terça-feira, 27 de julho de 2021

Abraça o perrengue e vai: a jornada épica de uma mudança


Ready.
Set.
Go.

Acordamos às seis da manhã. Bem, honestamente, acordar não é o termo correto. Acordar infere um anterior estado adormecido, que, no caso, nunca aconteceu. Num misto de ansiedade e excesso de adrenalina pela noite passada desmontando móveis e encaixotando coisas, o sono nunca veio. 

Fomos buscar café da manhã no Tim Horton's, a Starbucks canadense, enquanto as crianças terminavam de acordar. Elas sim acordaram, uma vez que de fato dormiram. Um copo de café e um english muffin com presunto e queijo para cada um parecia suficiente. O plano era sair de Toronto ao meio-dia e meia, e almoçar na estrada. O apartamento tinha cheiro de empolgação e aquele excesso de confiança que deveria ativar um sensor interno de que tudo está prestes a dar errado. 

Mais uma vez, deixamos as crianças e seus english muffins, e levei Allex de carro até a garagem da U-Haul, para que fizesse o check-out do caminhão que havíamos reservado para as 7:30. "Volte para casa e me espere nos fundos do prédio, para me ajudar  dar ré ali", disse ele, e foi o que fiz. Pedi às crianças que tirassem os lençóis de seus colchões para que eu os colocasse na mala com os meus, e descemos todos para esperar o papai e seu caminhão.

Assim que fui ao fundo dos prédios, dei-me conta de que a equipe de manutenção havia deixado todas as caçambas de lixo na entrada do prédio, e que o caminhão não poderia passar. Também não tínhamos tido nenhum contato com o responsável por nos ensinar como travar um dos elevadores para que apenas nós pudéssemos usá-lo. Enquanto as crianças corriam pela área comum do prédio, se dependurando em corrimãos e fazendo buquês de flores arrancadas do jardim do condomínio, eu telefonava para o Serviço ao Residente, tentando fazer com que alguém removesse as caçambas e viesse falar comigo sobre os elevadores, intercalando as musiquinhas de espera com minha delicada gritaria com os pimpolhos hiperativos: "Pára de arrancar as flor do jardim, cáspita, e vê se não se pendura aí que isso não aguenta o teu peso e eu não tenho tempo de te levar no hospital se você quebrar teus dentes no chão!"

Respira. Minha paciência é inexistente quando estou com sono.

Enquanto isso, na U-Haul, Allex inspecionava o caminhão, para descobrir que o cadeado que trancaria nossa vida inteira estava quebrado. Depois de esperar na fila por vinte minutos para reclamar do cadeado, a senhora fofa que o atendeu foi tão delicada com ele quanto eu era com as crianças: "O problema não é meu. Se você quer um cadeado que funcione, pode comprar esse por dez dólares."

Dez dólares a menos, Allex chegou dando ré no caminhão nos fundos do prédio. Fazia trinta e dois segundos que um faxineiro me havia ajudado a empurrar as caçambas e ensinado a operar a trava do elevador. 

Ainda assim, tínhamos sorrisos no rosto e tudo parecia perfeitamente alinhado com os planos. Estava tudo pronto para começarmos e eram exatamente nove horas, como previsto.


It's show time.

As crianças ficaram de olho no caminhão, enquanto nós dois subíamos até o apartamento para descer as primeiras caixas pesadas de livros com a ajuda de carrinhos de mão igualmente alugados.

Esse é aquele momento em que você deve estar se perguntando: mas cadê a equipe de mudança? 

A equipe de mudança custa caro num país em que os serviços são bem remunerados. América do Norte: terra do Do It Yourself. Sabe todas aquelas séries e filmes passadas em Nova Iorque, em que o personagem principal chama os melhores amigos para descer a poltrona e as caixas de livro pro caminhãozinho? Pronto. Você entendeu. Sim. Nós estávamos fazendo a mudança inteira sozinhos. Nós dois. De encaixotar livros, embalar louça, desmontar mesa e sofá, a transportar tudo para o caminhão e então dirigir o caminhão até a casa nova, descarregar tudo, remontar e reguardar. O plano era descer tudo para o caminhão das nove ao meio-dia, dar aquela última limpadinha no apartamento, largar as chaves no escritório da manutenção e, à uma da tarde, partir para Ottawa. Allex dirigiria o caminhão,  e eu, o carro, com as crianças, e os itens mais frágeis. 

Esse era o plano. 

Conforme carregávamos o caminhão, no entanto, algo ficou dolorosamente claro: a caçamba era muito pequena. "Temos poucas coisas", eu havia dito. "Vai ser fácil", ele concordara.

Não foi. 

"Sobe você e vai trazendo tudo, e eu fico aqui montando o quebra-cabeça", eu disse, depois de cinco minutos de discussão sobre termos ou não desmontado os bancos, ter ou não comprado mais caixas, levar ou não minhas plantas e P*TA QUE PARIU, PÁRA DE ARRANCAR PLANTA E DESCE DO CARRINHO DE MÃO QUE SE VOCÊ PERDER OS DENTES VOU TE DEIXAR BANGUELA PRO RESTO DA VIDA, CÁSPITA!

Mudança é super divertido, eu sempre disse. Né?

As crianças desta vez foram gentilmente obrigadas a carregar tralha do apartamento para o caminhão junto com o pai. Não porque eles poderiam ajudar muito, mas como estratégia para pararem de aprontar. Enquanto eles ficavam no sobe e desce de elevador, eu desmontava todo o caminhão e remontava tudo de novo, como apenas uma criança que jogou Tetris na cadeira do dentista durante oito diferentes obturações conseguiria. Ana Elisa: oito cáries na boca, mas campeã de Tetris. Há!

Com precisão cirúrgica e velocidade que me fez sentir como aqueles japoneses em competição de resolver cubo mágico, fui combinado as variáveis peso, fragilidade, tamanho, resistência e flexibilidade, para criar paredões herméticos de caixas, objetos e partes de mobília do chão ao teto do caminhão.

"Não vai caber tudo. Ainda tem as bicicletas e aquele monte de coisa solta que sobrou lá em cima", resmungou Allex, exasperado. Coisas soltas. Mudança tem disso de ser afrodisíaca par tralha que não cabe em lugar nenhum, e, nos quarenta e cinco do segundo tempo, elas se reproduzem feito coelhos.  "Cabe sim", eu disse, tentando encontrar no meu eu sonolento alguma esperança de não ter de me desfazer das minhas plantas."Não cabe", ele disse. "Vou buscar o carro pra deixar aqui e ver o que cabe nele e P*RRA, TUA MÃE JÁ NÃO DISSE QUE O CARRINHO DE MÃO NÃO É SKATE, CARAMBA?"

Enquanto ele buscava o carro na garagem, eu tentava explicar para as crianças porque é que já eram duas da tarde e a gente ainda não tinha almoçado, e porque apesar de estar todo mundo com fome, a gente não tinha tempo de parar pra comer, porque iam cancelar nosso elevador e tinha um caminhão de construção querendo a nossa vaga e a gente ia ser expulso dali sem ter terminado de carregar tudo.

Allex estacionou o carro atrás do caminhão, e começou a tentar encaixar a maior quantidade de tralha lá dentro entre a TV e a cafeteira, enquanto as crianças e eu trazíamos a tralha solta do apartamento usando o elevador comum, pois nosso tempo de elevador acabara, mesmo com a boa vontade do pessoal da manutenção, e agora tínhamos os moços da reforma no nosso pescoço. 

Num dado momento, o colchão king size escorregou e empurrou pra fora do caminhão minha poltrona amarela, que caiu de ponta cabeça no chão, a dois centímetros do monitor do computador.

Gente, que divertido que é fazer mudança! Né?

"Termina de espremer tudo aí dentro eu vou limpar o apartamento!", berrei, correndo para o lobby. Varre varre varre, esfrega esfrega esfrega. Olha o lago pela última vez. Tchau lago. Tchau, apartamento. A foto mal enquadrada e fora de foco dá uma ideia da pressa que eu tinha de fechar tudo e ir embora.

 

"Coube tudo?", perguntei, apanhando a chave do Allex para juntar ao restante e devolver no escritório. "Sim. Espero que não quebre nada."
"E a TV? Tá no carro?"
"Tá. Eu abaixei um lado do banco e coube em pé."
"Vamos?"
"Vamos."

Fui até o carro, apanhei duas plantinhas que iam pro lixo e enfiei nas laterais das portas do carro. Plantinha muquiada. Beijoca, te amo, se cuida na estrada, vou te seguindo, a gente pára no On Route de Port Hope pra comer.

O bom humor e a paciência foram restaurados com o fechar do cadeado de dez dólares na porta do caminhão e o ligar dos motores.


"Mãe, tô com fome".
"Eu sei, filho. Eu também."

A pessoa lembrou de deixar um lanche pronto pra emergência? CLARQUENÃO.

Quando deixamos os fundos do prédio em direção à estrada, eram QUATRO E MEIA DA TARDE.

Port Hope fica a 89km de Toronto. Às quatro e meia da tarde numa quinta-feira, adivinhe só, havia um trânsito digno da Marginal Pinheiros com chuva. Não fosse o carro e o caminhão serem automáticos, seriam uma hora e meia de engata primeira, engata segunda, primeira, segunda, primeira, segunda. 

Já contei que a Laura enjoa? Laura enjoa. Desde bebê. Ela enjoa e vomita muito bem vomitado toda vez que seu transporte chacoalha ou fica nesse anda e pára, anda e pára. Ela já vomitou até no bonde de Toronto uma vez. É super divertido. Né? Uhú! É claro que eu dei remédio de enjoo pra ela antes de a gente sair. É claro que não funcionou porque ela estava de estômago vazio. Ieeei. 

"Mamãe, eu tô enjoada".  

Olho pelo espelho retrovisor e a criança está cinza. Olho em volta. Numa estrada de seis pistas, estou presa no trânsito bem no meio, sem a menor chance de chegar num acostamento. Abro as janelas, ligo o ventilador no máximo, começo a usar o acelerador e o freio com a delicadeza de uma bailarina.

"Tá melhor, Laura?"
"Um pouco. Mas eu ainda tô enjoada."
"Você vai vomitar?"
"Talvez."
"Ok. Deixa eu pensar. Não tem nenhuma sacolinha plástica aqui. Laura! Laura! O cesto de roupa suja tá do seu lado, não tá?"
"Tá."
"Enfia a mão nele e vê se você acha alguma camiseta grande da mamãe ou uma toalha."
"Achei uma toalha."
"ÓOoooooooteeeemo! Espalha ela no colo, aberta, e se for vomitar, vomita na toalha, please."
"Tá bom."

Laura é muito boa de vomitar com mira. Desde pequena ela sabe quando vai vomitar e sempre dá tempo de ela correr no banheiro e vomitar no vaso, sem sujar nada. Muito prático. 

Mas no fim não precisou. O trânsito aliviou, o enjoo passou e ela acabou pegando no sono. Não sem antes eu pedir pra que ela por favor deitasse a cabeça no ombro do irmão, porque do outro lado estava a tela da TV embalada em plástico-bolha.

Chegamos ao posto de conveniência de Port Hope às seis e meia, doze horas depois de nossa última refeição. Ninguém reclamou dos hambúrgueres de fast food e da batata frita. Nem eu, veja só. Quando comentei do meu cansaço para Allex, ele sugeriu açúcar no lugar do café. Antes de voltar para o carro, compramos chocolates para as crianças, e eu me dei o drink de café mais doce que encontrei no Starbucks antes de voltarmos à estrada. 

