sábado, 26 de setembro de 2020

Uma velha e um velho risotto de radicchio


 É difícil pensar em risotto de radicchio sem lembrar no meu aniversário de 25 anos em Florença. Aquele aniversário em que decidi que queria ficar eu comigo mesma. Esse risotto ficou na memória e pela primeira vez me dou conta de que meu aniversário é enfim no Outono, como fora durante a viagem à Itália. Foi apenas quando comecei a prepará-lo, ontem, que me dei conta de que faço 41 anos em uma semana. 

Sim, é claro. No meio dessa montanha-russa emocional, é ÓBVIO que esqueci meu próprio aniversário. Super normal. 

A memória anda me pregando peças. Enquanto escrevia o livro, me surpreendia lendo em meu diário de viagem uma cena acontecida numa cidade que eu me lembrava de ter ocorrido em outra, dias depois. Ou perceber que a lembrança calorosa que eu tinha de uma refeição fantástica na verdade fora fabricada pela distância temporal, sendo a realidade muito mais decepcionante. 

Hoje citei um texto no Instagram e duas fontes diversas, dois livros que li e cujo trecho não encontrei em nenhum dos dois, e fiquei tentando lembrar de onde eram aquelas palavras então. O senhor com quem eu me encontrava todas as manhãs no parque para nossos cachorros brincarem me disse ontem que eu não podia ir ao mercado àquela hora, pois aquela era a hora reservada aos "cidadãos sêniores". Eu ri e disse que já estava a caminho da "senioridade". Não lá ainda, mas definitivamente a caminho. 

Mas rio. Acho que enfiei tanta informação nessa minha cabeça ao longo dos anos que minha mente finalmente deu aviso de sobrecarga. Já não lembra mais nome de livro nem de música, esquece o próprio aniversário e o horário de pegar as crianças na escola. É "la vecchiaia", diz minha mãe. A velhice. 

Talvez seja. 

Noutro dia, já mais distante daquele desmoronamento emocional, entrei no quarto e fui imbuída por uma súbita vontade de dar uma cambalhota na cama. Ri alto da ideia. Mas fui lá e dei minha cambalhota. Era o que eu queria fazer. Quarenta anos e dando cambalhota na cama. Allex, que trabalhava ao computador, olhou aquilo e perguntou o que diabos eu estava fazendo. "Me deu vontade de dar cambalhota, eu fui lá e dei, ué. Ó, vou dar mais uma." 

"Cê tá bem, Ana?", ele riu.

"Tô. Ué, eu sempre disse que eu tava treinando pra virar uma velha louca."

"Aí, ó, conseguiu. Você já é velha E louca."

Verdade. Eu sempre disse a ele que queria ser uma velha louca. Não louca perigosa nem louca sem contato com a realidade. Mas só suficientemente louca pra se safar de fazer o que quiser sem ninguém encher o saco. Daquele tipo de velha feliz que ninguém espera nada de normal.

Tem coisa pior do que as pessoas só esperarem de você coisas normais?

Pois é. 

Saí da caverna em direção à luz, largando o que havia de normal que não me pertencia e dando cambalhota na cama. 

Receber meu livro diagramado e paginado, com "jeitinho de gente grande", me encheu de energia novamente. Quem segue meu trabalho no Instagram (@anaelisagg) já anda vendo os frutos disso. Quebrei mais uma barreira minha e ando botando minha cara de velha matrona,minhas rugas e cabelos brancos, para falar nos Stories. Pois é, se você se perguntava que cara eu tinha, ou se minha voz era rouca, aguda ou fanhosa, agora vai descobrir. Aliás, o Instagram parece estimular um lado meu muito mais tonto. A mídia é a mensagem, já dizia titio Marshall McLuhan. 

E daí que, quando comecei a cozinhar meu risotto de radicchio, pensando com saudades daquele almoço solitário 16 anos atrás, resolvi catar o celular e filmar a pataquada toda. "Povo tem que ver isso', pensei. Ver o quê? O radicchio derretendo. 

Quando juntei os trapos com Allex, ainda no nosso primeiro apartamento, lembro-me de ter preparado risotto de radicchio para um amigo nosso que viera jantar. Eu usei uma receita de um livro lindo, que vendi antes de vir para cá, de receitas toscanas feitas por duas australianas. Mas hein? Pois é. Mas o livro é lindo e as receitas eram ótimas. A única que não me convenceu na época foi o tal risotto de radicchio. O risotto de Florença era rosa-claro, acastanhado, esmaecido como uma camisola de cetim do começo do século, guardada por trinta anos num baú. Aquele produzido seguindo a receita australiana era sem cor: arroz branco entremeado de pedaços purpúreos de verdura. Saboroso, mas aquém das minhas expectativas, perdendo para a lembrança que eu tinha. 

Por anos continuei preparando risotto de radicchio da mesma forma: refogando as tiras finas de verdura rapidamente, como quem prepara couve para acompanhar a feijoada, e imediatamente acrescentando o arroz arbóreo e prosseguindo com a receita. E o resultado sempre carecia de coesão visual e de uniformidade de sabor. Era risotto COM radicchio, e não DE radicchio. 

Um dia, folheando o livro de receitas venezianas de Tessa Kiros, encontrei mais uma receita do tal risotto. Bufei, descontente. Afe. De novo.Sempre as mesmas receitas, eu pensei, já fazendo a limpa dos livros que eu pretendia vender para mudar de país. Mas a receita era diferente. Ela mandava cozinhar o radicchio em panela fechada por uma quantidade absurda de tempo. 

Vamos lá. Vamos fazer o que tia Tessa manda, porque sempre fica bom. 

Abafar o radicchio por tanto tempo faz com que ele não apenas cozinhe, mas colapse. E é nesse ponto, em que você já não mais reconhece aquele emaranhado bordô-escuro como o que um dia foi radicchio, em que você acrescenta o arroz, que vai absorver toda a cor que a verdura não consegue mais conter.

Não vou mentir. É um trabalho de paciência. Costuma levar bem uma meia hora. Mas para quem gosta de risotto de radicchio, uma meia hora bem usada. Enquanto você espera o radicchio desistir de viver dentro da panela, você pode ir procurar nos seus livros aquele trecho de texto que sua mente já não lembra mais de onde veio. 

RISOTTO DE RADICCHIO
Rendimento: 4 porções comedidas, sem repeteco (quando quero mais fartura, uso 1 1/2 xic. de arroz e complemento o caldo com água fervendo. O restante dos ingredientes pode se manter igual.)

Ingredientes:

  • 2 colheres (sopa) azeite
  • 1 colh (sopa) manteiga
  • 1/2  cebola picadinha
  • 1 talo pequeno de salsão picadinho (opcional)  
  • 1 pé de radicchio grande ou 2 pequenos (se não é super fã de gosto amargo, pode usar 1 pequeno apenas)
  • 1 xic. cheia de arroz arbóreo
  • 1/2 xic. vinho branco (se quiser o risotto mais rosinha pode usar tinto também, mas não precisa)
  • 1 litro de caldo de legumes caseiro (e mais água fervendo se necessário)
  • 50g manteiga sem sal
  • 1/2 xic. parmesão ralado na hora
  • sal e pimenta-do-reino
  • salsinha picada para polvilhar por cima (opcional)


Preparo:

  1. Corte o radicchio ao meio no sentido do comprimento, e então em quartos, mantendo as folhas presas pela raiz. Segurando a raiz, corte cada "gomo"de radicchio no sentido da largura, em tirinhas finas, como você faria a uma couve. 
  2. Aqueça o azeite e a primeira quantidade de manteiga na panela em que você pretende preparar o risotto, em fogo médio. Junte a cebola e o salsão picados, uma pitada de sal, e mexa bem até que a cebola amoleça e comece a querer dourar. 
  3. Junte todo o radicchio, uma pitada generosa de sal, e misture bem, refogando um pouco, até que ele comece a murchar. Abaixe o fogo, tampe bem a panela, e deixe cozinhando por 10-15 minutos, até que ele murche bem. 
  4. Dê uma olhada no radicchio. Misture um pouco. Prove o sal. Ele deve estar agradavelmente temperado e com textura de alface cozida, desmanchando à dentada. Se ainda tiver resistência à mordida, se estiver al dente, corrija o tempero se necessário, tampe novamente e deixe cozinhar mais 10-15 minutos. (Caso esteja pegando no fundo da panela, abaixe mais ainda o fogo, se possível, e junte uma colher de água). O tempo total de cozimento vai depender da panela, da quantidade de radicchio usada e do tamanho dos pedaços da verdura. 
  5. Enquanto isso, aqueça o seu caldo de legumes até manter uma fervura branda.
  6. Quando o radicchio estiver extremamente macio e bem escuro (ele deve ter soltado um tiquinho de água na panela, e não pode estar queimando ou dourando), aumente o fogo novamente para médio e junte o arroz, misturando bem.
  7. Quando o arroz estiver translúcido, junte o vinho e misture até evaporar. Junte duas conchas de caldo e misture, no fogo médio-baixo, até que o arroz absorva metade do caldo. Prossiga juntando o caldo e misturando, cantarolando uma música, porque você vai ficar mexendo esse negócio por um tempo, então é legal curtir o processo, até que todo o caldo tenha sido usado. Lembre de ajustar o fogo para que o risotto não ferva violentamente (isso quebra a estrutura do arroz e o caldo evapora antes de o arroz de fato cozinhar). E nunca deixe o caldo ser completamente absorvido antes de acrescentar mais.
  8. Experimente o arroz. Se ele estiver ainda grudando no seu dente quando você mastiga, precisa cozinhar mais. Nesse caso, junte mais uma ou duas conchas de água fervendo e continue cozinhando até que o arroz esteja al dente como seria um arroz agulhinha soltinho. Lembre-se sempre de que o arroz vai continuar cozinhando depois que você desligar o fogo, então sempre pare o cozimento um nadinha antes de o arroz estar no ponto perfeito.
  9. Desligue o fogo. Se o risotto estiver maçudo, junte mais uma concha de água fervendo para soltá-lo. SE estiver ainda caudaloso, deixe, porque ele vai continuar absorvendo o excesso de líquido. Junte a manteiga e o queijo, misture bem e prove. Acerte o sal. Gosto de acertar o sal do risotto no final, porque a quantidade de sal depende sempre do quão salgado é o caldo, de quanta água extra foi acrescentada, e de quão salgado é o queijo. Tempere com pimenta-do-reino e salsinha, se quiser. Tampe, e deixe descansar por dez minutos enquanto você saboreia uma taça de vinho e manda outra pessoa que mora com você botar os pratos na mesa. Afinal, você já fez risotto, caramba! Por que é que tem que botar a mesa também? Bota o povo pra trabalhar.
  10. Idealmente, o risotto deve se espalhar devagar no prato, como lava quente escorrendo de um vulcão, e não ficar fixo num montinho. Sirva com mais um pouquinho de parmesão ralado por cima e um fio de azeite. 
 

 Para quem está aguardando o livro, acho até que ele vai sair antes do que eu imaginava. :D Enquanto todo mundo espera (e eu garanto que ninguém aqui está mais ansioso do que eu), eu pretendo me distrair cozinhando aqui os pratos que eu menciono em cada um dos capítulos do livro. Pelo tamanho dessa receita de risotto, dá pra ver o livro publicado ficaria gigantesco se eu inserisse nele também as receitas. ;) Prefiro assim. Vocês já vão degustando as receitas antes de degustar as histórias, ou podem degustas as histórias e depois vir aqui preparar as receitas. O blog complementa o livro e vice-versa, da mesma forma como minha participação no Instagram tem complementado os textos daqui. 

Tá na hora de remontar o que estava desmontado. Pegar os pedaços importantes e criar coesão entre as partes para que elas tenham um belo colorido junto. Parar para saborear a vida e lembrar que o gostinho amargo do radicchio também faz parte. 

Obrigada a todos pelos comentários lindos e -mails sobre o post anterior. O mundo está louco e a gente anda meio louca junto. Mas vamos largar para traz a loucura que deixa a gente doente e desenvolver aquela loucura boa que permite a gente ser a gente, sem ter que se justificar para ninguém. 

Velha louca, aqui vou eu.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

A importância de ser visível

 Eu desmontei de repente. Assim, feito castelo de cartas. Num dia de chuva fina e intermitente, daqueles em que a cor das nuvens é a mesma dos seus pensamentos. Desmontada, o tamanho do desencaixe me surpreendeu. Sem esperar aquele desmoronamento, olhei os escombros como quem não entende.Sem entender, não pude me mexer. Olhei. Por muito tempo. Tentando ser.

A gente brinca sem brincar que mãe nunca tem férias. E que quando a família está de férias, trabalhamos mais. A família estava de férias. Férias em casa, de chuva e pandemia. Mas, de repente, tão de repente quanto aquele desmonte que viria a acontecer, eu não tinha trabalho nenhum.

O livro foi entregue à editora. Pronto, revisado, lindo.

A campanha digital da loja, para bancar a publicação do livro, foi encerrada.

Todas as ilustrações encomendadas estavam entregues.

As crianças finalmente tinham uma data FIXA para começarem as aulas, dali a alguns dias.

A chuva, o vento, o frio desconvidavam. Não havia parquinho que quisesse uma criança.

As crianças estavam entretidas com a presença do pai de férias. 

O pai, de férias, cuidou da rotina das crianças.

O marido, de férias, decidiu cozinhar todos os dias. 

O marido, de férias, fez lasanha, churrasco, arroz. 

A mulher não tinha trabalho a entregar. 

A mulher não tinha criança pra cuidar.

A mulher não tinha comida a preparar.

A mulher se viu, de repente, assim, de repente, sem nenhuma das obrigações a que se obrigara. 

A mulher se viu, realmente de repente, sem nenhuma das tarefas que ela tão habilmente usara como desculpas.

A mulher se viu, dolorosamente de repente, sem nenhuma das responsabilidades pelas quais se responsabilizara nos setes meses anteriores.

E, desta forma, de repente, a mulher se viu sem chão. A lista da afazeres que até então sustentava suas pernas desapareceu. Não havia mais nada que pudesse distrair a mulher do fato de que ela estava exausta. Nada mais exigia que ela se mantivesse em pé. Ninguém mais precisava que ela prosseguisse o movimento. 

E ela caiu.

Eu caí. 

Exausta. Exausta. Usei tanto essa palavra em minha vida, que no momento em que mais precisei dela, ela já não tinha mais significado. Esvaziada de significado. A palavra e a mulher. Significante e significado numa sincronia jamais vista. 

Como quando a família fica doente. A mãe cuida da febre do filho. Depois da dor da filha. Então leva um chá pro marido. Segue forte, cuidando. Dando. Doando. E quando enfim está tudo bem e todos sob sua guarda recuperam a saúde plena, quando ninguém mais pede o que ela já não tem para dar, ela cai. Doente. Exausta. Ela tem permissão de cair. Ela se dá permissão. E cai.

Caída fiquei. O choro vinha fácil, aos borbotões, convulsivo, a qualquer hora, por qualquer motivo. Choro pelo cão, choro pela quarentena, choro pela escola, choro pelos amigos, choro pela família, choro pelo trabalho, choro pelo mundo, choro pelo pantanal, choro pela politica, choro porque não há mais nada que quisesse fazer senão chorar e dormir. Choro feito um bebê cansado cuja a mãe manteve acordado além da hora de dormir. Passei da hora de dormir. Passei dos limites. O corpo já avisara há tantos meses desses limites ultrapassados. O pé inflamado já pedia havia muito tempo o descanso que eu não me permitia. 

Eu sou invisível. 

"Eu sou invisível", murmurava a mim mesma. 

Quando tento viver uma vida normal sem estar normal por dentro, o que me é importante se torna gradualmente transparente. Aos poucos, atravesso paredes. Minhas mãos não tocam coisa nenhuma. Preciso manter tangível a dor invisível. Dar nome às tristezas. Dizer a todos quando não estou bem. 

"Não estou bem", eu disse. 

Vê? 

Sou visível, tangível, tocável, sensível. Minha dor espalha e transforma o mundo à minha volta. Ela incomoda porque me incomoda. Eu incomodo. É importante incomodar. É importante ser visível. 

Eu sou visível. 

"Preciso colocar para fora e entender tudo isso que segurei por tanto tempo", expliquei. "Eu segurei tudo por muito tempo. Eu segurei todos por muito tempo." Expliquei e fui compreendida.E me deixaram chorar tudo o que eu tinha para chorar. E me deram tempo. Tempo. Tempo, maravilhoso tempo. Esse tempo que damos à revelia, que gastamos feito crédito no cartão, sem lembrar de guardar um pouco pra gente. 

Pela primeira vez, entendi que eu nadava numa caverna apertada. Que cada uma daquelas responsabilidades das quais me cobrava diariamente eram pedras no fundo das águas geladas, onde eu apoiava a ponta de um pé para poder manter o nariz fora d'água e respirar. Sem aquelas pedras, eu tentava nadar sozinha, mantendo o rosto na superfície, mas sempre batendo a cabeça no teto frio e duro da caverna, que me jogava para baixo outra vez.

Pela primeira vez, eu parei de nadar. Exausta do esforço contínuo, deixei-me afundar devagar. Ouvi o silêncio de meu corpo submerso. Dizem, no Yoga, que você pode chegar à luz por dois caminhos: subindo diretamente em direção a ela, ou descendo às profundezas até o limite, até dar a volta na roda, romper a escuridão e encontrar aquela mesma luz. Não havia porque nadar à superfície se eu não via nenhuma luz entrando na caverna. Deixei-me afundar. Deixei-me levar à escuridão. Às fontes de todo aquele choro, de toda aquela angústia. Deixei-me afundar consciente de que não ficaria ali para sempre. Apenas o bastante para que conseguisse abrir os olhos embaixo d'água. Apenas o bastante até que conseguisse enxergar nas águas turvas outros caminhos naquela caverna. Apenas o bastante até que pudesse nadar por um desses caminhos submersos. E vir à tona. E encontrar a luz. 


Há luz novamente. 

Consigo enxergar terreno sólido onde me apoiar e sair da água. 

Quase duas semanas depois do desmoronamento, consigo entender quais pedras são sólidas e quais rolam facilmente. Os escombros estão ali, visíveis, mas menos dolorosos. Um lembrete eterno das armadilhas que um dia criei para mim. O choro foi embora. Canto um pouco quando ouço música. 

As crianças estão na escola. E eu tenho me dado tempo. Tempo, que a gente dá de presente para os outros como se não valesse nada, como se não precisássemos tanto dele. 

Fui "me levar" para passear no parque. Essa atividade mundana. Um passeio no parque em plena terça-feira. Meu primeiro passeio sozinha pelos caminhos que eu percorria, todos os dias, com Gnocchi. Enfiei-me pelas trilhas mais fechadas. Andei sobre troncos caídos, de braços estendidos para me equilibrar. Atravessei córregos de lama pulando sobre pedras e galhos. Tentei atrair esquilos com bolotas de carvalho caídas no chão. Ouvi o grasnado alto e metálico dos Blue Jays. Fui procurar ali uma parte da minha vida que desmoronou com a morte do cão. Encontrei uma parte de mim que estava faltando. A parte mais importante.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Que venha o outono

 


Atrasaram o início das aulas em uma semana. Ainda bem que eu não estava aqui brincando de ter expectativas. Há uma parte do meu cérebro que não quer pensar nisso. A dez dias do início do ano escolar, eu estaria reorganizando as roupas de Outono das crianças, planejando cardápios de lanche e repensando minha agenda de trabalho.

É preciso sair e comprar máscaras. 

Suspiro e penso e respiro e não me mexo. 

A volta às aulas deveria marcar um fim e um começo. O fim do verão, dos dias longos, fim do descanso na grama sob o sol. Mas não foi un descanso, foi? Foram meses, tantos meses, de cansaço. De greves, de quarentenas, de mortes, de ferimentos, de estresse e exaustão. Foram meses de fazer força para manter tudo bem, para manter a cabeça funcionando e o coração leve. 

A volta às aulas não tem gosto de fim de descanso nem começo de um. Porque nada acabou, e não tenho em mim a certeza de que enviar as crianças à escola seja sinal de normalidade. Não acredito sequer que vá durar muito. Olho para o futuro com desconfiança e para o passado com a sensação de quem sonhou um sonho estranho.

Atenho-me a outros ciclos, então, que este calendário de horário comercial não anda fazendo sentido. Fecho minha campanha de vendas na loja com imensa felicidade. Com a meta financeira praticamente alcançada, sinto-me forte e feliz por ter tido meios de usar uma arte para pagar a outra. E nesta semana, assinei o contrato com uma editora. 

O sol foi embora de repente e fechou as cortinas antes de sair. A luz lá fora é prateada e difusa, mal atravessando as nuvens densas que tocam o chão em forma de névoa. A brisa é fria nas canelas ainda expostas, e os braços pedem o conforto de um moletom velho. 

Outono aqui sempre traz mudanças à base de muito vento. E a brisa vira vendaval. O livro que vai ser publicado, a escola que recomeça aos tropeços, o trabalho que ganha um novo fôlego, e o pé. O pé que começa a melhorar, enfim. 

Um massagem ayurvédica nas pernas que me arrancou tanto choro do peito que achei que nunca teria fim.Talvez o verão ainda tenha monções restantes. E então o pé doeu menos. E menos. O choro lavando embora aquelas inflamações. 


 

E num dia saio para andar no mato. E no dia seguinte de novo. Olho aquele mato que quer mudar de cor, o cheiro do inicio da destruição suspenso na umidade do ar, e vejo que é o tempo que está suspenso ali naquela névoa. Um respiro entre estações. A pausa que precede a mudança. Esses últimos dias de férias escolares que prometiam ser as últimas explosões energéticas do verão tornam-se passos lentos na lama e sons de água, chá quente e pés no sofá, pensamentos que não chegam à boca, enlaçados no som de suspiros como uma criança no cobertor.

Devagar.

É sabedoria antiga respeitar o ritmo das árvores? Então tudo bem. Fecho os olhos e ouço as folhas. Os pequenos Chipmunks começam a recolher folhas e castanhas para seus ninhos, preparando a toca para o longo sono do inverno. Esperto o bicho que não gasta energia à toa. 

"Não quero que vocês se deem bem o tempo todo", digo à crianças. "Isso é impossível e muito injusto de pedir a vocês. É lógico que vocês vão brigar. Conflitos existem o tempo todo e não é possível evitá-los o tempo todo. Quero que vocês resolvam a briga de uma forma melhor."

Parem de gastar energia à toa, digo a eles.

Sempre haverá um conflito. O futuro está cheio deles. Inevitáveis. Inexcrutáveis. Imprevisíveis. Gritar, bater, espernear, digo a eles, é gastar energia à toa. O Inverno está chegando, já dizia o seriado.

Preciso parar de gastar energia à toa. Ser mais esperta. Recolher minhas folhas e castanhas para a toca. Tocar a ponta da língua no céu da boca e manter meus pensamentos enlaçados no silêncio de quem observa. Ouvir a respiração no ritmo do vento e amar a pausa antes do novo ciclo. 

Que venha a escola, pelo tempo que durar. O novo criado a partir dos escombros da torre que cai. "Quando a torre cai, é o fim de uma vida organizada", dizia a carta do baralho de Tarot que carrego comigo desde os quinze anos. 

O pé doeu de tanto fincar no passado, sem querer andar para frente. Sem querer pisar na lama decadente do que se desfez, nas pedras e farelos daquilo que não podia mais ficar em pé. As palavras tentavam convencer o peito a não sentir, mas tudo o que doeu e não foi sentido virou pé quebrado, pé torcido, pé inflamado que me fez parar e olhar para a destruição. A vida é desorganizada e o conflito é inevitável. 

É poesia pensar que meu livro sai na Primavera. 

Vou passar meu Outono olhando a força destruidora da natureza, que faz cair folhas e as consome até o restar de sua estrutura rendada, e as desfaz até que não sejam sequer lembrança do que foram um dia. Até que sejam a terra fértil para o que ainda não sabemos que vai nascer. Vou confiar no Outono para que a Primavera venha. 


 

....

 Enquanto isso, minha cozinha segue cíclica. Todos os anos, as mesmas fases. O verão é simplicidade e leveza, e os primeiros ventos trazem não apenas as calças compridas, mas os preparos mais complexos. A vontade de barrigar o fogão retorna.  

Um Daal de lentilhas com berinjelas do Jamie Oliver. Uma salada quente de repolho, milho e bacon para acompanhar um peixe grelhado. Um arroz de forno com abobrinhas e tomates puxado da memória, acho que de um livro do Mark Bittman.

Mal esfriou e as crianças já pedem sopa.

Que venha o Outono.


SALADA QUENTE DE MILHO VERDE, REPOLHO E BACON

(do livro Sunday Suppers at Lucques, de Suzanne Goin)

Ingredientes:

  • 200g bacon fatiado, cortado em tirinhas finas
  • 2 colh. (sopa) manteiga sem sal
  • 1 xic. cebolinhas fatiadas bem fininho
  • 1 1/2 xic. milho verde, tirado da espiga
  • 2 colh.(chá) folhas de tomilho
  • 1/2 repolho pequeno, fatiado fininho
  • 2colh (sopa) salsinha picada
  • sal e pimenta do reino

 Preparo:

  1. Aqueça uma frigideira bem grande em fogo médio de acrescente o bacon, coznhando por cinco minutos, mexendo, até que doure e fique crocante. Transfira o bacon para um prato. 
  2. Junte à gordura do bacon na frigideira a manteiga, as cebolinhas, o tomilho, 1/2 colh.(chá) sal e uma pitada de pimenta. Refogue por uns três minutos.
  3. Junte o milho debulhado, mais uma pitada generosa de sal e pimenta e cozinhe por três minutos.
  4. Junte o repolho, e cozinhe,mexendo,até que o repolho murche um pouco. 
  5. JUnte o bacon, a salsinha,acerte o tempero e sirva como acompanhamento de um peixe, por exemplo. 

 

O Daal foi feito segundo a receita de Jamie Oliver, daqui: https://www.jamieoliver.com/recipes/vegetables-recipes/aubergine-daal/

 Mas ao invés de usar a pasta de curry pronta, fiz minha própria pasta, com meia colher de chá de cada um dos temperos: canela em pó, cominho em grão, coentro em grão,mostarda em grão, erva-doce em grão, cúrcuma em pó, gengibre em pó, 1/4 colh.(chá) cardamomo em pó, 2 cravos, 4 grãos de pimenta-do-reino, 4 folhas secas de curry, 1 pitada de pimenta calabresa e 1 pitada de sal. Moí tudo no pilão e misturei a duas colheres de óleo de coco. Você pode simplesmente usar sua mistura de curry em pó favorita também. Fica ótimo de qualquer forma. 

Dica: use metade da quantidade de lentilha e arroz pedida. 250g de lentilha para o Daal rendeu 2 refeições e meia para quatro bocas.Se usar o meio quilo que ele pede, vai ter Daal para um vilarejo indiano inteiro. o_O

Este arroz de forno foi muito simples. Foram duas xícaras de arroz branco que cozinhei. No panelão grande, refoguei duas abobrinhas fatiadas fino em azeite até amaciarem.Juntei meia cebola picada e um dente de alho  e um ramo de tomilho e continuei refogando em fogo médio até tudo estar dourado. Juntei o arroz cozido, dois ovos e um punhado de parmesão e espalhei na panela. Espalhei fatias de tomate por cima, temperei com sal, pimenta e azeite e polvilhei com um punhado de parmesão e levei ao forno médio (180oC) até os tomates murcharem e o queijo derreter.


terça-feira, 25 de agosto de 2020

Pequenas vidas independentes, e um pão com fubá


 

Despertei, devagar, como quem ainda quer manter a mente fechada nos sonhos um pouco mais, ao som de pequenos passos cuidadosos. Um barulhinho que põe mãe em pé e alerta feito soldado em guerra, buscando proteger uma inocência largada à solidão de uma casa sem vigias. Fora assim um dia. Muitos dias. Anos. Mas não mais. Aninhei-me contra o travesseiro cheirando à noite de verão e lavanda, tentando não me mover muito, embalando aquele sono enquanto ouvia pezinhos tocando o chão com a inútil intenção de silêncio. Mal sabem aqueles dedinhos que coração de mãe desperta antes da mente dos filhos. Inspirei fundo e acompanhei na rabeta de meus sonhos aqueles pés deixando o quarto. O som da porta se fechando, cuidadosamente, uma mãozinha amparando a porta para o trinco rolar devagar. 

Rodo o corpo para outro lado, apegando-me aos lençóis, olhando outros ombros largos e adormecidos ali naquele escuro artificial de listras azuis claras. É dia de verão há muito lá fora, apesar das horas pequenas. Os passinhos levam ao banheiro. Ergo a testa do travesseiro para escutar melhor. Barulho de água na pia e sabão. Relaxo.Pontas de pé se distanciam até a cozinha. As janelas fechadas prendem o silêncio dentro, e ouço sua respiração e a minha quando a redoma de vidro da boleira é aberta e repousada com impressionante delicadeza na bancada. A faca saída do cepo assobia em lábios secos. Tento lembrar um sonho bom ao ritmo gostoso do rosnar na faca no pão. Crosta grossa de pão, quebradiça e crocante, faz barulho que enche a boca de vontade. Suspiro um suspiro bocejado, acalmando a fome com uma dose deliciosa de preguiça, esticando as pernas sob o lençol amassado e flexionando os pés devagar, deixando as pontas dos dedos alongarem a base da coluna. 

A faca espalha o cheiro da manteiga como quem sopra um dente-de-leão. Fresca e fria, lembra flor, lembra capim verde sob o vento de verão. Já não posso ignorar os ruídos do dia novo quando ele liga a cafeteira, iniciando uma música de motores e águas que já sei de cor. A máquina chia, raspa, escarra, borbulha e derrama, e um vapor doce de leite quente dança até o quarto.  

O deslizar da gaveta de panelas nos trilhos me faz abrir os olhos. O teto, olhado assim, sem foco, era infinito. Metais escorregando uns sobre os outros, e o ar vibra a tensão de braços infantis tentando evitar o clangor do choque das panelas. Gaveta fechada, metal sobre vidro, o estalo suave do botão do fogão, e o whooomph-pop confortável da borracha que se amassa e solta o vácuo quando a porta da geladeira é aberta. 

Manteiga que derrete é avelã no sol, banho quente e abraço. Toc, toc, crack. Meu coração dá um pequeno pulo de ansiedade e alegria ao quebrar do ovo, como sempre acontece àquele exemplo tão maravilhoso de intrepidez e firmeza de caráter que se adquire na primeira vez em que se aprende a quebrar a casca de um ovo sem que seu conteúdo fuja apavorado. 

Borbulha, espirra, estala. 

A porta do quarto se abre, sem cuidado, e pezinhos firmes atravessam um corpo esguio e determinado pelo vão da minha porta até a sala. 

Bom dia, Thomas!, mia uma gata em forma humana, entre sons guturais de membros espreguiçados e alongados.Espreguiço também meu corpo, meus braços, e jogo as mãos para trás da cabeça, esperando um drink na praia, sob o sol das duas. 

A cozinha agora é um jazz progressivo de tampas de panela e espátulas, carícias de faca em carne de fruta, batida de lâmina na tábua, o jogo batucado da madeira no azulejo quando pés se equilibram sobre o banco, abrir e fechar de portas e louças que raspam e riscam. A torradeira solta e salta feito caixa e chimbau.

A música acaba e há um quase silêncio de instrumentos sendo afinados, do saborear das palmas da plateia. Quando a música recomeça, é breve e aguda. Um tilintar de talheres sobre louças como sinos, uma torneira aberta como quem pede um silêncio incomodado, e então os músicos saem do palco, seus passos abafados pelo tapete da sala. 

É o fim do espetáculo. 

Viro o pescoço mais uma vez para olhar o relógio. Ele grita sete horas em números cor de laranja, e, sem paciência para argumentar com partes eletrônicas que não têm maturidade emocional, levanto num pulo. São os meus passos, agora, adultos e pesados, que se espalham. Espalha um amor quente no peito, também, quando olho a sala. Dois corpos infantis aninhados no sofá, um de roupas, outro com a metade dos pijamas, rostos tão enfiados em livros do Asterix, que mal notam minha presença. Fico ali ouvindo um pouco suas vidas, uma assombração deliciada com a delicadeza do mundo. A mesa está limpa, a louça na pia. Há migalhas e caroços de pêssego sobre a tábua onde jazem as facas sujas. Prova do crime de uma vida independente. 

Bom dia, eu digo.

Bom dia, eles respondem.

Dou-lhes um beijo.Ganho um abraço. Bom dia começa com alegria, bom dia começa com amor, canta um deles.

Quer um café, mamãe? 

Eu faço o meu, obrigada. Mas pode fazer o do papai enquanto eu coloco uma música. 

Tá bom. 

Coloca aquela música que eu gosto? Café quente. Me conta o que você sonhou. Janelas abertas. 

Apanho o pão na boleira. 

Eita! Vocês comeram quase metade do pão!

É que tava muito gostoso, mamãe.

Que bom. 

Que bom. 

...

 

 

Tem sido difícil preparar pães de outra forma que não deixando que fermentem durante a noite. É simplesmente muito prático, e o resultado fica excelente. O pão básico de sempre, mas com apenas 1/4colh(chá) de fermento. Deixado fermentar durante a noite. Moldado de manhã cedo e deixado fermentar apenas enquanto a panela esquenta no forno alto. Pão na panela fechada por meia hora e depois mais quinze minutos sem tampa. Quando acordo bem cedo, tem pão fresquinho e quente `s sete da manhã. Como não amar isso?

Eu comprara um saco muito grande de fubá para um bolo, e andava procurando coisas a fazer com ele. Encontrei essa receita de Broa portuguesa no site de Martha Stewart. Não confio na autenticidade da receita, mas o pão, que leva um pouco de fubá cozido na massa, fica deliciosamente macio. 

 

BROA, ou PÃO COM FUBÁ

(do site https://www.marthastewart.com/1521175/portuguese-cornmeal-bread)

Rendimento: 1 pão grande

 

Ingredientes:

  • 1 1/2 xic. fubá, e mais para polvilhar
  • 1 1/2 xic. água fervente
  • 5 xíc farinha de trigo, e mais para polvilhar
  • 2 colh. (sopa) sal (eu usei apenas uma)
  • 2 colh. (sopa) açúcar
  • 1/4 colh.(chá) fermento biológico seco
  •  1 1/3 xic. água fria
  • azeite para untar


Preparo:

  1. Numa tigela de inox ou plástico (porque a cerâmica ou vidro podem quebrar com o choque térmico), junte o fubá e a água fervendo e misture até que o fubá absorva toda a água. Mexa um pouco para o vapor sair e leve a tigela à geladeira por alguns minutos até que esteja frio o bastante para manipular.
  2. Numa tigela grande, ou na tigela de uma batedeira planetária com gancho, coloque o fermento, a água fria e o açúcar, e deixe quieto alguns minutos para que o fermento dissolva. Junte a mistura e fubá, o sal e a farinha, e misture bem até formar uma massa que possa ser sovada à mão ou na batedeira apenas até que não sobrem pedaços secos. A massa precisa estar macia e ligeiramente grudenta. Caso esteja muito seca, acrescente mais água, uma colher de sopa por vez.
  3. Forme uma bola na própria tigela e cubra bem. Deixe na bancada durante a noite, fermentando por 12 a 18 horas. A massa deve crescer uma três vezes o próprio tamanho.
  4. NO dia seguinte, unte o interior de sua panela de ferro com um pouco de azeite e polvilhe com um pouco de farinha misturada a fubá, para que o pão não grude. 
  5. Despeje a massa fermentada na bancada enfarinhada e forme uma bola. Coloque a massa dentro da panela untada e enfarinhada. Coloque a tampa e deixe fermentar por mais uma hora e meia a duas horas.
  6. Quando a fermentação estiver no fim, cerca de meia hora antes de assar o pão, ligue o forno a 250oC, com a grade posicionada no terço inferior. Assim que estiver bem quente, abra a panela, use uma faca afiada para fazer um X fundo no topo do pão, tampe novamente e leve a panela ao forno. Abaixe o fogo para 220oC e asse por 45 minutos. (O pão é grande, então precisa de mais tempo no forno)
  7. Terminado esse tempo, com muito cuidado, retire a tampa e asse por mais 15minutos destampado, ou até que esteja dourado a seu gosto. 
  8. Retire a panela do forno com cuidado, retire o pão com a ajuda de uma espátula e luvas de forno, e deixe que esfrie COMPLETAMENTE sobre uma grade antes de servir.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Cansou. Briga de criança e arroz de coco com abóbora e quiabo.

