No entanto, a receita era carregada em creme de leite e levava carne, de modo que rapidamente apanhei o que havia na geladeira e preparei minha versão, bastante macia e deliciosa, perfeita com uma salada verde e um vinaigrette de mostarda de Dijon. Bom humor instantâneo. Melhor que isso, só com ameixas dulcíssimas de sobremesa.

QUICHE DE ALHO-PORÓ SEM CROSTA
(Adaptado da revista Gourmet)
Tempo de preparo: 40 minutos
Rendimento: 3-4 porções


Ingredientes:
  • 2 alhos-poró grandes, fatiados fino e bem lavados
  • 1 dente de alho picado
  • 1 colh. (sopa) azeite
  • 2 xíc. de queijo parmesão ralado grosso
  • 4 ovos
  • 2 xíc. de leite
  • 2 cebolinhas picadas
  • sal
  • pimenta-do-reino
  • manteiga para untar
  • 1 1/2 colh. (sopa) de farinha de rosca

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 220ºC. Aqueça o azeite numa frigideira e refogue o alho até começar a dourar. Junte o alho-poró, sal e pimenta e cozinhe em fogo médio até que murche bem, mas sem deixar dourar. Desligue o fogo e reserve.
  2. Unte uma travessa de 25cm de diâmetro com manteiga e polvilhe a farinha de rosca, espalhando bem e retirando o excesso. Espalhe o alho-poró no fundo da travessa e polvilhe o queijo por cima. Espalhe as cebolinhas picadas.
  3. Em uma tigela, bata ligeiramente os ovos, o leite, sal e pimenta do reino. Derrame sobre o alho-poró da travessa e leve ao forno por 25 minutos, ou até que a superfície esteja dourada. Deixe amornar um pouco antes de servir.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Panna cotta de mel


Lembro-me vividamente de meu primeiro encontro com uma panna cotta. Foi um encontro à distância, através da televisão. Assistia a um programa de viagem e culinária que já não passa mais, em algum canal que já também não assino, mas que há uns 7 ou 8 anos atrás fazia com que eu permanecesse imóvel e hipnotizada em frente à tela. Qualquer bom programa que mostrasse lugares lindos e boa comida merecia um pouco de minha atenção. Naquela tarde, o programa era sobre o norte da Itália. Depois de um passeio por maravilhosos vilarejos medievais empoleirados em colinas, o apresentador jovem e simpático foi até uma enorme cozinha rústica, sonho de todo gourmet metido a mediterrâneo – inclusive dessa que vos escreve – e preparou aquela que me pareceu uma das sobremesas mais simples do mundo. Cozinhou creme de leite fresco com um pouco de leite, açúcar e baunilha, misturou a algumas folhas de gelatina e levou para gelar. Então retirou um dos potinhos já prontos e derramou uma comedida quantidade de calda de chocolate por cima, e proferiu, antes da primeira colherada, de olhos brilhantes e gulosos: "Panna cotta é minha sobremesa favorita!".

Minha curiosidade fora atiçada. O fato de não ter anotado as proporções dos ingredientes de modo algum me impediu de sair ao supermercado para comprá-los. Na época, eu ainda não sabia o que era creme de leite fresco, o que fez com que eu colocasse um creme de latinha na cesta do supermercado sem titubear. Apanhei a baunilha, a gelatina em folha e uma barra de chocolate genérica e voltei para casa, feliz e esperançosa.

Assim que despejei o creme na panela, a sensação premonitória e desagradável que antecede todo desastre culinário imediatamente se instalou, como uma coceirinha atrás da orelha. Olhei para o creme amarelado, decepcionada. Onde estava a palidez etérea do creme que eu vira na TV? Prossegui, dando de ombros, misturando um pouco de leite e açúcar, mais ou menos o quanto achava que o apresentador havia usado. Acrescentei a baunilha e liguei o fogo, esperando que a mistura fervesse.

Enquanto isso, apanhei o pacote de gelatina. Até então eu jamais preparara uma gelatina que não fosse verde ou tivesse aroma artificial de morango, então estava caminhando em território alienígena. Quantas folhas ele usara? Duas? Três? Mas seria essa a quantidade correta de creme para tanta gelatina? Ignorei minha insegurança e segui em frente. Qual seria a pior coisa que poderia acontecer?

Levei o creme pronto à geladeira por algumas horas. Longas, longas horas de espera. Quando vi que os potinhos pareciam firmes, derreti o chocolate meio-amargo genérico com mais creme de leite de lata e despejei a calda fria sobre a panna cotta recém-saída da geladeira. A ansiedade me consumia. Quase me esquecera completamente da decepção de ver o creme rosa-amarelado ao invés do lindo branco que a sobremesa prometia. Apanhei minha colher e afundei-a no pote. Porém, surpreendi-me com a resistência da panna cotta contra a invasão da colher. Tive de fazer um pouco mais de força do que esperaria para tirar uma colherada de um pudim, e então meti a colher cheia na boca. Mastiguei. Mastiguei por que estava mastigável. Não havia ali nada daquela textura delicada e aveludada que a imagem na TV transmitira. A gelatina em excesso tornara o pudinzinho borrachudo e desagradável. Além disso, o creme de leite de lata não era muito saboroso, e o chocolate muito doce derretido por cima destruíra qualquer chance de meu paladar detectar nuances de sabor do creme.

