"Não se preocupe", disse uma amiga croata. "A primavera acaba logo logo."
Rio pra não chorar. Até os canadenses estão reclamando.
Hoje faz o que deve ser o terceiro dia de sol desde o início da Primavera e provavelmente o sétimo de temperaturas acima de 12 graus. Depressivo sim, mas para quem passou meses com dígitos duplos negativos, 17 graus com sol é a pura alegria do verão. Quando fez 11 pela primeira vez, Laura tirou o casaco e rodopiou a saia pela rua, gritando "o calor voltou! o calor voltou!". Com 14, achamos que o tempo estava suficientemente agradável para estrear a churrasqueira.
Referência é tudo na vida.
Enquanto a churrasqueira não chega na temperatura ideal para o prato principal, deixo pimentões ali chamuscando. Se as árvores ainda estão secas e o parque tem mais lama que grama, ao menos os pimentões trazem para dentro essa cor linda de sol de que tanto precisamos. Chamuscados os pimentões, vão para um saco ou pote fechado, para esfriarem e soltarem a pele. Fatiadinhos, sem as sementes, são temperados com bastante azeite, alho e manjericão, uma pitada de sal e pimenta, e viram condimento para as linguiças que vão para a grelha em seguida. Ou simplesmente sobre pão grelhado, com uma fatia de queijo. O que sobra é coberto com mais azeite e mantido num pote de vidro tampado na geladeira, e dura bem uma semana assim, para entrar em sanduíches, saladas ou como molho de macarrão.
Laura agora sempre pede que compre pimentões em dia de acender a churrasqueira.
Apesar da temperatura, da chuva, dos ventos, as flores surgem. A primeira grama de primavera é de um verde fluorescente que parece conter toda a energia do mundo. Um verde vivo contra os troncos molhados de chuva, de um azul escuro intenso sobre marrom. Os pássaros estão todos aqui. O silêncio do inverno não mais existe. Um passear pelo parque é um estímulo aos ouvidos. Um farfalhar de folhas ali, onde os esquilos se escondem, Robins, Picapaus, Red Winged Black Birds cantando sem pausa por sobre minha cabeça. Os filhotes de guaxinim explorando o mundo com ares perdidos. O caminhão de sorvete. O homem do cachorro-quente. Os seres humanos que brotam como que da terra, como toupeiras despertando da hibernação, deixando suas tocas poeirentas para deixar o sol bater em seus rostos pela primeira vez no ano, olhos semicerrados, narizes coçando de pólen, joelhos pálidos de fora.
A luz, mesmo que cinza de dia feio, vem cedo. Estranho que sejam sete da manhã e tomemos café de luzes apagadas. Sento-me à mesa nova, uma mesa grande, onde agora caberemos todos mais confortavelmente, comida e comensais, e beberico meu cappuccino, olhando para fora. Pela primeira vez, há vida lá fora às sete da manhã. Bandos de patos e gansos voam em formação para os gramados onde vão passar o dia se alimentando. A construção do prédio ao lado já está a todo vapor. A luz. A luz prateada de mais uma manhã cinzenta fere meus olhos sonolentos ligeiramente, mas me enche de energia para começar o dia direito.
Os dias têm começado com Biscotti. Essa descoberta linda no meu café da manhã. Passei muito tempo da minha visa assando biscotti (e toda sorte de biscoitos italianos) para serem mergulhados no vinho doce. Laura sempre os achou muito duros e crocantes para serem comidos de lanche. E eles haviam sumido de minha vida por conta da proibição de castanhas na escola desde que chegamos aqui.
Até o dia em que decido preparar biscotti de amêndoas, clássicos cantuccini, de pura saudade que tinha deles. E pesquisando aqui e ali, descubro que os italianos na verdade comem biscoitos no café da manhã, e não como lanche da tarde.
É uma descoberta muito besta, mas que de repente fez todo o sentido do mundo. Mergulhados no cappuccino, no leite puro ou no café com leite, sua crocância se atenua como fazia no vinho, mas de repente seus sabores sutis, adultos, sua quase ausência de doçura comparados com os biscoitos americanos, combinam-se perfeitamente com a doce gordura do leite. Biscoitos italianos no café da manhã são como uma fatia de "bolo de nada", aqueles bolos de laranja ou baunilha bem suaves. Se fossem cookies de chocolate ou outros exemplos de biscoitos norte-americanos, talvez parecessem uma indulgência tão cedo no dia. Mas esses, particularmente, fazem um café leve e agradável.
As crianças mergulharam alegremente no conceito de biscoito de café da manhã, da mesma forma que mergulharam os biscotti no leite quente. E olhe só, minha filha que detesta castanhas adorou os cantuccini.
Agora quando digo que estou fazendo Biscotti, eles já sabem que é não é um cookie qualquer: é biscoito para o café.
Os cantuccini foram receita de Tessa Kiros, fáceis e até hoje os mais parecidos com o que meu paladar se recorda do que provei na Itália. Já fiz cantucci excessivamente austeros e, mais do que nunca, excessivamente doces, como são quase todas as receitas vindas de chefs americanos e ingleses. Já os fiz muito duros, que Laura detestava, e muito macios, que dissolvem ao serem mergulhados, arruinando a experiência. Esses eu considero ideais. E por Laura ter gostado deles, têm agora o carimbo de "minha receita oficial de cantuccini".
Um outro me chamou a atenção na internet por conta do nome: biscotti della nonna ou Biscotti da Inzuppo. Literalmente, biscoito pra ensopar. Parecem Lady Fingers (biscoito champagne) na aparência, mas são bem mais secos, simples e menos doces. Deixaram-me com vontade de preparar Savoiardi (o nome italiano de biscoito champagne), que, curiosamente, não me lembro de jamais ter feito. Foi um igual sucesso com as crianças.
O último preparado foram Biscotti delle Suore, o biscoito das freiras. Em forma de S, é uma massa fácil de preparar, leva quase nada de açúcar, e é assada duas vezes, como os cantucci. Esse, aromatizado com sementes de erva-doce, entrou para minha lista de favoritos. Thomas adorou, como sempre adora todos os biscoitos que preparo. Laura pareceu confusa num primeiro momento pela presença da erva-doce.
"Mas mãe, esse biscoito é salgado ou é sweet? Ele tem aquelas mesmas seeds do outro, sabe? Aquele que era assim, long and thin and twisted."
Ela fala do Torcidinho. E sim, meus filhos estão fazendo uma bela de uma salada russa de inglês com português, o que às vezes é muito engraçado, mas tem me feito pegar um pouco mais no pé dos dois a respeito de concordância verbal e uso de preposição. Quando acontece esse troca-troca de palavras, repito suas frases com as palavras em português, para que não percam o vocabulário. Mas quando aparecem com frases inteiras e histórias contadas todas em inglês, sou chata num tom leve, e vou logo avisando: "Mamãe fala português.", ao que eles trocam o idioma novamente.
Quando brincam juntos, quase sempre o fazem inteiramente em inglês, trocando de volta para o português quando percebem que não estão se fazendo entender ou não estão convencendo um ao outro. As brigas são sempre em português. ;)
Vejo que eles têm dificuldades com palavras novas em português. É mais fácil aprenderem a falar Artichoke do que Alcachofra (que Laura transformou em Alfachoca). Os fonemas ingleses já fazem mais sentido na cabecinha deles.
Conjugação verbal é outra batalha. "Se eu fizesse" vira "se eu fazia", "que eu venha" vira "que eu venho", "eu fiz" vira "eu fazi", e já houve clássicos como "que eu vinhesse", "ter fazido", "ele iu", e muitos mais. (Isso considerando que eles saíram do Brasil conjugando verbos super bem - desaprenderam mesmo!) Sem contar as expressões idiomáticas traduzidas literalmente, como "mamãe, POSSO TER um pedaço de bolo?" (can I have a piece of cake), ou "Eu NÃO POSSO ESPERAR pela festa" (I can´t wait for the party), "ela VAI SER seis anos amanhã" (she will be six years old tomorrow) e "o dinossauro É ESSE GRANDE!" (...is THIS big, ao invés de "grande assim").
Fico feliz de ver que, apesar da confusão na hora de falar, eles ainda têm curiosidade com a língua-mãe. Laura às vezes pede ajuda para escrever frases inteiras em português, ainda que eu tenha que soletrar com a pronúncia em inglês para evitar a famosa bagunça do "I", "E" e "A". Thomas, por sua vez, já entendeu que a coisa toda de "sound the letters" para formar os fonemas das palavras também funciona em outras línguas, e começou a pegar livros e gibis em português para ler sozinho. Entendo sua dificuldade, enquanto ele lê em voz alta, todas as palavras soando num primeiro momento com sotaque de gringo. Mas tão logo ele reconhece o significado, repete em português correto, e assim ele vai, aprendendo a ler sua própria língua sozinho.
