sexta-feira, 1 de agosto de 2008

O bolo de chocolate e tangerina que nunca mais comerei

No meio da bagunça que são os recortes e anotações dos cadernos de minha avó, encontrara um pequeno pedaço de jornal ensinando a preparar um "doce de casca de tangerina", coisa comum nos "cadernos femininos" dos jornais antigos, pois me parece que as gerações passadas eram muito mais inclinadas a se preocuparem em aproveitar cada pedacinho de comida do que hoje.

Conforme fui comendo as tangerinas da minha cesta orgânica, no começo do mês passado, fui guardando as cascas, em um pote hermético, dentro da geladeira, interessadíssima em tentar o doce (que pelo preparo, parecia uma geléia), apesar das instruções e medidas vagas da receita. Pois, enquanto as medidas de açúcar e de água estavam ali, o jornal falhava em informar quantas mexericas, afinal, deveriam ser usadas. Eu guardara quatro cascas, e para mim era o suficiente.

Entre trocar a água de molho das cascas para tirar o amargor da parte branca e o cozimento propriamente dito, a empreitada do doce de casca durou sete dias. Ao fim do sexto dia, eu tinha uma espessa e perfumadíssima geléia laranja-escura esfriando na panela. Pensei em guardá-la naquele momento, mas decidi seguir o conselho da receita, esperar um dia inteiro e cozinhar mais uma vez. Quem me dera não tê-lo feito, pois ao ver como o preparado endurecera na panela, resolvi enfiar-lhe a colher de pau para tentar mexê-lo, temendo que o fundo queimasse antes que o restante amolecesse. Entristecida, observei enquanto a geléia cristalizava, como caramelo feito errado. E minha geléia translúcida ficou opaca.

Dei de ombros e resolvi prosseguir. Esterelizei um vidro grande com tampa, despejei-lhe o doce, fechei e fervi o pote. Quando ele esfriou, no entanto, fiquei na dúvida. O dia estava quente e tive medo de deixar aquela, que era minha primeira conserva, na despensa. Erroneamente, meti-a na geladeira.

Assim que vi o fim da torta de maçã, corri para descobrir qual seria o próximo doce. Queria alguma coisa com chocolate, uma vez que dos meus cookies comera apenas um [exatamente o tipo de coisa que tento explicar para as pessoas, quando elas se perguntam como diabos não estou gigantesca e diabética; saio distribuindo por aí e como muito pouco do que eu preparo]. Lembrei-me imediatamente de uma receita de Nigella que levava geléia e que há muito eu queria fazer. E, claro, pensei imediatamente no meu potinho de doce de casca, imaginando o perfume da tangerina no bolo de chocolate, uma vez que só o preparo da geléia fizera meu marido esticar a cabeça para dentro da cozinha umas cinco vezes, perguntando que cheiro bom era aquele.

No entanto, ao tirar o pote da geladeira, a primeira infeliz constatação: o doce não apenas estava cristalizado, mas estava completamente aprisionado dentro do vidro, duro e ressecado. Como faria com mel, coloquei o pote numa panela com água e fervi-o por um looooooooooongo tempo, até que o conteúdo estivesse mole o suficiente para ser retirado a duras colheradas de dentro do recipiente.

O bolo é o mais fácil que já produzi. E ele de fato ficou incrivelmente perfumado. As cascas, muito grandes, acabaram endurecendo um pouco mais do que eu previra, mas de modo nenhum estragaram a experiência. Se sua forma for antiaderente como a minha (quero jogar todas fora e comprar de alumínio), forre o fundo com papel vegetal, para evitar que queime. Como não pretendo fazer o doce novamente (pelo menos não tão cedo), acredito que uma boa geléia de tangerina, com ou sem pedaços, o substitua lindamente. A receita original usava geléia de laranja, mas a tangerina ficou excepcional, e me deu vontade de sempre usar a fruta e chocolate juntos. Suplico para que você use uma geléia de tangerina de qualidade, porém, sem conservantes, sem xarope de milho. E, antes que os comentários se encham de pedidos pela receita do doce de casca, aviso desde já: preciso ainda acertar a mão na receita e criar uma versão mais precisa e confiável.

Mas é engraçado pensar que, a não ser que faça o doce de novo, exatamente como esse o bolo jamais ficará novamente. De modo que nunca mais comerei especificamente esse bolo de chocolate.

BOLO DE CHOCOLATE E TANGERINA
(ligeiramente adaptado do livro How to be a Domestic Goddess)
Tempo de preparo: 1 hora
Rendimento: 1 bolo de 21cm


Ingredientes:
  • 100g de manteiga sem sal
  • 120g de chocolate amargo, cortado em pedaços
  • 1 xíc. cheia de geléia de tangerina
  • 1/2 xíc. de açúcar cristal orgânico
  • 1 pitada de sal
  • 2 ovos extra-grandes orgânicos
  • 1 xíc. de farinha de trigo
  • 1 colh. (chá) de fermento químico em pó
  • 1/8 de colh. (chá) de bicarbonato de sódio
Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180ºC. Unte e enfarinhe uma forma de mola de 21cm. Forre o fundo com papel manteiga, se a forma for antiaderente.
  2. Coloque a manteiga em uma panela de fundo grosso e leve ao fogo baixo até derreter. Junte o chocolate e deixe amolecer por alguns instantes. Apague o fogo e mexa com uma colher de pau até que esteja homogêneo.
  3. Junte a geléia, o açúcar, o sal e os ovos e mexa até que tudo esteja bem incorporado.
  4. Peneire a farinha, o fermento e o bicarbonato. Junte aos poucos à mistura de chocolate, mexendo bem. Despeje na forma e asse por 40-50 minutos, até que um palito inserido no bolo saia limpo.

L´Aperô, bistrot de verdade

Fazia tempo que não falava de nenhum restaurante por aqui. Talvez por não ter conhecido nada que valesse a menção de fato, ou porque a noite fora tão ruim que não queria reviver os pratos requentados e risotti cozidos além da conta.

Ontem, no entanto, foi exceção.

Foi graças a um post do Pobre Também Come que coloquei meus pés no L´Aperô. Só tenho a agradecer pela indicação. O L´Aperô é um pequeno bistrot da Vila Madalena; chamá-lo de "charmoso" é um eufemismo para sua rusticidade, quando comparado a outros lugares de São Paulo que se dão o mesmo nome. Como nunca fui à França [*suspiro*], não tenho como saber o que seria mais autêntico, um bistrot simples ou um bistrot chiquérrimo. Só tenho cardápios como referência.

O menu é enxuto, ainda que não tanto quanto de outros restaurantes da mesma categoria: meia dúzia de saladas com a mesma base e que se diferenciam nos detalhes, meia dúzia de aperitivos e meia dúzia de carnes, com acompanhamentos à escolha do freguês.

Pára tudo.

Essa mania de restaurante de fazer o cliente escolher se quer vagens, batatas de diferentes formas ou o raio que o parta com seu franguinho grelhado me irrita sobremaneira. Se estou pagando pelo prato, nada me parece mais justo que esperar que o chef tenha o discernimento (não eu) de escolher o que combina melhor com minha proteína. Costumo sair decepcionada desse tipo de lugar, uma vez que, dentro desse esquema, os acompanhamentos são sempre insossos e neutros, sem tempero, de modo a combinar com a omelette de roquefort, o quiche de alho-poró, o franguinho grelhado, o salmão com alcaparras e o filé mignon do cardápio.

Suspirei, esperando mais um desastre culinário e, dentre todos os outros pratos nada vegetarianos, escolhi a lula do Chef, com batatas no alho e tomates à provençal, apenas porque não estava com vontade de comer salada. Meu amigo ficou com as coxas de pato confit e batatas no alho.

Em oposição a todos os outros bistrots em que estive até hoje, o prato chegou farto e rústico, sem frescuras, sem apresentações minimalistas e pretenciosas. As batatas eram fatiadas fino, douradas e sequinhas, crocantes por fora e macias por dentro, salgadas na medida certa e com aroma forte e delicioso de alho. As duas grandes metades de tomate recheados estavam incrivelmente bem temperadas. Já comi muito tomate à provençal com gosto de água. Esses eram excelentes, e a doçura da fruta e a refrescância das ervas casava bem com o sabor mais potente das batatas. A lula era macia, tenra, envolta num molho espesso e escuro de tomates, alcaparras e muitas outras coisas, e fui comendo tudo com gosto, um pouquinho de cada porção, na mesma ordem, para que nenhuma acabasse antes da outra, e tudo durasse mais tempo. Meu amigo também parecia bastante feliz com seu prato.

Ao contrário dos acompanhamentos insossos que esperava, esses pareciam ter sido feitos especialmente para aquela lula, uma vez que todos os temperos se completavam maravilhosamente. Foi, com certeza, a mais agradável surpresa dos últimos tempos, em termos de restaurante.

Pedi um bolo ópera de sobremesa, visualmente bem executado, mas um pouco doce demais para mim. Senti falta de um chocolate mais amargo, 70%, mas acho que é uma questão de paladar.

Único ponto negativo: o couvert é apenas um pratinho pequeno de amendoins. Senti falta (justo quem) de um cesto de pão enquanto esperava e, principalmente, para chuchar no molho da lula, no fim da refeição (nem um restaurante 5 estrelas e a presença do Papa me impediriam de chuchar pão em qualquer molho residual no meu prato, não importa o que digam os especialistas em etiqueta).

Durante todo o excelente jantar, dois homens mais velhos conversavam (e discutiam) animadamente em francês, falando sobre o melhor molho bérnaise que já haviam comido, e como suas mães faziam determinado prato em sua infância na França, etc e tal. De ouvidos atentos a qualquer oportunidade de treinar meu francês abandonado há anos, eu absorvia aquelas palavras, reconhecia algumas frases, me deixava levar pelos sons.

"Acho que eles são contratados para passar a noite aqui, conversando em francês, prá criar o ambiente", brinquei, enquanto pagávamos a conta.
"É que nem o cara de acordeon no La Tartine", emendou.

O melhor de tudo? Uma conta justa.

Vá lá:
L´Aperô
Rua Mourato Coelho, 1343, Vila Madalena

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