sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Tipo assim... fases.

Prazeres: churrasco na neve a 20 graus negativos.


Todos os dias, me sento em frente ao computador, e abro essa página do Blogger, para produzir um post. E nada. Nada vem, nada sai, e é como um bloqueio criativo, mas sente mais como um bloqueio de estrada. Não é o carro que está quebrado. É o caminho, que encontrei com um cavalete de manutenção bem no meio, impedindo passagem. 

Boto a culpa, na cozinha. Uma culpa leviana, que não é apropriada. Que nem criança que apronta e bota a culpa no irmão mais novo que nem aprontar sabe ainda. Mas como esse blog é de cozinha, faz sentido que a cozinha seja a culpada. 

É verdade que a cozinha mudou. Fisicamente, pois a casa é outra, e espiritualmente, se posso dizer assim, por falta de outra palavra. (E sempre que me faltam palavras, Allex ri de mim. Escritora. Palavras não deveriam faltar.) 

Uma amiga minha sempre diz que a cozinha, a cozinha física, muda o jeito como a gente se relaciona com a comida. O ambiente é sempre mais forte, diz o Ayurveda. Que seja, então. Se eu colocar a culpa na minha cozinha nova, vou dizer que, apesar de ampla, ela não tem espaço de trabalho. Aquela bancada grande, na altura certa, em que dava pra dispor frutas e batedeira, e abrir macarrão e cortar legumes, tudo junto ao mesmo tempo, ficou em Toronto. Minha cozinha de Ottawa é do tipo que precisa que eu tire a torradeira da mesa pra abrir massa de torta. É do tipo que eu preciso tirar um ingrediente por vez da geladeira, pra picar e botar na panela, que não tem espaço para dispor tudo à minha volta num organizado mis-en-place, ou, pelo menos, num bonito caos orgânico. Minha cozinha dá preguiça de processo complicado. 

O que eu acho muito engraçado.

Porque quando mudei para cá, achei mesmo que encarnaria a cozinheira que fui no Brasil, lá na época da Aldeia da Serra, quando tive casa e quintal. Achei que ia ter torta, pão, biscoito e geleia, sorvete e queijo, desse jeito vida de fazenda que eu tentava emular enquanto meus filhos pequenos comiam insetos no quintal. Achei que casa no mato chamaria essa pessoa. Mas essa pessoa sumiu.

Larguei o fogão pro Allex pilotar, e parei de me importar em comprar pão do mercado. Foi, assim, um cansaço. Um cansaço daquela rigidez do bom versus porcaria. Um cansaço da chata do orgânico. Um cansaço da Martha Stewart ferida que se armava armadilhas de achar que precisava fazer, que tinha que, que devia. Cansaço do Tenho Que. Tenho Que coisa nenhuma. Não Tenho Que nada. 

Daí que não foi só a cozinha. 

Foi essa mudança não só de endereço. Esse começar de novo, de novo. Casa nova, cidade nova, trabalho novo, que meu trabalho, agora, de escritora-que-paga-conta, não só ilustradora que gosta de escrever, é todo um outro rolê. Tem essa nova fase de criança grande. Criança que cozinha, que volta da escola sozinha, que sai pra brincar e volta duas horas depois, sem precisar de mãe acompanhando no parquinho. Criança que vai sozinha comprar sorvete e pegar livro na biblioteca. Isso de criança que tem cada um seu quarto. Isso de homem em home-office trabalhando num quarto separado. Isso de acender uma vela pra Virgina Woolf e fechar uma porta para trabalhar. Silêncio e foco num quarto só meu. 

E me joguei no trabalho até não ter mais horas em que não estivesse desenhando, escrevendo, ou lendo sobre desenhar e escrever, ou desenhando e escrevendo na internet para promover aquilo que eu desenho e escrevo e vender meus escritos e desenhos. 

Pêndulo. De um extremo ao outro. Pra lá e para cá.

E teve o dia em que achei que eu tinha largado a cozinha e que não podia. Tinha Que. E num surto de FOMO de confeitaria, ciente de que meus filhos não lembravam o que era uma éclair, passei quatro horas em pé na cozinha, fazendo pâte à choux (duas vezes, que a primeira deu errado), creme de confeiteiro e ganache, e montando tudo aquilo do jeito que dava, sem as ferramentas que eu tinha lá nos áureos tempos da Aldeia. E ainda que a éclair tenha ficado deliciosa, e a família inteira tenha pedido pra fazer de novo, eu não consegui tirar da boca aquele gosto ruim da constatação de que eu preferia ter passado aquelas quatro horas escrevendo. 

Era o fim? Não era o fim. Era o começo. Ou a volta. Ou a roda girando outra vez. Ou uma elipse, fazendo a volta, cruzando o ponto onde eu um dia fui trabalho e não cozinha, e seguindo em frente. 

Parece que vivo meus dias de dez anos atrás, eu disse. A rotinha de corrida e trabalho, e almoço leve e fazer jantar, e não inventar doce que não precisa, não passear cachorro nem levar criança na escolinha, é essa vida pré-filhos, pré-cão, pré-blog, pré-rede social.

Nas férias escolares de inverno, essas duas semanas que engolem Natal e Reveillon, quando desliguei também o Instagram, fui atirada de volta a 1996. Ou qualquer outra data em que eu já passava minhas tardes escrevendo histórias e lendo livros, sem emails para responder e nem um celular me assediando. O tempo passou devagar. 

E devagar o tempo tem passado, imersa em criação depois de criar crianças. Há quem diga que é natural que os filhos larguem a mãe e o pai assuma nessa idade. Pensamento que me veio só depois que aconteceu. E vejo as crianças penduradas no pai, e ele tomando conta, batendo papo, cuidando, brincando, ensinando. A balança da vida doméstica pesando mais pro lado dele, encontrando um novo equilíbrio. E devagar olho no espelho e a mãe em mim se acalma, senta num canto, abre um livro, e deixa outra Ana tomar conta. Essa Ana faz jantares gostosos que ela quer comer, e não surta com nutrição. Essa Ana compra pão e sorvete. Mas faz focaccia quando dá vontade, e biscoito, porque quis. Não porque Tem Que. Não Tem Que nada. Se Tem Que fazer jantar e não tá a fim, essa Ana larga a cozinha pro marido e vai tomar um banho. Essa Ana não Tem Que. Essa Ana Quer. Querer é bom. E se não quer, tá tudo bem. Saber largar quando não quer também é bom.

Nisso, veja só, quem fez Spekulatius esse ano foi o Allex.

E essa Ana pensava que Tinha Que escrever no blog. Mas aquilo que Tem Que não sai mais. E essa Ana esperou QUERER escrever no blog. Ainda que tenha saído um texto em que ela fala de si mesma em terceira pessoa. Sorry. Eu ainda tenho esse bloqueio de olhar pro blog e achar que TENHO QUE escrever sobre comida.

Uma coisa que eu sei que eu não quero mais, que o TEM QUE quase matou o blog tantas outras vezes, é ficar copiando e colando e traduzindo receita. Faz muito tempo, vamos combinar, que a internet saturou de receitas. Até porque, agora que tenho tão poucos livros, minha comida vem sempre das mesmas quatro fontes: Tessa Kyros, Marcella Hazan, Ginethe Mathiot, Suzanne Goin e Alice Medrich. Recomendações que faço de olhos fechados, e cujas receitas já coloquei tanto aqui, que acho mesmo que devo direitos autorais a todas elas. Fiz a torta de limão meyer com chocolate da Suzanne Goin, o Boeuf Bourguignon da Ginethe Mathiot, o fricassê de frango com louro da Marcella Hazan, a focaccia da Tessa Kyros, e os chocolate hazelnut meringues da Alice Medrich. Mas no fim, me dou conta, depois de tantos anos cozinhando, os processos são sempre os mesmos, e me dá preguiça de falar de comida como se fosse sempre uma grande novidade. 

Talvez comida, ESSA relação com a comida, tenha saturado também na minha cabeça.

E eu tenho preferido manter meus jantares meus. Fiquei incomodada quando meus filhos começaram a me perguntar, antes de cada refeição, se eu não ia tirar foto antes de comer. Não, não vou. Vou só curtir mesmo. Vou comer. E às vezes até está lindo mesmo, e eu tiro uma foto. Porque eu quero. Não porque Tem Que. O que eu quero mesmo é comer comida boa que me deu prazer de preparar. PRAZER. Sem pensar demais no assunto. Sem muito planejamento. Sem ficar matutando história pra acompanhar receita.

É bom saber respeitar as próprias fases. 

Se tem uma coisa que a gente tem aprendido nesses anos de pandemia e quarentenas e escola online e o caramba é a ter prazer na vida e se divertir como possível.

A vida já tem muito Tem Que. Tem Que pagar conta. Tem Que fazer imposto de renda. É bom largar os Tem Que que não tem quê. Fazer a pergunta: Mas eu Quero? Já passei dos quarenta anos, e se eu seguir a média da expectativa de vida, quer dizer que estou na metade do meu caminho. Já passei metade da vida achando que Tinha Que um monte de coisa. Quero mais é prazer e tranquilidade nessa outra metade. Vida Tranquila. Tá escrito na minha geladeira. E logo embaixo de Vida Tranquila, tá lá, em letrinhas coloridas: Me Deixa. Mas Ana, cê vai fazer isso? Me Deixa. Mas Ana. cê não vai fazer aquilo? Me Deixa. 

Me Deixa ir, me deixa mudar, me deixa curtir essa nova fase, e me jogar na escrita, e nessa pessoa que surge depois de uma década de maternidade casas Bahia - dedicação total a você. Haha. Afinal foi esse trabalho intenso que produziu duas crianças que agora ficam tranquilas e acham graça da mamãe trancada no quarto escrevendo e o papai fazendo biscoito. Ciclos.

Tenho encontrado um equilíbrio bom. Logo logo, quem sabe, a vontade de descrever processos culinários volte. Ou não. Talvez vocês se acostumem comigo falando de qualquer outra coisa.

Esse domingo é aniversário da Laura, e ela pediu pra eu fazer coxinha. "Fazer não faço não, Laura, que dá um trabalho danado. Mas vou achar alguém em Ottawa que faça e eu compro. Tá bom?"

Tá ótimo. ;)

(Aviso aos navegantes: os comentários no blog foram fechados, não porque não me importo, mas porque eu tinha a cada post 3 comentários de verdade e 87 spams, e eu meio que cansei de ficar usando meu tempo pra deletar essas porcarias. Se você quiser fazer um comentário, POR FAVOR, comente: me mande um email. Eu também continuo no Instagram, porque ainda não inventaram outro jeito de ilustrador e escritor divulgar trabalho e não se tornar invisível. haha. Beijocas.)


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