Ao vê-lo esparramado no sofá, óculos sobre o nariz pontudinho, cenho franzido, sério, pernas compridíssimas dobradas para apoiar o livro aberto, dou-me conta do seu tamanho. Menino gigante. Essa semana veio me dizer que quem lê 100 livros num ano ganha um pirulito e o nome marcado na lousa da professora. Lá veio ele feliz e contente dizer que faltam só 15, e que ele vai trazer dois por dia da escola, para poder bater sua meta mais rápido. (Lembrando que na escola aqui eles trazem um livro por dia para ler como lição de casa, mais o livro da biblioteca que podem manter por uma semana.)
Meu Matador de Dragões não é perfeito. Ele apronta pra burro na escola. Mas vê-lo tomar gosto por leitura me enche de orgulho.
A segunda fornada ainda tinha no papel as migalhas da primeira. |
Eles não são nadinha perfeitos, mas eram exatamente como eu me lembrava. |
Fazer Torcidinho para meus filhos me encheu o coração de alegria. Foi dar uma mordida para ser transportada novamente à minha infância. Eles não ficam bonitos como os que lembro de trazer da casa de minha avó, mas o gosto é o mesmo, a crocância, o modo como derretem na boca, deixando um sabor delicioso de manteiga dourada e um aroma delicado de erva-doce. Teriam sido sucesso absoluto se Laura não tivesse achado os biscoitos muito salgados. Aparentemente, pesei na mão na hora de polvilhar com sal a superfície antes de ir ao forno. (Cada vez que vou ao mercado há uma marca diferente de sal marinho, e cada um tem um teor diferente de "salinidade". Com esse último, percebi que muita coisa acabou ficando mais salgada do que normal mesmo.) Prometi maneirar da próxima vez, e ela prometeu experimentar de novo.
TORCIDINHO
(adaptado do livro Dona Benta de sabe-se lá que ano)
Rendimento: o bastante para o lanche da tarde de meia dúzia de netos.
Ingredientes
- 100g manteiga gelada
- 250g farinha de trigo
- 1 colh (chá) sal
- 1 colh (chá) fermento químico em pó
- 6 colh. (sopa) leite
- 1 colh (sopa) sementes de erva-doce
- 1 gema para pincelar
Preparo:
- Pré-aqueça o forno a 180oC.
- Numa tigela, misture a farinha, sal e fermento. Esmigalhe a manteiga com a farinha, esfregando entre os dedos, até obter uma farofa grosseira. Junte o leite e as sementes de erva-doce e amasse com as mãos apenas até que a massa fique uniforme.
- (Eu que sou moderninha, fiz no processador: pulsei a manteiga com a farinha, sal e fermento, uma ou duas vezes, só para fazer a farofa. Juntei o leite e pulsei mais umas duas vezes até a massa começar a querer grudar. A massa É SECA e deve ser sovada até se juntar bem, mas se estiver se esmigalhando muito facilmente, junte uma colher extra de leite.)
- Abra a massa com o rolo, com pouca farinha, apenas para não grudar, até a espessura de mais ou menos meio centímetro (se ficar muito fina vai quebrar na hora de torcer). Pincele a massa com a gema batida.
- Corte com uma faca em tiras compridas de 1cm de largura. Torça ligeiramente as tiras e disponha numa assadeira forrada com papel-manteiga.
- Leve ao forno por 10-15 minutos, virando uma vez no meio do cozimento para que não queimem embaixo e dourem por igual.
- Retire do forno e da assadeira e deixe que esfriem sobre uma grade.
Não foram apenas biscoitos as coisas novas que experimentamos. Ao dar de cara com um pé de escarola, coisa banal no Brasil, mas que por aqui é sazonal e eu quase nunca encontro, resolvi fazer um prato que não preparava desde que saí do país, e que é um de meus favoritos: peixe grelhado com escarola. Não era só a ausência da escarola, no entanto, que me fez ficar quase dois anos sem preparar algo tão simples. Também foi o problema da panela.
Veja bem, eu vendi todas as minhas panelas antes de sair do Brasil, menos a caçarola vermelha que Allex me deu de aniversário uma vez. Chegando aqui, pesquisei um monte, e acabei comprando um jogo de panelas de inox da Cuisinart em promoção (porque aqui só se compra coisa em promoção, já que todas as políticas de preço são feitas para o preço promocional ser o preço real, mais ou menos como meia entrada de cinema no Brasil), que estava bem avaliada e não ia comer nosso orçamento de imigrante recém-chegado.
Ah.
Nunca me arrependi tanto de vender minhas panelas WMF. Aquelas, alemãs, que haviam sido presente de casamento, duraram quinze anos, até eu vendê-las, sem nenhum dano estrutural. Nunca entortaram, nunca soltaram um rebite, nunca me deram problema. As Cuisinart... que deveriam ter fundo triplo e tudo o mais... entortaram na primeira vez que deglaceei a panela com vinho gelado. Ouvi um POC! vindo da frigideira, e seu fundo entortou e abaulou de uma vez e definitivamente. (Detalhe: eu nunca tive torneira de água quente na pia da cozinha lá no Brasil, e aquelas panelas WMF iam do fogão pra pia cheia de água fria direto, e NUNCA NUNCA NUNCA entortaram.)
:(
O fundo abaulado não seria um problema num fogão brasileiro, tradicional, em que a panela vai apoiada numa grade e o fogo se espalha por baixo dela toda. Mas aqui você aluga o apartamento e o fogão já vem junto. E eles são todos elétricos. E o meu, com essa superfície de vidro, só transfere calor para a parte da panela que está de fato encostada nela. Ou seja, metade da panela queima a comida, metade da panela deixa ela crua.
Além disso, a maior frigideira que viera no jogo não era grande o bastante para comportar dois filés de peixe ao mesmo tempo. E na primeira vez que tentei fazer peixe para a família inteira, terminei com filés meio queimados, meio crus, totalmente grudados na panela, e quando o último ficou pronto, o primeiro já estava gelado.
E por isso havia parado de fazer peixe grelhado.
Até o dia em que a octagésima torrada queimada me deu nos nervos e resolvi dar um basta. "Vou comprar uma frigideira nova", avisei. "Então pega um negócio bom de verdade dessa vez Ana, chega de solução provisória", disse Allex, já sabendo que eu ia querer economizar e pegar mais uma panela de inox que entortaria.
Pesquisei, pesquisei, e o início da Primavera trouxe toda uma temporada de liquidações em lojas de decoração e cozinha. E, sentindo saudades daquela minha caçarola verde que também vendi, que comportaria a quantidade brutal de comida que meus filhos andam comendo ultimamente (e, né? adolescência logo logo vem aí e eu tenho um moleque em casa), achei que um panelão seria mais interessante que uma frigideirinha.
E me arranjei de novo meu frigideirão-caçarola. Esse fundo ninguém entorta. ;)
E foi justo com o peixe e escarola que estreei a bonitona. A primeira alegria foi o pé inteiro de escarola caber nela de uma vez para ser refogado.
Escarola é minha verdura amarga favorita! |
A segunda alegria foi o peixe não ter grudado, eu ter conseguido fazer dois filés por vez com folga, e poder ter voltado tudo para a panela para servir.
A terceira alegria foi meus filhos, que reclamavam do amargor da escarola no Brasil, terem crescido e decidido que adoram escarola. Principalmente desse jeito.
Esse é um dos meus pratos favoritos de todos os tempos. Daqueles que me enche a boca de água só de pensar e que lá no Brasil eu preparava sempre que tinha escarola na feira. Talvez eu já tenha publicado a receita aqui antes. Mas por via das dúvidas, vai de novo.
PEIXE GRELHADO COM ESCAROLA
(sim, é da Tessa de novo, mas já fiz tanto que já sei de cor.)
Numa frigideira bem grande, coloque duas colheres (sopa) de azeite e dois ou três filés de anchova. Ligue o fogo médio-baixo e vá amassando a anchova com as costas de uma colher de pau. Quando a anchova tiver dissolvido, junte um grande dente de alho fatiado fininho. Assim que perfumar e começar a querer dourar, junte a escarola cortada em tiras grossas (um pé inteiro, lavado e seco). Tempere com POUCO sal e mexa até que ela comece a murchar. Aumente o fogo e continue cozinhando até que ela esteja macia e quase toda a água do fundo da panela tenha evaporado. Junte um punhado de azeitonas pretas picadas e uma colher (sopa) de alcaparras. Acerte o sal e a pimenta e transfira para uma travessa, mantendo aquecida.
Na mesma frigideira, aqueça mais um fio de azeite, um dente de alho pequeno, inteiro, e algumas folhas de sálvia. Tempere com sal e pimenta alguns filés de peixe branco de sua escolha (já fiz com linguado, pescada, e peixes mais altos e firmes). Passe os filés em farinha dos dois lados, bata o excesso, e frite os filés no azeite aromatizado, uns minutinhos de cada lado. (Quando o alho dourar, tire-o da panela.) Quando terminar de fritar os filés, retire-os da panela, desligue o fogo e esprema meio limão sobre ela, esfregando o fundo da panela com uma colher de pau para soltar a gordura grudada e fazer um molho. Regue o peixe com esse molho e sirva com a escarola preparada ainda quente.
Eu demorei muito, na verdade, para ter coragem de comprar a panela. Assim como para trocar a mesa da sala ou mesmo vender minha mesa de desenho, que era de vidro e metal. Havia uma coisa em mim que não queria admitir que eu tinha errado, que tinha tomado decisões às pressas.
Quando compramos a mesa pequena da sala, não queríamos gastar muito, mas, principalmente, achamos mesmo que não receberíamos gente em casa nunca, e que um espacinho só pra quatro estava bom. Ledo engano, a casa logo recebeu amigos, família, e mesmo para nós quatro a mesa não bastava. Era um quebra-cabeça para fazer caber os pratos, os copos e as panelas para as crianças se servirem. Quando meus pais vinham visitar e tínhamos de fazer caber seis numa mesinha de 120x70cm, então... vixe.
Quando comprei minha mesa de desenho, eu ainda tinha em mente a vida profissional que eu tinha no Brasil, os trabalhos que fazia lá, os clientes que tinha lá, o espaço, principalmente, que eu tinha em minha antiga casa. Eu queria muito voltar a desenhar, mas a confusão emocional da mudança não deixava, e me convenci de que o que faltava era a mesa, sem perceber que o que faltava era paz de espírito. Aqui, a mesa de vidro revelou-se desconfortável, pouco prática e me desestimulava a sentar para trabalhar. Ela acumulou pó por meses até me sentir em paz para usá-la diariamente, e foi nesse uso diário que percebi o erro que havia cometido. Mas eu tinha uma certa vergonha de admitir que tinha errado, que tinha feito uma compra ruim e meio que por impulso, ainda mais recém-chegada num país novo, e dizer que queria me livrar dela parecia quase ofensivo.
Com as panelas foi igual.
Quando cheguei com meu panelão vermelho aqui no Canadá, minha ideia era comprar uma panela por vez, segundo a necessidade aparecesse. Eu andava cozinhando de forma muito simples, e, num primeiro momento, parecia lógico apenas comprar uma frigideira e uma panelinha funda com cabo. Mas a muquirana em mim ficou aflita, pois pelo preço de uma frigideira excelente, eu poderia comprar um jogo inteiro de panelas que parecia muito boa. Estava em promoção, era uma oportunidade, faz muito mais sentido, eu dizia a mim mesma.
E daí que comemoramos o emprego novo do marido trocando a mesa numa promoção da Ikea (que acabou saindo o mesmo preço da mesa pequena). Consegui vender minha mesa de desenho para uma vizinha e usar o dinheiro para comprar uma prancheta portátil de madeira, que foi para cima da antiga mesa de jantar, que é agora minha mesa de trabalho, infinitamente mais confortável.
E por último, o panelão. Ele é vendido como Braiser (uma panela de brasear), mas é um excelente frigideirão, e quando paro para pensar, era a panela que eu mais usava no Brasil e sabe-se lá o que me deu pra decidir vendê-la. O almoço de Páscoa também foi feito nela, uma perna desossada de cordeiro assado à toscana, com azeite, alho, alecrim e sálvia, braseado com um pouco de vinho branco e batatas bolinha. Foi minha primeira vez assando cordeiro, e ele acabou passando um pouco do ponto rosé. Mas mesmo assim ficou muito bom. O que sobrou dele, desfiei e cozinhei com molho de tomate e congelei: ragù de cordeiro para comer com polenta. (Prefiro sempre congelar restos de carne em forma de ragù, pois o molho de tomate protege a carne de freezer burn).
IEEEEEEEIIII!!! As panelas cabem no meio da mesa! E a gente não come mais enfiando o cotovelo no prato do outro! :D |
O cordeiro passou bastante do ponto, mais ficou tudo danado de bom. |
Olha quem estava embaixo da mesa só esperando as sobras do cordeiro caírem do meu prato. |
O acompanhamento foram alcachofras recheadas (alcachofras limpas, abertas, espinhos retirados, recheadas de alho, salsinha e raspas de limão, um fio de azeite, cozidas em um pouco de água por trinta minutos, mais ou menos). Alcachofras são uma de minhas coisas favoritas, e uma memória culinária intensamente associada a meus pais. Todos os anos, perto do meu aniversário em Outubro, meus pais traziam alcachofras do mercado. Esse presente que eu esperava por estações inteiras. E enquanto elas estivessem na época, nós as comeríamos, cozidas, inteiras, solitárias nos pratos de louça, cada um com seu potinho de Pinzimonio (azeite, sal e pimenta-do-reino), para mergulhar as folhas e raspar com os dentes. Quando não houvesse mais folhas, meu pai me ensinaria a arrancar com os dedos em pinça as pétalas mais delicadas, cor-de-rosa, e então os espinhos, deixando o fundo cinzento da alcachofra com delicados furinhos de onde eles se haviam desprendido. Eu derramaria todo o restante do azeite temperado sobre aquele fundo e o comeria com garfo e faca, fazendo sons felinos de satisfação, saboreando aquela recompensa pela paciência de limpar e comer uma alcachofra pelas pétalas.
Comida que tem ritual me encanta.
E ver meus filhos fazendo o mesmo, arrancando as pétalas verde-acastanhadas, mergulhando no azeite e raspando a carninha pálida entre os dentinhos brancos, me enche de amor.
Talvez por isso eu esteja adorando tanto assistir a videos de velhinhas italianas cozinhando. Sinto saudades de minhas avós e sinto saudades de meus pais no Brasil. Mas me lembro da importância do ritual na cozinha.
Foi do canal da Nonna Maria que vieram esses panzerotti.
Panzerotti eram algo que eu me prometera preparar havia já muito tempo, desde o dia em que Allex e eu comemos um no Panzerotti da Luini, em Milão. O excesso de projetos culinários do passado me impediu de levar esse a cabo, e a preguiça de fritura em panelas pequenas aqui também. Depois da bagunça que fora fritar pastel na minha frigideira de 26cm, eu não tinha planos de fazer isso de novo.
Até o advento do panelão.
Os panzerotti fritaram lindamente e foram a alegria da sexta-feira e do resto do fim de semana. Porque a receita que leva mais de 1kg de farinha dizia que fazia panzerotti para 4-5 pessoas, mas obtive 24 panzerotti do tamanho de um pastel de feira, e fiquei me perguntando se um ser humano conseguiria numa sentada só mandar ver 6 panzerotti assim de uma vez. Thomas comeu 3, o que me surpreendeu um bocado (pra onde vai tanta comida naquele corpinho magrelo?). Eu comi dois e estava satisfeitíssima. A parte boa é que eles requentaram super bem na Air Fryer, ficando crocantes de novo.
A dica que eu dou é colocá-los no óleo de barriga para baixo primeiro. Pois se colocados virados para cima, o ar que resta junto com o recheio vira um grande balão, e você não consegue virá-los ao contrário para terminarem de fritar. (Você também pode ser mais caprichoso que eu e de fato tentar tirar o ar de dentro deles na hora de rechear. Mas eu fiz todo o processo com criança junto, e eles fecharam um monte dos panzerotti, então, né... o controle de qualidade caiu.)
Não é pra ser um comercial de panela, nem um post de Haul de compras. Mas é um pouco a respeito de se perdoar quando a gente faz burrada. Principalmente burrada com dinheiro. Todo mundo já fez uma compra ruim e se arrependeu depois. E todo mundo já ficou guardando aquela blusinha feia que não cabe por anos ainda com etiqueta, ou sentando todo dia naquele sofá desconfortável, simplesmente por medo de dar o braço a torcer. Claro, muitas vezes não dá pra voltar atrás. Passei o último ano inteiro olhando para as duas mesas e queimando comida em panelas deslizantes porque a conta não fechava, não dava pra resolver. Assim que deu, deu. Vendi o que dava pra vender pra não morrer no prejuízo, e resolvi o que eu podia. Precisava ser o panelão vermelho? Precisar, não precisava, eu poderia ter ido atrás de outra panela de inox de qualidade. Mas confesso que fiquei com tanto medo de ela estragar igual à outra, que, como Allex disse, fui atrás de uma solução mais definitiva. Chega de solução provisória. Ferro fundido não entorta. Ela é pesada pra chuchu, então não desliza. E cabe uma quantidade abissal de comida dentro. E dois pés de escarola. Então pronto. Estou feliz com o bichinho na minha cozinha.
Maio foi mês de coisas novas, novas receitas. Agora só precisa vir o calor de uma vez por todas, porque essa coisa de frio já virou velharia e cansou.