Decepção total. E eu sabia que era minha culpa.

O fracasso retumbante daquele dia, ao invés de me fazer desistir, estimulou-me a buscar soluções e receitas. Aquela era a sobremesa favorita de alguém. Precisava ser boa. Busquei em livros, mas meus livros pareciam apresentar informações conflitantes. Um deles dizia para usar creme de leite espesso, e se referia a isso como sendo o creme de lata. Outro implorava para que não se usasse creme de lata e um terceiro ainda dizia que era impossível preparar uma panna cotta sem creme de leite com mínimo de 45% de gordura. Nesse ponto eu desisti. Tendo então pesquisado um pouco a respeito dos cremes, sabia que jamais encontraria um creme com esse teor de gordura por aqui, e dei como encerrada a empreitada.

Por muito tempo folheei meus livros e olhei com rancor para as receitas de panna cotta. Como era possível que houvesse uma sobremesa favorita de alguém que eu jamais poderia provar? E quando já estava prestes a me esquecer da bendita, fui passar um mês na Itália, e lá enfim, em minha última noite em Roma, o garçom ofereceu-me panna cotta como sobremesa. Meus olhos coruscaram de antecipação e apreensão ao mesmo tempo. E se, depois de tanta espera, eu me decepcionasse?

Bem, aquele pequeno pudinzinho branco e leitoso no centro do prato, coroado de amêndoas e uma calda suave de chocolate, foi uma das coisas mais gostosas que já provei. E a partir daquele primeiro encontro ao vivo e em cores, pedi panna cotta em todos os restaurantes em que estive até o fim da viagem, e pude finalmente eu mesma proferir ao voltar: "Panna cotta é minha sobremesa favorita."

Talvez por isso sinta uma propriedade tão grande ao falar sobre panna cotta. Surpreendi-me quando ela entrou na moda, como quando você gosta de uma banda que só você conhece, e da noite para o dia ela começa a tocar no rádio e gerar imitações baratas e fãs histéricos. Vi dezenas de variações sobre o tema, desde simples sabores até substituições estranhas. Então, em minha mente, estabeleci um limite. Panna cotta quer dizer literalmente "creme de leite cozido". Sem "panna" não é "panna cotta". Panna cotta de leite de coco é pudim de coco. Panna cotta de iogurte é pudim de iogurte. Independente de quão deliciosos sejam, e nunca disse que não sejam até melhores que o original, vejo-me invariavelmente presa àquela lembrança deliciosa de minha primeira panna cotta. Não consigo imaginar uma panna cotta que não tenha a doçura delicada da gordura do creme de leite, ou que tenha sua alvura aveludada maculada por qualquer outro ingrediente que possa, além de lhe dar uma cor que não seja o branco, ainda mascarar seu sabor tão simples, suave e franco.

Daí minha empolgação com o resultado dessa panna cotta incrivelmente macia, leve e delicada. Preparei-a com um certo pé atrás, temendo que o sabor do mel, muitas vezes dominante, mascarasse o gosto do creme de leite. No entanto, ele adoçou a sobremesa exatamente no ponto certo e seu gosto invade a boca devagar, se acentuando no final e derretendo-se. Ela ficou deliciosa para um dia quente de verão, adornada apenas de um filete do mesmo mel e algumas frutas. Mais uma estrelinha dourada para Alice Medrich, de quem já me considero fã incondicional.

PANNA COTTA DE MEL (do livro Pure Dessert, de Alice Medrich) Tempo de preparo: 15 min + 8 horas para firmar Rendimento: 6 porções Ingredientes:
  • 1 1/4 xíc. leite integral
  • 2 1/2 colh. (chá) gelatina em pó sem sabor
  • 3 xíc. creme de leite fresco
  • 1/3 xíc. mel (evite o mel de grandes marcas; compre mel de pequenos produtores, de floradas específicas, como flor de laranjeira, limão, etc. Eu usei de limão.)
  • 1/8 colh. (chá) sal
Preparo:
  1. Coloque o leite em uma tigela e polvilhe a gelatina sobre ele, sem mexer. Reserve por 5 a 10 minutos.
  2. Enquanto isso, aqueça o creme de leite, mel e sal em uma panela de fundo grosso, até que comece a soltar vapor, mexendo de vez em quando para dissolver o mel. Desligue o fogo e junte o leite com a gelatina, mexendo bem para dissolvê-la. Coloque a panela em uma tigela de água com cubos de gelo e continue mexendo para esfriar o creme, por uns 5 minutos.
  3. Divida o creme entre os potinhos, cubra com filme plástico (para não pegar odor de geladeira) e resfrie por várias horas ou durante a noite. Sirva com um fio de mel e frutas de sua escolha.

Cozinhe isso também!

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