segunda-feira, 5 de julho de 2021

Um lago por um rio.

Mensagens de Toronto


Caixas. Há caixas por todos os lados, há caixas em tudo o que eu vejo. Meu apartamento está uma bagunça. Como todo apartamento fica durante uma mudança. A vida em caixas, objetos que não sei se ainda quero, miudezas-lixo que surgem espontaneamente, em todos os cantos e todas as superfícies. Como é possível, encaixotar toda uma estante e, no dia seguinte, dezenas de minicoisas aparecerem novamente por lá? Sísifo feelings. Já que entramos no âmbito da mitologia, dá-me uma vontade de fazer a Fênix e tacar fogo em tudo e me mudar com a roupa do corpo. Recomeços bem recomeçados. 

Mas não posso, na verdade. Não é uma mudança como foi a última, do Brasil para o Canadá, em que tudo o que tínhamos foi vendido e doado e carregamos em apenas sete malas com quinze anos de história juntos. Também não é a mudança da casa dos pais para nosso primeiro apartamento, aquele da cozinhazinha que gerou esse blog. Naquela mudança, carregamos em mochilas e sacolas nossas poucas coisas que cabiam num quarto, e dois ou três móveis emprestados, levados à pé, pela rua, com pausas pra descansar as costas.

Na nossa segunda mudança, do apartamentinho para um apartamento maior, onde Thomas nasceu e onde achei que viveríamos para sempre (ironicamente foi o lugar onde menos vivemos, apenas um ano e meio), contratamos uma carretinha para levar fogão, geladeira, mesa e sofá. E botamos no porta-malas nossos livros, louças e computadores. 

Esta mudança lembra mais nossa terceira, quando saímos daquele apartamento para a casa da Aldeia da Serra, fora de São Paulo. Foi minha primeira vez morando fora da cidade onde eu nasci. Foi a primeira vez em que chorei em uma mudança. A gente precisa chorar quando uma parte da gente morre. Aquela mudança teve caminhão profissional. Teve a gente indo uma semana antes, pra dormir no colchão no chão e limpar tudo e arrumar a parte elétrica que, por algum motivo, sempre foi problema em nossas casas no Brasil. Era outra cidade, mas era perto o bastante para ir e vir de um lugar ao outro, para fazer a mudança em etapas. 

Spoiler da nova vista da janela em Ottawa.

Estamos mudando de cidade. De Toronto para Ottawa. Ottawa fica a quatro horas e meia de distância de Toronto. Já não é Aldeia da Serra pra São Paulo, ainda que a meia hora imaginária entre as duas pudesse, na realidade do trânsito da Castello Branco em dia de chuva, virar duas horas e meia. Fomos até a casa de Ottawa antes, para pegar as chaves. Dormimos no chão, em nossos sacos de dormir, e verificamos a parte elétrica, que, ainda bem, está ok.

A ideia da mudança não era nova. Desde que Allex começou a trabalhar numa empresa que se dividia entre as duas cidades, a gente tocava no assunto, às vezes. Mas parecia bobagem. Gostamos de Toronto, as crianças estão bem adaptadas na escola, nosso apartamento alugado tem uma localização maravilhosa, e tudo ia bem... até a quarentena. Essa quarentena que aqui em Ontário durou duas décadas e mais uns dias. Essa quarentena que nos fez conviver vinte e quatro horas, por um ano e meio, num espaço pequeno que não foi feito para isso. O apartamento pequeno funcionava lidamente numa situação em que todo mundo estava do lado de fora o tempo todo. Mas as crianças cresceram, e ficou claro que o espaço não comporta a energia e o tamanho de 10 e 8 anos como comportava 6 e 4.

Eu sufoquei. Meu espaço sumiu. O silêncio e harmonia externa de que preciso para manter o silêncio e a harmonia interna desapareceram. Claustrofobia. Ansiedade.

Foi numa terça de manhã, bebericando cappuccinos no quarto, enquanto as crianças se enfiavam na escola online, que o assunto surgiu de novo, de repente, mas não tão de repente assim.

Eu falava de espaço. Quando passamos uma semana em Paris, num apartamento de 21m2, esse conceito fez sentido como nunca havia feito em São Paulo: morar num lugar pequenino era possível, pois a cidade era seu quintal. Toronto tem disso de ser quintal, de chamar pra viver o lado de fora e só voltar pra casa pra dormir. Mas a quarentena matou Toronto. A quarentena fechou meu quintal e me enjaulou no meu apartamento pequeno. Toronto virou São Paulo.