 

Cansou. E se cansou por aqui, onde as coisas começam a melhorar, imagino como deve ter cansado onde nada anda para lugar nenhum. 

Mas cansou. Sexta-feira passada, ousei almoçar com uma amiga no pátio externo de um café pela primeira vez desde... desde quando? Qual fora a última vez em que saíra com uma amiga para bater papo e tomar uma taça de vinho? Janeiro? Fevereiro? Se pensar em pátios externos, vixe, a memória puxa para o último verão. Eita.

Enfim, fazia tempo. Não fosse a máscara de acrílico da garçonete, o café vazio de mesas empilhadas lá dentro, e o fato de que eu precisava vestir minha máscara de volta para entrar e pedir mais uma taça, paga com cartão, pois todos estão evitando dinheiro impresso, até pareceria tudo bem. Mas mesmo esse meio-que-tudo-bem-só-que-não já bastou. O vinho desceu bem, o sol de fim de verão estava agradável, e a conversa foi boa. Libertadora. Verborrágica. Como se uma barragem se rompesse, derrubando água presa por muito tempo de repente, inundando aquela mesa de café. 

Cansou, dizíamos. As crianças precisam ir à escola. Não porque a tabuada seja importante, mas porque elas já não aguentam mais olhar para a nossa cara. Porque um apartamento não comporta tanta energia. Porque a gente consegue se abnegar por algum tempo para priorizar a infância deles, e passar um dia todo no parquinho, mas não todos os dias, não para sempre, não o tempo todo, não vinte e quatro horas por dia desde março.

Noutro dia Allex levou as crianças de bicicleta até a praia, para ajudar a recolher lixo e limpar pichações das pedras. (Porque sim, isso acontece aqui no Canadá também, isso de ter gente mal educada emporcalhando a natureza e a cidade, e vira e mexe a gente sai para tentar ser parte da solução e não do problema.)  Meu pé doía, e daquela vez, resolvi ficar em casa ao invés de passar tempo com os três. Quando a porta se fechou atrás de Laura, olhei em torno e me dei conta de que era a primeira vez que ficava sozinha em casa desde março. O silêncio era um abraço. 

Era tanta liberdade que eu não sabia o que fazer com ela. E por duas horas e meia vaguei pelo apartamento como um espectro, uma assombração de quem eu fora um dia, sem memória bastante para materializar minha identidade. 

Cansou.

Cansei.

As crianças cansaram. 

Faz já um mês que passo meu dia desengalfinhando os dois. Thomas pede paz para ler sossegado. Pede sossego para brincar em paz. Laura pula em cima dele, senta perto demais, fica constantemente de ponta cabeça, virando cambalhotas no chão e no sofá e resvalando seus pés apenas perto o bastante do irmão para irritá-lo, mas sem tocá-lo. Ele pede para que ela saia. Para que pare. Ela não pára. Ela quer atenção dele, quer brincar com ele, e fica frustrada em ver o irmão num momento introspectivo e solitário. Ouço um tabefe e um berro e lá vou eu separar a briga, conversar, explicar que não se resolve conflito com tapa, que eles têm idade para usar as palavras, para dizer como se sentem, e que se tudo falha, eles precisam vir chamar papai e mamãe para ajudar com o problema. Tá bom? Tá bom. Pede desculpas. Desculpas. Vão brincar tranquilos? Vamos. 

Meia hora depois, ouço as vozes de brincadeiras adquirirem outro tom. Thomas faz voz de desenho animado quando está bravo com Laura, como quem imita um monstro gritando, mas sem de fato levantar a voz. Laura berra esganiçado, naquele misto de choro com meias palavras difíceis de se entenderem, que me arrepiam os pelos da nuca feito unhas no quadro-negro. É uma briga de Schrödinger. A briga pode ou não virar tabefe, mas eu só vou saber se abrir a porta do quarto. 

Abro a porta do quarto. Posso ajudar? 

Não, não pode.

Mas vocês estão brigando. Quero saber se posso ajudar.

Deixa a gente resolver. Se você se meter quando a gente briga, a gente não vai aprender a resolver sozinho. 

(É isso o que acontece quando se ensina uma criança de sete anos a argumentar.)

Eu sei, Laura, mas quando vocês começam a falar um com o outro nesse tom, normalmente um dos dois atinge o limite e vai pro tapa. Se vocês atingiram o limite de vocês e não enxergam uma saída para a discussão, tem que chamar a mamãe para ajudar.

Deixa a gente resolver.

Vocês vão se bater?

Não.

Tá bom.

Viro as costas e fecho a porta. A discussão continua. Uma briga por uma peça de lego que o outro pegou sem permissão. Ouço um tapa e um berro.

Eita.

É a peça de lego. É o livro com a página desmarcada. É sentar muito perto no sofá. É o bichinho de pelúcia. É o assobio. É o batuque no chão. É o "ele está olhando para mim".

Sério? Ele está OLHANDO para você?

É.

Eita.

Laura, respeita o espaço do teu irmão. Thomas, se você não diz como se sente, os outros não têm como adivinhar que estão te incomodando. Laura, você pode cantar na sala, não precisa ser no quarto onde teu irmão está brincando. Thomas, se a Laura estava usando aquela peça,você precisa pedir primeiro. Ai, gente, pelamor, tem umas duzentas dessas peças no Lego de vocês! Precisa mesmo brigar? Gente, senta um de cada lado, vai! Vocês dois! Se vocês não querem brincar juntos, fica um na sala e outro no quarto, não precisa ficar um em cima do outro o tempo todo! Eita nóis, vai, toda vez que vocês brincam de batalha um chuta o nariz do outro e os dois ficam fulos! Dá pra parar?

Cansou.

Né?

É.

Do lado de fora, nada disso acontece. E eu adoraria (mesmo) passar o dia todo do lado de fora com eles, como já fiz outras vezes. Sei que faz bem para mim e para os dois também e desse jeito ninguém briga. Mas com as pendências do livro para resolver e todas as ilustrações para entregar, anda cada vez mais difícil. Trabalho de manhã, interrompida pelas querelas infantis, e levo eles ao parque à tarde. As chuvas de fim de verão, no entanto, não têm ajudado, e muitos desses dias terminam confinados ao apartamento. 

Ai, meu deus, e a como gasta a energia então?

Allex pára o trabalho dele para colocar os dois para fazer ginástica ou yoga. Faz prancha, faz polichinelo, faz burpee até suar. Faz torção, arruma a postura,estica até alcançar o pé. Cansou? Ótimo. Agora vai ler um livro sossegado.

Sabe aquele filme, Dr. Fantástico? Pois é, falei pro Allex outro dia que o personagem do pai parece um amálgama de nós dois. Hahaha. 

Eu saía do café, com a cabeça ligeiramente leve do vinho e da conversa, quando Allex me ligou. "Estou saindo de bicicleta com as crianças." Eram quatro da tarde. Olhei em volta, e aquele fim de tarde de sexta-feira estava lindo e eu estava de bom humor depois daquelas horas apenas minhas. "Que bom, porque estou justo chegando em casa. Eu vou junto."

 

Pedalamos vinte quilômetros ao longo do lago até uma praia grande do outro lado da cidade. Havia um food truck com algumas cadeiras servindo hambúrgueres e sorvete. Jantamos. Largamos as bicicletas no calçadão e pulamos no lago, ainda aquecido pelo sol. Deixei-me flutuar um pouco, as roupas inflando feito balões sob a corrente de água. Voltamos pedalando de volta aqueles vinte quilômetros, perseguindo o por-do-sol. Eram nove da noite quando chegamos em casa.


Quando colocamos as crianças na cama, eu não me lembrava mais de suas discussões das sete da manhã. O dia fora perfeito. Eu estava restaurada pelas horas minhas e por aquelas horas do lado de fora.

Mas na manhã seguinte, é claro, começaria tudo de novo. 

Bom dia começa com alegria, bom dia começa com... "Me devolve meu dragão, Laura!" "Eu não peguei seu dragão bobo!" "Pegou sim!"

Eita.

...

Justamente por conta desse clima tenso das crianças, exaustas das incertezas, do excesso de convivência um com o outro e da ausência dos amigos, é que tenho tentado me cuidar. Cuidar do corpo e da cabeça para tentar manter meus níveis Zen de paciência perto do infinito. Dá vontade de gritar de volta e botar todo mundo de castigo. Mas não, né? Zen Master. Conversa, explica, dá soluções, mostra que é possível, dá o exemplo. Afe,exemplo. É difícil. Cansa. Mas chega o dia em que dá certo. 

Deixa eu me cuidar, então.

Meditação? Check.

Yoga? Check.

Kettlebell? Check. 

Comida leve? Check.

Arte? Check.

Voltei a praticar yoga e kettlebell todos os dias com o marido depois que o médico começou a me passar exercícios para o pé que eram os mesmos das duas práticas. E o pé finalmente começou a melhorar. Tem sido muito bom para gastar o meu excesso de energia também, esse que anda explodindo dentro de mim depois que deixei de correr dez quilômetros por dia para ficar minha manhã inteira sentada na  frente do computador. 

E continuo a brincar com essa ideia de veganismo durante a semana. Tinha começado com isso durante o treino para a ultramaratona que não aconteceu por conta da pandemia e também porque os laticínios canadenses andavam me dando azia quando consumidos todos os dias. A azia foi embora e o que sobrou foi essa sensação boa de leveza no corpo.  

Tenho acordado para cafés da manhã assim. Uma torrada com tahini e abacate e uma porção de frutas. Nada de cappuccino. Só café. Às vezes uma água de coco.

Se dá fome no meio da manhã, mando pra dentro mais uma porção de fruta. 

Almoço, desde o começo da pandemia, tem sido restô-dontê.Havia sobrado arroz de abóbora com coco de uma receita do Jamie Oliver que eu fizera na noite anterior. Refoguei umas folhas de beterraba em cebola e alho, e preparei uma salada rápida de alface romana, rúcula, pepinos e salsão, temperada apenas azeite e limão, para acompanhar. A parte boa de comer só verdura é que dá pra montar um pratão de caminhoneiro.


Lanche é sempre no parque. Preparo o piquenique das crianças já pensando num pouquinho para mim. Frutas, frutas, frutas, que há que se aproveitá-las no verão e umas bolachas salgadas integrais. Ou algas. Ou trail mix (aquela mistura de castanhas, sementes e frutas secas).

Os dois vira e mexe saem fazendo suas invencionices. Bolacha com fruta, até vai. Mas outro dia Thomas estava fazendo rolinhos de alga com melancia. Vai entender.

Preparo o jantar enquanto as crianças estão no banho. O dia ainda é claro lá fora. Allex ainda está na última reunião do dia, em frente ao computador, ou gerenciando o banho da pimpolhada. Lavou o cabelo? Não? Então volta e lava. 

No dia anterior eu preparara o arroz de coco e abóbora e os quiabos com feijão branco. Tão bom que me empolguei a fazer outra receita do seu Oliver. Fazia muito tempo que eu não cozinhava nada dele.Aliás, fazia muito tempo que eu não usava uma receita para fazer jantar. Veio logo uma sensação de tempos passados, de vida distante, essa em que toda refeição tinha um livro aberto na cozinha guiando meus passos. 

As crianças viram comigo um video dele preparando um macarrão com molho de pimentão amarelo, muito simples, e imediatamente pediram para que eu fizesse também. Fiz, trocando apenas o parmesão do molho por um pouco de levedura. E ficou muito gostoso. Se a gente usasse aquele macarrão curvadinho, ia ficar parecendo Mac'n'Cheese!, disse Thomas. Olha, que parece mesmo. Posso mandar esse macarrão de almoço na escola? Poooodeeeee!

Eu tinha um maço imenso de couve que ia acabar estragando, então refoguei em alho e pimenta para acompanhar o spaghetti.


Não lembro nem como caí no video dele preparando esse arroz e esse quiabo, mas quando vi, fiquei subitamente empolgada. A receita é fácil e deliciosa. Teria saído melhor se eu não tivesse atendido o telefone no meio do preparo e ficado de papo com uma amiga. Na distração, coloquei o dobro do leite de coco e não piquei o bastante as abóboras, fazendo com que o arroz absorvesse água demais e a abóbora não dissolvesse no caldo. Também não encontrei os tal Butter beans, ou Lima beans, e acabei usando White kidney beans. Mas qualquer feijão branco serve. A receita original usava pimentas Scotch Bonnet. Como a tolerância para pimenta das crianças é baixa, preferi não usar a pimenta no preparo e simplesmente deixar um bom molho de pimenta à disposição na mesa para quem quisesse. A receita diz render 6 porções, mas rendeu bem umas oito, para ser sincera. O que não é problema para ninguém, já que ficou gostoso. Se for usar arroz agulhinha no lugar do basmati, acerte a quantidade de água + leite de coco para a proporção que você normalmente usa para o cozinhar o arroz comum.

 ARROZ DE ABÓBORA COM COCO e QUIABO COM FEIJÃO BRANCO
(Do site de Jamie Oliver: https://www.jamieoliver.com/recipes/rice-recipes/pumpkin-rice/)
Rendimento: 6 porções
  • 400 g abóbora, descascada e picada em cubos de 2cm
  • 100 g leite de coco
  • 4 grãos de pimenta-da-jamaica
  • 4 cebolinhas
  • alguns raminhos de tomilho fresco 
  • 400g de couve, sem os talos, rasgada em pedaços menores
  • 450 g arroz basmati
  • 2 dentes de alh, fatiado
  • 1 cebola, picada
  • azeite
  • 200 g tomates cereja, cortados ao meio
  • 200 g quiabo, sem as hastes e cortado ao meio
  • 700 g feijão branco cozido (em lata)

Preparo:

  1. Leve 800ml de água à fervura numa panela grande, e junte o leite de coco, a pimenta-da-jamaica, as cebolinhas e metade do tomilho. Junte a abóbora e a couve, mais 1/2 colh.(chá) sal e um pouco de pimenta-do-reino, tampe e deixe cozinhar por dez minutos.
  2. Junte o arroz, abaixe o fogo, tampe e deixe cozinhar por cerca de 12 minutos, ou até que o arroz esteja cozido. Desligue o fogo e deixe terminar de cozinhar no vapor.
  3. Numa frigideira grande com tampa, aqueça o azeite. Junte o alho e a cebola, uma pitada de sal, e deixe amolecer e começar a dourar.
  4. Junte os tomates, mexendo bem, até que amoleçam um pouco. Junte o quiabo e o tomilho, misture, tampe a panela e cozinhe por oito minutos em fogo médio-baixo.
  5. JUnte o feijão escorrido, um pouquinho de água, e misture bem, cozinhando por mais uns cinco minutos para que os sabores se misturem. 
  6. Sirva o arroz e o quiabo com seu molho de pimenta favorito.


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Um bolo, um peixe, um livro, uma loja


Daqui a menos de três semanas, as crianças voltam à escola e Allex volta ao escritório. Mas hein? Voltou tudo ao normal? Dificilmente. Nenhum normal é normal. Quando levei Laura ao optometrista, tivemos de esperar do lado de fora até o horário exato de nossa consulta. Só pudemos entrar usando máscaras e limpando as mãos (e o celular) com álcool. Nos deram uma plaquinha que dizia "higienizado"de um lado e "ocupado"do outro. Fomos instruídas a nos sentarmos naquelas duas cadeiras muito separadas uma da outra, designadas pela recepcionista, e nenhuma outra. Caso levantássemos, precisávamos colocar nossas plaquinhas na cadeira com o texto "ocupado" para cima, para que ninguém se sentasse numa cadeira não higienizada. E fiquei ali, olhando minha filha sentada quietinha, mãos nos joelhos, perninhas balançando, seus óculos embaçando a cada seu respirar por sob a máscara, e pensei: não há passeio de bicicleta no parque e mergulho no lago que me faça achar que voltamos ao normal. 

Claro, o PDF de 45 páginas que recebi da escola explicando as diretrizes para o retorno às aulas também não me anima muito. 

Mas vamos levando. Ando mais confinada ao apartamento por conta da fascite plantar, que me impede de correr e pelo clima de fim de verão, que começa a trazer as chuvas de outono. E por isso às vezes me pego sonhando com esse momento mágico de estar em casa, mas em silêncio, sozinha, concentrada em meu trabalho, sem ser interrompida por requisições de lanche ou discussões infantis por conta de disputadas peças de Lego. 

Os parquinhos foram reabertos. Crianças brincam como se nada estivesse acontecendo, apesar de parte delas usar máscaras. Os restaurantes, bares e cafés que têm pátios externos atendem clientes devidamente espalhados em mesas distantes, com cardápios eletrônicos baixados no celular e um bocado de cuidado. Garçons parecem soldadores com suas máscaras plásticas. 

É obrigatório cobrir o rosto em qualquer ambiente fechado. Ainda há muito receio de se encontrar com pessoas que não façam parte da "bolha"permitida pelo governo. 

Os números nos jornais se contradizem. Num dia, está tudo ótimo, no outro a segunda onda chegou. Acho interessante a metáfora da onda, uma vez que a sensação que permeia os dias é de estar à deriva. Durante as conversas, percebo que os moradores de Toronto largaram os remos e estão se deixando levar. Ninguém quer acreditar que já passou nem que ainda vai voltar. A gente se agarra à esperança da vida encontrar um porto seguro, mas não tira os olhos das nuvens, interpretando o movimento dos pássaros para tentar prever a tempestade. 

 Por isso, digo de novo, vamos levando. Fecha os olhos e se deixa flutuar um pouco. Vê aonde a corrente leva. Então senta, cata o remo e rema na direção que o coração manda. Vê se o sol ilumina um porto e vai. Quando cansar, deita no barco outra vez e respira.

 Faço planos sem fazê-los de fato. Jogo para o universo e desapego do resultado. Afinal, 2020 tem sido um ano de planos desfeitos, expectativas frustradas e imprevistos absolutamente escalafobéticos. Lutar contra parece desperdício de energia.

Até bolo tenho feito assim, de olhos fechados. Deu certo, ótimo.Não deu, também. "Tá tudo bem, mamãe, deve estar gostoso mesmo assim e a gente vai comer tudo!", diz Laura. 

Quando penso na volta às aulas, penso em adaptação e resiliência e um bocado de paciência. Quando penso no tempo e no silêncio que terei de volta para trabalhar, tento não criar muitas fantasias a respeito. Tento não deixar para fazer com calma daqui a três semanas o que posso fazer hoje no meio da bagunça de ter todo mundo em casa. 

E a energia sobressalente da corrida inexistente tem sido usada no trabalho. A frustração com os efeitos remanescentes da pandemia aqui e com a contínua balbúrdia no Brasil (me entristece demais ver como as coisas estão lá, e me dói demais o coração saber que minha família, meus amigos e também quem eu não conheço estão passando por tudo isso!) também tem sido canalizada de forma produtiva. Afinal, o que resta? Melhor pintar e escrever do que encher a cara. Se estou à deriva, posso olhar para as nuvens  e criar histórias para suas formas. Criar uma narrativa que comporte a insegurança e a preocupação que sinto e me ajude a manter a cabeça no lugar.

Meditar e trabalhar tem mantido a cabeça ereta e a mente calma. Passo minhas manhãs apanhando novas encomendas de ilustrações, escrevendo muito, enviando material para os cafés e galerias que podem expor minhas pinturas quando reabrirem integralmente, pintando novas obras para vender na minha loja e cuidando da publicação do meu livro.

O livro! Sim, o livro! Às vezes me perco naquilo que escrevo no Instagram (@anaelisagg) e escrevo aqui. O livro no momento está sendo revisado e eu estou avaliando propostas de cinco editoras diferentes. Vai sair! Meu livrinho lindo, que eu enrolei tanto tempo para terminar de escrever, foi terminado no fim de junho e vai sair! Ueba!

Mas o mercado editorial brasileiro no meio de toda essa crise está o ó do borogodó. Uma amiga do ramo já tinha me avisado que nenhuma editora está publicando autores desconhecidos sem o agora famoso "investimento do autor". O que é isso? É quando o autor banca parte dos custos de produção do livro, mas também ganha uma porcentagem maior das vendas do livro depois. Aquela história linda de editora comprando os direitos de reprodução do seu livro e te pagando adiantamentos meio que virou coisa de filme. É cada vez mais raro. 

Como esse tal "investimento" não é dinheiro de pinga, mesmo com o câmbio favorável aqui no Canadá, estou fazendo um saldão das minhas obras e do meu trabalho para bancar a publicação do livro. Todas as pinturas originais estão com frete grátis para o mundo todo. Frete grátis de verdade, não embutido no preço. Porque sei que o frete Canadá-Brasil é caro pra chuchu e torna a compra proibitiva, então estou arcando com isso para quem sempre me pergunta das obras ter oportunidade de finalmente ter uma. Sim, eu sei, e descobri da pior forma, que o correio canadense suspendeu os serviços de entrega para o Brasil. Mas a oferta continua valendo. As pinturas compradas estão sendo embaladas e separadas para serem enviadas assim que a situação do correio for normalizada e estou mantendo a comunicação aberta com quem está comprando originais.

Também disponibilizei para download mais de trinta pinturas e ilustrações, a preços super bacanas. Você recebe o arquivo em qualidade de gráfica e imprime em casa, em gráfica rápida ou em gráfica giclee, como quiser, eliminando a necessidade de frete ou o tempo de espera dos correios. E você pode até imprimir mais de uma cópia!

Além disso, há também a possibilidade de se comprar uma caricatura personalizada lá na loja, entregue por email em três dias, num valor abaixo do que eu costumava cobrar.

Para meus leitores e para quem me segue no Instagran, tem o cupom NOWORNEVER, que dá 10% de desconto na loja toda.

Toda a renda da venda do meu trabalho vai diretamente para o projeto do livro. A campanha começou na semana passada e já está indo maravilhosamente bem! Estamos quase na metade da meta, e sinto só uma gratidão-monstro por vocês, que me dão carinho e apoio há tantos anos! Que o Universo devolva a vocês em dobro todo esse amor que recebo de vocês. :)

Aliás, Gratidão-Monstro também está a venda lá na loja. Junto com todos os outros Sentimentos Monstros (Monster Feelings), todas as ilustrações da Nonna (inclusive umas novas), e o poster de Frutas e Verduras da época. E logo logo vai ter pré-venda do livro também. Vai lá dar uma olhada!

https://www.etsy.com/ca/shop/AnaElisaGranziera

Enfim. Pensar no meu livro publicado tem me empolgado um bocado e tirado minha cabeça das notícias ruins e estranhezas do mundo.

Enquanto isso, o verão segue, assim, meio esquisito, sem muito jeito de verão. Dia cinco de agosto fizemos três anos de Canadá. E com esse aniversário, veio o ventinho gelado à sombra que anuncia que o verão já está fazendo as malas para abrir espaço para o outono. A coberta já voltou para a cama e a água já está fria para se molhar. Daqui a três semanas, Allex volta para o escritório e as crianças voltam às aulas. Ontario está entrando no estágio três de abertura, e muita coisa volta ao normal sem estar normal coisa nenhuma.

Eu, no meu barquinho, vou mantendo tudo o mais simples que posso. Sem grande invencionices. Tenho amigas que, durante a pandemia, andam lançando mão de receitas complexas e reconfortantes. Na minha cozinha, ao contrário, a simplicidade tem sido rainha absoluta. As frutas têm se mantido frutas, os legumes e verduras recebem o tratamento básico da influência mediterrânea e os bolos tem sido aqueles que posso misturar com uma colher. Preparei um muito simples, com um pouco de fubá e limão, que ficou pronto em meia hora e ficou delicioso. 

Até as carnes, que só tem entrado na cozinha aos fins de semana, tem se beneficiado da política da simplicidade. Salve a churrasqueira, querida amiga. A linguiça é feita na grelha sem grande pompa, para acompanhar os legumes que, depois de assados, são temperados apenas com azeite e sal. Funciona com cogumelos, com cebolas, com tomates, com abobrinhas e berinjelas, com aspargos e com batatas. Quem precisa de mais complicação que isso?


No dia dos pais resolvemos inovar e tirar o escorpião do bolso e colocar um peixinho na grelha: um filé de salmão selvagem, de British Columbia. Acho a coisa mais linda esse coral intenso do salmão selvagem, tão diferente do salmão de cativeiro! Peixe aqui é bastante caro, e por isso quase nunca compro. Quando compro, no entanto, tento levar para casa opções de pesca sustentável e evito peixe de cativeiro. Aqui no Canadá tem a maior briga para impedir criação de salmão, porque é poluente e interfere no ciclo natural do salmão selvagem. 

Enfim.

No caso do peixe, achei que um tempero ia bem. De novo, simples, simples. Piquei as partes brancas de duas cebolinhas, um punhado de salsinha, juntei com raspas e uma espremidinha de limão, sal e pimenta do reino, um fio generoso de azeite, e espalhei essa mistura dos dois lados do peixe. Deixei o bichinho descansando na assadeira por uma meia hora, enquanto a churrasqueira esquentava. Quando estava bem quente, coloquei o peixe na grelha com a pele para baixo. A churrasqueira aqui de casa agora elétrica e tem tampa. Fechei a tampa para o calor circular e assei por cinco minutos. Dei uma olhadinha, chequei a carne com o garfo, e deixei mais cinco minutinhos, até estar cozido e com a pele crocante. 


Ficou MUITO bom. Acompanhou milho verde também preparado na churrasqueira e uma caipirinha. Delicioso almoço de dia dos pais. :)


A gente senta no barco, toma nossa caipirinha, trabalha, passa tempo junto, se abraça, se beija, sonha sonhos juntos e cria projetos pro universo, e lembra que a vida continua passando mesmo durante as estranhezas desse ano de 2020, então é bom tentar aproveitá-la como der. 

Laura me ajudou a fazer esse bolo simples e gostoso, e eu tento não pensar que mês que vem volto para a rotina doida de ficar preparando almoço de criança às sete da manhã para levar para a escola. Tento não pensar no caminho da escola novamente, durante o qual batia com eles a lista da mochila. Pegou o almoço? Pegou o casaco? Pegou o óculos de natação? Pegou a agenda? Pegou o livro da biblioteca? 

Pegou a máscara?

Pegou o álcool?

Lembra de não encostar no rosto.

Lembra de ficar longe dos colegas.

Boa aula.

Suspiro.

Voltemos ao bolo, que tava mais legal.

 

BOLO DE FUBÁ E LIMÃO

(do site Epicurious)

Ingredientes: 

(glacê)

  • 1 1/2 xic. açúcar de confeiteiro (usei açúcar comum, mas ele não dissolve tão bem)
  • 2 colh. (sopa) suco de limão (siciliano ou tahiti)
(bolo)
  • 1 1/2 xic. farinha de trigo
  • 1/3 xic. fubá
  • 3/4 xic. açúcar
  • 3 1/2 colh. (chá) fermento químico em pó
  • 1/2 colh. (chá) sal
  • 3/4 xic.leite
  • 1/4 xic. suco de limão
  • 2 ovos grandes
  • 1 colh. (sopa) raspas de limão
  • 3/4 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 1/2 xic(115g) manteiga sem sal, derretida

Preparo:

  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte e enfarinhe uma forma redonda de 21cm,forrando o fundo com papel manteiga.
    Numa tigela grande, misture as farinhas, açúcar, fermento e sal.
  2. Em outra, misture com um fouet o leite, suco de limão, ovos, raspas de limão e baunilha, até que fique homogêneo. JUnte a manteiga derretida e misture bem.
  3. Junte a mistura liquida à de farinhas, e incorpore com uma espátula apenas até que não se veja mais farinha.
  4. Despeje na forma e leve ao forno por 30minutos, ou até que esteja ligeiramente dourado e as laterais se descolem da forma. Um palito inserido no meio deve sair limpo.
  5. Deixe esfriar por dez minutos antes de desenformar. 
  6. Para o glacê,misture o açúcar e o suco de limão e espalhe por sobre o bolo já frio. O bolo se mantém bem por alguns dias em temperatura ambiente.

