segunda-feira, 5 de maio de 2008

Vá descascar pinhão!

Quem tem mãe italiana, espanhola ou judia sabe bem o que é chantagem emocional. Ainda que a minha sempre tenha usado a máxima "recusar minha comida é recusar meu amor" (coisa que hoje aplico em meu marido), ela nunca pôde usar a velha história das infindáveis horas de parto ("você não sabe o que passei para te colocar no mundo), simplesmente porque meu nascimento foi tão complicado quanto cuspir um caroço de azeitona. Não fosse meu pai sentir as contrações ao pousar sua mão na barriga de minha mãe, era capaz de eu ter nascido no meio da cozinha. Pluft!

Como acredito que tenha a mesma sorte quando quiser ter filhos, dei-me conta de que teria de encontrar uma forma diferente de incutir culpa em minha ainda inexistente prole. Hoje, enfim, encontrei-a: "você não sabe o que passei para que você comesse esses pinhões!"

Adoro pinhões. Como tantos outros prazeres sazonais, sempre aguardei ansiosamente o frio chegar, para que ele trouxesse consigo pinhões quentinhos com sal. Minha mãe os cozinhava na panela de pressão, e então era meu pai quem os descascava, polvilhava com sal e os passava a mim e a minha irmã. Vendo a bandejinha de pinhões no supermercado, senti-me na obrigação de comprá-los, tendo me dado conta de quantos anos havia que não os comia.

Cozinhei-os por bastante tempo em uma panela comum, pois tenho absoluta paúra de panelas de pressão. Não gosto de ficar no mesmo ambiente que uma, e tenho verdadeiros pesadelos com uma possível explosão de feijão em minha cozinha. Escorri os pinhões e me pus a descascá-los. Primeiro, com os dedos. Então com uma faquinha de pão. Depois, com um martelo. Sim, um martelo.

Deus do céu, quem foi primeiro o morto de fome desesperado que um dia acreditou que poderia comer pinhões???? Que trabalhinho ingrato... As pontas de meus dedos doem, e não restou uma unha sequer intacta.

Quando Allex chegou, eles estavam já descascados em uma tigelinha (depois de eu ter abocanhado vários ainda quentinhos, com sal), esperando para serem incorporados ao molho de catalogna e queijo dos strozzapretti, feito refogando-se um maço pequeno de catalogna fatiada fino em uma colher de manteiga e um dente de alho, acrescentando-se meia colher de farinha e mexendo bem para formar uma espécie de roux; mistura-se devagar uma xícara de leite integral, até formar um molho não muito espesso, tempera-se com sal, pimenta-do-reino, duas ou três raspadinhas de casca de limão e um punhado generoso de parmesão ralado na hora. Lembro-me bem de uma passagem do livro Sob o Sol da Toscana, em que a autora se surpreende com o gosto dos italianos para todas as verduras amargas, e como ela não compartilha completamente desse gosto... Bem para quem gosta de verdade de verduras amargas (pessoalmente, eu sou suficientemente estranha para acordar com vontades irresistíveis de comer chicória), esse molho é uma delícia. Se você tem já algumas restrições com rúcula, passe longe, ou substitua a catalogna por espinafre. O molho fica ótimo sem os pinhões fatiados, mas sua doçura me parece complementar sutilmente o amargor da verdura.

"O que é isso? Pinhões??", perguntou Allex, sobrancelhas franzidas.
"Sim."
"Não gosto de pinhões."
"Ah, vá! Não me venha com essa! Experimente um, pelo menos!"

Experimenta. Faz uma careta.

"Não, não gosto de pinhões!"
"Ah, mas você não sabe o que eu passei para que você pudesse comer esses pinhões!!"

Heranças de família


Ultimamente tem sido difícil manter o blog atualizado com a mesma regularidade de antigamente. Ritmo mais intenso de trabalho, todo o "procura apartamento, muda ou não muda, desencana de mudar", vários jantares fora, preparativos para minhas primeiras férias desde 2004 e minha (ainda) balança quebrada têm me impedido de cozinhar qualquer coisa que eu considere merecedor de uma fotografia e um texto. Isso somado ao fim do mês, que, para mim, sempre significa um período pão-com-queijo, resto de spaghetti, sopa do que tiver na geladeira.

Para não dizer que nada gostoso saiu de minha cozinha nesse meio tempo, digo-lhes que preparei um bolo de aniversário para meu pai, que estava em São Paulo. Mas a adaptação de ingredientes não foi um sucesso total, e o bolo ficou gostoso, mas denso e cheio de falhas na massa. Feio, o coitado. Meu pai merecia bolo mais bonito.

Também fiz uma sopa "napoleônica", como bem descreveu Allex, referindo-se ao modo como Napoleão gostava que as sopas para seu exército fossem preparadas: tão densas, que uma colher no centro da panela deve ficar de pé. A sopa era composta de um mirepoix de cebola, cenoura e salsão, acrescido de batatas e uma miríade de grãos: lentilhas verdes e vermelhas, feijão branco, corado, azuki, cevada, farro, ervilhas... Uma delícia em noites frias. Mas feia, a coitada. Marrom e pedaçuda, não ousei tentar fotografá-la.

Ontem, então, meu pai trouxe algo sobre o qual eu poderia com certeza falar aqui: os cadernos de receita de minha avó. Ela, que me ensinou a preparar pasta fresca, mas que hoje tem preguiça de cozinhar e só come legumes no vapor, emprestou-me seus cadernos antigos, para que eu pudesse copiá-los à vontade. O mais antigo deles é de 1947, dois anos antes de meu pai nascer, e leva recortes de jornal muito velhos, com receitas perfeitas para as donas de casa da época, com uma disponibilidade de ingredientes limitada. Dentro de outro, encontrei uma brochurinha amarela e esfarelenta, sem data, da Nestlé, com desenhos em preto-e-branco das latas antigas de "leite condensado marca Moça" e "Nescáo — o super alimento". Pelo estilo das fontes utilizadas e das ilustrações (a designer em mim enlouqueceu com o livrinho), acredito que seja também da década de 40.

Já encontrei nos cadernos receitas antigas de sorvetes com "truques" para conseguir a consistência certa sem a sorveteira (aquela antiga, de manivela), apenas com "refrigerador". Há também os bolinhos de banana que meu pai comia na infância, pudins, bolos de natal, recheios para peru, caçarolas italianas, massa de cannoli, entre muitos outros quitutes. Engraçado notar, porém, que aquilo que lhe era mais automático (pasta e gnocchi) não está anotado em lugar algum.

Estou com os dedos coçando de vontade de fazer o bolo mais antigo que encontrar nesses cadernos. Da época em que não eram "xícaras", mas "chícaras". (Quando eu era criança, as duas formas eram permitidas. Sempre gostei com "ch", tão mais elegante, e fiquei muito triste quando aboliram essa opção...)

Cozinhe isso também!

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