"Quanto tempo falta, mamãe?", Thomas perguntou, querendo acertar o timmer no seu relógio novo.
"Três horas e meia, filho." Laura ficou consternada. Por conta do trânsito até ali, uma viagem que costumava levar quatro horas e meia, demoraria cinco e meia no total. "Mas agora não tem trânsito, Laura", expliquei. "Só que agora troca o assento: Thomas vem pro meio, Laura vai pra janela, que eu não quero que ela enjoe mais."

A viagem seguiu tranquila. O super Caramel Vanilla Cookie Crunch Açúcar Com Mais Açúcar Coffee Frappuccino com Chantilly da Porcaria Toda do Starbucks funcionou, e pelo menos eu não sentia mais o cansaço da noite insone e das SEIS HORAS carregando peso. É lógico que eu esqueci de baixar no celular uma playlist de música para ouvir na estrada. Mas o Universo foi meu amigo e me ajudou a encontrar uma estação de rádio de Napanee que parecia uma seleção de karaoke feita sob medida para meu gosto musical eclético. As crianças já se acostumaram com a mãe cantando e dançando nas viagens de carro, e só sentiram falta da coreografia dramática dos braços enquanto eu me jogava em Roxette, Kelly Clarkson, Erasure, Backstreet Boys e Taylor Swift. Afinal, eu estava dirigindo. Só rolava chacoalhar os ombrinhos, como toda pessoa crescida nos anos 80 sabe fazer.

"Gente, olha pela janela. Esses bosquezinhos no meio das fazendas são ótimos para ver Deer (veado)!"
Laura suspirou.
"Ih, mamãe, eu tava aqui pensando que a gente justamente não viu NENHUM bicho na estrada até agora. E isso é muito estranho, porque a gente SEMPRE vê bicho na estrada. Aí eu pensei que é porque você tá dirigindo. Você não pode olhar em volta pra achar bicho, então a gente não vê nenhum. Depois disso só o papai vai dirigir, porque você tem que achar os bichos no caminho!"
"Hahah. Mamãe bruxa dos bichos."

Meia hora depois, numa estradinha menor e mais tranquila, apontei um campo de trigo ao lado da estrada, onde meia dúzia de veados com filhotes pastavam tranquilos. 

"Tá vendo só, mamãe? Você tem olho de ver bicho."
"Pois é."

A noite veio devagar, e as crianças foram silenciando no escuro. Ao nosso lado, uma lua cheia alaranjada do tamanho de um prato de bolo se escondia sob fiapos de nuvens cor de chumbo, feito uma lenta dança dos sete véus. Eu continuava seguindo o caminhão, agora de coração leve. A lua foi dormir e deixou em seu lugar uma chuva fina que sussurrava nos vidros.

Faltando uma hora para chegarmos, olho pelo retrovisor e me dou conta de que os dois adormeceram. Suspiro feliz por um segundo, até me dar conta de que Thomas está com o cabeção apoiado à tela da TV. Chamo seu nome. Chamo mais uma vez. Mais alto. Jogo o braço pra trás e cutuco sua perna. Leves tapinhas. Thomas. Thomas. THOOOOOOMAAAAAAAS. Lembro quando ele era pititico na cadeirinha do carro, e sua cabeça adormecida pendia para frente, sobre o cinto de segurança, e eu, aflita no meio da Marginal ou da Castelo Branco, esticava o braço para trás sem tirar o olho da direção, e ajeitava sua cabeça numa posição melhor, quase deslocando o ombro sobre o assento. THOOOOOOOMAAAAAAAS! Ele acorda. "Joga a cabeça no ombro da Laura, filho!" Ele obedece, sem dizer nada, e volta a dormir. TV sã e salva.

Chegamos à casa às onze da noite. A casa em que dormimos um mês antes, nos sacos de dormir que ainda estão ali nos quartos. Tiro tudo do carro, menos a TV e a cafeteira. As crianças vão à cozinha e se fazem um sanduíche com o pão e o salame comprados na estrada, e comem sobre os pratinhos de acampamento que havíamos deixado ali. Enquanto isso, Allex procurava uma vaga na vizinhança para estacionar o caminhão, já que nossa rua é rota de caminhão de bombeiro e não pode ter nada estacionado no meio-fio. O plano de descarregar o caminhão no mesmo dia foi pra cucuia.

"Vão escovar os dentes e cama, agora", diz Allex, quando volta da rua. Eu rio de nervoso. "O que foi?"
"As escovas estão num tupperware... no caminhão."
"Eita, p*rra."
"Pimpolhada, enxagua bem a boca e vai pra cama."
"E os nossos colchões?', Thomas pergunta.
"Estão no caminhão, ué."
"E a gente não vai pegar?"
"São onze e meia da noite, Thomas. A gente vai pegar amanhã, com todo o resto."

Beijo, abraço, abraço de novo, Thomas vai dizer boa noite pra Laura, pois estão separados pela primeira vez, e em dez minutos estão completamente adormecidos.

E foi assim que, depois de uma noite insone, seis horas carregando peso, cinco horas e meia dirigindo, e uma cerveja dividida no chão de nossa nova sala vazia, fomos todos dormir em sacos de dormir.


A pessoa dormiu? CLARQUENÃO.

Às seis e meia da manhã seguinte "acordamos" e fomos andar até a Starbucks a 500 metros dali para comprar café. Um cappuccino gigantesco e um croissant com queijo, levado de volta para comer em casa. Meu corpo inteiro se move como um brinquedo antigo cujos parafusos enferrujaram. Minha mente continua evitando pensar no trabalho que vai dar descarregar o caminhão. Mas quando levo meu café para a varanda da sala, abro um sorriso largo e solto um grito. "UM COELHO! Tem um COELHO no quintal!" Nhóin. Este brinquedo velho usa pilhas recarregáveis à base de fofura.

Às oito, o caminhão está estacionado em frente à casa. Allex alinha a agenda do dia comigo: "Seguinte. Eu tenho a tarde de folga, mas agora de manhã tenho dois calls da empresa. A gente vai descarregar tudo o mais rápido possível, que à tarde vêm os caras da máquina de lavar e depois o cara da internet. Quando eu estiver em reunião, você espera eu voltar pra ajudar, que a gente não tem pressa."

A gente não tinha pressa. Aí vem o vizinho novo, com quem a gente quer começar com o pé direito, e pede pra tirar o caminhão ao meio-dia, porque ele precisa sair da garagem.

"Ok, então enquanto eu estiver na reunião, você faz o que conseguir."

Desta vez, as crianças quiseram e puderam ajudar no processo todo. O que puderam carregar ou ajudar a carregar, carregaram. Esse vai na sala, esse vai na cozinha, esse vai pra garagem, esse você coloca no basement, esse vai pro meu quarto, esse pro seu, esse pro da Laura. Mas o que era pesado era pesado e ponto, e só adulto carregava. E como tinha caixa pesada! Já falei quanto livro eu tenho? Pois é. E os kettlebells? Ai, que divertido carregar kettlebelll, gente! Né? Não.

Allex, super empolgado, prepara os carrinhos de mão para descer tudo do caminhão e levar pra dentro. Eu rio. "Carrinho sobe escada, Allex?"

"Merda."

Haha. Vai tudo no braço. Um por um.

Chegou a hora do colchão de casal. Segura. Segura. Usa o carrinho pra descer o bicho do caminhão. E agora? Agora f*deu. A desgraça passou pela porta feito bala Toff entalando na garganta. Pensa um colchão PESADO. Agora vem a parte divertida. Já falei que minha casa não é térrea? Pois é. Já falei que ela é meio que feita em zigzag? Pois é. Quer dizer que ela não tem dois andares inteiros, mas que cada plano ocupa um meio-andar. Sete degraus pra sala, sete degraus pra cozinha, sete degraus pro meu quarto, sete degraus pro quarto das crianças. Praticamente uma espiral de degraus desenhada por alguém que não tinha transferidor pra fazer curva e desenhou um caracol quadrado. Agora pensa dois adultos cansados tentando subir um COLCHÃO DE MOLA KING SIZE três lances de escada acima. Ieeeeei! Divertido, né? Super. A gente ria muito, porque lembrava da cena do Friends, em que tentavam fazer curva com um sofá numa escada igualzinha. Ó. Foi ÓOOTEMO.

Depois disso, Allex foi para a reunião dele, porque é importante continuar pagando os boletos, e eu liberei as crianças para brincarem de Lego no quarto, enquanto eu terminava de descarregar as últimas caixas. Laura ainda quis me ajudar (ajuda bem-vinda) a  levar partes do sofá escada acima, e fez um ótimo trabalho. 

A última caixa de livros eu carreguei até a porta. Precisava subir um degrau para entrar. Coloquei um pé na soleira e fiz força, com a caixa nos braços. Nada. Vai, perna, sobe! Ahn-ahn. Tô mandando, perna, me obedece, cáspita! Nananinanão. Coloquei a caixa em cima do degrau e subi sem caixa nos braços, e foi desse jeito que eu fui "rolando" a caixa escada acima, usando a desgraça como se fosse um andador. A última vez em que meu corpo DESISTIU desse jeito foi quando terminei a travessia de Petrópolis-Teresópolis, acampando, e precisei que alguém me puxasse pra sair do carro pra ir à padaria tomar café, porque minhas pernas não tinham mais energia para erguer meu corpo em pé. Isso foi antes das crianças nascerem. Nem os 42km corridos na Maratona de Toronto em 2019 me cansaram desse jeito. Quando terminei a maratona, lembro de ter ido tomar banho, abrir uma cerveja e ainda ficar em pé fazendo o almoço pra galera toda. E ainda desci o cachorro.


Eram exatamente meio-dia quando eu fechei a rampa do caminhão pra que Allex o levasse para a vaga lá longe. O vizinho agradeceu. Ufa. Allex terminou de trabalhar, e veio montar a mesa da cozinha, e saímos para comprar esfihas na bakery ao lado. Almoçamos pela primeira vez no quintal, ouvindo o som dos pássaros e esquilos que habitam o minibosque que corre ao longo da parte de trás das casas. Mas o trabalho não havia terminado. Ele cuidou do cara da máquina de lavar e do cara da internet ao mesmo tempo, enquanto eu desempacotava toda a tralha da cozinha. Porque se tem um negócio que tem que estar funcionando em primeiro lugar é a cozinha. Alegria é descobrir que minha habilidade de empacotadora em mudança continua na garantia: nenhuma taça de vinho se feriu durante a mudança. 

No fim do dia, Allex instalou a cafeteira, enquanto eu descansava em minha poltrona, que não sofrera nenhum dano visível na queda do caminhão. As crianças escovaram os dentes COM MUITO CAPRICHO e foram dormir em suas camas, com lençóis fresquinhos da máquina de lavar nova. Fiquei chocada em descobrir que Thomas é um menino organizado, pois suas roupas já estavam em cabides e seu quarto estava todo em ordem, enquanto Laura parecia ter chacoalhado seu quarto com tudo dentro, feito um globo de neve. Lembrei de quando saí da casa de meus pais e minha mãe ficou igualmente chocada em descobrir que era minha irmã a bagunceira, e não eu.

Levei minha cerveja para a varanda, tentando ignorar a exaustão. Fechei os olhos para ouvir o canto dos últimos corvos atravessando os céus para se recolher ao bando, e quando os abri novamente, havia vaga-lumes por entre as árvores. Lembrei de quando havia vaga-lumes em São Paulo. Eu, pequenina, recolhendo os insetos brilhantes em caixas de fósforos, no parquinho do prédio.

Dormir no colchão que você mesma carregou escada acima tem gosto de justiça. 

Na manhã seguinte, bebericando meu cappuccino, eu brincava de ligue-os-pontos nas manchas roxas de meus braços e pernas. Eu parecia (e ainda pareço, enquanto escrevo isso) um dálmata. Minhas panturrilhas ardiam, de tanto sobe e desce degrau, e os músculos de meus antebraços estavam duros feito pedra.

"Me perguntaram por que é que a gente não pediu ajuda", comentei, rindo. "E eu disse que foi um misto de inocência com excesso de confiança."
"Ué", respondeu Allex."A gente fez, não fez? A gente fez sozinho. Chegou tudo inteiro. Foi difícil, mas deu tudo certo. Como é excesso de confiança se a gente foi lá e fez? Eu digo que a gente sabia exatamente do que era capaz."
"Você tem razão. Parabéns pra gente, então."
"Parabéns pra gente."

Epílogo: Allex pegou suas coisas, e foi dirigir quatro horas e meia de volta a Toronto para devolver o caminhão, e então pegar quatro horas e meia de trem para voltar a Ottawa, já que entregar o caminhão em outra cidade custava o dobro. "Pára de desmontar caixa", ele disse. "Descansa. Vai passear. A gente faz o resto junto depois, que vai mais rápido." Sim, senhor. Teve passeio de bicicleta pela vizinhança nova, teve visita ao mercado pra comprar flores e comidinhas, almoço no quintal, e cochilo. Merecido cochilo.

Fomos buscar Allex na estação de trem no fm do dia, e, quando atravessamos a porta, eu estava em casa.



segunda-feira, 5 de julho de 2021

Um lago por um rio.

Mensagens de Toronto


Caixas. Há caixas por todos os lados, há caixas em tudo o que eu vejo. Meu apartamento está uma bagunça. Como todo apartamento fica durante uma mudança. A vida em caixas, objetos que não sei se ainda quero, miudezas-lixo que surgem espontaneamente, em todos os cantos e todas as superfícies. Como é possível, encaixotar toda uma estante e, no dia seguinte, dezenas de minicoisas aparecerem novamente por lá? Sísifo feelings. Já que entramos no âmbito da mitologia, dá-me uma vontade de fazer a Fênix e tacar fogo em tudo e me mudar com a roupa do corpo. Recomeços bem recomeçados. 

Mas não posso, na verdade. Não é uma mudança como foi a última, do Brasil para o Canadá, em que tudo o que tínhamos foi vendido e doado e carregamos em apenas sete malas com quinze anos de história juntos. Também não é a mudança da casa dos pais para nosso primeiro apartamento, aquele da cozinhazinha que gerou esse blog. Naquela mudança, carregamos em mochilas e sacolas nossas poucas coisas que cabiam num quarto, e dois ou três móveis emprestados, levados à pé, pela rua, com pausas pra descansar as costas.

Na nossa segunda mudança, do apartamentinho para um apartamento maior, onde Thomas nasceu e onde achei que viveríamos para sempre (ironicamente foi o lugar onde menos vivemos, apenas um ano e meio), contratamos uma carretinha para levar fogão, geladeira, mesa e sofá. E botamos no porta-malas nossos livros, louças e computadores. 

Esta mudança lembra mais nossa terceira, quando saímos daquele apartamento para a casa da Aldeia da Serra, fora de São Paulo. Foi minha primeira vez morando fora da cidade onde eu nasci. Foi a primeira vez em que chorei em uma mudança. A gente precisa chorar quando uma parte da gente morre. Aquela mudança teve caminhão profissional. Teve a gente indo uma semana antes, pra dormir no colchão no chão e limpar tudo e arrumar a parte elétrica que, por algum motivo, sempre foi problema em nossas casas no Brasil. Era outra cidade, mas era perto o bastante para ir e vir de um lugar ao outro, para fazer a mudança em etapas. 

Spoiler da nova vista da janela em Ottawa.

Estamos mudando de cidade. De Toronto para Ottawa. Ottawa fica a quatro horas e meia de distância de Toronto. Já não é Aldeia da Serra pra São Paulo, ainda que a meia hora imaginária entre as duas pudesse, na realidade do trânsito da Castello Branco em dia de chuva, virar duas horas e meia. Fomos até a casa de Ottawa antes, para pegar as chaves. Dormimos no chão, em nossos sacos de dormir, e verificamos a parte elétrica, que, ainda bem, está ok.

A ideia da mudança não era nova. Desde que Allex começou a trabalhar numa empresa que se dividia entre as duas cidades, a gente tocava no assunto, às vezes. Mas parecia bobagem. Gostamos de Toronto, as crianças estão bem adaptadas na escola, nosso apartamento alugado tem uma localização maravilhosa, e tudo ia bem... até a quarentena. Essa quarentena que aqui em Ontário durou duas décadas e mais uns dias. Essa quarentena que nos fez conviver vinte e quatro horas, por um ano e meio, num espaço pequeno que não foi feito para isso. O apartamento pequeno funcionava lidamente numa situação em que todo mundo estava do lado de fora o tempo todo. Mas as crianças cresceram, e ficou claro que o espaço não comporta a energia e o tamanho de 10 e 8 anos como comportava 6 e 4.

Eu sufoquei. Meu espaço sumiu. O silêncio e harmonia externa de que preciso para manter o silêncio e a harmonia interna desapareceram. Claustrofobia. Ansiedade.

Foi numa terça de manhã, bebericando cappuccinos no quarto, enquanto as crianças se enfiavam na escola online, que o assunto surgiu de novo, de repente, mas não tão de repente assim.

Eu falava de espaço. Quando passamos uma semana em Paris, num apartamento de 21m2, esse conceito fez sentido como nunca havia feito em São Paulo: morar num lugar pequenino era possível, pois a cidade era seu quintal. Toronto tem disso de ser quintal, de chamar pra viver o lado de fora e só voltar pra casa pra dormir. Mas a quarentena matou Toronto. A quarentena fechou meu quintal e me enjaulou no meu apartamento pequeno. Toronto virou São Paulo.

Ele falava de futuro. Porque tem disso com a gente. Eu sou incapaz de me preocupar com futuro. Não sei nem o que vou jantar amanhã, como é que pode eu querer pensar em aposentadoria? Quero viver até os 120 anos, mas sei bem que a natureza faz o que quer e que eu posso morrer amanhã. Hedonista, irresponsável, sonhadora, lua em peixes, pode dar o nome que quiser. Eu estou em paz com isso e com o fato de que Allex e eu nos equilibramos bem nesse sentido, quando respeitamos nossa natureza verdadeira e nossas diferenças.

Bem, ele falava de futuro. De aposentadoria. De segurança financeira. De aluguel. De jogar dinheiro no lixo. De trocar aluguel por Mortgage (o nome do empréstimo pra comprar casa). Ele fazia contas. Ele falava de mercado imobiliário. A gente nunca conseguiu comprar nada nosso no Brasil, porque onde a bolha vai, a gente vai atrás. Estamos sempre um ano atrasados e nosso poder aquisitivo nunca pôde adquirir nada no lugar onde morávamos. E a gente tentou várias vezes. Toronto não é exceção. A cidade virou rapidamente uma das mais caras do mundo, e todos os dias os jornais mostram histórias absurdas de bangalôs minúsculos e caindo aos pedaços que foram vendidos pela bagatela de 1 milhão de dólares. 

A gente podia tentar Ottawa, ele disse. Meu trabalho já está lá, mas a bolha de Toronto ainda não. 

Pode ser, eu disse. Se isso for deixar você mais tranquilo e der mais espaço para as crianças, acho que eu topo.

O Universo tem dessas lindezas, e foi nesse instante em que o telefone tocou. Era o gerente do banco falando que nosso limite de empréstimo tinha aumentado.Oi, senhor gerente, muito obrigado por sua ligação; que coincidência, veja só, a gente tava falando justo disso. O senhor pode, por obséquio, fazer uma simulação de "mortgage" pra gente saber se a gente consegue comprar uma casinha em Ottawa?

E foi assim que a gente começou a procurar nossa casinha em Ottawa. 

Eu penso nessa história todas as vezes que minha ansiedade me impede de dormir, e que minha insônia abre a Caixa de Pandora dos pensamentos negativos. Porque essa história parece muito com aquela que nos trouxe para o Canadá. 

Toronto, vista da balsa a caminho de Toronto Islands. Muito amor.

Lá nos idos de 2015, a gente já vinha falando de sair do Brasil. De buscar não apenas a aventura do expatriamento que habitava meus sonhos, mas também oportunidades novas para nossa família. Quando ofereceram uma vaga no Panamá, Allex aceitou sem titubear. Panamá. Nunca imaginei. Mas vambora que a gente não sai olhando dente de cavalo que cai no seu colo quando você pediu. Foram meses de sonhar acordado, de pesquisar sobre o país, de imaginar nossa vida lá. Quando estávamos em Paris, eu deixei de comprar um casaco felpudo que eu amei de paixão porque "faz calor no Panamá, e eu nunca vou usar isso lá". Era tanta certeza. Faltava só assinar o contrato e a mudança estava selada. Todo o resto já havia sido negociado. No dia em que voltamos de Paris, o telefone tocou duas vezes. Na primeira vez, pra dizer que o escritório do Panamá havia sido reestruturado e a vaga não existia mais. Eu chorei. A gente tem que chorar quando uma parte da gente morre. Na segunda vez em que o telefone tocou, meia hora depois, era um amigo nosso, que comentou, assim, en passant, que havia um consultor de imigração canadense na cidade, ainda aceitando entrevistas. Eu peguei a última vaga do último dia disponível do consultor. E viemos para o Canadá.

Durante os dois anos que duraram o processo de imigração, era essa história que acalmava os pensamentos negativos liberados pela Caixa de Pandora da minha insônia.

E cá estamos nós, novamente. No meio da mudança. 

Noutro dia, resolvi ler os textos escritos durante cada uma das minhas mudanças de casa, como um "respirar no saquinho" literário. Relembrar é importante. Porque mudança é que nem filho: a gente só faz de novo porque esqueceu como foi a vez anterior. Toda mudança é bagunça, toda mudança faz a casa parecer um campo de paintball, toda mudança faz surgir dos recônditos do inferno toda sorte de minitralha que você nem sabia que habitava suas gavetas. 

Toda mudança desequilibra, desarmoniza, destrói e desfaz. 

A bagunça externa anda me bagunçando internamente, é claro. Como toda boa libriana, preciso de harmonia pra viver. Nada menos harmônico do que uma sala cheia de caixa e tralha onde não se consegue nem passar vassoura. Mas seguimos. Respira no saquinho, literária e literalmente. 

Primeira cerveja com amiga em pátio aberto do ano.

Enquanto a mudança não vem, faço um pacto comigo mesmo de curtir meu quintal-cidade como não pude durante a quarentena. A vida volta, graças à ciência e ao bom senso que trouxe vacinação em massa. Dia bonito é para ser usado, e eu vou abusar de todos os meus dias bonitos em Toronto enquanto eles existirem.

Autografando livro num café de Toronto.

Parque, piquenique, bicicleta, praia, chopp com os amigos que eu não vejo há mais de um ano apesar de serem meus vizinhos, cafés com leitores queridos que compraram meu livro aqui no Canadá e me encontram pra que eu possa escrever dedicatória. Sonho ainda com a viagem ao Brasil para minha tarde de autógrafos. Ainda não chorei, porque essa parte minha eu não matei. Ela vive, moribunda, mas ainda esperançosa. 

Faço listas de passeios em Toronto, lugares para ver. Allex encaixa a lista num calendário. Eu uso o calendário como sugestão. Hoje eu estou afim de quê?

Cato a bicicleta para comprar croissants na minha bakery favorita.

Compro passagens da balsa para a ilha durante o café-da-manhã e monto um piquenique improvisado com o que sobrou na geladeira. Pulamos ondas na praia do lago.

Quero fazer o tubbing que não fiz em 2019, quando eu tive que cuidar do cachorro enquanto Allex, as crianças e minha irmã desciam o rio de boia (tube), em Elora Gorge. Allex tira o dia de folga numa quinta e vamos. Cobro do Universo o tubbing que ele me devia.

Cerveja no meio da meia-maratona. Steamwistle é uma cervejaria no centro.

Faço minha meia-matatona da Steamwistle. Essa minha tradição inventada de correr 10,5km até a cervejaria no centro da cidade, tomar um chopp (usar o banheiro) e voltar correndo mais 10,5km pra casa. Essa meia-maratona tem um gostinho especial. Primeira vez que corro 21km desde que meu corpo resolveu se desmantelar durante a quarentena: pé-quebrado, pé-torcido, fascite plantar e nervo pinçado.

Acalmo o FOMO das listas usando dias de chuva para colocar mais coisas em caixas. 

E seguimos dizendo tchau a Toronto e às pessoas que nos acolheram aqui. Dizendo tchau à vista do lago que parece mar, ao High Park que me ensinou a correr de novo, às trilhas onde Gnocchi andava livre, sem coleira, olhando para trás para ter certeza de que eu o seguia direitinho. 


O lago. Mergulho nele mais um vez, e mais uma, cada vez podendo ser a última. Deixando minha pele dissolver em sua imensidão gelada e inerte. Deixo minha ansiedade virar imaginação, nadando para o grande rio na cidade nova. Um lago por um rio. Água parada por movimento. Fecho os olhos e me pergunto onde o rio vai me levar.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Tá tudo bem. Tem Baked Chocolate Pudding.


Nós vamos nos mudar. Pronto. É bom tirar isso logo da frente, que é pra ninguém ficar ansioso.

Essa quarentena sem fim teria deixado todo mundo aqui em casa doido de verdade não fossem os parques e a primavera que chegou cedo, deliciosamente quente como eu nunca vi em Toronto. Imagina só, 28oC no fim de maio! Tão quente, que os splash pads (aqueles chafarizes nos playgrounds) abriram mais cedo. E as crianças, confinadas o dia todo à rotina de um gerente de marketing de quarenta anos, carinhas na tela e bunda na cadeira, puderam gastar toda a energia em ebulição no parque ao fim do dia.

Desligou computador, monta um lanche e parque neles. Santo parque. Os dias andam cada vez mais longos, e são sete da noite e o céu é claro e quente e não nos deixa voltar pra casa. Quem tem coragem de tirar criança feliz do parque? Eu tinha. Eles eram menores e eu sabia bem o que me aguardava no dia seguinte caso eu largasse a hora de dormir ao bel-prazer dos dois. Criança dormindo às dez da noite e acordando às seis da manhã. Se tem um negócio que a Laura herdou de mim é o mau humor de sono. Ninguém merece. Principalmente eu.

Mas eles cresceram. E ainda que Laura ainda não saiba reconhecer os próprios sinais de cansaço em seu temperamento, eles têm lidado melhor com horários menos rígidos. Aliás, tudo menos rígido. Rotina foi algo muito importante na primeira infância dos dois para deixá-los seguros e independentes. Criança que tem certeza de que o almoço está lá ao meio-dia e que segue sempre um ritual escova-dente-lê-história-tira-pulguinha-e-dorme, fica tranquila. Sabe o que esperar. Não existe ansiedade na hora de dormir se você sabe exatamente o que vai acontecer e quando. Todo dia é tudo sempre igual.

Só que rotina também aprisiona. TODO DIA É TUDO SEMPRE IGUAL. Principalmente gente com alma de passarinho, que quer ficar batendo asa por aí e improvisando vôo. O dia em que entendi o quanto os horários da escola engessaram minha alma, arrependi-me amargamente de ter matriculado a pimpolhada tão cedo. Vivesse a vida outra vez, teria rodado a cidade com a criançada até ser obrigada por lei a colocar os dois numa sala de aula.

Mas tem coisa que a gente precisa viver para aprender. 

Não é à toa que eu sou uma mãe melhor do lado de fora. Não é por meu amor incondicional por mato, mas porque posso saracotear com os dois por aí sem rumo, sem hora, ou relaxar e deixá-los explorar o que o houver sem interferência ou interrupção. 

Eu me divirto mais com meus filhos quando permito que eles experimentem o mundo e o tempo do mesmo modo como me faz feliz.

Agora que eles cresceram, maternidade parece às vezes um andar de bicicleta sem as mãos. Continuo conduzindo, mas posso relaxar e confiar que aquela roda que eu não controlo vai seguir em linha reta. E ninguém vai quebrar os dentes no chão. Nem sempre, pelo menos.


Então largo o guidão e não me preocupo com o jantar. As crianças montam um sanduíche com o que mais gostam e levam numa sacola, com toalha e uma arminha d'água, uma boneca e um dinossauro, um pote com melancia e outro com tomatinhos, e vamos ao parque sem hora para voltar. Sento e leio um livro. Converso com outros pais. Allex às vezes termina o trabalho mais cedo e se junta a nós, trazendo um imenso saco de pipoca temperado com sal, orégano e páprica que ele mói no meu pilão de madeira. Experimente. Fica muito bom. Às vezes ele traz uma cerveja pra gente dividir, escondidinha num desses copos térmicos de café.

Tiro os sapatos pra por os pés na grama. Inspiro o cheiro da terra sob o sol e do pólen suspenso no ar. Deixo a brisa morna levar as horas devagar.

São sete e meia e eles correm descalços na grama, cabelos molhados e risos largos, lagartas pequenas nas mãos, que lhes fazem cócegas nos dedos. "I'm going home!", dizem os amigos, acenando à distância, e esse é o sinal para recolher tudo e partir.

Às vezes paro no mercadinho a caminho de casa para catar uma baguette e um prosciutto, para comer com manteiga em casa, antes do banho. Outras, não precisa de nada a não ser tirar a areia do corpo num banho gostoso, escovar os dentes e ir dormir. Deixo que eles se demorem. Que venham sentar comigo para contar sobre seu dia. Que se espreguicem do lado do pai, no sofá, enquanto ele joga video-game com os amigos do Brasil. Sem pressa. Sem a pressa que eu tive um dia.

Às vezes sugiro que vão dormir cedo, quando vejo em seus rostos que é preciso. Outras, eles se arrastam à cama para lá das nove da noite, cobertos pela penumbra de uma persiana que, mesmo fechada, não resiste à luz azul clara e amarelada do entardecer do verão canadense, que se demora até as dez.

Nessa rotina sem rotina, tenho cozinhado pouco. Faço almoço. As sobras, requentadas, repaginadas, são jantar dos adultos que não se entupiram de framboesas no parquinho. Faz calor demais para se ter apetite. 

De vez em quando, assim, porque até a vontade anda também voluntariosa e vai e volta como quer, me dá as ganas de preparar um doce. 

 

 Laura tinha pedido para fazer uma receita de uma revistinha da Martha Stewart, um baked chocolate pudding, numa semana que calhou de chover e esfriar um pouco. Fizemos juntas, mas não deu certo. O tempo de cozimento estava errado e o pudding virou cake. "Tá tudo bem, mamãe, tá gostoso mesmo assim!" O lema da Laura. Tá tudo bem. Laura me lembra sempre de não me importar tanto. No dia seguinte, apanhei um livro mais confiável e fiz outra receita do mesmo doce, e desta vez o resultado foi maravilhoso. Crocante por fora, cremoso por dentro, paraíso do chocolate. (Receita no fim do post)

Naquele dia, Laura me deixou um recado escrito a canetinha: Thank you for doing almost everything I ask you to do. O bilhete mais lindo. 

A verdade é que mamãe anda mais relaxada, mais em contato com o que a faz feliz, e assim mamãe fica mais legal. Porque quando a mamãe se sente presa em circunstâncias fora do seu controle, ela tende a tentar controlar tudo à sua volta, e torna a vida de todo mundo um pequeno inferno. 

Tá tudo bem, eu digo.

Saí cedo para correr e chamei as crianças para virem comigo. Laura quis vir de bicicleta, mas Thomas preferiu ficar em casa lendo Asterix. "Não dá tempo, Ana, eles têm escola", Allex disse. 

"Ela chega dez minutos atrasada. Tá tudo bem."

Laura pedalou ao meu lado enquanto eu corria pela trilha ao longo da lagoa, e paramos para subir em árvores e ver patinhos-bebê nadando em meio aos juncos. "A gente tá atrasada, mamãe?", ela perguntava. "Fica tranquila, Laura. Curte sua manhã." E paramos novamente para ver os gansos e seus filhotes, desengonçados no gramado, de pés grandes e asinhas pequenas, feito meninos adolescentes. Ela apanhou duas penas grandes que estavam no chão e pediu que eu as carregasse até em casa, para colocá-las em seu altar da natureza, onde coleciona pedras, conchas, ovos de pássaro e pedaços de colmeias. 


 

Quando chegamos em casa, quinze minutos depois de a escola online começar, deu tempo de lavar as mãos e preparar um pão com manteiga. E quando ela ligou o computador, descobriu que a professora estava atrasada e ainda não tinha feito chamada. 

"Viu? Tá tudo bem."

O dia segue feito um rio quando ouço a voz no meu peito.

Essa mesma voz no peito que nos fez, numa manhã aleatória, resolver mudar. Mudar de casa. Mudar de cidade. Um comichão que sussurrava "vai agora". Algumas decisões acontecem feito a cena do chapéu do Indiana Jones. Corre que a porta tá fechando. Tipo criança escolhendo quem brinca de pega-pega no pátio da escola: quem quiser mudar põe o dedo aqui, que já vai fechar.

Fechou.

Vou seguindo esse rio no meu peito para aproveitar esse lago, esse parque, essa cidade e essas pessoas por algumas últimas semanas antes partir. Tento olhar, entender e dissolver o medo do novo que aparece em forma de tensão no pescoço, apertando aquele danado daquele nervo pinçado de novo. Relaxa, mulher. Até quiropraxista disse: não era nem para ter sintoma, esse nervo. É tudo tensão. Tudo cabeça. Só que cabeça adora isso de rotina previsível e horário fixo e controle das variáveis. Cabeça adora lembrar que não dá tempo de andar de bicicleta no parque ou que eu não deveria jantar sanduíche de novo. Sossega, cabeça. Deixa o coração mandar um pouco, que é nele que a alegria repousa, feito um lago. Acho que não é a toa que o coração parece uma xícara de chá quente quando a gente sente amor. Deixa o rio fluir para alimentar o lago. Cheio e quentinho.

Mergulha. Tá tudo bem. 

....



BÔNUS DE RIO FLUINDO, VERSÃO SUPERMERCADO: 

Noutro dia, me deu vontade de comer camarão. Assim, de repente, como se tivessem implantado a ideia na minha cabeça. Aqui na minha vizinhança só tem camarão congelado, desses que vem com sal e conservante. Ou tem, de vez em quando, no mercadinho orgânico, mas costuma ser caro e não tem sempre. Mas estava lá, aquela voz gritando no meu ouvido feito criança pequena fazendo birra na padaria. Só que ao invés de pedir Danette, a criança no meu peito gritava Camarão! 

Saí. Fazer o quê? Eu não tinha intenção de ir ao mercado, porque ainda tinha alguma comida em casa, então foi pura frescura voluntariosa. Coração gulosos e gourmet tinha razão, no entanto, que assim que pus o pé no mercado, desatei a rir: o camarão fresco estava em promoção. Metade do preço. O Universo é essa coisa linda, às vezes, se você estiver tranquilo em ser feliz com camarão em promoção. Paguei pelo camarão e fui no outro mercado pegar o macarrão da marca que eu gosto, porque a lombriga pedia macarrão com camarão. Olha que delícia falar isso em voz alta: macarrão com camarão. Enche a boca que nem palavrão dito com vontade.

No outro mercado, entrei na fila pra pagar por meu pacotinho de penne rigate, e a moça do caixa pergunta: "Você gostaria de um saco de batatas?"

"Como é que é?"

"Um saco de batatas. Você gostaria de um?"

"Desculpa. Não entendi. Um saco de batatas?"

"É. É de graça. Customer appretiation." 

"Bom. Sim, eu quero. Obrigada."

E assim eu saí do mercado com meu pacotinho de penne e um saco de 3kg de batatas de graça. 

Era batata pra burro, e é claro que o mercado estava dando batata porque elas estavam mais pra lá do que pra cá. O Universo pode ser legal, mas dono de supermercado de rede não dá ponto sem nó. Daí que eu saí cozinhando batata loucamente pra não deixar estragar, e eu terminei com um panela industrial de purê de batatas.

Povo aqui alucina com purê. Mas nem meus filhos, essas dragas, conseguem dar conta de tanto. 

Eu tenho uma paixão muito específica na cozinha, que é a arte do reaproveitamento. Quase sempre as melhores receitas são aquelas que reaproveitam sobras. E eu adoro qualquer receita além de gostosa ainda evite desperdício e me faça sentir competente. 

Esse é um jeito excelente de aproveitar uma quantidade gigante de purê de batatas. E é delicioso. Chama-se Oeufs Parmentier. Serve seis pessoas, mas minhas dragas comeram metade sozinhos. Você unta uma forma com bastante manteiga, e coloca lá dentro todo aquele seu delicioso purê de ontem (quantidade feita com mais ou menos meio quilo de batata, e misturado a manteiga e leite). Você abre seis buracos com uma colher e quebra ovos dentro deles. Cobre com uns 3/4xic de creme de leite fresco (se for crème fraîche, melhor ainda), tempera com sal e pimenta e joga no forno a 210oC até dourar e as claras estarem cozidas (uns vinte minutos, dependendo do forno). Sirva colheradas fartas, que desmontam no prato, para acompanhar uma salada bem verde, com folhas amargas. Dá pra ficar melhor?

:)

BAKED CHOCOLATE PUDDING

(Do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, da Alice Medrich)

Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 170g chocolate meio amargo ou amargo(em torno de 70% mas não mais do que isso), picado
  • 115g manteiga sem sal, em pedaços
  • 3 ovos grandes
  • 2/3 xic. açúcar
  • pitada de sal
  • sorvete, para servir

Preparo: 

  1. Posicione a grade do forno no terço inferior e preaqueça a 190oC.
  2. Coloque o chocolate e a manteiga numa tigela em banho-maria e mexa frequentemente até que o chocolate derreta e se misture à manteiga. Retire do calor assim que estiver derretido.
  3. Na tigela da batedeira, bata os ovos, açúcar e o sal em velocidade alta até que fique fofo e amarelo bem claro, e com a consistência de chantilly (pode levar de 5 a 10 minutos).
  4. Misture um terço dos ovos ao chocolate, e então despeje a mistura de chocolate de volta à tigela com o restante dos ovos batidos. Misture com uma espátula, delicadamente, para não perder muito o volume do ar. 
  5. Divida a massa entre seis ramequins ou formas com capacidade para 1 xícara. Não é preciso untar. Nesse ponto você pode cobrir as forminhas e levar à geladeira para assar mais tarde. Apenas retire da geladeira meia hora antes de ir para o forno. 
  6. Coloque as forminhas numa assadeira e leve ao forno por15 a 20 minutos (um pouco mais se os puddings foram refrigerados), até que eles tenham inflado, estejam com a superfície seca e craquelada, mas ainda bem moles por dentro (você pode testar com um palito). 
  7. Sirva imediatamente, com uma bola de sorvete. Eles vão afundar assim que saírem do forno.Se for servir para crianças, coloque os ramequins dentro de potes ou pratinhos resistentes ao calor que possam conter os ramequins quentes sem que eles escorreguem pra lá e pra cá quando a criança meter a colher lá dentro. Assim, a criança pode segurar o pote de fora e comer confortavelmente, sem o risco de queimar as mãos no ramequin quente de forno. :)

terça-feira, 4 de maio de 2021

Magnólias e Macarons

 São as flores das cerejeiras que dão a dica, melhor que qualquer marmota, de que o inverno finalmente acabou. Em toda primavera, desde o meu primeiro ano no Canadá, ando em direção a essa fileira de árvores rosa pálido, esperando alguma espécie de arrebatamento: o sorriso espontâneo, o calor no peito, aquela leveza alegre que causa formigamento na pele, quando me deparo com algo verdadeiramente bonito. Escolho uma manhã cinza, fria e chuvisquenta, na esperança de evitar as comuns aglomerações dos dias ensolarados.

Talvez eu tenha sido excessivamente mimada por uma vida brasileira carregada de ipês brancos, amarelos, roxos e cor-de-rosa, cujas copas coloridas espalhadas por São Paulo contrastavam contra as nuvens monótonas. Os ipês, na minha memória, são fluorescentes como as pulseirinhas dos festivais de música eletrônica da minha juventude.
 
As cerejeiras, ao contrário dos ipês, empalidecem nos dias chochos. Como fotos de prédios novos em folhetos imobiliários, precisam de um otimista azul sem nuvens para brilharem. O céu chuvoso da primavera de Toronto abafa sua formosura, como um emaranhado de fios elétricos e postes sujos na frente do empreendimento de luxo.
 
Cerejeiras num dia cinza.

 
Minha reação às cerejeiras é sempre morna. É bonito. Mas não emociona. Caminho, passo por elas, até encontrar magnólias.
 
Gosto de magnólias.
 
São como a versão agigantada e extrapolada das cerejeiras. As duas têm a mesma paleta de cores e florescem, sem folhas, na mesma época. Mas só as cerejeiras causam filas de Instagramers posando sob suas copas delicadas. E as magnólias observam passarinhos.
 
As cerejeiras, eu entendo, têm uma beleza clássica que atrai. É conservadora, delicada, moça de família. Se as cerejeiras fossem uma pessoa, ela seria o tipo de pessoa que sempre pede sorvete de baunilha. Seria a pessoa que senta de pernas cruzadas, com as mãozinhas nos joelhos, exibindo no pulso um reloginho de ponteiros e uma correntinha de ouro, presente da mãe do namorado que ela nunca viu sem roupa. Se as cerejeiras fossem uma pessoa, elas seriam a pessoa que passa hidratante com cheiro de flor de cerejeiras e que escova o cabelo o mesmo número de vezes antes de ir dormir.
 
O que está tudo bem. Desejo toda felicidade do mundo às cerejeiras.
 
Mas eu gosto de magnólias. Das flores imensas que você não espera ver na ponta de um galho de árvore. Dessa exuberância quase tropical, de alguém que usa brinco grande e vestido de chita.
Se as magnólias fossem uma pessoa, elas seriam o tipo de pessoa que pede sorvete de missô, pra saber que gosto tem. Seriam o tipo de pessoa que senta na grama e tira o sapato. Seriam uma pessoa que vira e mexe quebra um copo, porque usa sempre os braços para falar. Seriam a pessoa que grita o seu nome do outro lado da rua só pra te dizer oi. Quando chega a primavera, as magnólias saem de shortinho quando está dez graus. As cerejeiras usam o cardigã combinando com os sapatos. 
 
Magnólias num dia cinza.

 
Olho para as magnólias sob o chuvisco fino de uma manhã sem luz, e sorrio. O peito aquece. A pele formiga. Deixo-me arrebatar pelo riso alto das flores grandes. Piso em poças d'água enquanto ouço passarinhos. Volto para casa com energia para fazer macarons.

Macarons são o doce favorito da pessoa-cerejeira. Mas a pessoa-magnólia acha que gostar de macarons não define uma pessoa, e se joga no projeto simplesmente porque é divertido preparar um doce tão cheio de fricote numa quinta-feira à tarde. 

Tentei fazer macarons uma vez, ainda no Brasil. Na época, havia todo um frenesi internet afora a respeito dos macarons franceses. Acho que foi quando saiu o filme da Sofia Coppola sobre a Maria Antonieta, e os americanos descobriram os macarons. Todos os blogs estrangeiros tinham receitas coloridas de sabores inusitados e dicas infalíveis em processos complicadíssimos para alcançar idílica perfeição macarroneana dos mestres confeiteiros. Sendo ainda uma louca obcecada por todo o tipo de comida que eu nunca provara na vida, eu precisava, PRECISAVA preparar macarons.
 
Inventei de usar açúcar comum e moer minhas próprias amêndoas, porque, afinal, COM CERTEZA todos os chefes confeiteiros do mundo estão errados nos seus minuciosos métodos. Às vezes a pessoa-magnólia tem que aprender com a pessoa-cerejeira. O resultado foi uma braçada de suspiros de amêndoa. Óbvio.

Alguns anos depois, passei vinte e oito minutos na fila da confeitaria de Pierre Hermé, em Paris, para comprar uma caixinha delicada com quatro pequenos macarons. Não me lembro quanto paguei naquela caixinha. Mas o horror do marido ao calcular o preço em reais, com uma cotação de 4 para 1, ficou marcada para sempre na memória.Esses biscoitos devem valer muito a pena, ele disse, apanhando o de caramelho salgado para provar. Não valem, foi a conclusão. Os tão sonhados e perdulários macarons foram ligeiramente decepcionantes: eram tão leves, tão leves, que desapareciam na boca tão logo tocassem a língua. E o sabor... era ok. O biscoito mais hypado do momento sofrera na entrega por excesso de expectativas.

Não sou fã de macarons, comecei a dizer.

Pule outros tantos anos para uma manhã solitária no Yorkdale Mall, em Toronto, durante as duas breves semanas em que cafés e restaurantes permaneceram completamente abertos no ano passado.
 
Shopping centers me causam dor de cabeça instantânea, e eu eu só ponho um pé dentro de um quando e em extrema necessidade. Jamais, em qualquer circunstância, entraria em um shopping com o simples intuito de passear. Eu havia pego trinta e cinco minutos de metrô até Yorkdale com a intenção de me achar um casaco de outono: algo que ficasse entre os casaquinhos brasileiros que não servem para nada aqui e minha parka de neve para vinte graus negativos. E até então, a melhor parte do passeio fora o trajeto de metrô, que me possibilitava olhar pessoas e ler um pouco.

Mas ali estava eu, depois de meses de escola online e quarentena, sentindo-me de férias ao passear sozinha num shopping center. Talvez tenha sido saudades de Paris, saudades de viajar, ou as simples saudades de sentar num café e ver a vida passar. Mas naquele dia eu entrei na Ladurée, aquela loja em tons pastéis que parece ter sido projetada por um unicórnio, sentei numa mesinha de metal com tampo de mármore, e pedi um café e três macarons.

Foi como um abraço. 

O café veio servido numa xicarazinha de avó, de haste dourada e pires decorado. Os macarrons foram servidos num pratinho que fazia conjunto com a xícara, precisamente posicionados no centro de uma toalhinha de papel rendada. A simpática e sorridente moça que me atendeu também trouxe um açucareiro de metal dourado e desenhos intrincados, que parecia ter sido comprado num mercado de pulgas. E aquilo era tão charmoso que quase me entristeci por não adoçar meu café. 

Não sei dizer no quê aqueles macarons coloridos diferiam dos que comi em Paris. Talvez nada. Talvez fossem apenas uma indulgência necessária num momento emocionalmente difícil. Talvez se a viagem a Paris tivesse sido estressante, os macarons de Pierre Hermé fossem tão deliciosos quanto aqueles da Ladurée do shopping. Talvez eu simplesmente não tivesse expectativas.
 
Saboreei cada um deles, bocadinhas intercaladas com bicadas no meu cafezinho de avó, enquanto lia mais um trecho do livro que começara na viagem de metrô. 
 
Numa manhã ensolarada do outono do ano passado, saí para andar de bicicleta com Laura. Thomas preferiu passar tempo com o pai. Pedalamos muitos quilômetros pela orla do lago, vendo as gaivotas pairando no vento e o vento formando ondas na água. Quando chegamos ao centro da cidade, estávamos com frio, e sugeri que apanhássemos um chocolate quente num café que estava aberto ali ao lado. Entramos de máscaras, enquanto os outros clientes esperavam do lado de fora. Café. Chocolate quente. E eu vejo aqueles sanduichinhos coloridos nuam redoma de vidro ao lado da caixa registradora. 
 
"Laura, vou te dar uma coisa pra comer que você nunca comeu". 
 
Levamos nossos copos quentes e nossos macarons genéricos para fora, sob o vento forte que começavaa trazer nuvens. Encontramos um banco em frente ao lago, e, Laura seu macaron, falei sobre Paris, sobre confeitarias francesas, sobre viajar, sobre prazer na vida. 
 
"Eu adoro o Dia das Meninas", disse Laura. Dia das Meninas é como ela chama qualquer saída de casa em que estejamos apenas nós duas, mesmo que seja uma ida ao oculista ou ao supermercado. Sabendo do efeito que isso tem nela, tento sempre incluir nesse tempo nosso uma parada num café novo, uma compra de um doce especial numa bakery diferente, qualquer coisa que ela possa contar animada quando chegar em casa, que "só eu e a mamãe fizemos".
 
Eu não esperava que Laura fosse gostar de macarons, uma vez que ela detesta amêndoas. Mas ela ficou encantada. O sabor, a textura, o recheio, o formato delicado e as cores: tudo ela achou lindo, interessante, fantástico, delicioso. "Quando os cafés estiverem abertos para a gente sentar dentro deles de novo, vou te levar na Ladurée.A gente vai tomar café e chocolate quente em xícaras de louça, e vamos comer macarons de vários sabores. Os de lá são mais gostosos."

Estava prometido.

Mas os meses foram passando, e Laura perguntava quando teríamos nosso Dia de Meninas no café dos macarons, só para ouvir sempre a mesma resposta: "Um dia, Laura. Um dia."

Naquele dia de flores cor-de-rosa, fui ao mercado comprar farinha de amêndoas e açúcar de confeiteiro. Eu não cometeria aquele erro duas vezes. Asssiti a um video maravilhoso que ensina todos os truques de um jeito muito mais simples e do que os blogs de tantos anos atrás. E lá fui eu. 

"Laura, hoje eu vou fazer macarons." Seus olhos acenderam estrelinhas. "E a gente vai fazer eles cor-de-rosa!"

Foi como se eu dissesse que adotaríamos um unicórnio.

O processo dos macarons, ainda que tenso, foi muito mais simples e fácil do que eu esperava. Bate clara em neve, mistura açúcar e farinha e corante, bota no saco de confeitar...

"Eu não tenho saco de confeitar", murmurei. Eu tinha. Com uma coleção de bicos diferentes. Mas vendi tudo para vir para o Canadá. 

"E agora, mamãe??"

"Sabe, Laura, eu já fui essa pessoa preciosista que não faria macarons sem bico de confeitar. Mas a mamãe aprendeu a relaxar a bisteca." Apanhei um ziplock, enchi um dos cantos com a massa dos macarons, torci a parte de cima e fiz um picote pequenino com a tesoura, para a massa sair. Pessoa-magnólia.

"Olha que danadinha, mamãe!", Laura riu. 

"Né. Sou mesmo. Eles com certeza não vão ficar todos do mesmo tamanho, nem com aquela cara perfeita das bakeries..."

"Mas vão ficar gostosos, e é isso o que importa!", me interrompeu ela. 
 
Esse é o mantra da Laura: vai ficar gostoso, e é isso o que importa. Ela repete essa frase para mim, sempre que eu digo que talvez a receita não dê certo. E quando não dá certo mesmo, ela dá de ombros e sorri: "Tá tudo bem, mamãe, o que importa é que você fez com carinho e a gente vai comer mesmo assim". 

No forno, os macarons começaram a me preocupar. Cresceram um pouco menos do que eu esperava, e terminado o tempo indicado na receita, eles não mostravam os sinais esperados. Quando tentei mover um para ver se estava dourando por baixo, percebi que ainda estavam crus. Mantive a temperatura muito baixa, e continuei assando os danados até o limite do aceitável, quando começaram a dourar em cima e pareciam quererem se destacar do papel-manteiga. Nesse ponto, eu já havia me conformado com o fato de ter produzidos suspiros de amêndoa novamente. 

"Tá tudo bem, mamãe. O que importa é que você fez com carinho."

Ressabiada, ainda assim, montei os macarrons recheados de geleia, tentando resolver aquele quebra-cabeça de qual macarron tem o formato de qual, para que ficassem iguais quando sanduichados. 

As crianças foram para a cama, e eu apanhei um macaron para experimentar. 

Decepção. 

"Droga, deu errado", disse a Allex. "Estão chewy e duros na base."

Fui dormir àquela noite chateada por não conseguir prover à Laura o "Dia de Meninas" com os macarons que eu havia prometido tantos meses antes. Na manhã seguinte, servi os doces às crianças sem muita empolgação, avisando que haviam dado errado. 

"Mamãe! Tá uma delícia!", eles disseram. Sorri, feliz com aquelas crianças amáveis que só queriam me agradar. "Não! Mamãe! É verdade! Ficou muito bom!"

Provei um, desconfiada. Para minha surpresa, aquela noite na geladeria, recomendada pela receita, não era nenhuma frescura: as bases duras e puxa-puxa haviam amolecido, e agora os macarons tinham exatamente a textura de que eu me lembrava. Eram macios e quebradiços e derretiam na boca. Apanhei mais um. E mais um. Fiz um café. E comi mais um, bocadinhas intercaladas com bicadas no meu café. 

Na manhã seguinte, o sol nos chamou para fora, e apanhamos as bicicletas para pedalar ao longo do lago. Atravessamos o parque e a rua onde ficam as cerejeiras, cujo rosa esmaecido sorria contra o céu azul sem nuvens. Continuamos por mais dez quilômetros até um parque distante, onde tirei da mochila um pote plástico com uma fileira de macarons. 

"Gosto mais das magnólias!", disse Allex, apontando para uma árvore madura num quintal da frente, explodindo em grandes flores tão rosa quanto os docinhos franceses. 

"Eu também."


.....

Vamos aos macarons. 

Antes de você se aventurar com a receita, assista a esse video aqui:
 
 
Mesmo que você não entenda inglês. O simples fato de você ver a pessoa fazendo já ajuda. Porque o preparo em si é muito simples. Se você acerta o ponto da massa e a temperatura do forno, dá tudo certo. Não, não saia inventando de trocar o açúcar e coisas do gênero. Faça exatamente como está na receita. E se der errado, vai continuar gostoso. Suspiro de amêndoa. Esmigalha tudo e come com morangos e chantilly. ;) Sem estresse. É pra ser divertido.

Meu forno aqui em Toronto é elétrico, o que facilita na manutenção da temperatura. Se o seu for de gás, use um termômetro de forno para ter certeza de que ele está regulado. 
 
Para meus macarons, usei um corante vermelho natural a base de framboesas, e aproveitei e recheei com geleia de framboesa também.
 
Lembre-se de fazer a receita um dia antes, porque ela precisa passar a noite na geladeira. 

Não se assuste com o tamanho do texto. É mais explicação do que esperar do que de fato coisas pra fazer. ;) Agora se joga e faz macaron numa quinta à tarde.

MACARONS
(do livro Chewy Gooey Crunchy Crispy, da Alice Medrich.)
Rendimento: cerca de 30-36 macarons montados e recheados

Ingredientes:
  • 2 xic. (225g) açúcar de confeiteiro
  • 1 1/3xic. (125g) farinha fina de amêndoas descascadas
  • 3-4 claras de ovo grandes, em temperatura ambiente
  • 1/4 colh.(chá) extrato de amêndoas
  • 3 -6 gotas de corante alimentício (opcional) - eu usei um natural
  • 3/4 xic. do recheio de sua escolha (geleia, ganache, nutella, buttercream, manteiga de amendoim, lemon curd...)

Preparo: 
  1. Combine o açúcar e a farinha de amêndoas numa tigela e misture cuidadosamente com um fouet. Passe por uma peneira uma ou duas vezes, até que a mistura esteja aerada. Isso facilita na hora de misturar às claras. 
  2. Num copo ou jarra medidor, derrame as claras até que elas preencham o espaço exatamente entre 1/3 e 1/2 xícara. Ou meça 105g. Guarde o restante das claras para outro preparo. 
  3. Transfira as claras medidas para a tigela da batedeira. Bata em velocidade média, até que formem picos moles quando o batedor é levantado. 
  4. Junte o extrato de amêndoas e corante, se estiver usando, e continue a bater em velocidade alta até obter picos firmes quando o batedor é levantado. Se você virar a tigela, as claras têm que se manter no lugar, sem escorrer pra lado nenhum, e até permanecerem na tigela quando viradas de ponta cabeça. Visualmente, elas devem ainda estar acetinadas, brilhantes e lisas. Se estiverem granulosas ou opacas, passaram do ponto e estão secas. 
  5. Coloque toda a mistura de amêndoas e açúcar sobre as claras. Usando uma espátula reta (não as com forma de colher), misture, trazendo as claras do fundo para o topo da farinha de amêndoas, num movimento circular. Você não precisa ser tão cuidadosa quanto seria com as claras em neve de um bolo. Pode misturar com um pouco mais de energia, mas não tanto que a massa desinfle totalmente. A massa vai, no entanto, ficar com metade do volume que as claras tinham originalmente, e está tudo bem. Pare assim que nãou houver mais traço de farinha de amêndoas e tudo pareça incorporado. A massa será espessa e úmida, com uma consistência que eu imagino que tenha lava quando ela está começando a esfriar.
  6. Você vai precisar de duas assadeiras grandes. Forre as assadeiras com papel-manteiga. Agora você pode usar uma colher de chá para colocar montinhos iguais na assadeira, deixando cerca de 3cm entre eles. Ou pode transferir a massa para um saco de confeitar com um bico pequeno (ou uma das pontas de um saco ziplock, como eu fiz, fazendo um corte bem pequeno na ponta) e usar o saco para formar montinhos. Nesse caso, aproxime o bico da assadeira, aperte, e deixe que a massa saia e espalhe até formar um círculo de uns 3cm.
  7. Agora pegue as suas assadeiras cheias de montinhos e, segurando nas laterais, levante e bata a assadeira uma ou duas vezes na bancada (veja o video). Isso vai tirar algumas bolhas grandes de ar que podem estar dentro dos macarons, e vai terminar de espalhá-los. Agora, sem cobrir, deixe as assadeiras em temperatura ambiente por pelo menos 30 minutos, mas não mais do que 1 hora, dependendo da umidade do ar. O descanso vai ressecar a superfície e formar uma casquinha fina. Os macarons estão prontos para ir ao forno quando estiverem opacos e você conseguir tocá-los suavemente sem melecar o dedo. 
  8. Enquanto isso, aqueça o forno a 205oC. Posicione as grades do forno nos terços superior e inferior.
  9. Coloque os macarons descansados no forno e IMEDIATAMENTE abaixe o fogo para 150oC. (Isso vai ser o mínimo na maioria dos fornos. O meu forno do Brasil era desregulado, e, usando um termômetro, descobri que o mínimo dele era 180oC. Para conseguir 150oC pra assar suspiros, eu abaixava para o mínimo e deixava a porta entreaberta com uma colher de pau,como minha avó.) Asse nessa temperatura baixa por 12 a 15 minutos, trocando as assadeiras de posição no meio do cozimento. Durante esse tempo de forno, eles vão crescer um pouco para cima, não muito, e criar aquele pézinho típico dos macarons. 
  10. Para saber se estão prontos, eles precisam parecer secos em cima. Toque suavemente um deles, no meio, para sentir se estão muito moles ou se parecem estar bem estruturados (pense suspiro). Você também pode segurar as laterais de um deles e tentar balançá-lo para os lados bem de leve. Se ele parecer se agarrar à assadeira, está pronto. Se ainda estiver dançando e parecer solto da base, volte ao forno por mais uns minutos. Os meus demoraram uns 18 minutos para ficarem prontos. Vai depender mutio do seu forno e do quanto você ficar abrindo e fechando a porta dele.
  11. Retire as assadeiras e coloque-as sobre grades para esfriarem. 
  12. Quando estiverem COMPLETAMENTE frios, retire-os do papel-manteiga, erguendo o papel, segurando o macaron e puxando O PAPEL delicadamente, como quem descasca uma banana. Se você segurar os macarons e puxá-los pra cima, as bundinhas vão se destacar e ficar grudadas no papel. 
  13. Faça os pares dos biscoitos. Segure aquela que vai ser a base, e coloque de 1/2 a 1 colh. (chá) de recheio. Pressione o biscoito de cima com cuidado, para que o recheio espalhe até as beiradas. 
  14. Guarde os macarons em potes fechados e leve à geladeira por NO MÍNIMO 8 horas. Nesse tempo, eles vão perder a textura de suspiro e ganhar a famosa textura dos macarons. Tire da geladeira alguns minutos antes de servir, para que voltem à temperatura ambiente.
 

terça-feira, 27 de abril de 2021

Os adultos que eles vão ser um dia. E popovers que, como crianças, eu fiz sem saber no que iam dar.


Até a primavera entendeu o feelling dessa quarentena.

Thomas, meu filho, tem dez anos, agora. Dez anos são duas mãos cheias, espalmadas, que, quando estiradas para os lados na ponta dos braços, formam um abraço comprido que me enlaça a cintura inteira. Como isso é possível? Lembro quando minhas mãos eram tão grandes que seguravam todo o seu corpo feito um saquinho de leite.

Ainda existem sacos de leite no Brasil? Aqui no Canadá compramos leite em sacos: um saco grande que comporta 3 sacos menores, totalizando 4 litros. Há um apetrecho de geladeira de 1 dólar e 99, que se usa para manter os sacos empilhados, e uma jarra de plástico de 1 dólar e 99, com uma vaquinha estampada em dourado, para acomodar o saco aberto, cortado com tesoura na pontinha, como era na minha infância. Gosto do leite em sacos. O que não gosto é de saber que são 4 litros de leite divididos em 3 sacos. Cada saco contém, portanto, 1,3333333333...ao infinito de leite. O que me faz pensar como diabos se mede infinitas partes de leite num saco. Ou que na verdade cada saco contém exatos 1,3 litros de leite e e eu fui roubada dos meus preciosos mililitros infinitos. Quem consegue dormir sabendo disso?

Enfim. Meu filho tem dez anos e é ele normalmente quem troca o saco de leite da jarra de plástico. Ele faz um corte pequeno demais na ponta com a tesoura da cozinha, e frequentemente o leite sai do saco num jato arqueado que erra a xícara. Mas eu fico feliz que meu filho de dez anos lembre de trocar o leite da jarra.

Dez anos é uma idade importante. Com dez anos, meu filho pode sair da escola sozinho. Com dez anos, ele pode andar pelas ruas da cidade, sem que ninguém olhe para trás procurando os pais da criança. Com dez anos, o governo diz que eu não sou uma mãe horrível se ele ficar sem supervisão em casa por algumas horas. 

Às vezes eu olho para esse menino de dez anos largado na minha poltrona amarela. Seu rosto sério enfiado num livro de dinossauros. O livro, por sua vez, apoiado às pernas de girafa dobradas à sua frente, como um muro que separa sua consciência do mundo acontecendo à sua volta. E eu me dou conta de que seu maxilar está mais largo, que seu corpo comprido ocupa todo o espaço da cadeira, que a massa de músculos entre seus ombros e sua cintura formam um perfeito trapézio, já distante das proporções infantis às quais me acostumei por uma década. Ele ergue os olhos das páginas para me olhar sob sobrancelhas pensativas, e eu vejo o homem que ele vai ser um dia. 

O encanto se quebra quando sua expressão relaxa, e ele me conta seus planos de ser um cientista, morando dentro de um vulcão, onde pretende criar um Indominus Rex de verdade. 

Meu filho de dez anos.

Então, numa manhã comum, enquanto cada um preparava o próprio café-da-manhã (Allex e seu smoothie, Laura e seu ovo frito com legumes, Thomas e seu mingau de aveia e eu ainda no meu cappuccino, esperando a fome aparecer), Thomas disse que queria ir ao mercado sozinho. 

"Qual mercado?", perguntei. Há um mercadinho vinte e quatro horas a 350 metros de casa, aonde Thomas já foi sozinho algumas vezes para comprar baguetes para o café.

"No NoFrills", ele disse.

NoFrills é uma rede de supermercados equivalente ao Extra, cuja loja mais próxima fica a exatamente um quilômetro de casa, subindo a avenida movimentada ao longo do parque. Esse ponto é um mercado razoavelmente pequeno, mas onde tenho evitado levar as crianças desde o início da quarentena. É onde faço metade das minhas compras semanais.

"Pra quê você quer ir lá?", perguntei, sentindo apitar no ouvido a vontade de dizer não. 

"Quero comprar um treat pra vocês", ele respondeu. Minha expressão deve ter sido de confusão, pois ele imediatamente começou a explicar: "Você e o papai andam muito sad. Vocês não have fun anymore."

"A gente quer fazer uma festa pra vocês!", Laura interrompeu, casualmente, como se o fato de estar de cabeça para baixo, sustentando o corpo sobre as mãos espalmadas e com os pés ao alto, levemente apoiados à parede, não tivesse nenhuma influência no tom da conversa.

"É. A gente quer fazer uma festa, para vocês pararem de trabalhar e have fun again."

Foi como um soco no estômago. Um soco carinhoso e bem intencionado, mas ainda assim um gancho de direita logo abaixo das costelas. Eles tinham razão. Nós estávamos "sad". Tristes. Nós estávamos trabalhando muito e not having fun anymore. Sabíamos disso. Eu havia já mencionado a Allex minha dificuldade em me abandonar a qualquer espécie de diversão genuína, sem sentir o peso do mundo lá fora e das preocupações espremendo meu peito como um torno. As duas semanas anteriores haviam sido particularmente complicadas: pincei um nervo no pescoço e comecei a sentir dores elétricas e dormentes em todo o meu lado direito. O fato de que as dores pioravam sempre que eu me deitasse me impedia de dormir ou mesmo ficar naquele tal repouso que recomendam para nervo pinçado. Passei madrugadas chorando de dor e exaustão, sem conseguir dormir mais de duas horas por noite. Depois da quinta madrugada, fui a um pronto-socorro, onde me deram uma dose cavalar de remédios e marcaram uma ressonância magnética para o dia seguinte. A ressonância confirmou o que já sabíamos: que meus nervos estavam pinçados entre algumas vértebras do pescoço, e que isso havia sido causado pela pressão dos músculos tensos e travados em volta. Ibuprofeno, Tylenol e quiropraxista para os músculos. E CBD para a ansiedade. 

As dores começavam a ir embora quando as crianças propuseram a festa. Eu já conseguia dormir, ainda que não noites inteiras.

Dor é uma coisa engraçada. Ela muda tudo. Sem dor, eu ia dormir desejando que a pandemia acabasse, que a quarentena tivesse fim, pré-requisito essencial para a reestruturação da minha felicidade. Com dor, eu rezava a deuses antigos para conseguir dormir. Dormir, esse desejo tão simples. Se eu puder dormir, serei feliz. 

E, dormindo, vi restaurada aquela alegria besta de quem ri à toa da piada do tio do pavê. 

Não sentir dor é lindo.

"Tá bom, filho", eu disse. "Quando você vai ao NoFrills?"

"Depois da escola. Mas eu também quero passar na biblioteca."

A biblioteca fica, em termos de esquinas, na diagonal oposta ao mercado. Apenas uma pessoa por vez tem permissão de entrar, se besuntar de álcool, mostrar a carteirinha para o bibliotecário e pedir o livro encomendado. Para facilitar as coisas, a biblioteca também tem "Grab And Go Bags" (sacolas pegue-e-vá): sacolas de papel pardo, cheias de livros que você leva para casa às cegas, apenas com base nas dicas que o bibliotecário escreveu nas sacolas: "Livros de 8-10 anos, aventura e dinossauros", "Romances ingleses do século XIX", "Livros infantis, 4-6anos, sobre amizade e diversidade".

"Tá bom. Então entre biblioteca e mercado, você deve ficar não mais que uma hora fora de casa. Se você demorar mais que uma hora, eu vou atrás de você", avisei, dando-me conta de que essa seria a maior quantidade de tempo que ele já passara sozinho na rua. Eram quinze minutos para ir e voltar do 24 horas. Eram oito minutos entre o parque e o nosso apartamento, quando ele precisava voltar correndo para usar o banheiro e o pai, trabalhando, me avisava por Whatsapp quando ele entrara e quando saíra para me encontrar no parque outra vez. 

Uma hora inteira.

"Tá", disse ele, assentindo firmemente com a cabeça, como um soldado recebendo uma missão.

Depois da escola, ele apanhou a mochila da escola, uma sacola de mercado, a chave de casa, seu porta-moedas de unicórnio e seu cartão da biblioteca. 

"Leva meu celular, só em caso de você precisar", eu disse, colocando meu telefone dentro de sua mochila. "E é SÓ mercado e biblioteca. Não é pra entrar em mais nenhum lugar. ESSE É O COMBINADO."

"Ok."

Fiquei observando o girar dos trincos da porta, quando ele usou as chaves para trancá-los pelo lado de fora. Trinco dourado. Trinco prateado. Cujas chaves, curiosamente, têm as cores trocadas. Laura deu duas estrelas, uma parada de mão e um salto dançante sobre o sofá, quando foi em direção à janela que dá vista para a avenida. Diz ela que avistou o irmão correndo na calçada, mochila azul e casaco azul avenida acima, até desaparecer por trás dos prédios que encobriam o caminho. Imediatamente, Laura cruzou os braços e as pernas e começou a reclamar. O irmão podia fazer tantas coisas. Ela não. Não via a hora de ter dez anos também.

Expliquei, tentando não tornar óbvio meu revirar de olhos, que não era a idade que dava a Thomas liberdade, mas a responsabilidade que ele havia demonstrado em outros momentos. O modo como atravessava as ruas, como respeitava os combinados, como cumpria com suas tarefas sem que eu precisasse lembrá-lo delas. "Quando você me mostrar que tem responsabilidade, você vai ter mais liberdade", eu disse. "Começa com você, filha. Não é a idade, ainda que alguma maturidade venha sim com a idade. Faz parte do desenvolvimento. Mas veja só: quantos amiguinhos seus de oito anos têm permissão pra usar o fogão sozinhos?"

"Ahn... nenhum. Mas eu tenho!"

"Sim, você tem. Porque você mostrou responsabilidade e maturidade lidando com facas e fogo e coisas fervendo, e eu sei que eu posso confiar em você na cozinha. Você não brinca com as facas e não faz nada perigoso perto do fogão. Você presta atenção e é cuidadosa. Você cumpre as regras e os combinados na cozinha. Então você pode cozinhar sozinha. Quando mostrar essa mesma responsabilidade em outras áreas, vai poder ir ao mercado sozinha também."

"Argh", resmungou, largando os braços e jogando a cabeça para trás, numa expressão aborrecida muito típica de desenhos animados. Pensei em como o fato de meus filhos emularem personagens de cartuns para comunicar suas emoções facilita meu trabalho na hora de desenhá-los.

Apesar de ter entendido a conversa, ela ainda fazia questão de demonstrar fisicamente seu aborrecimento. Eu poderia ter deixado quieto. Mas sabia que tudo o que ela queria era ter também algo de interessante para contar ao irmão depois.

"Laura, você quer fazer o jantar hoje? Enquanto a gente espera seu irmão voltar?", tentei.

A resposta foi o sim explosivo que eu esperava.

"Tá. Vou te ensinar a fazer risotto, então."

"Aaaaaargh. Mas eu não queria fazer risotto. Pode ser sopa?"

"Sopa?? Tá bom."

Eu não queria jantar sopa. Mas achei que jantar com paz familiar seria mais apetitoso do que um risotto emburrado.

Enquanto Thomas se aventurava no mercado, Laura descascou e picou fininho uma cebola, duas cenouras, um talo de salsão, um punhado de salsinha, quatro batatas e umas tiras de bacon. "Pô, ela pica legume mais rápido que eu", disse Allex, enquanto apanhava seu chá para voltar a mais uma reunião. "Ela pratica bastante", eu disse. Laura pica legumes melhor que a maior parte dos adultos que eu conheço. "Laura é uma máquina de picar".

Tendo a mãe ao lado, dando dicas dos próximos passos, Laura dourou o bacon, carregou os legumes picados com a lâmina da faca até a panela, refogou tudo, mexendo com uma colher na mão direita, enquanto casualmente apoiava a mão esquerda à cintura. Ela acrescentou o caldo, a casca de parmesão para dar sabor, e ficou de olho no ponto da batata como sinal de que era pra juntar o arroz. Acertou o fogo, experimentou o tempero. Decidiu quando estava tudo bom o bastante para servir, e, na hora do jantar, serviu, cheia de orgulho, duas conchas grandes de sopa para cada um, sem derrubar uma gota na mesa.

A sopa da Laura.

Quando o irmão abriu a porta de casa, ela correu não para saber dele, mas para contar como ela tinha preparado o jantar sozinha. O som daquelas chaves virando outra vez os trinco de cores diferentes foi um alívio imenso. Ele estava de volta em casa dez minutos antes da uma hora combinada.

Thomas tirou os sapatos, lavou as mãos, guardou a máscara, e veio nos mostrar o resultado de sua empreitada.

"Eu comprei isso para a festa", disse, colocando sobre a bancada da cozinha um tubo de batatas Pringle's sabor Barbecue. "É do Halo!", explicou, empolgado, apontando para o desenho do soldado de video-game na embalagem. "E eu comprei isso para mim, e isso para a Laura." Ele segurava, em cada uma de suas grandes mãos de dez anos, um saco com um quilo de balas de uma marca genérica de supermercado. "E eu fui na biblioteca e peguei esses aqui!" Ao lado de sua mochila, estavam duas sacolas Grab And Go de papel pardo: "Histórias em quadrinhos, 10-12 anos, Batman e SpiderMan" e "Ficção, 8-10 anos, com mensagens positivas". 

"Thomas foi sozinho ao mercado e voltou com doces e histórias em quadrinhos", disse a Allex, quando ele saiu do quarto-escritório. "Já é praticamente um homem de quarenta anos", brinquei.

"Ha. Ha. Ha. Engraçadinha", ele retrucou.

As compras do Thomas.


"E como você se sentiu indo sozinho no mercado, Thomas?", perguntei, fingindo tranquilidade. Tentava conter meu impulso de reclamar da quantidade colossal de jujubas e balas de goma que ele havia comprado. Como na vez em que nos comunicamos mal e ele, aos 8 anos, voltou para casa da escola sozinho de bicicleta. Ele estava tão feliz com a aventura, sem a menor ideia do que havia feito de errado, que respirei fundo e me forcei a primeiro perguntar sobre a experiência, para depois pedir que não saísse pedalando sozinho por aí sem me avisar.

Maternidade zen. Pelo menos de vez em quando.

"Eu em senti confiante", ele disse, com um sorriso que ocupava toda a largura daquele maxilar de gente grande. "Eu fiquei muito feliz porque você confiou em mim. Eu tô muito proud of myself."

Tudo o que uma mãe quer ouvir.

Naquela noite, jantamos a maravilhosa sopa da Laura, tivemos jujubas de sobremesa, e as crianças leram gibis do Homem Aranha até a hora de dormir.

Ao longo da semana, eles continuaram falando da festa, criando convites, planejando músicas e decorações, e dividindo tarefas entre eles. No domingo, Allex e eu observamos, positivamente impressionados, enquanto as crianças arrumavam o quarto, passavam pano nos móveis, e aspirador no chão. Eles penduraram bandeirinhas e cartazes. Colocaram na bancada do quarto uma pilha de pratos, guardanapos de papel e os copos vermelhos descartáveis que guardamos para festas. Arrumaram os chips e os doces em potinhos ao lado de jarras de água e suco de maracujá. 

Quando o relógio deu cinco horas, a música começou: Alestorm. Alestorm é uma banda de metal-farofa que só faz músicas de pirata. Thomas fechou a porta do quarto atrás de nós, ofereceu chips e anotou nossos nomes nos copos descartáveis com uma caneta Sharpie preta de ponta grossa, "pra gente saber de quem é o copo".

"Aqui é o Chill-Out Spot", explicou Laura, apontando para o cobertor vermelho esticado sobre sua cama bem feita como nunca, e a pilha de almofadas peludas formando um canto aconchegante para relaxar, caso a festa ficasse muito louca. 

"Bom, nossos filhos já estão prontos pra faculdade",comentei com Allex por trás do meu copo de suco. "Eles já sabem fazer festa em dormitório", eu ri. 

Dançar com eles aliviou a tensão em meu pescoço. Ri deles e com eles, e a festa terminou com um filme em família, pizza pedida pelo pai, e uma torta de limão que Laura havia ajudado a preparar. 

"Você gostou da festa, mamãe?", perguntou Laura, me abraçando o pescoço com cuidado, já deitada na cama. 

"Foi a melhor festa que vocês já fizeram!", respondi, honestamente. "Eu fiquei muito impressionada com o empenho de vocês."

"Que bom."

"Obrigada pela festa, e obrigada pelo feedback. Eu gostei muito que vocês vieram falar com a gente, tá?"

"Tá."

"Só lembra que não tem nada a ver com vocês. A gente só tá cansado dessa quarentena. Só isso."

"Vai passar, mamãe. Não é pra sempre. Você e o papai só precisam trabalhar menos e se divertir um pouco". 

"Você tem razão". 

"Na próxima vez, eu que vou buscar a pizza", Thomas disse, com os ombros já enfiados embaixo das cobertas. 

"Ok. Tô muito orgulhosa de vocês dois", eu disse, cobrindo os dois de beijos estalados. Thomas esticou os dois braços compridos para fora da cama, pedindo um abraço. E aquele abraço longo de dez anos me cercou inteira. Quando fechei a porta do quarto já escuro, vi os dois deitados, cada um em sua parte do beliche, ansiosos para serem deixados em paz para conversarem até caírem no sono. E vi os adultos que eles vão ser um dia. 

 

.....


Naquela semana, depois da bronca das crianças, eu resolvi me divertir um pouco. As dores melhoraram, e eu quis preparar algo diferente para o café da manhã. Algo que eu nunca havia feito antes. Apanhei o livro que eu emprestara da biblioteca e decidi preparar Popovers.

"Popovers?",perguntou Laura. "O que é isso??"

"Eu não sei", respondi, honestamente. "A gente vai descobrir quando ficar pronto". 

Como crianças, que você decide fazer sem saber no que vai dar, os popovers também apresentaram imprevistos: 

"Droga. A massa precisa descansar meia hora antes de ir pro forno", resmunguei.

"O que isso quer dizer?", Laura perguntou.

"Quer dizer que o café-da-manhã vai demorar mais um pouco."

"Aaaaargh."

"Sim. Argh."

Quando ficaram prontos, descobri que eles são a versão individual e salgada daquelas German Pancakes ou Dutch-Baby pancakes. Acho que era esse o nome. A versão familiar é uma massa rala de panqueca, que você despeja na frigideira já bem quente e com gordura, e enfia no forno. A massa cresce como um souflé, e desinfla assim que sai do forno, e você polvilha com açúcar antes de servir. Os popovers, por sua vez, são uma massa rala de paqueca, que você despeja nas forminhas de muffin já bem quentes e com gordura. Os popovers crescem como soufflés, e desinflam assim que são tirados do forno. E você os come com manteiga e geleia.

CORNMEAL POPOVERS

(do livro One Good Dish, de David Tanis)

Rendimento: 12 unidades, ou 4 pessoas

 

Ingredientes:

  • 2 colh. (sopa) manteiga sem sal, em temperatura ambiente, para untar as formas
  • 3 ovos grandes
  • 1 xíc.leite
  • 1/3xic. buttermilk (ou leite com uma colherinha de vinagre)
  • 1/3 xic. água
  • 3/4 xic. farinha de trigo
  • 1/4 xic. farinha de fubá
  • 1/2 colh (chá) sal
  • 2 colh (sopa) manteiga, derretida

 

Preparo: 

  1. Pré-aqueça o forno a 190oC. Unte generosamente com a manteiga as 12 cavidades de uma forma de muffins. 
  2. Numa tigela, bata com um fouet os ovos, leite, buttermilk e água, até que fique homogêneo.
  3. Junte a farinha fubá e sal para fazer uma massa rala.
  4. Junte a manteiga derretida e misture com o fouet até que fique homogêneo. 
  5. Deixe descansar por pelo menos 30 minutos. Quando faltarem 5 minutos para colocar assar os popovers, coloque a forma de muffins preparada no forno, para que esquente bem.
  6. Retire a forma quente e, rapidamente, coloque 1/4 xic. de massa em cada cavidade. A massa vai ser bem líquida ainda. Leve imediatamente ao forno e asse por 25-30minutos, até que estejam bem dourados e inflados.Sirva imediatamente.

Cozinhe isso também!

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