Ele falava de futuro. Porque tem disso com a gente. Eu sou incapaz de me preocupar com futuro. Não sei nem o que vou jantar amanhã, como é que pode eu querer pensar em aposentadoria? Quero viver até os 120 anos, mas sei bem que a natureza faz o que quer e que eu posso morrer amanhã. Hedonista, irresponsável, sonhadora, lua em peixes, pode dar o nome que quiser. Eu estou em paz com isso e com o fato de que Allex e eu nos equilibramos bem nesse sentido, quando respeitamos nossa natureza verdadeira e nossas diferenças.

Bem, ele falava de futuro. De aposentadoria. De segurança financeira. De aluguel. De jogar dinheiro no lixo. De trocar aluguel por Mortgage (o nome do empréstimo pra comprar casa). Ele fazia contas. Ele falava de mercado imobiliário. A gente nunca conseguiu comprar nada nosso no Brasil, porque onde a bolha vai, a gente vai atrás. Estamos sempre um ano atrasados e nosso poder aquisitivo nunca pôde adquirir nada no lugar onde morávamos. E a gente tentou várias vezes. Toronto não é exceção. A cidade virou rapidamente uma das mais caras do mundo, e todos os dias os jornais mostram histórias absurdas de bangalôs minúsculos e caindo aos pedaços que foram vendidos pela bagatela de 1 milhão de dólares. 

A gente podia tentar Ottawa, ele disse. Meu trabalho já está lá, mas a bolha de Toronto ainda não. 

Pode ser, eu disse. Se isso for deixar você mais tranquilo e der mais espaço para as crianças, acho que eu topo.

O Universo tem dessas lindezas, e foi nesse instante em que o telefone tocou. Era o gerente do banco falando que nosso limite de empréstimo tinha aumentado.Oi, senhor gerente, muito obrigado por sua ligação; que coincidência, veja só, a gente tava falando justo disso. O senhor pode, por obséquio, fazer uma simulação de "mortgage" pra gente saber se a gente consegue comprar uma casinha em Ottawa?

E foi assim que a gente começou a procurar nossa casinha em Ottawa. 

Eu penso nessa história todas as vezes que minha ansiedade me impede de dormir, e que minha insônia abre a Caixa de Pandora dos pensamentos negativos. Porque essa história parece muito com aquela que nos trouxe para o Canadá. 

Toronto, vista da balsa a caminho de Toronto Islands. Muito amor.

Lá nos idos de 2015, a gente já vinha falando de sair do Brasil. De buscar não apenas a aventura do expatriamento que habitava meus sonhos, mas também oportunidades novas para nossa família. Quando ofereceram uma vaga no Panamá, Allex aceitou sem titubear. Panamá. Nunca imaginei. Mas vambora que a gente não sai olhando dente de cavalo que cai no seu colo quando você pediu. Foram meses de sonhar acordado, de pesquisar sobre o país, de imaginar nossa vida lá. Quando estávamos em Paris, eu deixei de comprar um casaco felpudo que eu amei de paixão porque "faz calor no Panamá, e eu nunca vou usar isso lá". Era tanta certeza. Faltava só assinar o contrato e a mudança estava selada. Todo o resto já havia sido negociado. No dia em que voltamos de Paris, o telefone tocou duas vezes. Na primeira vez, pra dizer que o escritório do Panamá havia sido reestruturado e a vaga não existia mais. Eu chorei. A gente tem que chorar quando uma parte da gente morre. Na segunda vez em que o telefone tocou, meia hora depois, era um amigo nosso, que comentou, assim, en passant, que havia um consultor de imigração canadense na cidade, ainda aceitando entrevistas. Eu peguei a última vaga do último dia disponível do consultor. E viemos para o Canadá.

Durante os dois anos que duraram o processo de imigração, era essa história que acalmava os pensamentos negativos liberados pela Caixa de Pandora da minha insônia.

E cá estamos nós, novamente. No meio da mudança. 

Noutro dia, resolvi ler os textos escritos durante cada uma das minhas mudanças de casa, como um "respirar no saquinho" literário. Relembrar é importante. Porque mudança é que nem filho: a gente só faz de novo porque esqueceu como foi a vez anterior. Toda mudança é bagunça, toda mudança faz a casa parecer um campo de paintball, toda mudança faz surgir dos recônditos do inferno toda sorte de minitralha que você nem sabia que habitava suas gavetas. 

Toda mudança desequilibra, desarmoniza, destrói e desfaz. 

A bagunça externa anda me bagunçando internamente, é claro. Como toda boa libriana, preciso de harmonia pra viver. Nada menos harmônico do que uma sala cheia de caixa e tralha onde não se consegue nem passar vassoura. Mas seguimos. Respira no saquinho, literária e literalmente. 

Primeira cerveja com amiga em pátio aberto do ano.

Enquanto a mudança não vem, faço um pacto comigo mesmo de curtir meu quintal-cidade como não pude durante a quarentena. A vida volta, graças à ciência e ao bom senso que trouxe vacinação em massa. Dia bonito é para ser usado, e eu vou abusar de todos os meus dias bonitos em Toronto enquanto eles existirem.

Autografando livro num café de Toronto.

Parque, piquenique, bicicleta, praia, chopp com os amigos que eu não vejo há mais de um ano apesar de serem meus vizinhos, cafés com leitores queridos que compraram meu livro aqui no Canadá e me encontram pra que eu possa escrever dedicatória. Sonho ainda com a viagem ao Brasil para minha tarde de autógrafos. Ainda não chorei, porque essa parte minha eu não matei. Ela vive, moribunda, mas ainda esperançosa. 

Faço listas de passeios em Toronto, lugares para ver. Allex encaixa a lista num calendário. Eu uso o calendário como sugestão. Hoje eu estou afim de quê?

Cato a bicicleta para comprar croissants na minha bakery favorita.

Compro passagens da balsa para a ilha durante o café-da-manhã e monto um piquenique improvisado com o que sobrou na geladeira. Pulamos ondas na praia do lago.

Quero fazer o tubbing que não fiz em 2019, quando eu tive que cuidar do cachorro enquanto Allex, as crianças e minha irmã desciam o rio de boia (tube), em Elora Gorge. Allex tira o dia de folga numa quinta e vamos. Cobro do Universo o tubbing que ele me devia.

Cerveja no meio da meia-maratona. Steamwistle é uma cervejaria no centro.

Faço minha meia-matatona da Steamwistle. Essa minha tradição inventada de correr 10,5km até a cervejaria no centro da cidade, tomar um chopp (usar o banheiro) e voltar correndo mais 10,5km pra casa. Essa meia-maratona tem um gostinho especial. Primeira vez que corro 21km desde que meu corpo resolveu se desmantelar durante a quarentena: pé-quebrado, pé-torcido, fascite plantar e nervo pinçado.

Acalmo o FOMO das listas usando dias de chuva para colocar mais coisas em caixas. 

E seguimos dizendo tchau a Toronto e às pessoas que nos acolheram aqui. Dizendo tchau à vista do lago que parece mar, ao High Park que me ensinou a correr de novo, às trilhas onde Gnocchi andava livre, sem coleira, olhando para trás para ter certeza de que eu o seguia direitinho. 


O lago. Mergulho nele mais um vez, e mais uma, cada vez podendo ser a última. Deixando minha pele dissolver em sua imensidão gelada e inerte. Deixo minha ansiedade virar imaginação, nadando para o grande rio na cidade nova. Um lago por um rio. Água parada por movimento. Fecho os olhos e me pergunto onde o rio vai me levar.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Tá tudo bem. Tem Baked Chocolate Pudding.


Nós vamos nos mudar. Pronto. É bom tirar isso logo da frente, que é pra ninguém ficar ansioso.

Essa quarentena sem fim teria deixado todo mundo aqui em casa doido de verdade não fossem os parques e a primavera que chegou cedo, deliciosamente quente como eu nunca vi em Toronto. Imagina só, 28oC no fim de maio! Tão quente, que os splash pads (aqueles chafarizes nos playgrounds) abriram mais cedo. E as crianças, confinadas o dia todo à rotina de um gerente de marketing de quarenta anos, carinhas na tela e bunda na cadeira, puderam gastar toda a energia em ebulição no parque ao fim do dia.

Desligou computador, monta um lanche e parque neles. Santo parque. Os dias andam cada vez mais longos, e são sete da noite e o céu é claro e quente e não nos deixa voltar pra casa. Quem tem coragem de tirar criança feliz do parque? Eu tinha. Eles eram menores e eu sabia bem o que me aguardava no dia seguinte caso eu largasse a hora de dormir ao bel-prazer dos dois. Criança dormindo às dez da noite e acordando às seis da manhã. Se tem um negócio que a Laura herdou de mim é o mau humor de sono. Ninguém merece. Principalmente eu.

Mas eles cresceram. E ainda que Laura ainda não saiba reconhecer os próprios sinais de cansaço em seu temperamento, eles têm lidado melhor com horários menos rígidos. Aliás, tudo menos rígido. Rotina foi algo muito importante na primeira infância dos dois para deixá-los seguros e independentes. Criança que tem certeza de que o almoço está lá ao meio-dia e que segue sempre um ritual escova-dente-lê-história-tira-pulguinha-e-dorme, fica tranquila. Sabe o que esperar. Não existe ansiedade na hora de dormir se você sabe exatamente o que vai acontecer e quando. Todo dia é tudo sempre igual.

Só que rotina também aprisiona. TODO DIA É TUDO SEMPRE IGUAL. Principalmente gente com alma de passarinho, que quer ficar batendo asa por aí e improvisando vôo. O dia em que entendi o quanto os horários da escola engessaram minha alma, arrependi-me amargamente de ter matriculado a pimpolhada tão cedo. Vivesse a vida outra vez, teria rodado a cidade com a criançada até ser obrigada por lei a colocar os dois numa sala de aula.

Mas tem coisa que a gente precisa viver para aprender. 

Não é à toa que eu sou uma mãe melhor do lado de fora. Não é por meu amor incondicional por mato, mas porque posso saracotear com os dois por aí sem rumo, sem hora, ou relaxar e deixá-los explorar o que o houver sem interferência ou interrupção. 

Eu me divirto mais com meus filhos quando permito que eles experimentem o mundo e o tempo do mesmo modo como me faz feliz.

Agora que eles cresceram, maternidade parece às vezes um andar de bicicleta sem as mãos. Continuo conduzindo, mas posso relaxar e confiar que aquela roda que eu não controlo vai seguir em linha reta. E ninguém vai quebrar os dentes no chão. Nem sempre, pelo menos.


Então largo o guidão e não me preocupo com o jantar. As crianças montam um sanduíche com o que mais gostam e levam numa sacola, com toalha e uma arminha d'água, uma boneca e um dinossauro, um pote com melancia e outro com tomatinhos, e vamos ao parque sem hora para voltar. Sento e leio um livro. Converso com outros pais. Allex às vezes termina o trabalho mais cedo e se junta a nós, trazendo um imenso saco de pipoca temperado com sal, orégano e páprica que ele mói no meu pilão de madeira. Experimente. Fica muito bom. Às vezes ele traz uma cerveja pra gente dividir, escondidinha num desses copos térmicos de café.

Tiro os sapatos pra por os pés na grama. Inspiro o cheiro da terra sob o sol e do pólen suspenso no ar. Deixo a brisa morna levar as horas devagar.

São sete e meia e eles correm descalços na grama, cabelos molhados e risos largos, lagartas pequenas nas mãos, que lhes fazem cócegas nos dedos. "I'm going home!", dizem os amigos, acenando à distância, e esse é o sinal para recolher tudo e partir.

Às vezes paro no mercadinho a caminho de casa para catar uma baguette e um prosciutto, para comer com manteiga em casa, antes do banho. Outras, não precisa de nada a não ser tirar a areia do corpo num banho gostoso, escovar os dentes e ir dormir. Deixo que eles se demorem. Que venham sentar comigo para contar sobre seu dia. Que se espreguicem do lado do pai, no sofá, enquanto ele joga video-game com os amigos do Brasil. Sem pressa. Sem a pressa que eu tive um dia.

Às vezes sugiro que vão dormir cedo, quando vejo em seus rostos que é preciso. Outras, eles se arrastam à cama para lá das nove da noite, cobertos pela penumbra de uma persiana que, mesmo fechada, não resiste à luz azul clara e amarelada do entardecer do verão canadense, que se demora até as dez.

Nessa rotina sem rotina, tenho cozinhado pouco. Faço almoço. As sobras, requentadas, repaginadas, são jantar dos adultos que não se entupiram de framboesas no parquinho. Faz calor demais para se ter apetite. 

De vez em quando, assim, porque até a vontade anda também voluntariosa e vai e volta como quer, me dá as ganas de preparar um doce. 

 

 Laura tinha pedido para fazer uma receita de uma revistinha da Martha Stewart, um baked chocolate pudding, numa semana que calhou de chover e esfriar um pouco. Fizemos juntas, mas não deu certo. O tempo de cozimento estava errado e o pudding virou cake. "Tá tudo bem, mamãe, tá gostoso mesmo assim!" O lema da Laura. Tá tudo bem. Laura me lembra sempre de não me importar tanto. No dia seguinte, apanhei um livro mais confiável e fiz outra receita do mesmo doce, e desta vez o resultado foi maravilhoso. Crocante por fora, cremoso por dentro, paraíso do chocolate. (Receita no fim do post)

Naquele dia, Laura me deixou um recado escrito a canetinha: Thank you for doing almost everything I ask you to do. O bilhete mais lindo. 

A verdade é que mamãe anda mais relaxada, mais em contato com o que a faz feliz, e assim mamãe fica mais legal. Porque quando a mamãe se sente presa em circunstâncias fora do seu controle, ela tende a tentar controlar tudo à sua volta, e torna a vida de todo mundo um pequeno inferno. 

Tá tudo bem, eu digo.

Saí cedo para correr e chamei as crianças para virem comigo. Laura quis vir de bicicleta, mas Thomas preferiu ficar em casa lendo Asterix. "Não dá tempo, Ana, eles têm escola", Allex disse. 

"Ela chega dez minutos atrasada. Tá tudo bem."

Laura pedalou ao meu lado enquanto eu corria pela trilha ao longo da lagoa, e paramos para subir em árvores e ver patinhos-bebê nadando em meio aos juncos. "A gente tá atrasada, mamãe?", ela perguntava. "Fica tranquila, Laura. Curte sua manhã." E paramos novamente para ver os gansos e seus filhotes, desengonçados no gramado, de pés grandes e asinhas pequenas, feito meninos adolescentes. Ela apanhou duas penas grandes que estavam no chão e pediu que eu as carregasse até em casa, para colocá-las em seu altar da natureza, onde coleciona pedras, conchas, ovos de pássaro e pedaços de colmeias. 


 

Quando chegamos em casa, quinze minutos depois de a escola online começar, deu tempo de lavar as mãos e preparar um pão com manteiga. E quando ela ligou o computador, descobriu que a professora estava atrasada e ainda não tinha feito chamada. 

"Viu? Tá tudo bem."

O dia segue feito um rio quando ouço a voz no meu peito.

Essa mesma voz no peito que nos fez, numa manhã aleatória, resolver mudar. Mudar de casa. Mudar de cidade. Um comichão que sussurrava "vai agora". Algumas decisões acontecem feito a cena do chapéu do Indiana Jones. Corre que a porta tá fechando. Tipo criança escolhendo quem brinca de pega-pega no pátio da escola: quem quiser mudar põe o dedo aqui, que já vai fechar.

Fechou.

Vou seguindo esse rio no meu peito para aproveitar esse lago, esse parque, essa cidade e essas pessoas por algumas últimas semanas antes partir. Tento olhar, entender e dissolver o medo do novo que aparece em forma de tensão no pescoço, apertando aquele danado daquele nervo pinçado de novo. Relaxa, mulher. Até quiropraxista disse: não era nem para ter sintoma, esse nervo. É tudo tensão. Tudo cabeça. Só que cabeça adora isso de rotina previsível e horário fixo e controle das variáveis. Cabeça adora lembrar que não dá tempo de andar de bicicleta no parque ou que eu não deveria jantar sanduíche de novo. Sossega, cabeça. Deixa o coração mandar um pouco, que é nele que a alegria repousa, feito um lago. Acho que não é a toa que o coração parece uma xícara de chá quente quando a gente sente amor. Deixa o rio fluir para alimentar o lago. Cheio e quentinho.

Mergulha. Tá tudo bem. 

....



BÔNUS DE RIO FLUINDO, VERSÃO SUPERMERCADO: 

Noutro dia, me deu vontade de comer camarão. Assim, de repente, como se tivessem implantado a ideia na minha cabeça. Aqui na minha vizinhança só tem camarão congelado, desses que vem com sal e conservante. Ou tem, de vez em quando, no mercadinho orgânico, mas costuma ser caro e não tem sempre. Mas estava lá, aquela voz gritando no meu ouvido feito criança pequena fazendo birra na padaria. Só que ao invés de pedir Danette, a criança no meu peito gritava Camarão! 

Saí. Fazer o quê? Eu não tinha intenção de ir ao mercado, porque ainda tinha alguma comida em casa, então foi pura frescura voluntariosa. Coração gulosos e gourmet tinha razão, no entanto, que assim que pus o pé no mercado, desatei a rir: o camarão fresco estava em promoção. Metade do preço. O Universo é essa coisa linda, às vezes, se você estiver tranquilo em ser feliz com camarão em promoção. Paguei pelo camarão e fui no outro mercado pegar o macarrão da marca que eu gosto, porque a lombriga pedia macarrão com camarão. Olha que delícia falar isso em voz alta: macarrão com camarão. Enche a boca que nem palavrão dito com vontade.

No outro mercado, entrei na fila pra pagar por meu pacotinho de penne rigate, e a moça do caixa pergunta: "Você gostaria de um saco de batatas?"

"Como é que é?"

"Um saco de batatas. Você gostaria de um?"

"Desculpa. Não entendi. Um saco de batatas?"

"É. É de graça. Customer appretiation." 

"Bom. Sim, eu quero. Obrigada."

E assim eu saí do mercado com meu pacotinho de penne e um saco de 3kg de batatas de graça. 

Era batata pra burro, e é claro que o mercado estava dando batata porque elas estavam mais pra lá do que pra cá. O Universo pode ser legal, mas dono de supermercado de rede não dá ponto sem nó. Daí que eu saí cozinhando batata loucamente pra não deixar estragar, e eu terminei com um panela industrial de purê de batatas.

Povo aqui alucina com purê. Mas nem meus filhos, essas dragas, conseguem dar conta de tanto. 

Eu tenho uma paixão muito específica na cozinha, que é a arte do reaproveitamento. Quase sempre as melhores receitas são aquelas que reaproveitam sobras. E eu adoro qualquer receita além de gostosa ainda evite desperdício e me faça sentir competente. 

Esse é um jeito excelente de aproveitar uma quantidade gigante de purê de batatas. E é delicioso. Chama-se Oeufs Parmentier. Serve seis pessoas, mas minhas dragas comeram metade sozinhos. Você unta uma forma com bastante manteiga, e coloca lá dentro todo aquele seu delicioso purê de ontem (quantidade feita com mais ou menos meio quilo de batata, e misturado a manteiga e leite). Você abre seis buracos com uma colher e quebra ovos dentro deles. Cobre com uns 3/4xic de creme de leite fresco (se for crème fraîche, melhor ainda), tempera com sal e pimenta e joga no forno a 210oC até dourar e as claras estarem cozidas (uns vinte minutos, dependendo do forno). Sirva colheradas fartas, que desmontam no prato, para acompanhar uma salada bem verde, com folhas amargas. Dá pra ficar melhor?

:)

BAKED CHOCOLATE PUDDING

(Do livro Sinfully Easy Delicious Desserts, da Alice Medrich)

Rendimento: 6 porções

Ingredientes:

  • 170g chocolate meio amargo ou amargo(em torno de 70% mas não mais do que isso), picado
  • 115g manteiga sem sal, em pedaços
  • 3 ovos grandes
  • 2/3 xic. açúcar
  • pitada de sal
  • sorvete, para servir

Preparo: 

  1. Posicione a grade do forno no terço inferior e preaqueça a 190oC.
  2. Coloque o chocolate e a manteiga numa tigela em banho-maria e mexa frequentemente até que o chocolate derreta e se misture à manteiga. Retire do calor assim que estiver derretido.
  3. Na tigela da batedeira, bata os ovos, açúcar e o sal em velocidade alta até que fique fofo e amarelo bem claro, e com a consistência de chantilly (pode levar de 5 a 10 minutos).
  4. Misture um terço dos ovos ao chocolate, e então despeje a mistura de chocolate de volta à tigela com o restante dos ovos batidos. Misture com uma espátula, delicadamente, para não perder muito o volume do ar. 
  5. Divida a massa entre seis ramequins ou formas com capacidade para 1 xícara. Não é preciso untar. Nesse ponto você pode cobrir as forminhas e levar à geladeira para assar mais tarde. Apenas retire da geladeira meia hora antes de ir para o forno. 
  6. Coloque as forminhas numa assadeira e leve ao forno por15 a 20 minutos (um pouco mais se os puddings foram refrigerados), até que eles tenham inflado, estejam com a superfície seca e craquelada, mas ainda bem moles por dentro (você pode testar com um palito). 
  7. Sirva imediatamente, com uma bola de sorvete. Eles vão afundar assim que saírem do forno.Se for servir para crianças, coloque os ramequins dentro de potes ou pratinhos resistentes ao calor que possam conter os ramequins quentes sem que eles escorreguem pra lá e pra cá quando a criança meter a colher lá dentro. Assim, a criança pode segurar o pote de fora e comer confortavelmente, sem o risco de queimar as mãos no ramequin quente de forno. :)

Cozinhe isso também!

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