segunda-feira, 28 de agosto de 2006

A saga do sorvete

Costumávamos passar nossos almoços de 25 de dezembro na casa de uma tia minha, quando eu ainda era bastante nova. Todos os Natais eu esperava aquele sorvete de nozes feito em casa, surpreendentemente cremoso, servido sobre uma generosa fatia de panettone (panettone de verdade, não o enjoativo Chocottone) e uma calda quente e untuosa de chocolate, igualmente caseira. Até hoje essa entra na minha lista das dez melhores sobremesas que provei em minha vida. Então houve um Natal diferente, em que minha tia nos brindou com uma escolha: além do sorvete de nozes, havia também um de pistache, um sabor peculiar para o paladar infantil, mas que imediatamente tornou-se meu favorito. A partir de então, eu sempre buscaria o pistache em todas as sorveterias em que entrasse.

Contudo, conforme o tempo passou, perdemos o contato com a tia, e, portanto, a receita de ambos os sorvetes. Como pistache era ainda muito caro para os supermercados brasileiros da época, o sabor ficou em minha memória. Afoguei minhas mágoas em litros de sorvete de morango e de abacaxi da Yopa, que costumavam vir com grandes pedaços das frutas. Mais tempo se passou, e quem pensava que a tecnologia de produção e a compra de empresas regionais por grandes multinacionais melhoraria a qualidade de seus produtos, enganou-se redondamente. Aqueles sorvetes cremosos que não derretiam no caminho do supermercado para a casa, mesmo em frágeis embalagens de papel, acabaram. Ao invés de mantê-los devidamente congelados para que mantenham sua forma, agora os supermercados diminuem a temperatura de suas geladeiras durante a noite, para economizar energia, e os sorvetes derretem todas as madrugadas, para serem ressuscitados novamente na manhã seguinte, resultando em misturas que muitas vezes se separam, deixando um lodo congelado como gordura de frango no fundo dos potes plásticos. A gordura das gemas e do leite integral foi trocada por gordura vegetal hidrogenada (hoje a temida “gordura trans”) e leite em pó desnatado e leite de soja. Para manter a textura do sorvete por meses a fio, sem que ele empedre, são usados emulsificantes e outros produtos com nomes que dizem para que servem mas não especificam o que de fato são. O ápice de minha frustração foi em uma rede de sorveterias de shopping com nome em italiano, em que enfim encontrei meu tão desejado sorvete de pistache. No entanto, ao invés do verde-amarelado pálido e pouco atraente dos sorvetes que são de fato feitos com o pistache, esse era de um poderoso verde-fosforescente, e devo dizer que seu sabor era tão artificial quanto sua aparência. O sorvete foi para o lixo antes que eu chegasse à metade de sua diminuta porção.

Foi então que, em 2004, fui para a Itália, de férias, por um mês. Encontrei, passeando a esmo pelas ruas de Milão, uma linda gelateria com balcão de madeira, piso de mármore e afrescos claros no teto alto. Percorri os olhos pela gama razoavelmente vasta de sabores, ainda um pouco desconfiada. Mas a visão daquele gelato verde esmaecido, como creme de abacate que começa a escurecer, foi como uma bênção. Meu sorvete de pistache, o primeiro que provei na Itália, era absoluta perfeição, em sabor e em textura. Eu estava viciada e feliz novamente. A partir de então os gelati italiani fizeram parte de minha rotina de viagem, e em cada lugar eu buscava novos sabores, difíceis de se encontrar no Brasil. Em Florença, conheci a Vivoli, atrás da igreja de Santa Croce, uma gelateria do tamanho de uma banca de jornais, com uma seleção pequena de sabores, mas os melhores que já provei. Tive de repetir minha mistura de gelato de iogurte com o de “frutti-di-bosco” (frutas vermelhas). Era possível sentir o gosto marcante de cada uma das frutas em separado: amora, groselha, framboesa, oxicoco, cassis. Em San Gimignano, na única sorveteria da praça principal, tomei com gosto um sorbet de vinho branco, diferente e deliciosamente refrescante. Claro, há já na Itália muitas sorveterias que vendem sorvetes caros feitos com essências artificiais e corantes. Mas é fácil reconhecê-las depois de um tempo. As verdadeiras gelaterie italianas usam a receita tradicional do gelato (gemas, leite integral e açúcar) e o aromatizam com frutas frescas da estação, baunilha de verdade ou nozes de qualidade, resultando em sabores inesquecíveis.
Voltando para o Brasil, percebo que para sempre meu paladar para sorvete está estragado. Na primeira colherada de sorvete de creme industrializado dou-me conta de que nunca mais conseguirei tomá-lo em minha casa com o mesmo prazer que o fazia antes. A chegada da Hägen-Dazs foi um alívio momentâneo, mas seus preços proibitivos logo me frustraram mais uma vez.

Decidi então que, dispondo da receita clássica do gelato, nada melhor do que fabricar o meu próprio, a meu gosto, como fazia minha tia, minha avó e meu tio-avô, que na infância de meu pai, era dono de uma gelateria italiana. O primeiro deles, de creme, feito com essência artificial de baunilha, considero ligeiramente desastroso. O gosto dos ovos ficou pronunciado demais, e não consegui quebrar seus cristais de gelo, o que produziu uma textura quase semelhante à da raspadinha. O segundo, feito com favas de baunilha, foi um sucesso de sabor. A baunilha explodia na boca. E mesmo meu namorado, que devora 1 litro de sorvete industrializado por semana, admitiu que o gosto estava muito superior a qualquer outro que provara recentemente. Mas, provida apenas de um fouet (um batedor manual de arame, que, para mim, substitui bem uma batedeira elétrica na maioria dos casos), a textura ainda não se igualava aos comprados prontos.

Minha última experiência foi um pouco mais ousada: aproveitando a temporada, resolvi comprar uma caixinha de morangos orgânicos bem maduros e suculentos e fazer o sorvete de morango com pedaços, como os da minha infância. Desde o preparo do creme-base, o aroma e o sabor estavam fantásticos. Passei toda a tarde contente com o resultado, esperando quando meu namorado retornasse à noite, acreditando piamente que aquele era o sorvete caseiro que o faria perder todos os preconceitos. Após o jantar, servi para mim uma grande porção daquele doce rosa pálido, como as paredes da sala de uma avó, pontilhado de sementes de morango e pequenos pedaços vermelho-vivo. Desconfiado, ele pegou uma colher de café e provou-o. “Tem gosto de morango”, disse, dando de ombros e pegando o pote pela metade de sorvete Napolitano. Fiquei pasma, sem entender o comentário. Era RUIM o sorvete ter gosto de morangos? Não era esse, afinal, o objetivo?

Era quase um choque ver o contraste do rosa suave e pastel do sorvete caseiro contra o morango rosa-fosforescente do Napolitano. Um evocava creme de leite e morangos frescos da estação; o outro, puro corante rosa-choque, tão doce e artificial que meu estômago dava pequenas voltas só de vê-lo. Ele serviu-se do Napolitano e disse que a textura do sorvete caseiro ainda não agradava, e não ligou para meu argumento de que o sabor e a procedência dos ingredientes era uma qualidade que superava alguns cristais de gelo. A questão é... quão acostumados estamos nós a comer alimentos de qualidade inferior? Aparentemente a ponto de não reconhecermos mais que é BOM um sorvete de morango ter gosto de morangos. Minha próxima aquisição culinária, assim que for possível, será uma máquina de fazer sorvete, na esperança de consertar definitivamente a textura do sorvete caseiro e convencer de vez meu namorado. Enquanto isso, eu tenho um litro de sorvete de morango no meu freezer, do qual me sirvo contente todos os dias. O sorvete caseiro dura bastante, ao contrário do que eu esperava. E sem conservantes.

Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails