segunda-feira, 5 de julho de 2021

Um lago por um rio.

Mensagens de Toronto


Caixas. Há caixas por todos os lados, há caixas em tudo o que eu vejo. Meu apartamento está uma bagunça. Como todo apartamento fica durante uma mudança. A vida em caixas, objetos que não sei se ainda quero, miudezas-lixo que surgem espontaneamente, em todos os cantos e todas as superfícies. Como é possível, encaixotar toda uma estante e, no dia seguinte, dezenas de minicoisas aparecerem novamente por lá? Sísifo feelings. Já que entramos no âmbito da mitologia, dá-me uma vontade de fazer a Fênix e tacar fogo em tudo e me mudar com a roupa do corpo. Recomeços bem recomeçados. 

Mas não posso, na verdade. Não é uma mudança como foi a última, do Brasil para o Canadá, em que tudo o que tínhamos foi vendido e doado e carregamos em apenas sete malas com quinze anos de história juntos. Também não é a mudança da casa dos pais para nosso primeiro apartamento, aquele da cozinhazinha que gerou esse blog. Naquela mudança, carregamos em mochilas e sacolas nossas poucas coisas que cabiam num quarto, e dois ou três móveis emprestados, levados à pé, pela rua, com pausas pra descansar as costas.

Na nossa segunda mudança, do apartamentinho para um apartamento maior, onde Thomas nasceu e onde achei que viveríamos para sempre (ironicamente foi o lugar onde menos vivemos, apenas um ano e meio), contratamos uma carretinha para levar fogão, geladeira, mesa e sofá. E botamos no porta-malas nossos livros, louças e computadores. 

Esta mudança lembra mais nossa terceira, quando saímos daquele apartamento para a casa da Aldeia da Serra, fora de São Paulo. Foi minha primeira vez morando fora da cidade onde eu nasci. Foi a primeira vez em que chorei em uma mudança. A gente precisa chorar quando uma parte da gente morre. Aquela mudança teve caminhão profissional. Teve a gente indo uma semana antes, pra dormir no colchão no chão e limpar tudo e arrumar a parte elétrica que, por algum motivo, sempre foi problema em nossas casas no Brasil. Era outra cidade, mas era perto o bastante para ir e vir de um lugar ao outro, para fazer a mudança em etapas. 

Spoiler da nova vista da janela em Ottawa.

Estamos mudando de cidade. De Toronto para Ottawa. Ottawa fica a quatro horas e meia de distância de Toronto. Já não é Aldeia da Serra pra São Paulo, ainda que a meia hora imaginária entre as duas pudesse, na realidade do trânsito da Castello Branco em dia de chuva, virar duas horas e meia. Fomos até a casa de Ottawa antes, para pegar as chaves. Dormimos no chão, em nossos sacos de dormir, e verificamos a parte elétrica, que, ainda bem, está ok.

A ideia da mudança não era nova. Desde que Allex começou a trabalhar numa empresa que se dividia entre as duas cidades, a gente tocava no assunto, às vezes. Mas parecia bobagem. Gostamos de Toronto, as crianças estão bem adaptadas na escola, nosso apartamento alugado tem uma localização maravilhosa, e tudo ia bem... até a quarentena. Essa quarentena que aqui em Ontário durou duas décadas e mais uns dias. Essa quarentena que nos fez conviver vinte e quatro horas, por um ano e meio, num espaço pequeno que não foi feito para isso. O apartamento pequeno funcionava lidamente numa situação em que todo mundo estava do lado de fora o tempo todo. Mas as crianças cresceram, e ficou claro que o espaço não comporta a energia e o tamanho de 10 e 8 anos como comportava 6 e 4.

Eu sufoquei. Meu espaço sumiu. O silêncio e harmonia externa de que preciso para manter o silêncio e a harmonia interna desapareceram. Claustrofobia. Ansiedade.

Foi numa terça de manhã, bebericando cappuccinos no quarto, enquanto as crianças se enfiavam na escola online, que o assunto surgiu de novo, de repente, mas não tão de repente assim.

Eu falava de espaço. Quando passamos uma semana em Paris, num apartamento de 21m2, esse conceito fez sentido como nunca havia feito em São Paulo: morar num lugar pequenino era possível, pois a cidade era seu quintal. Toronto tem disso de ser quintal, de chamar pra viver o lado de fora e só voltar pra casa pra dormir. Mas a quarentena matou Toronto. A quarentena fechou meu quintal e me enjaulou no meu apartamento pequeno. Toronto virou São Paulo.

Ele falava de futuro. Porque tem disso com a gente. Eu sou incapaz de me preocupar com futuro. Não sei nem o que vou jantar amanhã, como é que pode eu querer pensar em aposentadoria? Quero viver até os 120 anos, mas sei bem que a natureza faz o que quer e que eu posso morrer amanhã. Hedonista, irresponsável, sonhadora, lua em peixes, pode dar o nome que quiser. Eu estou em paz com isso e com o fato de que Allex e eu nos equilibramos bem nesse sentido, quando respeitamos nossa natureza verdadeira e nossas diferenças.

Bem, ele falava de futuro. De aposentadoria. De segurança financeira. De aluguel. De jogar dinheiro no lixo. De trocar aluguel por Mortgage (o nome do empréstimo pra comprar casa). Ele fazia contas. Ele falava de mercado imobiliário. A gente nunca conseguiu comprar nada nosso no Brasil, porque onde a bolha vai, a gente vai atrás. Estamos sempre um ano atrasados e nosso poder aquisitivo nunca pôde adquirir nada no lugar onde morávamos. E a gente tentou várias vezes. Toronto não é exceção. A cidade virou rapidamente uma das mais caras do mundo, e todos os dias os jornais mostram histórias absurdas de bangalôs minúsculos e caindo aos pedaços que foram vendidos pela bagatela de 1 milhão de dólares. 

A gente podia tentar Ottawa, ele disse. Meu trabalho já está lá, mas a bolha de Toronto ainda não. 

Pode ser, eu disse. Se isso for deixar você mais tranquilo e der mais espaço para as crianças, acho que eu topo.

O Universo tem dessas lindezas, e foi nesse instante em que o telefone tocou. Era o gerente do banco falando que nosso limite de empréstimo tinha aumentado.Oi, senhor gerente, muito obrigado por sua ligação; que coincidência, veja só, a gente tava falando justo disso. O senhor pode, por obséquio, fazer uma simulação de "mortgage" pra gente saber se a gente consegue comprar uma casinha em Ottawa?

E foi assim que a gente começou a procurar nossa casinha em Ottawa. 

Eu penso nessa história todas as vezes que minha ansiedade me impede de dormir, e que minha insônia abre a Caixa de Pandora dos pensamentos negativos. Porque essa história parece muito com aquela que nos trouxe para o Canadá. 

Toronto, vista da balsa a caminho de Toronto Islands. Muito amor.

Lá nos idos de 2015, a gente já vinha falando de sair do Brasil. De buscar não apenas a aventura do expatriamento que habitava meus sonhos, mas também oportunidades novas para nossa família. Quando ofereceram uma vaga no Panamá, Allex aceitou sem titubear. Panamá. Nunca imaginei. Mas vambora que a gente não sai olhando dente de cavalo que cai no seu colo quando você pediu. Foram meses de sonhar acordado, de pesquisar sobre o país, de imaginar nossa vida lá. Quando estávamos em Paris, eu deixei de comprar um casaco felpudo que eu amei de paixão porque "faz calor no Panamá, e eu nunca vou usar isso lá". Era tanta certeza. Faltava só assinar o contrato e a mudança estava selada. Todo o resto já havia sido negociado. No dia em que voltamos de Paris, o telefone tocou duas vezes. Na primeira vez, pra dizer que o escritório do Panamá havia sido reestruturado e a vaga não existia mais. Eu chorei. A gente tem que chorar quando uma parte da gente morre. Na segunda vez em que o telefone tocou, meia hora depois, era um amigo nosso, que comentou, assim, en passant, que havia um consultor de imigração canadense na cidade, ainda aceitando entrevistas. Eu peguei a última vaga do último dia disponível do consultor. E viemos para o Canadá.

Durante os dois anos que duraram o processo de imigração, era essa história que acalmava os pensamentos negativos liberados pela Caixa de Pandora da minha insônia.

E cá estamos nós, novamente. No meio da mudança. 

Noutro dia, resolvi ler os textos escritos durante cada uma das minhas mudanças de casa, como um "respirar no saquinho" literário. Relembrar é importante. Porque mudança é que nem filho: a gente só faz de novo porque esqueceu como foi a vez anterior. Toda mudança é bagunça, toda mudança faz a casa parecer um campo de paintball, toda mudança faz surgir dos recônditos do inferno toda sorte de minitralha que você nem sabia que habitava suas gavetas. 

Toda mudança desequilibra, desarmoniza, destrói e desfaz. 

A bagunça externa anda me bagunçando internamente, é claro. Como toda boa libriana, preciso de harmonia pra viver. Nada menos harmônico do que uma sala cheia de caixa e tralha onde não se consegue nem passar vassoura. Mas seguimos. Respira no saquinho, literária e literalmente. 

Primeira cerveja com amiga em pátio aberto do ano.

Enquanto a mudança não vem, faço um pacto comigo mesmo de curtir meu quintal-cidade como não pude durante a quarentena. A vida volta, graças à ciência e ao bom senso que trouxe vacinação em massa. Dia bonito é para ser usado, e eu vou abusar de todos os meus dias bonitos em Toronto enquanto eles existirem.

Autografando livro num café de Toronto.

Parque, piquenique, bicicleta, praia, chopp com os amigos que eu não vejo há mais de um ano apesar de serem meus vizinhos, cafés com leitores queridos que compraram meu livro aqui no Canadá e me encontram pra que eu possa escrever dedicatória. Sonho ainda com a viagem ao Brasil para minha tarde de autógrafos. Ainda não chorei, porque essa parte minha eu não matei. Ela vive, moribunda, mas ainda esperançosa. 

Faço listas de passeios em Toronto, lugares para ver. Allex encaixa a lista num calendário. Eu uso o calendário como sugestão. Hoje eu estou afim de quê?

Cato a bicicleta para comprar croissants na minha bakery favorita.

Compro passagens da balsa para a ilha durante o café-da-manhã e monto um piquenique improvisado com o que sobrou na geladeira. Pulamos ondas na praia do lago.

Quero fazer o tubbing que não fiz em 2019, quando eu tive que cuidar do cachorro enquanto Allex, as crianças e minha irmã desciam o rio de boia (tube), em Elora Gorge. Allex tira o dia de folga numa quinta e vamos. Cobro do Universo o tubbing que ele me devia.

Cerveja no meio da meia-maratona. Steamwistle é uma cervejaria no centro.

Faço minha meia-matatona da Steamwistle. Essa minha tradição inventada de correr 10,5km até a cervejaria no centro da cidade, tomar um chopp (usar o banheiro) e voltar correndo mais 10,5km pra casa. Essa meia-maratona tem um gostinho especial. Primeira vez que corro 21km desde que meu corpo resolveu se desmantelar durante a quarentena: pé-quebrado, pé-torcido, fascite plantar e nervo pinçado.

Acalmo o FOMO das listas usando dias de chuva para colocar mais coisas em caixas. 

E seguimos dizendo tchau a Toronto e às pessoas que nos acolheram aqui. Dizendo tchau à vista do lago que parece mar, ao High Park que me ensinou a correr de novo, às trilhas onde Gnocchi andava livre, sem coleira, olhando para trás para ter certeza de que eu o seguia direitinho. 


O lago. Mergulho nele mais um vez, e mais uma, cada vez podendo ser a última. Deixando minha pele dissolver em sua imensidão gelada e inerte. Deixo minha ansiedade virar imaginação, nadando para o grande rio na cidade nova. Um lago por um rio. Água parada por movimento. Fecho os olhos e me pergunto onde o rio vai me levar.

Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails