segunda-feira, 4 de junho de 2012

Cavalinha marinada com beterrabas e um blog


Buscando uma receita melhor de cream cheese caseiro na net, um site levando a outro, levando a mais outro, acabei por acaso no Tipsy Baker, um blog americano de culinária sem receitas. A autora percorre toda a sua enorme coleção de livros de culinária, preparando pratos e fazendo uma crítica ao volume, quase sempre bastante justa e frequentemente bem humorada. Além de uma leitura divertida, é uma boa referência (ainda que não uma palavra final) antes de decidir por comprar ou não determinado livro.

Foi muito interessante, no entanto, ler suas críticas a respeito de livros que também tenho. Fui obrigada a concordar com o que ela diz sobre os livros da David Tanis, que são lindos mas nem sempre práticos para o dia-a-dia. No entanto, enquanto ela não conseguiu encontrar nada ali que valesse o livro, para mim o que vale é a lembrança de que às vezes basta um punhado de uvas de sobremesa ou um belo pedaço de um bom queijo. Em meio a ingredientes caros e cardápios montados, uma ideia de simplicidade fica sobrevoando seus pensamentos.

Foi o A Platter of Figs que me ensinou a cozinhar ovos decentemente, com lindas gemas cor-de-laranja e cremosas, e minha receita favorita de repolho cozido saiu do Heart of The Artichoke. Isso é o bastante para mim.

O efeito mais intrigante de ler as críticas, contudo, foi a vontade que tive de abrir novamente alguns dos livros que andavam empoeirados na estante. Foi o caso de Tender, do Nigel Slater, que ela julga lindíssimo mas nada essencial. Mais informações botânicas do que eu gostaria de ter ao estar morando num apartamento onde não posso plantar aspargos. Mas indiscutivelmente um lindo livro.

Folheando novamente suas páginas, buscando os ingredientes sazonais que me esperavam na cozinha, procurei algo diferente para cozinhar. E encontrei essa receita de cavalinhas (mackerel) marinadas em uma espécie de picles rápido de beterraba. Pareceu suficientemente diferente, eu tinha todos os ingredientes menos o peixe, e era exatamente o tipo de receita estranha tipo "o que eu comi na terça-feria com o que encontrei na geladeira" que ela mencionara no blog.

E lá fui eu. Primeiro fiquei contentíssima por levar minhas cavalinhas já limpas e filetadas para casa por apenas seis reais. Que maravilha é comprar peixes baratos para variar. Então, chegando em casa, liguei o forno para assar minhas beterrabas. E, ao ler a receita mais atentamente... percebi que comeria peixe frio. Hmmmm... ok, então. Era para ser um prato de verão, que coincidentemente tem ingredientes também disponíveis no outono. Bom... peixe frio, então.

Quando o peixe foi para a frigideira, o aroma foi... forte. Bastante forte. A casa toda ficou com o inconfundível cheiro do porto de Santos. [Segundo me lembro do porto de Santos há muitos anos atrás. Se algum santista lendo isso me disser que não, o porto de Santos não tem mais cheiro de porto de Santos, acredito e peço desculpas, mas você há de entender o por quê da comparação e me desculpar também.] Cavalinhas são um fishy fish. Então se você acha que salmão já empesteia o bastante sua casa, ignore essa receita. Se você gosta de comer algo gostoso independente da puzza que fique impregnada nas suas cortinas, vá em frente. ;)

Por um instante suspirei de alívio por ter decidido preparar aquele prato apenas para mim, pois Allex não suporta peixes fortes. Enquanto isso, o aroma da marinada, aquele caldo ácido e cheio de legumes e temperos estava inebriante. Ao menos para alguém que gosta de picles.

Quando me servi do peixe frio, marinado, percebi que seu cheiro não estava mais forte. E seu sabor parecia incrivelmente equilibrado pela acidez do caldo e pela doçura dos legumes. Mesmo num dia frio, aquele "peixe com salada" estava delicioso, e foi apenas por amor que consegui forças para guardar pedacinhos da pele crocante do peixe para meu cachorro salivando ao meu lado.

Referências são boas, mas como se pode ver, não são palavras finais. :)

CAVALINHAS MARINADAS COM BETERRABSAS
Tempo de preparo: 1h para assar as beterrabas, 20 min. para o restante e 30 minutos para deixar esfriar e marinar.
Rendimento: 4 porções

Ingredientes:
  • 4 beterrabas médias
  • 4 cavalinhas, limpas e filetadas e com pele
  • 50ml vinagre de sidra
  • 120ml suco de limão
  • 2 folhas de louro
  • 1 cenoura pequena fatiada bem fino
  • 1 cebola fatiada bem fino
  • 1 dente de alho pequeno, descascado e ligeiramente esmagado
  • 1 colh. (chá) açúcar
  • 1 colh. (chá) sementes de coentro
  • 12 bagos de zimbro
  •  5 bagos de pimenta-do-reino
  • 80ml azeite de oliva
(Obs: o autor usa também 5 bagos de pimenta-do-reino branca, e endro/dill fresco; omiti ambos e não fizeram falta.)

Preparo:
  1. Aqueça o forno a 200ºC, lave bem as beterrabas com casca e embrulhe em papel alumínio. Leve ao forno por uns 50 minutos, até que estejam macias.
  2. Abra o embrulho, deixe que esfriem o bastante para que consiga manipulá-las, retire-lhes a casca e corte-as em fatias redondas.
  3. Numa panela pequena, coloque o vinagre, o suco, a cenoura, a cebola, o alho, o açúcar, o zimbro, o coentro e 150ml de água. Leve à fervura. 
  4. Junte a pimenta e 1 colh. (chá) sal. Junte o azeite e deixe ferver em fogo baixo por um minuto ou dois, até que a cebola pareça macia. Desligue o fogo.
  5. Aqueça um fio de azeite numa frigideira bem grande. Tempere os filés de cavalinha com sal e pimenta-do-reino moída na hora, e coloque-os na frigideira, pele para baixo. Cozinhe em fogo médio-alto até que as peles estejam bem douradas e desgrudem fácil da frigideira. Vire os filés e cozinhe do outro lado até que dourem um pouco. 
  6. Retire e disponha numa travessa rasa. Junte as fatias de beterraba à marinada e despeja-a sobre os peixes. Deixe que esfriem. Sirva com uma salada de agrião e/ou pão preto com manteiga.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Orzetto alla Trentina

Um dia eu encontro uma sopa italiana que fotografe bem. :P
O dia estava cinzento e chuvoso, pisos de pedra molhada refletindo o céu prateado, e Trento era linda e calma. Minha cunhada e seu marido foram nos buscar na estação de trem e haviam reservado um almoço em um restaurante típico trentino. É sempre um bom sinal dar de cara com o dono do restaurante terminando um enorme prato de spaghetti no balcão do restaurante.
 Minha cunhada nos avisou que comprara uma seleção de antipasti para a noite (maravilhoso Speck, Prosciutto, deliciosa Sopressa Veneta e uma Mozzarella e Ricotta fresquíssimas, de chorar de boas*); e por isso fomos direto ao prato principal.

Tão bom antipasto, que me lembrei de fotografar apenas quando já havíamos comido metade.
Quando pedi pelo Orzetto alla Trentina, o marido de minha cunhada ficou inconformado: "Mas é comida de dieta!" E eu, pensando apenas na cevada (orzo), dei de ombros e pedi mesmo assim. Não sei exatamente o que esperava que fosse. Apenas sei que quando o prato de sopa de cevada com batatas e cenouras foi colocado à minha frente, senti aquela espécie de vergonha que se sente quando se dá conta de que você foi o idiota que pediu a pior coisa do cardápio.

Veja bem: eu ADORO sopa de cevada com legumes. Mas essa me parecia familiar demais, do tipo "faço em casa todo dia", e me soou como um desperdício de refeição de férias, principalmente ao olhar o apetitoso Strangolapretti do Allex: pequenas almôndegas de pão, queijo e verdura cozidas e banhadas num mar de manteiga.

Essa coisa linda de ver montanhas em torno da cidade...
Quando provei de minha sopa, ela estava gostosa. Mas confirmou meu temor: tinha gosto de sopa feita em casa; particularmente na MINHA casa. Já estava olhando com olhos gulosos os pratos ao meu lado, quando, de repente, o senhor comedor de spaghetti aproximou-se de mim, para ralar uma comedida mas certeira porção de queijo sobre minha sopa. Experimentei de novo.

Era outra sopa. Completamente outra. E de repente eu estava feliz novamente com meu prato, e pensando como um único ingrediente pode trazer todos os outros para um mesmo coro harmônico. E como era bom aquele queijo. E raspei meu prato com a ajuda de belos nacos de pão. Tão focada, esqueci-me de perguntar que queijo era.

E fiquei com aquilo na cabeça, aquilo do bom ingrediente, e como um queijo de pacote, pura serragem, não teria feito absolutamente nada por aquele prato. No fim, no entanto, era um conjunto de bons indivíduos: um caldo que tinha gosto de caseiro, cenouras doces, batatas com gosto de batatas (e só quem come batatas com gosto de batatas pode saber quão não-batatas algumas batatas são), grãos de cevada macios mas al dente, um perfume de ervas aromáticas, uma base de cebola dourada em azeite. Não consegui sentir qualquer nuance de carne, no entanto, então me surpreendi ao vê-la na receita de Marcella Hazan, ao pesquisar em casa, e não me senti menos autêntica ao omiti-la na versão que preparei em casa.

A sopa repetida agora em São Paulo ficou igualzinha àquela, e ainda que o parmesão uruguaio não tenha a complexidade de sabor e a doçura do queijo que foi esparsamente polvilhado sobre meu prato em Trento, o efeito de comunhão com os outros sabores foi o mesmo.

Vinha evitando preparar sopas para o pequeno caçador de perigos, pois querendo comer sozinho, pressentia o caos abominável. Mas ele adorou seu orzetto alla trentina, e raspou o prato, comendo boa parte dela quase sozinho, com mamãe ajudando a levar a colher para o lado certo.

ORZETTO ALLA TRENTINA
(Adaptado do ótimo Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica, de Marcella Hazan)
Tempo de preparo: cerca de 1 hora
Rendimento: 4 porções

Ingredientes:
  • 1 1/4 xic. cevadinha
  • 500ml caldo de legumes caseiro
  • 1/4 xic. + 2 colh. (sopa) azeite de oliva extravirgem
  • 1/2 xic. cebola picada
  • 1/2 colh. (chá) alecrim seco ou 1 colh. (chá) alecrim fresco picado
  • 1 colh. (chá) salsinha picada
  • 1 batata média
  • 2 cenouras pequenas ou 1 grande
  • sal e pimenta-do-reino a gosto
  • queijo parmesão de boa qualidade (do tipo saboroso o suficiente para comer pedacinhos depois da refeição)

Preparo:
  1. Coloque a cevada e o caldo em uma panela grande e termine de completar com água até que haja uns 7-8cm de líquido por cima da cevada. Leve à fervura branda e cozinhe por cerca de meia hora, ou até que a cevada esteja cozida mas não empapada.
  2. Enquanto isso, numa frigideira pequena, aqueça todo o azeite e refogue a cebola em fogo médio, até que doure, sem queimar. Junte o alecrim e a salsa, mexa bem e depois de um minuto, desligue o fogo. 
  3. Descasque a batata e a cenoura, lave em água fria, seque e corte em cubinhos pequenos (para que cozinhem rápido). Cada um deve render cerca de 2/3 xícara.
  4. Quando a cevada estiver no ponto, junte a batata, a cenoura e o conteúdo da frigideira, temperando com sal e pimenta a gosto. Seja generoso com a pimenta, mas vá acrescentando o sal aos poucos, para que a sopa não continue reduzindo e acabe salgada demais. 
  5. Continue cozinhando por mais trinta minutos, ou até que as batatas e as cenouras estejam macias, acrescentando mais água se a sopa parecer muito seca. Ela não deve ficar nem muito grossa, nem muito rala.
  6. Sirva imediatamente, polvilhada com parmesão e mais um fio de azeite. (A sopa pode ser preparada com um ou dois dias de antecedência e reaquecida, mas o parmesão só deve ir ao prato na hora de servir.)

* Que eu não sou vegetariana propriamente dita todo mundo sabe, pois vira-e-mexe aparecem receitas de peixe por aqui. Mas como até hoje eu me torturava por, durante minha primeira viagem à Itália, ter ido a Parma e não ter comido Prosciutto, resolvi mandar minha "dieta 90% vegetariana" (acho que esse é um termo mais correto) e me esbaldar com os emutidos italianos. Estava tudo uma delícia, mas com certeza me deu uma base de comparação de como meu corpo funciona – ou NÃO funciona – com consumo diário de carne, mesmo em pequenas porções.

Cozinhe isso também!

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