 




domingo, 26 de julho de 2020

De um pé e de um muffin




Meus pés me sabotam. Ou me ensinam. Muito provavelmente os dois ao mesmo tempo, num movimento entrelaçado e interdependente.

Naquela manhã acordara tensa, sentindo a dor na planta do pé irradiando pela parte de trás da perna até o meio das costas, transformando o espaço de energia livre entre minhas omoplatas em um vale duro e seco, constrito e crispado, feito chão de deserto. Um som agudo atravessava minhas têmporas de um lado ao outro. O ar de verão grudava na pele. Bebi meu café sem vontade enquanto acalmava os ânimos exaltados das crianças, que discutiam sobre coisa nenhuma, exaustos do confinamento em si mesmos.

Minha mente tentava, como fizera nos últimos meses, desde o fatídico dia de março em que anunciaram a quarentena, montar as peças de nossa rotina. Quero passar o dia todo fora de casa, pedira minha filha. Como fizemos no ano passado. Suspiro. Ano passado eu tirara férias com eles. Ano passado eu usara seu tempo de escola para pintar e montar exposições e vender minhas pinturas pela cidade. Usara seu tempo na escola para trabalhar e então poder relaxar com eles no verão, criá-los, minhas criaturas, durante esses dias longos e quentes, tão preciosos numa terra onde se têm oito meses de inverno. Mas este ano não tivera o seu tempo de escola. O tempo fora quebrado e truncado, os projetos adiados, os cafés e galerias onde exibiria meu trabalho foram fechados, as horas de que precisava desapareceram pelos dedos feito areia fina.

Mas ainda podia correr. Correr era meu tempo. Meus pés em movimento pela terra, sentindo o mato e  o vento, a mente desperta e alerta na recriação da Vida Tranquila que eu construíra ao longo dos anos e que agora andava escondida por entre os becos do labirinto da Pandemia.

Quebrar o pé teria sido um desastre, não fosse a mente forte que andava no fluxo. Adapta-se. E montada na bicicleta, levei meus filhos em pequenas aventuras por essa cidade-mato-e-água. Os dias tinham aquele gosto de verão. Mas era um gosto temporário, um gosto ansioso de quem não vê a hora de meter os pés na terra novamente e correr longe.

E eles puderam correr. Por uma semana. E então a musculatura cansada fraquejou numa tarde quente e um minúsculo acidente da calçada torceu meu tornozelo. Não me soava grave o pulsar daquela dor, ignorável comparada aos roxos graves dos ossos quebrados. E depois de poucos dias, os pés voavam no mato outra vez.

Mas a dor que girava no tornozelo caminhava. Girava por cima do pé, dançava até o joelho. Passeava como quem não quer nada até o meio das costas e descansava, às vezes, nos ombros, trazendo ao pescoço  lembrança das pequenas frustrações. Quando as lições da escola acabaram e as crianças eram férias de verão, aquela dor resolvera fincar raízes na planta do meu pé. E cada dia de corrida somava ao corpo as dores de uma dúvida.

Queria correr. Mas a corrida truncava o dia. Cansava. Doía. Queria terminar meus projetos. Rápido. Mas isso excluía meus filhos de mim. Cansava. Doía.

Pensava naquelas três semanas de pé quebrado, nas aventuras de bicicleta, e o fantasma dos verões passados me acenava, ansioso, desejoso de voltar e fazer parte. Mas eu precisava abrir mão.

Naquele dia sentei-me à beira do lago, e, num esforço mitológico, olhei meu rosto na água. Cenho franzido,como se pudesse espremer pela testa a tensão suprema que se formara. Tensão de elástico velho, um segundo antes de romper. Quero ser essa pessoa produtiva. Quero fingir que não existe pandemia, que não há quarentena, que o meu tempo é meu e que é possível viver ao mesmo tempo essa vida linear e a vida múltipla. Quero fingir que priorizar não significa escolher um só, e que é possível que todos os seus fragmentos tenham igual importância.

Mas isso é infantil.

Há que se escolher.

Quando a água tremula meu reflexo, levanto o rosto, e enxergo aquela pata deslizando sobre o lago, trazendo consigo nove patinhos de brinquedo, pequenas esferas de uma penugem castanha e rajada de amarelo. Eles confiam todos na mãe e a seguem na minha direção. Surpreendo-me ao vê-los aos meus pés, a menos de um braço de distância. Fosse menos respeitosa, poderia apanhar um deles nas mãos para sentir nos dedos o bater forte de seus coraçõezinhos sob as peninhas. Ali eles ficaram por um tempo, numa observação curiosa de quem tenta entender uma aparição. E tão graciosa e casualmente como vieram, foram.

Sorrio.Talvez seja hora de parar de lutar contra. Parar de me agarrar a uma rotina que não serve mais. Parar de maltratar esses pés que buscam descanso dessa corrida infinita na roda. Parar, sair da roda e enxergar a gaiola. Abrir a porta e sair.

Enquanto caminho de volta para casa, avisto um tronco de árvore, onde alguém cortou a frase do primeiro livro que li para meus filhos: I LOVE YOU TO THE MOON AND BACK.

O universo tem enviado sinais claros demais para serem ignorados.

Na manhã seguinte, chamei as crianças para preparar muffins. Havia bananas maduras e coco ralado. Meti num pote alguns bolinhos ainda mornos e saímos de bicicleta. Para onde vamos? Não sei.Só vamos. Meu jeito favorito de ser mãe deles. Só vamos sem pressa e sem planos. Preciso sair da roda para ensiná-los a nunca entrar nela.

Paramos onde eles querem parar, explorando os matos e os lagos e as praias. Vendo esquilos e pássaros, e uma marmota, até. Paramos para brincar com pedras e colher flores,e comer muffins e melancia. Eles recolhem penas e conchas. Falamos do mundo. Passamos o dia do lado de fora, saboreando o verão fugidio e passageiro como se fosse o último dia de nossas vidas.

Quando vou ao médico, ele diz o que eu já sabia. Fascite plantar. Uma inflamação na pele que recobre o músculo da planta do pé. Você pode andar de bicicleta, mas não pode correr nem andar muito. Tudo bem. Eu já sabia. Minha ultramaratona foi cancelada. E eu já tinha escolhido parar. Parar por um tempo. Fechar os olhos e curtir criar minhas criaturas nesse verão, como nos outros anos. Criar seres humanos. Do resto dou conta depois. De outro jeito. De alguma forma. Eu dou um jeito. A prioridade agora é criar essa Vida Tranquila com eles, para que eles possam criá-la para si mesmos depois.

Está tudo bem.

Meus pés me sabotam. E me ensinam. Como filhos. Fazendo você rever seus planos, suas ideias, seu mundo. Tropeçando seu ego e pisando firme no chão para se reerguer melhor. Sou uma mãe melhor sendo feliz com eles.

Voltamos para casa e, enquanto eles leem um livro, apanho o computador, os papéis, os pincéis, o caderno, e o trabalho flui, livre, produz frutos inesperados e pequenas alegrias que eu não via antes. Criar nossa Vida Tranquila fertiliza o solo onde meus pés descansam. Largo o mato para crescer livre e ele produz flores inesperadas.

A Vida Tranquila flui. Flui como água de degelo na primavera, irrigando os vales secos e relaxando os músculos. Respiro. O ar do verão traz uma brisa refrescante de olhos fechados sorrindo sob o sol.

Esse homem que eu amo me traz um espresso "com civilidade", como ele chama o pires e o pequeno chocolate que acompanha o café quente. Um beijo e um sorriso. Amor. Cuida do teu pé. Pode deixar, eu vou.

....

MUFFINS DE BANANA COM COCO
(quase nada adaptado do site Epicurious)

Ingredientes:
  • 1 1/4 xic farinha de trigo
  • 1 colh (chá) fermento químico em pó
  • 1/4 colh (chá) sal
  • 2 bananas grandes, bem maduras, amassadas (cerca de 3/4 xic)
  • 100g (1/2 xic) manteiga se sal, derretida
  • 2/3 xic. açucar + 1 colh. (chá) para polvilhar
  • 1 ovo grande
  • 1/2 colh (chá) extrato de baunilha
  • 3/4 xic. coco ralado sem açúcar

Preparo:
  1. Forre uma forma de muffins comum com 12 cavidades com forminhas de papel, ou unte e enfarinhe as cavidades. Pré-aqueça o forno a 190oC.
  2. Numa tigela grande, misture com um fouet a banana, o ovo, a manteiga derretida e a baunilha.
  3. Acrescente os 2/3 xic. açúcar e misture até que o açúcar pareça dissolvido.
  4. Junte 1/2 xic. do coco ralado e misture.
  5. Acrescente a farinha, o fermento e o sal e misture apenas até que a farinha desapareça.
  6. Distribua a massa entre as formas. Polvilhe o restante do coco ralado por cima da massa e o açúcar.
  7. Leve ao forno por 20 a 25 minutos, até que estejam dourados e um palito saia limpo quando inserido em um dos muffins.
  8. Deixe esfriar sobre uma grade um pouco.

Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails