quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

O blog não morreu - dois livros e uma sessão de autógrafos


 

Por muitos meses quis começar esse texto com o título "Porque o blog morreu". Mas não tinha certeza se ele estava de fato morto ou apenas num sabático. 

Todas as minhas mudanças de casa transformaram meu modo de cozinhar. Seja porque a cozinha muda minha movimentação, seja porque os mercados têm ingredientes diferentes. Há também as distâncias até os mercados, a configuração do bairro, andar versus dirigir, a rotina das crianças e o tanto de trabalho que me consome. 

Numa tarde dedicada a preparar bombas de chocolate, a bomba que me atingiu foi a constatação de que eu preferia estar escrevendo a cozinhar. Olhei para as quatro horas do meu dia usadas para produzir aquele doce, e entendi: a fase passou. A pessoa alucinada por cozinha que fui um dia, que ia dormir planejando novas receitas, não estava mais ali. Quem usava aquela cozinha era alguém tranquila em preparar jantares sem grandes alardes, e o mesmo bolo de fubá para o lanche. O fogo da exploração de novas técnicas e ingredientes finalmente havia virado uma brasinha confortável de quem só quer comer um bom spaghetti. 

O mundo culinário na internet também estava saturado. Não havia  nada a respeito de comida que eu pudesse escrever que já não tivesse sido publicado. E não apenas publicado, mas melhor fotografado, mais bem testado, e com todas as promessas cansativas de "o melhor", "o perfeito", "o definitivo". 

E eu cansei. E eu só queria comer meu jantar em paz e mandar na lancheira das crianças uma barrinha de cereal que eu comprei no Costco, porque eu não tenho mais energia para fazer tudo o tempo todo. 

Acontece que nessa mesma época, o Instagram, onde divulgo meu trabalho de ilustração, escrita e arte, começou a dar problemas. Dei-me conta de quão instável era a ferramenta, e o problema que seria caso o Zuquebérgue resolvesse desligar ou mudar o aplicativo, ou simplesmente bloquear minha conta. Eu perderia o acesso àquelas pessoas que acompanhavam meu trabalho. Cada vez mais hackeado, o Instagram me fazia sentir presa a uma rede social que a qualquer momento poderia sumir, como o finado Orkut.

Mantinha o blog como meu principal canal de escrita, mas achava estranho escrever aqui sem falar de comida. O meio influencia o modo como nos comunicamos, e os textos que escrevo no Instagram não têm a mesma forma e conteúdo que os que escrevia aqui. Mas aquilo que eu gostaria de escrever aqui por alguma razão não fluía. O formato de longas entradas de diário que me acostumei a produzir no blog não funcionava mais para mim.

O blog foi ficando mais vazio depois que o Google desativou o Feed. Sem receber mais atualizações, quem quisesse me ler teria de lembrar que o blog existe, e acessar o endereço por livre e expontânea vontade. Ao mesmo tempo, eu me irritava com os cinquenta cometários por dia que eu precisava moderar: todos spam em outras língua, no meio de um ou outro leitor novo, que caiu de gaiato no blog, me perguntando de forma seca e grosseira sobre susbstituição de ingredientes numa receita que fiz uma vez só há dezesseis anos.

Em nome da minha paz de espírito, fechei os comentários do blog. No entanto, isso também fechou o canal de comunicação com meus leitores, que eu gostava tanto.

A solução, na época, foi criar um Apoia-se, que depois virou uma comunidade no Hotmart, e hoje é uma newsletter no Substack. Tentei plataformas diferentes, pagas, gratuitas, o que fosse. Queria escrever em uma plataforma que permitisse um contato mais direto e mais com quem gosta de ler as bizarrices que meu cérebro produz. Mas que também fosse estável, que não estivesse à mercê das flutuações de humor de um milionário sociopata.

A newsletter do Substack hoje funciona como um blog, onde posso escrever sobre qualquer coisa (e até sobre comida, se eu quiser), mas cuja vantagem é ir direto ao leitor. É uma ferramenta que tem menos chances de simplesmente desaparecer (e se desaparecer, eu tenho como avisar todo mundo), e onde eu sinto que tenho mais possibilidades como escritora. 

Mas agora que a newsletter está bem estabalecida, ainda que sujeita ao meu tempo e cansaço (que isso de prometer texto toda semana durou pouco), chegou a hora de voltar a esse espaço para dar notícias. E eu estive tão atrapalhada com a vida em geral, que não me dei conta de quanto tempo se passou desde meu último post aqui e tudo o que deixei de informar. 

No mais, continue acompanhando meu trabalho no Instagram: https://www.instagram.com/anaelisagg/ 

E vá conhecer e assinar minha newsletter, Boletos & Borboletas: https://anaelisagranziera.substack.com/

LANCEI UM LIVRO NOVO


 

Em novembro de 2022 saiu meu segundo livro, Manual das Decepções de Uma Vida Comum - contos e outras coisas. Uma experimentação com o conceito da decepção, da desilusão: pequenas histórias, poemas e ilustrações a respeito do momento em que a ilusão é quebrada, e nos defrontamos com a realidade. Tudo permeado com o tipo de humor ao qual vocês se acostumaram por aqui.  

O livro foi publicado pela Mocho Edições. e está à venda no site da editora.

COMPRE MANUAL DAS DECEPÇOES AQUI

No momento do lançamento, eu estava atrapalhada com o processo da cidadania canadense, que deixa a gente seis meses sem passaporte. E por conta disso, não consegui ir ao Brasil para o lançamento presencial. 

Mas isso mudou: amanhã embarco para São Paulo. E no meio das minhas férias, realizo um sonhon de infância: minha tarde de autógrafos em uma livraria. 

LANÇAMENTO E SESSÃO DE AUTÓGRAFOS

DIA 9 DE MARÇO, DAS 15h ÀS 18h
Na Livraria Martins Fontes - Consolação
R. Dr. Vila Nova, 309, Vila Buarque - São Paulo - SP

ESPERO TODO MUNDO QUE PUDER IR! SE VOCÊ JÁ TEM MEUS LIVROS, VAI DAR UM OI E PEGAR O AUTOÖGRAFO! VOU ADORAR CONHECER VOCÊS!


 PERAÍ - LANCEI OUTRO LIVRO

Não satisfeita, em 2023 lancei meu terceiro livro, Pandora Não Dormia - poemas de noites insones. Um mergulho na mente neurótica de quem não dorme, nos fantasmas do luto e na redenção de um dia que nasce. Pandora Não Dormia é meu projeto mais precioso, pois teve escrita, edição, projeto gráfico, diagranação, ilustração e capa assinados por mim. Trabalho completo, realização de sonho em forma de objeto. Apesar de ter sido escolhida por duas editoras, quis publicar Pandora de forma completamente independente, para ter controle de todos os processos e tentar resolver algumas das dificuldades da autora expatriada.

Hoje chega à casa dos meus pais uma caixa inteira de Pandora Não Dormia, que vou autografar e enviar de São Paulo para o Brasil. Se você quiser o seu, me manda um email (anaelisagg(arroba)gmail.com). Vou autografar os livros na segunda semana de março e enviar.

Pandora não vai ter lançamento presencial, e nem acho que posso vendê-lo no evento do Manual das Decepções. Mas além de comprá-lo direto comigo, autografado, você também pode pedir na Amazon: 

COMPRE PANDORA NÃO DORMIA AQUI

 

E é isso, pessoal. 

O blog continua por aqui, ainda meio sem saber se é ou deixou de ser. Assine minha newsletter para receber crônicas, cartuns e novidades. Há muio mais coisas minhas publicadas por aí. Como o livro infantil que ilustrei, as crônicas e contos publicadas em portais e revistas literárias, e as coletâneas das quais agor faço parte. O Instragram continua mostrando o dia-a-dia dessa doida que vos escreve, e as pinturas e ilustrações que produzo. SE você tiver uma encomenda, manda uma mensagem. EStou aceitando encomendas de capas de livros e diagramação também!

Beijos a todos e espero ver vocês no meu lançamento na livraria! Quem não quer ver minha cara de pangaré cansado morrendo de emoção de realizar um sonho? 

Inté.


quarta-feira, 1 de junho de 2022

Uma salada basta

 

Era para ter refeições no jardim, mas hoje choveu. E calhou que hoje, essa semana, como é todo o período antes de se sair de férias, há muito trabalho. E come-se na frente do computador. 

E poderia comer na frente do computador como fazem os canadenses, deglutindo apressadamente um qualquer coisa comprado pronto. Mas há prazeres dos quais não abro mão para não adoecer de alma, e um deles é preparar meu almoço. 

Saladas. Que há com as saladas que me encantam há tantos anos? Que desde tempos imemoriais (ou bem memoráveis, bem marcados aqui no blog), me faço saladas para almoçar solitária, enquanto assisto a algum video besta de cozinha ou olho os passarinhos entre nuvens pela janela. Às vezes levo mais tempo para prepará-las do que para efetivamente comê-las, mas assim me sinto acarinhada, cuidada, abraçada por esses meus mesmos braços que apanham panelas para dourar croutons e tigelas para fazer um molho.

Mesmo com as crianças, as saladas insistiram em se fazerem presentes. Digo aos dois, tão crescidos, como sinto falta dos nossos almoços tranquilos depois da escola no Brasil. (A memória é essa coisa linda, que esquece as birras no estacionamento da escola, as lutas para convencer a criança a provar a rúcula, ou o dilema de tirar ou não tirar a criança dormindo da cadeirinha do carro pra vir almoçar, já que o almoço tá pronto e aquela soneca zoa a rotina, mas a criança acordada da soneca vai ficar fula e não vai comer nada de qualquer forma.) Mas sou sincera: sinto saudades. De quando eles primeiro aprenderam a comer salada, ainda petititicos, apanhando com as mãozinhas cunhas de alface americana, e mergulhando num molhinho de iogurte. De quando eles já tinham idade para comerem sozinhos, e os ensinei a espetar a dobrar a folha de alface no prato e usar a faca para espetar o pacotinho verde na ponta do garfo, coisa muito educada. De terminar o almoço salada+omelete de bistrô com umas fatias de queijo bom e uma fruta. Na época em que o Thomas ainda comia fruta. (Vitórias, no quesito criança, são sempre passageiras.)

A escola canadense, que os mantém fora de casa quase todo o dia, me lançou de volta às saladas solitárias da juventude. E continuo deliciada com essa refeição leve que não me arrebata de sono no meio do dia. Essa oportunidade de criar misturas e misturar cores e texturas. 

Alface americana rasgadinha, abacate, rabanete. Tem verdura mais bonita que rabanete? 

Um molhinho improvisado que vale ser guardado para repetição: iogurte, azeite, vinagre de maçã. Assim no olho e no paladar, que você decide quão líquido ou quão ácido quer seu molhinho. Cebolinha, salsinha, coentro e hortelã, partes iguais, e bastante, seja generoso, muito bem picadinhos. Sal, pimenta-do-reino. Um alho pequeno, bem amassado. Mistura bem. Fica mais forte e gostoso se feito com antecedência. Croutons fresquinhos, pãozinho rasgado dourado no azeite e alho. (Pode amassar esse alho dourado e meter no molho também.) E só.

Que assim já tá mais que bom. 

Agora me dá licença pra catar um cafezinho, que o almoço acabou e eu tenho trabalho a fazer.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Visita fácil e quiabo acebolado com pimentão


Às vezes, eu tenho um plano. Meu plano, em primeiro lugar, com meus pais visitando por duas semanas, era me dar a oportunidade de conhecer a cidade onde moro há um ano, e que por tanto tempo esteve fechada para mim, por quarentenas e invernos intermináveis. Levei-os a todos os restaurantes que queria conhecer, a todos os lugares bonitos que eu nunca vira, tão turisticamente quanto possível.


Meu plano, era, também, não ter trabalho. Porque anfitrião cansado fica chato. E cozinhar para muita gente todo dia nem sempre é assim aquela alegria.

As crianças levaram sanduíches de almoço, e Allex resolveu muitos jantares infantis com pizza e pipoca, quando os adultos ainda estavam empanturrados das porções canadenses do almoço. 

Mas quando a fome e a vontade bateram, fui à cozinha preparar um jantar para seis sem complicações. Complicações, no caso, sendo muitas panelas, muitos preparos simultâneos ou excesso de mis-en-place. Mas pode ser simples e também saboroso, que se meus pais pegaram tantas horas de voo para visitar, não era minha intenção que jantassem gororoba de terça-feira e resto de geladeira.

Num dia, lancei mão de um pacote de ravioli de ricotta que é BEM gostoso, apesar de pronto, e, enquanto cozinhava, derreti uma quantia generosa de manteiga na frigideira grande, com um alho fatiado e folhas de sálvia (mas pode ser alecrim), até que dourasse. Juntei uns punhados de folhas de espinafre, uma pitada de sal, e deixei que murchassem na manteiga aromática. Foi mais outros punhados de tomates-cereja cortados ao meio, uma misturada, e antes que o tomate desmanchasse, os ravioli cozidos, remexendo muito bem até que os travesseirinhos de ricota se encobrissem de molho. Muita pimenta-do-reino e muito parmesão. Um prato que eu repito sempre, desde que minha amiga Marina e eu o criamos quando estávamos na praia, na minha visita ao Brasil em fevereiro.E eu sempre esqueço de fotografar.

Noutro dia, porque havia comprado confit de pato no Costco (às vezes vou ao Costco do Quebec porque lá se compra dessas coisas #phynas a preços módicos), liguei o forno bem alto, lá pelos 225oC, e lhe botei dentro uma assadeira com batatinhas com sal e azeite, cortadas ao meio, para cozinharem mais rápido. Enquanto elas assavam, cozinhei as coxas de pato como dizia embalagem (é coxa de pato temperada, imersa na própria gordura, que você só termina de cozinhar e doura no grill), descasquei os aspargos e lavei os fiddleheads, que são brotos de samambaia que só dão na primavera. Cozinhei os aspargos rapidamente em água fervente, e em seguida os brotos, que foram passados na água fria para parar o cozimento, e temperados com sal, azeite, suco de limão e alcaparras. Abri o forno, e espalhei os fiddleheads sobre as batatas, com fatias de limão, para que as temperassem e terminassem de dourar, assim, tudo junto. No finalzinho, entraram os aspargos, só para aquecer, quando então liguei o grill para dourar a pele do pato. Acho que os brotos de samambaia podem ser tranquilamente substituídos por vagens finas. Servi assim, direto na assadeira, que aqui em casa panela vai pra mesa com visita ou sem visita, que eu é que não tenho vocação pra ficar lavando louça desnecessária.

 
Em seguida, porque meu pai gosta de peixe, comprei um filé de salmão Sockeye, típico aqui do Canadá, que veio congelado. "Vai dar tempo de descongelar até o jantar?" Ô, se vai. Coloquei o salmão no pacote fechado em cima da secadora de roupas quentinha, enquanto ela secava nossas toalhas. #lifehacks. Haha. E voilà, salmão descongelado a tempo do jantar. Lá vão de novo as batatinhas no azeite em forno alto, que batatinha é um negócio maravilhoso pra encorpar jantar.
 
Enquanto isso, seco o salmão com papel toalha, e espalho nele todo azeite, sal, pimenta-do-reino. salsinha e cebolinhas picadas, raspas e suco de limão. E largo, em temperatura ambiente, até as batatas estarem quase prontas. Enquanto isso, cozinho as vagens. Tiro a assadeira quente de batatas, e abro espaço no meio para o peixe, que faz som sibilante de fritura assim que é transferido e a pele toca o metal quente. Espalho as vagens à volta, tempero tudo com limão e azeite, e volto ao forno, por uns 15minutos, até o peixe ficar opaco. Salsinha sobre os legumes nunca é demais. Acompanhou uma salada de alface e tomates bem temperadinha, e um aïoli (maionese com alho) que bati no olho enquanto o peixe cozinhava. Lembrei na hora daquele salmão com vagens e aïoli do Jamie Oliver, que postei aqui nos primórdios do blog, falando sobre como apresentar a comida toda empilhada no prato fazia ela parecer chique. O tempo passa, o tempo voa, e Ana Elisa não empilha comida no prato, mas espalha na assadeira, que é BEM mais prático. E quem não acha isso lindo, sai pra lá.
 

 
Quando não teve jantar propriamente dito, teve mesa de acepipes, que eu fui muito bem ensinada que uma tábua de frios, um pão e um vinho é jantar sim senhora, e ninguém fica cansado. E eu aproveitei para comprar uns queijos gostosos e uma manteiga de leite de cabra, que eu sei que eles não comem no Brasil, principalmente com os preços exorbitantes de hoje em dia. 
 

Ainda outras, vezes, Allex pilotou a churrasqueira, num dia bonito, churrasco propriamente dito, em que eu esqueci de comprar tomate para o vinagrete, então improvisei uma salsa verde que fica delicinha com a picanha e o queijo coalho. 
 
No outro dia, que acabou virando um susto, ele fez hambúrgueres recheados de queijo e pimenta jalapeño, que ficaram tão bons que eu o incumbi agora de catar uma receita de hambúrguer de porco com queijo manchego da Suzanne Goin e preparar pra mim semana que vem. 
 

 

 
O susto veio porque tinha chuva prevista, e a gente lá no quintal rindo que todo mundo tinha comido hambíurguer e a tal chuva não tinha acontecido. E ela caiu de uma vez só, e com ela caíram metade das árvores e postes de eletricidade da cidade, e enquanto escrevo isso ainda tem 45 mil pessoas em Ottawa sem energia elétrica, desde a semana passada. :(

O susto aqui foi só o bosque atrás de casa, que foi parcialmente destruído, mudando a luz que entra na casa e a vista do quintal. 

Mas voltando à comida.

Conforme o jantar aparecia pronto na mesa, minha mãe ria: "como isso saiu tão rápido? Eu nem vi você cozinhando". Aaaaaaanos de prática de picar legumes com faca grande, mãe! Haha. ( A resposta engraçadinha seria "É que vocês tavam bebendo vinho e não viram!" Haha) Mas também... Eu tinha um plano. A comida toda pronta na cabeça, exatamente como quando eu desenho e tenho o processo todo ensaiado na mente. E é engraçado ver como os processos se parecessem. Quando comecei a pintar, eu olhava uma imagem, e não fazia a menor ideia de como chegar naquele resultado, ainda que eu tivesse todos os instrumentos à disposição. Precisava de um passo-a-passo, um primeiro isso, depois aquilo, se você misturar esse com aquele, produz esse resultado, mas aquele com esse outro não funciona junto. Com o tempo e a prática, o cérebro começou a juntar lé com cré, e a mão passou a obedecer sem resistência, sem questionar. Sem "será que?". E eu já não penso mais no nome das cores quando pinto. Olho a imagem, e o processo inteiro está lá, como quem olha um ser humano e enxerga camadas de tecidos e músculos e veias e ossos, e apenas entende. 

Ultimamente a cozinha tem sentido assim. Um ter em mente um resultado e de alguma forma saber chegar nele. Apanhar temperos sem questionar e seguir processos numa ordem quase coreografada. 

E flui. E dança. E é muito gostoso.  

Também tem disso de a gente entender que não precisa ter vinte ingredientes, nem precisa ser tudo complicado. Se tem um pedaço da refeição que me exige muita atenção, que o acompanhamento seja uma salada, ou qualquer coisa que eu esqueci no forno. Tem essa dança dos tempos. De não se arranjar muita sarna pra coçar. Ah, Nigella, hoje eu super te entendo. 

E ontem, já sem meus pais, fui ao mercado com outro plano. Eu queria quiabo. Mas quiabo colorido. Um prato suculento, para acompanhar o arroz branco com louro e o feijão que eu já tinha pronto. Quiabo com o quê? Pensei. Com pimentão.Amarelo, pra ficar bonito com o verde do quiabo. E que mais? Cebola, óbvio que fatiada. Vai bem cominho. Coentro, com certeza. Ah, se tivesse uma pimenta dedo de moça, mas não tem disso aqui no Canadá ou eu que nunca achei. Tudo bem, completa o molho de pimenta bem brasileiro e aromático que meu pai fez aqui para o Allex. Limão pra levantar o prato.

 E ficou tão bom, mas tão bom, que no dia seguinte mandei no almoço das crianças arroz e feijão com outra coisa, e fiquei com o quiabo que sobrou só pra mim. Torrada, queijo de cabra, e o quiabo com pimentão acebolado assim mesmo frio no pãozinho quente. 

Afe, que comida boa!

Meu plano era comer bem, me divertir e não ter trabalho, e as duas semanas passaram deliciosamente leves. Agora é manter essa dança boa e continuar cozinhando com prazer. E sem complicação, que a vida já tem disso de sobra. 

Cadê a próxima visita pra eu levar pra passear?


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QUIABO ACEBOLADO COM PIMENTÃO

Rende 4 porções.


Ingredientes:

  • 500g quiabo pequeno, do tamanho de um dedo
  • azeite de oliva
  • 1 cebola  média, fatiada em meias-luas
  • 1 dente de alho grande, fatiado
  • 1 pimentão amarelo grande, sem a parte branca, cortado em cubos de 2cm
  • 1 /4 colh (chá) sementes de cominho
  • 1 folha de louro
  • meio maço de coentro, picado
  • suco de meio limão tahiti


Preparo:

  1. Esquente uma frigideira grande em fogo médio. Enquanto isso, fatie os quiabos na diagonal, com mais ou menos 1cm de espessura. 
  2. Coloque um fio generoso de azeite na frigideira e espalhe os quiabos fatiados na frigideira, de preferência numa camada única. NÃO SALGUE. Você não quer que ele solte água ou baba, mas quer que ele seque e doure. Mexa uma vez ou duas, para garantir que todos os lados ficaram dourados. 
  3. Tempere com uma pitada de sal, a folha de louro, o cominho, mais um fio de azeite, e junte a cebola. Misture bem. Coloque mais uma pitadinha de sal, e junte o alho e o pimentão em cubos. Misture bem, e mantenha em fogo médio, mexendo de vez em quando, até que o pimentão esteja macio e a cebola tenha caramelizado um pouco. Se a panela parecer seca, junte mais um fio de azeite. 
  4. Continue cozinhando, abaixe o fogo se necessário, até que os legumes estejam bem macios e dourados. Junte o suco de limão, raspando o fundo da panela (que vai ter pegado um pouco, por conta do quiabo), com uma colher de pau. Desligue o fogo, acerte o sal e a pimenta-do-reino e junte um punhado generoso de coentro picado. Sirva imediatamente ou guarde para comer com pãozinho no dia seguinte, que os sabores se intensificam. 
  5. Coisas a se testar, mas que devem ficar maravilhosas: pimenta-dedo-de-moça picada refogada junto com a cebola, ou usar óleo de gergelim e refogar gengibre junto. Nham.


quinta-feira, 7 de abril de 2022

Primavera, primavera, primavera. Falei que é primavera? É primavera.

April showers, May flowers. Chove, primavera, chove.

 

Era a "última" semana de inverno (oficial).

Meto aspas e parênteses assim na frase como marca da minha revolta anual contra as primaveras quentes e abundantes de flores dos marços e abris (abrils?) de outros pedaços do hemisfério norte. A gente aqui bem sabe que lá em Toronto a última neve é sempre na segunda semana de abril, e que não dá para se empolgar muito com os quinze graus surpresa no meio de março - peguei o trouxa que achou que o inverno tinha acabado. Mas a vizinha aqui em Ottawa já avisou pra só plantar o jardim no fim de maio, que ainda tem geada vindo por aí. Enquanto isso há ainda montinhos de gelo sujo aqui e ali, neve na sombra e gelo nas trilhas, e a lama e os galhos no canteiro morto fazem meu quintal parecer jardim de casa abandonada.Só falta a janela quebrada à pedra.

Ainda assim, permito-me alegria com qualquer raio de sol que esquente, qualquer temperatura de camiseta, qualquer convite que a varanda faz para um café. Um café que se mantenha quente até o fim. Quem já levou xícara de chá para fora, no pico de -30 graus do inverno, aprende rápido lições de física. O universo tende à entropia e o quentinho do seu chá vai sumir em 3, 2, 1. Puff. Chá gelado.

Obrigada, temperaturas positivas da pseudo-primavera canadense, por permitir a manutenção da quentura do café por uns minutinhos.

Primavera lembra que a gente também é bicho, ao contrário do que eu sempre digo, que bicho também é gente. Assim que você vê aquela cadeira seca e sente aquele ar que não dói o rosto, sente nas entranhas uma agitação, um fuzuê um je ne sais quois nas entranhas, e tudo o que você quer é ser conduzido para um espaço que não tenha teto, não tenha parede mas dê pra botar uma rede. E ali no great outdoors, você se dá conta de que, no mesmo dia em que toda a sua civilizada humanidade se dignou a botar a cara para fora da sua casinha climatizada, os gansos e as gaivotas voltaram, os racoons estão procurando restos dos seus churrascos alucinados de inverno, e os Chipmunks já começaram a fazer buracos no gramado do seu vizinho que acabou de descongelar (o gramado, não o vizinho). Red-winged black birds já estão bicando cabeças de pedestres, robins estão tentando fazer um ninho na luminária da sua porta, e, óbvio, sua filha encontrou a primeira aranha embaixo da cama. 

Coelhinho, se eu fosse como tu, continuava aparecendo todo dia, porque eu acho você muito fofo.


Você não é especial, e aquela vontade louca de começar um projeto criativo novo é só seu corpo primata e selvagem reagindo à mudança de estação. Isso e as alergias. Ah. As alergias. 

A primavera este ano tem um gosto mais doce. O fim do inverno e do March Break também anunciaram a reabertura completa de Ontario. Bares, restaurantes, museus, galerias, cafés, estádios, piscinas, bibliotecas, todos os espaços se enchem mais uma vez de vida. Respiro aliviada o ar fresco da certeza de que esse ano meus shows, meus eventos, minhas viagens, minhas corridas, nada disso será cancelado. Inspiro a saudade da vida normal com a antecipação de quem guardou o último pedaço de bolo para depois e o esqueceu no fundo da geladeira. Lembra esse bolo? Lembra como era bom? Abre o pote. Pega um garfo. Dá pra comer bolo de novo. Vê só que delicia.

Primeira saída do ano, depois de 826 quarentenas.

 

Plena desse furor primaveril, e da esperança de ver flores e borboletas novamente (seis meses de inverno fazem qualquer um começar a acreditar que verão é um conceito inventado e uma alucinação coletiva), comecei a escrever nova histórias, projetos de novos livros, me enfiei em projetos de ilustrar histórias dos outros, inscrevi-me em cursos, montei finalmente minha agenda de treino para a maratona de Ottawa, inscrevi-me em concursos, editais, antologias, pintei, desenhei, fiz planos. Planos! Lembra fazer planos? Ai que bolo bom, né?

E no meio dessa vontade veio vontade de fazer sorvete. Há quanto tempo não fazia sorvete! Se é para celebrar saudade, pego a saudade do maracujá. Essa fruta que não se via em Toronto e aqui, veja só, tem no mercado do lado de casa. Do pequenino, europeu, com preço de coisa europeia, mas de mesmo aroma de infância que os amarelões lá do Brasil.

"Esse é o melhor sorvete que eu já comi", disse Allex.

"Dos que eu já fiz?", perguntei.

"Não, da minha vida."

"Faz isso SEMPRE", pediu Thomas.

"Sempre não, mamãe. Só de vez em quando", disse Laura. "Porque é tão bom que eu não quero que vire comum e perca a graça."

Menina esperta.

Sol.

 

Que essa é a graça da primavera. O sol sair de vez em quando, no meio de uns dias gelados. O musgo surgir de repente, brilhando verde, ao pés das árvores, depois de seis meses de neve. O dia bonito que puxa pra fora e amanhã joga pra dentro, de chuva, vento e geada. Alegrias pontilhadas num rabicó de inverno. 

Há muitos pássaros cantando lá fora, interrompendo o longo silêncio invernal. Os robins e os chickadees mergulham dos galhos aos restos de neve no chão, buscando as sementes de girassol que lhes joguei em novembro, antes da primeira nevasca. Eles bicam bolas de neve cravejadas de pontos pretos, sob a garoa, agitados de felicidade pela promessa de dias melhores. Como eu e o sorvete de maracujá.

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 SORVETE DE MARACUJÁ

(da última edição do livro The Perfect Scoop, de David Lebovitz)

Rendimento: faz só 750ml


Ingredientes:

  • 1/2 xic (125ml) polpa de maracujá fresca ou congelada, sem sementes (eu usei polpa congelada), mais uma colher bem cheia de sementes de maracujá para colocar no final
  • 1 xic (250ml) creme de leite fresco
  • 6colh (sopa) (90ml) leite integral
  • 7 colh (sopa) (85g) açúcar
  • Uma pitada de sal
  • 3 gemas de ovo
  • raspas de uma laranja pequena (opcional, e eu não usei)

 

Preparo:

  1.  Misture numa tigela grande a polpa de maracujá e 1/2 xic do creme de leite. Posicione uma peneira sobre a tigela.
  2. Numa panela pequena, misture o leite, o açúcar, o sal e o restante do creme de leite e coloque em fogo médio-baixo para aquecer até quase a fervura.
  3. Numa outra tigela, bata as gemas com um fouet ligeiramente. 
  4. Devagar, vá juntando a mistura de leite quente às gemas, batendo sempre com o fouet. Quando estiver tudo misturado, volte o líquido à panela e leve ao fogo baixo.
  5. Cozinhe, misturando com uma espátula, raspando bem o fundo, num movimento em 8, até que a mistura engrosse um pouco, cobrindo as costas da espátula e ficando com consistência de iogurte líquido. NÃO DEIXE FERVER, ou a mistura vai talhar. 
  6. Passe o creme pela peneira sobre a mistura de maracujá, junte as raspas de laranja se estiver usando, e misture com a espátula até que pare de sair vapor. (SE sua tigela for de metal, você pode colocá-la sobre outra tigela com gelo para acelerar o processo.
  7. Leve a mistura à geladeira por algumas horas (da minha experiência, a textura do sorvete melhora se você deixar a mistura na geladeira durante a noite), e coloque na sorveteira, seguindo as instruções do fabricante. Quando o sorvete estiver quase pronto, junte as sementes reservadas, para que a máquina termine de incorporá-las. 
  8.  

 


Já que estamos no tema dos pontilhados, vamos também de biscoito de aveia com passas. Não encontrei aqui no blog essa receita, que é minha favorita por ser tão fácil, e que adaptei de uma outra, de chocolate chip cookies. (Para voltar aos chocolate chip cookies, basta trocar a aveia por nozes ou pecãs picadas, as passas por chocolate chips, e omitir a canela e noz moscada. Esta receita é tão simples que Laura fez sozinha. "Agora EU sou a baker da casa. Eu que faço todos os doces", ela anunciou. 


 

BISCOITOS DE AVEIA COM PASSAS

Adaptado não sei mais de onde. Faz 18 biscoitos imensos ou até uns 48 pequenininhos, a gosto do freguês.

Ingredientes:

  • 1 xic. (230g) manteiga sem sal, derretida
  • 3/4 xic. açucar mascavo apertado na xicara
  • 3/4 xic açúcar
  • 1 colh (chá) sal
  • 2 colh (chá) extrato de baunilha
  • 2 ovos grandes
  • 2 1/4 xic farinha de trigo
  • 1/2 colh (chá) bicarbonato de sódio
  • 1/4 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1 colh (chá) canela em pó
  • 1/4 colh (chá) noz moscada ralada na hora
  • 2 xic uvas passas escuras, sem sementes
  • 2 xic de aveia laminada ou em flocos


Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 180oC, com as grades posicionadas nos terços inferior e superior do forno. Forre duas assadeiras grandes com papel-manteiga.
  2. Numa tigela grande, coloque a manteiga derretida, os dois açúcares, sal e baunilha, e misture com um fouet até que o açúcar tenha se dissolvido na manteiga e a mistura esteja homogênea.
  3. Junte os ovos, um a um, e misture bem. 
  4. Troque para uma espátula e incorpore a farinha, bicarbonato, fermento, canela e noz moscada, até quase ficar homogêneo. Não tem problema e ainda houver traços de farinha não misturada nesse ponto.
  5. Junte as passas e a aveia e misture até que a massa esteja uniforme e as passas estejam bem distribuídas.
  6. Use uma colher para tirar porções iguais de massa e distribuir nas assadeiras. Deixe espaço entre os montinhos de massa para que ela espalhe. (Calcule o dobro do tamanho do montinho) Como a aveia absorve muito líquido, no entanto, a massa fica mais firme do que a versão original da receita, com choocolate e pecãs, e não espalha tanto (no caso da receita original, a massa era levada à geladeira por uma meia hora antes de ser porcionada). Eu gosto de usar os dedos molhados com água para achatar os montinhos um pouco, para que os biscoitos assem num formato mais uniforme e não fiquem tão gordinhos no meio, mas fica a gosto do freguês. 
  7. Leve as assadeiras ao forno e asse por no mínimo 15 minutos, trocando as assadeiras de posição no meio do cozimento. O tempo de cozimento vai depender do tamanho do biscoito. Já fiz estes em porções de 1 colh. (sopa), que ficam mais crocantes por inteiro, os da foto são de montinhos de 2 1/2 colh (sopa) (que é o volume daquela colher de sorvete com mecanismo que solta a bolinha) e já fiz os biscoitões americanos da receita original, em que cada bolinha de massa tem 1/4 xícara (4 colh. sopa), e esses são os que ficam mais chewy no meio, por conta do tamanho. O meio termo é o que mais gosto. Para os biscoitos da foto, o tempo foi cerca de 18 minutos, até que as beiradas tivessem dourado bem. A parte debaixo do biscoito precisa estar de um dourado castanho bem caramelado. Se estiver da mesma cor da parte de cima, ainda não está pronto. 
  8. Retire as assadeiras do forno e deixe que esfriem sobre grades por alguns minutos, antes de transferir os biscoitos diretamente à grade para esfriarem. Ao esfriarem, eles ficarão crocantes. A massa pronta e formada em bolinhas pode ser congelada por meses e vai direto ao forno, precisando apenas de uns minutos a mais para cozinhar.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Enquanto isso


Enquanto isso, as crianças pegaram covid. Assim, nos quarenta e cinco do segundo tempo, quando ninguém mais acreditava que pegaria qualquer coisa. Primeiro Thomas. E no fim da quarentena de cinco dias dele, praticamente sem sintomas, foi a vez da Laura. E eu que já estou acostumada com isso de quarentena, que nunca se viu tanta quarentena no mundo quanto aqui no Canadá, larguei (quase) tudo o que estava fazendo e meio que (quase) tirei férias. Assim, jogando a toalha mesmo.

Thomas brincou de tocar uma sineta lá do seu quarto toda vez que queria algo, e eu fiquei brincando de stairmaster2000, subindo e descendo três lances de escada a cada vez que a sineta tocava. Laura achou graça de fazer a mesma coisa na vez dela, e depois de duas semanas, acho que virei o cão de Pavlov, e subo e desço escada sem motivo nenhum se ouvir um sino tocar. 

Primeira semana, todo mundo confinado, e eu sabia que seria impossível trabalhar direito com a Laura, que não gosta de brincar sozinha, pendurada no meu pé pedindo pra ver o que eu estava fazendo o tempo todo. Enquanto eu terminava uma pintura encomendada, já com prazo atrasado, ela sentava no chão ao meu lado e desenhava também, não sem me interromper vinte e sete vezes para perguntar por que é que eu nunca tinha usado aquele tablete de tinta rosa, ou porque é que eu ainda não tinha botado o verde das árvores. 

Vai ver um desenho, criança.

Paz.

Tinha também newsletter para entregar, e ainda bem que a semana anterior tinha sido produtiva, e eu havia escrito crônicas novas todos os dias e rabiscado um bocado de cartuns no meu caderno. Ainda bem que eu tinha resolvido burocracias e marcado reuniões e ido ao correio, e foi como se o universo tivesse me pegado pela mão e me feito resolver tudo o que precisava ser resolvido antes de poder declarar férias covídicas em casa.

Ainda bem também que eu tinha ido à biblioteca catar os livros reservados antes de descobrir a criança encovidada. 

Entre uma sineta e outra, sentei minha cansada busanfa na poltrona e li desavergonhadamente.

Curioso que a criançada aprendeu a respeitar meu tempo de leitura cedo na vida. Mas nunca tendo visto mamãe trabalhando fora de horário escolar, têm certa dificuldade de me ver curvada sobre minha mesa e concluir que não estou disponível.

Aprendizagens.

Agora ensino que quando mamãe tá lendo também é trabalho.

Calhou que nessa do universo pegar pela mão, num surto de siricotico, um dia antes de o pimpolho desenvolver sintomas leves e testar positivo, eu enchi o carrinho do mercado como se me preparasse para uma hecatombe nuclear. Dessas intuições inexplicáveis, já que desde que me mudei para essa casa, tenho ido diariamente ao mercado para comprar os ingredientes do jantar, no melhor estilo "moro em Paris e minha geladeira é um frigobar". Só que eu moro em Ottawa e minha geladeira é imensa e está sempre vazia. 

Minto. Sempre tem queijo. E um vinho. Acho que isso prova que meu cérebro anda confuso e realmente acha que mudou pra Paris. 

Só quem conhece o subúrbio de Ottawa vai saber quão ridícula foi essa última frase.

Enquanto isso, me enchi de vontade de cozinhar. Vontade de fazer pão, que fazia tempo não surgia. Vontade gerada pela necessidade, já que tinha farinha mas não tinha pão, essa uma coisa que eu não tinha comprado no mercado antes de ser trancafiada em casa. 

Fui direto no pão de forma de sempre, sem dificuldades. E fazer pão, mesmo que por necessidade, não pareceu obrigação. Lembrei o que me encantava no processo. Peguei-me mesmo com saudade do gosto do meu pão. 

E enquanto o irmão estava trancado no quarto, Laura resolveu que queria fazer brownies. E escolheu a receita, e separou os ingredientes - mamãe, qual desses potes é Nutmeg? - e ligou o forno, e derreteu manteiga, e misturou tudo, e botou na forma - mamãe, segura a panela pra eu raspar, que é muito pesada - e tirou do forno, e desenformou, e cortou em quadradinhos, e depois ficou regulando que ela era quem decidia quando quem ia comer o quê, que ela que tinha feito sozinha. E aí tomou bronca que eu sempre faço bolo e não fico regulando. E aí todo mundo ganhou brownie. 

E eu embasbacada com o tamanho dessa menina que lê receita e usa o forno.

Daí me deu um negócio com pão de aveia, e eu não conseguia achar aqui no blog uma receita de um livro da falecida revista Gourmet, um livro grande de capa verde que vendi antes de mudar para o Canadá, e cuja receita de pão de aveia eu jurava de pé junto que havia postado aqui. A receita está no Epicurious. Delícia de pão de aveia. Mas a cabeça de pudim usou duas formas muito grandes e o pão, tadinho, ficou baixinho, baixinho. Mas muito bom.

E aí abriu a porteira, e já que a gente estava na cozinha, que tal fazer um biscoito? Um biscoito, assim, com muitas NUTS, bem NUTUDO, já que ninguém está indo pra escola mesmo, e eu não preciso me preocupar com essa pataquada de comida nut-free. 

Eu tinha exatamente a quantidade de avelãs para esse biscoito, e há alguma coisa incrivelmente satisfatória em ter exatamente a quantidade de ingredientes que você precisa para uma receita que acabou de escolher. Não tem? Sou só eu? Deve ser minha librianice, ou meu Virgem na casa XYZ que eu nunca lembro, então. 

Minha parte preguiçosa ficou profundamente comovida pelo fato de o biscoito ser todo feito no processador, ser do tipo que se fatia e bota na assadeira, e não precisar sequer descascar as avelãs. Coisa linda da tia. 

Quando veio a vez da Laura, Thomas foi para a escola, que o governo disse que podia. Mixed feelings. Por um lado ele ficou fulo de não poder faltar mais uma semana, e por outro, aliviado de não ter mais trabalho de escola acumulado. Laura no quarto toca sino mas eu consigo trabalhar. Tranquilamente, aliás, que a criança teve tosse só por dois dias, e se não fosse covid, dava um chá de camomila, mandava largar mão de ser sem vergonha e mandava pra escola. 

Vira e mexe ela toca o sino e quando eu subo lá achando que é importante, ela diz Mamãe, eu fiz um joke! E eu ouço a piada com toda a paciência. Ela tem disso de querer inventar piada, mas ainda não pegou bem o jeito dos trocadilhos. Tá melhorando, Laura, eu digo. Allex acha que ela vai ser comediante de Stand Up.

E trabalhando estamos. 

Escrevendo como se a vida dependesse disso. 

Conversando com editoras. 

Mandando portfólio de ilustração a torto e a direito.

Procurando galerias e cafés em Ottawa e Montreal.

Ou seja, o corre.

Mas no meio desse corre que antes me consumia, agora a cozinha me chama, velha amiga. Vontade de fazer um bolo, né minha filha?

Mas corre também rola, o corre de verdade. Teste negativo, máscara na cara, corro isolada na floresta, sem encontrar alma que não seja esquilo e passarinho. Corre, que em maio tem maratona. Foram dois meses sem quase correr, por conta das temperaturas muito baixas, baixas mesmo, vinte e trinta negativos, que nem agasalho e balaclava davam conta. Agora é correr (literalmente) atrás do prejuízo e torcer pra ter treinado direito quando for dia da prova.


E enquanto isso fui ao Brasil em fevereiro, bate-e-volta, e resolvi perrengue, e vendi meus livros, e nadei na praia, e comi pastel. E voltei com saudade de andar na rua de chinelo e regata, o que me faz ficar rancorosa desse março ainda fazendo -8. Aqui em Ottawa ainda tem neve que caiu em dezembro. 

E se você não me viu no Brasil tá tudo bem, que as coisas estão caminhando e vai ter livro novo logo mais. E livro novo logo mais quer dizer viagem ao Brasil logo logo. Viagem sem covid, imagina que alegria!

E falando em logo logo, dizem que logo logo o governo aqui vai liberar todo mundo de usar máscara, e meus filhos não veem a hora de ir à escola sem elástico puxando atrás da orelha e os óculos embaçando o tempo todo. E eu não vejo a hora de sorrir pra moça do caixa quando ela me diz bom-dia.

E aqui confinadinha em casa, olhando pela janela, vejo a luz pelas copas das árvores feito luz no fim do túnel. Uma alegria besta de que parece que finalmente vai, vai embora, pandemia, e todos os planos que a gente fez para esse ano vão de fato vingar. Show, passeio, viagem, encontro, corrida. Lembra? Ai, que alegria.

Esse covid nos quarenta e cinco do segundo tempo tem um jeito estranho de fim de show bom de stand-up comedy. Show bom de stand-up comedy é bom quando o comediante consegue amarrar na última piada a primeira que ele contou. Full circle. A primeira quarentena aqui foi no March Break, as férias de março, em 2020, quando a gente achava que ia durar uma semana e durou 104. A última quarentena, encovidada, termina no dia em que começa o March Break de 2022, se deus quiser, pra nunca mais voltar. Full circle. 

Nesse March Break eu vou tirar férias.  

.....

 


BISCOITO FÁCIL DE AVELÃ

(Do livro Chewy Gooey Crispy Crunchy, da Alice Medrich)

Faz entre 36 e 46 biscoitos, dependendo da espessura


Ingredientes:

  • 2/3 xic avelãs inteiras e cruas, com casca
  • 1 1/4xic farinha de trigo
  • 1/2 xic + 1 1/2 colh (sopa) açúcar
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 6 colh (sopa) manteiga sem sal, gelada
  • 1 colh (chá) essência de baunilha
  • 2 colh (sopa) água gelada


Preparo:

  1. Coloque no processador as amêndoas, farinha, açúcar e sal, e pulse até que as avelâs estejam bem picadas.
  2. Junte a manteiga em pedaços, e pulse até que a mistura pareça uma farofa.
  3. Junte a água e a baunilha e pulse mais algumas vezes, até que a farofa umedeça, como quando você mistura farelo de biscoito com manteiga derretida para fazer base de cheesecake. Pare aí. Você não quer que vire uma massa. Precisa ser farelos úmidos, mas que quando amassados com a mão, formem uma massinha. (Você pode picar as avelãs bem miudinho com a faca e fazer toda a mistura esfregando a manteiga na ponta dos dedos, como massa de torta, se não tiver processador.)
  4. Forre uma forma de pão de 13x23cm com papel alumínio, no fundo e nas laterais. Despeje os farelos ali e pressione bem com as mãos para formar uma camada fina, lisa e compacta no fundo da forma. Alternativamente, forme uma massa retangular sobre papel-alumínio numa assadeira, tentando deixar bem compacto em com paredes retas e cantos retos. Embrulhe o papel alumínio em volta da massa e leve à geladeira por duas horas.
  5. Preaqueça o forno a 180oC e coloque as grades nos terços inferior e superior.
  6. Desembrulhe a massa e corte fatias de no máximo 0,5cm, levando as tirinhas com a lâmina da faca até duas assadeiras untadas ou forradas com papel-manteiga. Deixe um espaço de 2cm entre os bicoitos.
  7. Leve ao forno por 12 a 18 minutos, trocando a posição das assadeiras no meio do cozimento, ou até que fiquem dourados e com as bordas dourado-escuras. Deixe esfriar sobre uma grade para que fiquem crocantes.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Tipo assim... fases.

Prazeres: churrasco na neve a 20 graus negativos.


Todos os dias, me sento em frente ao computador, e abro essa página do Blogger, para produzir um post. E nada. Nada vem, nada sai, e é como um bloqueio criativo, mas sente mais como um bloqueio de estrada. Não é o carro que está quebrado. É o caminho, que encontrei com um cavalete de manutenção bem no meio, impedindo passagem. 

Boto a culpa, na cozinha. Uma culpa leviana, que não é apropriada. Que nem criança que apronta e bota a culpa no irmão mais novo que nem aprontar sabe ainda. Mas como esse blog é de cozinha, faz sentido que a cozinha seja a culpada. 

É verdade que a cozinha mudou. Fisicamente, pois a casa é outra, e espiritualmente, se posso dizer assim, por falta de outra palavra. (E sempre que me faltam palavras, Allex ri de mim. Escritora. Palavras não deveriam faltar.) 

Uma amiga minha sempre diz que a cozinha, a cozinha física, muda o jeito como a gente se relaciona com a comida. O ambiente é sempre mais forte, diz o Ayurveda. Que seja, então. Se eu colocar a culpa na minha cozinha nova, vou dizer que, apesar de ampla, ela não tem espaço de trabalho. Aquela bancada grande, na altura certa, em que dava pra dispor frutas e batedeira, e abrir macarrão e cortar legumes, tudo junto ao mesmo tempo, ficou em Toronto. Minha cozinha de Ottawa é do tipo que precisa que eu tire a torradeira da mesa pra abrir massa de torta. É do tipo que eu preciso tirar um ingrediente por vez da geladeira, pra picar e botar na panela, que não tem espaço para dispor tudo à minha volta num organizado mis-en-place, ou, pelo menos, num bonito caos orgânico. Minha cozinha dá preguiça de processo complicado. 

O que eu acho muito engraçado.

Porque quando mudei para cá, achei mesmo que encarnaria a cozinheira que fui no Brasil, lá na época da Aldeia da Serra, quando tive casa e quintal. Achei que ia ter torta, pão, biscoito e geleia, sorvete e queijo, desse jeito vida de fazenda que eu tentava emular enquanto meus filhos pequenos comiam insetos no quintal. Achei que casa no mato chamaria essa pessoa. Mas essa pessoa sumiu.

Larguei o fogão pro Allex pilotar, e parei de me importar em comprar pão do mercado. Foi, assim, um cansaço. Um cansaço daquela rigidez do bom versus porcaria. Um cansaço da chata do orgânico. Um cansaço da Martha Stewart ferida que se armava armadilhas de achar que precisava fazer, que tinha que, que devia. Cansaço do Tenho Que. Tenho Que coisa nenhuma. Não Tenho Que nada. 

Daí que não foi só a cozinha. 

Foi essa mudança não só de endereço. Esse começar de novo, de novo. Casa nova, cidade nova, trabalho novo, que meu trabalho, agora, de escritora-que-paga-conta, não só ilustradora que gosta de escrever, é todo um outro rolê. Tem essa nova fase de criança grande. Criança que cozinha, que volta da escola sozinha, que sai pra brincar e volta duas horas depois, sem precisar de mãe acompanhando no parquinho. Criança que vai sozinha comprar sorvete e pegar livro na biblioteca. Isso de criança que tem cada um seu quarto. Isso de homem em home-office trabalhando num quarto separado. Isso de acender uma vela pra Virgina Woolf e fechar uma porta para trabalhar. Silêncio e foco num quarto só meu. 

E me joguei no trabalho até não ter mais horas em que não estivesse desenhando, escrevendo, ou lendo sobre desenhar e escrever, ou desenhando e escrevendo na internet para promover aquilo que eu desenho e escrevo e vender meus escritos e desenhos. 

Pêndulo. De um extremo ao outro. Pra lá e para cá.

E teve o dia em que achei que eu tinha largado a cozinha e que não podia. Tinha Que. E num surto de FOMO de confeitaria, ciente de que meus filhos não lembravam o que era uma éclair, passei quatro horas em pé na cozinha, fazendo pâte à choux (duas vezes, que a primeira deu errado), creme de confeiteiro e ganache, e montando tudo aquilo do jeito que dava, sem as ferramentas que eu tinha lá nos áureos tempos da Aldeia. E ainda que a éclair tenha ficado deliciosa, e a família inteira tenha pedido pra fazer de novo, eu não consegui tirar da boca aquele gosto ruim da constatação de que eu preferia ter passado aquelas quatro horas escrevendo. 

Era o fim? Não era o fim. Era o começo. Ou a volta. Ou a roda girando outra vez. Ou uma elipse, fazendo a volta, cruzando o ponto onde eu um dia fui trabalho e não cozinha, e seguindo em frente. 

Parece que vivo meus dias de dez anos atrás, eu disse. A rotinha de corrida e trabalho, e almoço leve e fazer jantar, e não inventar doce que não precisa, não passear cachorro nem levar criança na escolinha, é essa vida pré-filhos, pré-cão, pré-blog, pré-rede social.

Nas férias escolares de inverno, essas duas semanas que engolem Natal e Reveillon, quando desliguei também o Instagram, fui atirada de volta a 1996. Ou qualquer outra data em que eu já passava minhas tardes escrevendo histórias e lendo livros, sem emails para responder e nem um celular me assediando. O tempo passou devagar. 

E devagar o tempo tem passado, imersa em criação depois de criar crianças. Há quem diga que é natural que os filhos larguem a mãe e o pai assuma nessa idade. Pensamento que me veio só depois que aconteceu. E vejo as crianças penduradas no pai, e ele tomando conta, batendo papo, cuidando, brincando, ensinando. A balança da vida doméstica pesando mais pro lado dele, encontrando um novo equilíbrio. E devagar olho no espelho e a mãe em mim se acalma, senta num canto, abre um livro, e deixa outra Ana tomar conta. Essa Ana faz jantares gostosos que ela quer comer, e não surta com nutrição. Essa Ana compra pão e sorvete. Mas faz focaccia quando dá vontade, e biscoito, porque quis. Não porque Tem Que. Não Tem Que nada. Se Tem Que fazer jantar e não tá a fim, essa Ana larga a cozinha pro marido e vai tomar um banho. Essa Ana não Tem Que. Essa Ana Quer. Querer é bom. E se não quer, tá tudo bem. Saber largar quando não quer também é bom.

Nisso, veja só, quem fez Spekulatius esse ano foi o Allex.

E essa Ana pensava que Tinha Que escrever no blog. Mas aquilo que Tem Que não sai mais. E essa Ana esperou QUERER escrever no blog. Ainda que tenha saído um texto em que ela fala de si mesma em terceira pessoa. Sorry. Eu ainda tenho esse bloqueio de olhar pro blog e achar que TENHO QUE escrever sobre comida.

Uma coisa que eu sei que eu não quero mais, que o TEM QUE quase matou o blog tantas outras vezes, é ficar copiando e colando e traduzindo receita. Faz muito tempo, vamos combinar, que a internet saturou de receitas. Até porque, agora que tenho tão poucos livros, minha comida vem sempre das mesmas quatro fontes: Tessa Kyros, Marcella Hazan, Ginethe Mathiot, Suzanne Goin e Alice Medrich. Recomendações que faço de olhos fechados, e cujas receitas já coloquei tanto aqui, que acho mesmo que devo direitos autorais a todas elas. Fiz a torta de limão meyer com chocolate da Suzanne Goin, o Boeuf Bourguignon da Ginethe Mathiot, o fricassê de frango com louro da Marcella Hazan, a focaccia da Tessa Kyros, e os chocolate hazelnut meringues da Alice Medrich. Mas no fim, me dou conta, depois de tantos anos cozinhando, os processos são sempre os mesmos, e me dá preguiça de falar de comida como se fosse sempre uma grande novidade. 

Talvez comida, ESSA relação com a comida, tenha saturado também na minha cabeça.

E eu tenho preferido manter meus jantares meus. Fiquei incomodada quando meus filhos começaram a me perguntar, antes de cada refeição, se eu não ia tirar foto antes de comer. Não, não vou. Vou só curtir mesmo. Vou comer. E às vezes até está lindo mesmo, e eu tiro uma foto. Porque eu quero. Não porque Tem Que. O que eu quero mesmo é comer comida boa que me deu prazer de preparar. PRAZER. Sem pensar demais no assunto. Sem muito planejamento. Sem ficar matutando história pra acompanhar receita.

É bom saber respeitar as próprias fases. 

Se tem uma coisa que a gente tem aprendido nesses anos de pandemia e quarentenas e escola online e o caramba é a ter prazer na vida e se divertir como possível.

A vida já tem muito Tem Que. Tem Que pagar conta. Tem Que fazer imposto de renda. É bom largar os Tem Que que não tem quê. Fazer a pergunta: Mas eu Quero? Já passei dos quarenta anos, e se eu seguir a média da expectativa de vida, quer dizer que estou na metade do meu caminho. Já passei metade da vida achando que Tinha Que um monte de coisa. Quero mais é prazer e tranquilidade nessa outra metade. Vida Tranquila. Tá escrito na minha geladeira. E logo embaixo de Vida Tranquila, tá lá, em letrinhas coloridas: Me Deixa. Mas Ana, cê vai fazer isso? Me Deixa. Mas Ana. cê não vai fazer aquilo? Me Deixa. 

Me Deixa ir, me deixa mudar, me deixa curtir essa nova fase, e me jogar na escrita, e nessa pessoa que surge depois de uma década de maternidade casas Bahia - dedicação total a você. Haha. Afinal foi esse trabalho intenso que produziu duas crianças que agora ficam tranquilas e acham graça da mamãe trancada no quarto escrevendo e o papai fazendo biscoito. Ciclos.

Tenho encontrado um equilíbrio bom. Logo logo, quem sabe, a vontade de descrever processos culinários volte. Ou não. Talvez vocês se acostumem comigo falando de qualquer outra coisa.

Esse domingo é aniversário da Laura, e ela pediu pra eu fazer coxinha. "Fazer não faço não, Laura, que dá um trabalho danado. Mas vou achar alguém em Ottawa que faça e eu compro. Tá bom?"

Tá ótimo. ;)

(Aviso aos navegantes: os comentários no blog foram fechados, não porque não me importo, mas porque eu tinha a cada post 3 comentários de verdade e 87 spams, e eu meio que cansei de ficar usando meu tempo pra deletar essas porcarias. Se você quiser fazer um comentário, POR FAVOR, comente: me mande um email. Eu também continuo no Instagram, porque ainda não inventaram outro jeito de ilustrador e escritor divulgar trabalho e não se tornar invisível. haha. Beijocas.)


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Powe Point e um chili vegano


Você sabe que o Instagram tem dias contados quando ele vira uma imensa apresentação de PowerPoint com correntes e frases motivacionais.

Se você entendeu essa referência, então você tem, pelo menos, a minha idade. Quem, nascido antes de 1989, não se lembra dos e-mails com PPT cheio de foto de gatinho e cachoeira e um monte de baboseira de auto-ajuda, e promessa de que, se você repassar aquela apresentação pra sete amigos, vai ganhar na loteria? 

Quem é jovem sofreu desse mal no Whatsapp. Mas quem recebeu PPT do tio da prima no e-mail da AOL é raiz.

Eu, que sou velha, fico vendo essa imensa roda da fortuna das mensagens motivacionais seguindo seu ciclo em todas as plataformas, da época do Pen Pal (eu escrevia CARTAS, tá?) até o TikTok. Só que eu não tenho TikTok, porque até eu tenho limites, e eu sou o tipo de velha que fica irritada com a juventude atual e sai gritando através da dentadura pra molecada sair do meu gramado. 

É brincadeira. Eu não uso dentadura.

Enfim.

Foi na semana anterior ao meu aniversário, quando eu sofri os efeitos da combinação bombástica de um Inferno Astral, uma Lua Minguante, um Mercúrio Retrógrado e uma TPM, tudo junto e misturado. Foi osso. E enquanto eu roía esse osso, eu notei que tinha pegado bode do Instagram, do mesmo jeito que peguei do Facebook, anos atrás. Eu me divirto criando as narrativas nos Stories, e uso o timing da mudança de tela como se fosse a pausa num stand-up comedy. Tem um lado engraçado meu que aparece lá porque a plataforma cria a circunstância para isso. A mídia é a mensagem, já dizia titio Marshall McLuhan. O formato dos posts foi ótimo para finalmente começar a publicar minhas poesias e perder a vergonha de vez de trazer à luz toda sorte de arte. Como eu escrevi por lá um dia: a partir de hoje eu me dou o direito de escrever poesia tosca e fazer arte ruim. Vivam com isso. 

(Eu gosto das minhas poesias e da minha arte, e não acho nada nada ruim, mas só me libertei de confiar na opinião dos outros para validar o modo como me sinto a respeito da arte que produzo. ;) 

A auto-estima agradece.

Foi mais ou menos o mesmo processo de quando criei o blog Desenhoquê. Quem lembra, levanta a mão. Tem três gato pingado de mão levantada. Ótimo. Se vocês também riram da piada do PowerPoint, parabéns. Bando de velho que nem eu. 

Enfim. 

Foi o mesmo processo do blog, de colocar para fora arte que eu ainda não sabia exatamente como formatar e expor de uma forma tradicional. Foi bom para testar a temperatura da água antes de mergulhar dando uma bomba no lado fundo da piscina. 

Estava divertido, eu confesso. Tia Ana tava gostando de uma rede social. Eu via fotinhos e Stories de amiguinhos e coleguinhas. Conheci mulheres legais que me inspiraram por lá. Fiz live de lançamento do meu livro. Conversei com gente que me lê aqui faz tempo, mas com quem era difícil bater papo pelos comentários. Conheci amigas aqui no Canadá.

NO ENTANTO com letras maiúsculas e em negrito, o mocinho do Facebook não dá ponto sem nó e começou a brincar de Puppet Master com os usuários do Instagram. Vamos falar pro pessoal que os posts deles só são vistos se eles fizerem Stories. Vamos falar pro pessoal que os Stories deles só são vistos de eles postarem todo dia. Vamos falar pro pessoal que a gente só recomenda os posts que têm like. Agora só os que têm comentário. Agora só os que foram salvos. Agora só os que foram compartilhados. Agora a gente só impulsiona os posts cujos Stories têm interação com o público. Agora a gente só impulsiona perfil de gente que faz Reels, porque a gente tem que competir com Tik Tok.

They say JUMP you say HOW HIGH?

A plataforma é feita não só para engolir a vida de quem consome conteúdo e entretenimento ali, mas, principalmente, para manter o "criador de conteúdo" escravo dos caprichos do senhor Mestre Algoritmo.

Porque quem precisa expor seu trabalho para ser comprado acaba tendo que se enfiar numa rede social cedo ou tarde, a não ser que tenha tido a sorte de se estabelecer no mercado antes do advento do Orkut. Ninguém mais vai no cliente mostrar portfólio na pastinha. Nenhuma editora cria um grande plano de comunicação e marketing para um autor desconhecido.

Você começa no Instagram pensando: vou publicar minha pintura de gatinho aqui, e as pessoas vão ver que eu faço pinturas de gatinhos e vão comprar pinturas de gatinhos. Cinco anos depois, você está fazendo dancinha e bebendo refrigerante por um tubo de papel higiênico para garantir que o Instagram recomende aquela sua pintura de gatinho pra alguém. Mas como você passa metade do seu dia produzindo conteúdo para garantir que o algoritmo aumente o alcance da sua audiência, você não pinta um gatinho novo há três meses. E apesar de ter conseguido trinta e dois mil seguidores (cento e vinte e sete dos quais eram haters e você teve que bloquear mais de uma vez), só 1% das visitas à sua loja de pinturas de gatinhos impulsionadas pelo Instagram resultam em vendas. 

Se você se identificou com isso, sinto muito, mas quer dizer que você está trabalhando de graça para o Instagram e distribuindo sua arte pelo mundo feito confete, sem ganhar nada em troca, e que essa história de "se eu postar meus gatinhos aqui, eles vão saber que eu faço e vão comprar" é uma falácia gigantesca.

Anassaura aqui lembra da vida pré-internet e pré-celular. Vivi metade da minha vida sem e-mail, e dois terços dela sem um smart-phone. Quando, recentemente, fui fazer back-up das minhas fotos na minha conta do Google que, veja só, ENCHEU, foi uma revelação ver meus álbuns de fotos subitamente passando de duas fotos por mês com câmera digital para dezenas de fotos por mês quando ganhei meu primeiro smart-phone, e para centenas de fotos quando resolvi entrar no Instagram. 

Prova cabal de como a tecnologia mudou meu jeito de me relacionar com o mundo. E eu não gostei disso.

Naquela semana antes do meu aniversário, eu estava cansada do Instagram. Como entretenimento, o conteúdo mais me estressava do que entretinha. Todo mundo ali está tão deprimido quanto eu. Todo mundo ali está p*to da vida com as mesmas coisas (ou mais) que eu. E quem não está passa o dia postando frase motivacional e está tão ausente da realidade que me faz perguntar que drogas a pessoa está tomando, e onde eu compro um pouco pra mim. Tinha um perfil de que eu gostava, por conta do humor cru, que esses dias postou uma frase fofa e a legenda: a pessoa para quem você repassar esse post, vai saber que você acha ela forte, bonita, legal, fofa, tralalá... 

CORRENTE.

Taqueospariu. Os millenials ficam brigando com a geração Y pra saber quem é mais cringe, e não perceberam que foram dominados pelos Baby Boomers

Unfollow.

O Instagram está chato pra chuchu. Esse é o termo técnico. A vida de todo mundo é sempre igual. Quem tem uma vida muito maravilhosa me faz sentir mal a respeito da minha vida e quem tem uma vida muito horrível me faz sentir mal a respeito da minha vida. Mas hein? 

(Isso não quer dizer que eu ache as pessoas lá chatas. Muito pelo contrário. É a plataforma que torna tudo chato.)

Pra terminar, naquela fatídica semana, o Instagram foi atacado e ninguém conseguiu fazer nada nele por um dia inteiro. Certeza que foi a conjunção cósmica do Mercúrio Retrógrado e minha TPM. Certeza. 

Enfim. Me caiu uma ficha. E pronto, se eu precisava de mais provas para confirmar minha idade avançada, taí. Caiu a ficha. Eu usava orelhão. Quem não lembra a delícia que era o cheiro de metal suado que vinha do bocal quente do telefone quando você tirava ele do gancho logo depois de outra pessoa usar? Ai, que saudade. Só que não.

Mas me caiu a ficha. A famosa epifania. Se calha dessa joça de rede social cair de vez, eu perco quase 100% do contato com meu púbico. As pessoas interessadas nas minhas crônicas descabidas, minha poesia sem pé nem cabeça, minhas aquarelas de bolovo e minhas tirinhas sem noção perdem COMPLETAMENTE o acesso ao meu trabalho, a não ser que tenham um dia se interessado em clicar no link do meu perfil e salvar o endereço desde blog de cabelos brancos, mas cheio da dignidade.  

Mesmo o blog, que apesar de ter endereço próprio, ainda é completamente armazenado pelo Google, é instável. PORQUE NÃO ESTÁ NA MINHA MÃO, mas na mão de empresas e algoritmos. Já tive gente me escrevendo dizendo que imprimiu o blog todo, pro caso de eu um dia apagar. Eu não faria isso. Mas quem disse que o Google não faria? 

Ai, eu sei. Teoria da conspiração é muito coisa de velho. Você não tem ideia: eu costumava escrever em cadernos e máquinas de escrever até os dezoito anos, porque eu achava que "computadores perdem coisas". Já ouviu teu avô dizendo isso? Pois é. Eu nasci com oitenta anos. 

Teorias da conspiração à parte, eu senti que meu trabalho estava muito vulnerável, muito dependente de plataformas instáveis e que têm mais poder de bloquear meu acesso e apagar minha conta do que eu tenho de apelar a qualquer uma dessas ações. (O Instagram bloqueou a primeira conta que eu abri, porque eu postei três fotos em seguida e ele achou que eu era um Bot, e eu nunca mais tive a conta de volta.)

E meu trabalho tem que ser meu. E eu tenho que trabalhar para mim e para meus leitores e clientes, e não para o Instagram. Bode.

Desde o ano passado, enquanto eu escrevia meu livro, eu flertava com as plataformas de crowdfunding, tentando imaginar uma forma de ter mais controle sobre o meu trabalho. Mercúrio retrógrado e o apagão do Instagram me deram um empurrãozinho, e eu criei uma Newsletter, Boletos & Borboletas, para quem quiser receber semanalmente uma crônica e uma tirinha inéditas e exclusivas, e ao mesmo tempo colaborar financeiramente para que eu possa dedicar mais tempo terminando de escrever meu novo livro e editando o livro das tirinhas do Diário Ilustrado, ao invés de ter fazer dancinha e beber refrigerante pelo tubo do papel higiênico.


 

Já saíram duas edições, nas últimas segundas-feiras, e quem assinar a Newsletter ainda em outubro, têm acesso ao conteúdo delas no Mural da minha página do Apoia-se. A colaboração é mensal, como a assinatura de uma revista. No Mural, há textos e fotos sobre processo criativo, influências, leituras, e até receitinha e sorteio de caricatura já rolou. 

Sempre me incomodou isso de parecer que eu tenho um grupo de leitores aqui e e outro no Instagram. Porque tem gente que me conheceu por lá e só lê o que eu posto lá, e tem gente que me conheceu aqui e não tem Instagram nem quer ter. E eu acho uma chatice isso de quem não faz parte da intersecção dos dois grupos não ter acesso a todo o meu material. Então pronto. Essa é uma forma de ter um contato mais direto com quem de fato se interessa pelo meu trabalho, e não quer só bisbilhotar minha vida (que no Instagram tá cheio disso também). É um jeito de me sentir mais segura de que, mesmo que a plataforma do Apoia-se desapareça, meu trabalho ainda está comigo e com meus leitores. E eu tenho alguma segurança financeira para me dedicar mais aos textos, inclusive do blog, e menos para ficar agradando algoritmo em rede social. 

O Instagram continua, mas com menos intensidade do que antes. Porque Instagram me deixa ansiosa, ansiedade me dá insônia, e, sem piada nenhuma agora, insônia me dá depressão, e eu já vivi esse ciclo vicioso vezes suficientes para saber que é hora de quebrar o padrão.

O Blog, queridinho do meu coração, continua no mesmo ritmo. Se você gosta dos textos daqui e gostaria de ler mais, toda semana, pode assinar minha newsletter lindinha. Se gosta, mas um texto por mês tá mais que bom, obrigada, pode também apoiar com bem pouquinho, só para manter a coisa funcionando. Com um trocado por mês você tem acesso a todo o material que eu posto no Mural (menos a newsletter) e participa dos sorteios.

Essas primeiras duas semanas de newsletter trouxeram um ar de calma à minha rotina, muito mais parecida com a Vida Tranquila que eu sempre busquei. Engraçado isso de tomar café-da-manhã sem postar foto do seu cappuccino. Coisa de gente velha. 

Prometo não mandar nenhum PPT com foto de gatinho na newsletter.

 

VAI LÁ NO MEU APOIA-SE: https://apoia.se/anaelisagranziera

.... 

ENQUANTO ISSO...

...Allex anda empolgado com sua panela elétrica de slow cooking, veja só, e adaptou a receita de chili con carne que eu mencionei no outro post, para ser vegetariana... e ficou maravilhoso! O chili fica ótimo com pãezinhos de milho, com tortilla chips e guacamole, sensacional com sou cream (se você não for vegano), com arroz e abacate, e num Buraco Quente, que é como a gente de São Paulo conhece aquele sanduíche que você faz tirando o miolo de um pão francês e preenchendo o buraco de carne moída com molho. 

Substituir carne por tofu não é golpe de gênio. Mas RALAR o tofu foi. Ele forma os gruminhos que emulam a carne moída e, tendo comido a versão com carne e sem, vou dizer que se você não disser para ninguém, é difícil perceber a troca. 

Quando reclamei do Facebook, falei de vida devagar e pão sourdough. Reclamando do Instagram, deixo um Chili Vegano pra ser cozido bem devagar, em fogo baixo, para apurar o sabor. No dia seguinte, fica melhor ainda. 

Eu postei o link da receita original aqui já, mas agora vou colocar a adaptação traduzida. 

 

CHILI VEGANO DO ALLEX

(adaptado daqui)

Rendimento: seis porções grandes ou mais

 

Ingredientes: 

  • 2 cebolas grandes, picadas (cerca de 3 xic)
  • 1/4 xic azeite ou óleo vegetal
  • 1 colh (sopa) alho picado
  • 2 cenouras, raladas grosso
  • 1,3kg de tofu firme, metade em cubinhos pequenos, metade ralado na parte grossa do ralador (ele vai ralar formando grumos de diferentes tamanhos, e é o que você quer. Alternativamente, você pode esfarelar o tofu com as pontas dos dedos. Não precisa ficar uniforme.)
  • 1/4 xic chili powder*
  • 1 colh (sopa) cominho em pó
  • 2 colh (sopa) páprica
  • 1 colh (sopa) orégano seco
  • pimenta calabresa seca, em flocos, a gosto.
  • 2 xic purê de tomate, passata, ou seu molho de tomate simples favorito
  • 1 1/4 xic água
  • 3 colh (sopa) vinagre de sidra ou o vinagre que você tiver
  • 1 3/4 xic. feijão VERMELHO em lata ou cozido (se não tiver o feijão vermelho, pode ser o preto) 
  • 2 pimentões verdes, sem miolo e sementes, picado (Allex colocou mais um pimentão vermelho também)
  • sal e pimenta-do-reino 

* chili powder, ao contrário do que parece, NÃO É só pimenta em pó. É pimenta caiena, alho em pó,cominho, páprica, orégano, e pode ter outros ingredientes também. Se você não tiver, pode aumentar a quantidade dos outros temperos. Experimente o seu chili powder antes de colocar a quantidade toda. O chili powder daqui realmente NÃO É muito apimentado. Daí a quantidade grande.

Preparo:

  • Numa panela grande e de fundo grosso, aqueça o óleo em fogo médio-baixo, e junte as cebolas e uma pitada de sal, misturando, por 5 a 10 minutos, até que estejam macias. 
  • Junte o alho, a cenoura ralada, e cozinhe por um minuto mais. 
  • Aumente o fogo para médio e junte o tofu em cubos e o ralado grosso, mexendo, até que algumas partes do tofu comecem a dourar. 
  • Junte o chili powder, cominho, páprica, orégano, pimenta, e cozinhe por mais um minuto. 
  • Junte o tomate, água e vinagre, e leve à fervura bem branda, cozinhando, com tampa, por 35-40 minutos. (Se sua panela não for muito pesada, vale a pena dar uma misturada de dez em dez minutos, para garantir que o fundo não está pegando.)
  • Junte os feijões cozidos, pimentões, sal (cerca de 2 colh. chá, mas experimente antes de colocar tudo) e pimenta-do-reino, e cozinhe por mais 15 minutos, ou até que os pimentões estejam macios e o chili esteja cremoso e reduzido o bastante para que você possa comê-lo com tortilla chips sem que ele escorra para fora da tortilla.  
  • Sirva no mesmo dia, no dia seguinte, ou congele para depois, porque ele se conserva muito bem em potes fechados na geladeira ou no freezer. (A receita não pede, mas eu acho que folhas de coentro por cima no final ficaria maravilhoso.)

Cozinhe isso também!

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