segunda-feira, 30 de junho de 2008

A saga do bolo de laranja da vovó


Quando minha avó paterna me deu todos — eu disse TODOS — os seus cadernos e recortes de receitas acumulados durante seus 90 anos de idade, não pude fazer outra coisa além de agradecer muito e prometer-lhe um de seus bolos. Ao que ela observou prontamente: "O de laranja é muito bom!"

Eu não tinha opção, tinha?

No sábado de manhã, espalhei os cadernos e toda a papelada desconjuntada sobre o sofá, observando os recortes amarelados e muitas vezes esfarelentos, com reportagens inusitadas de 50 anos atrás, e os cadernos velhos escritos em caneta azul, uma receita após a outra, títulos misturando-se a observações sobre o preparo, rabiscos à lápis por cima, corrigindo as proporções dos ingredientes, grandes "X" sobre os insucessos. Respirei fundo e comecei a procurar o bolo de laranja de minha avó. Dei dois pulos quando o encontrei: o primeiro porque eu tinha certeza absoluta de que era aquele o tal do bolo, pois, ao passo que havia cerca de 15 diferentes bolos de Natal, havia um único de laranja; e o segundo porque, no melhor estilo "eu cozinho há mais tempo do que você está nesse mundo", havia uma lista diminuta de ingredientes, mas sinal algum de qualquer coisa semelhante a um modo de preparo. [Para não dizer que não havia nada, pelo menos ela especificara que as claras dos ovos eram em neve, o que já é alguma coisa...]

Não me desesperei. É nessas horas que se mede o talento de uma cozinheira, pensei. Não queria incomodar minha avó com esse tipo de detalhe, pois ela já está bem enrugadinha, e fiquei receosa de que não se lembrasse mais e ficasse chateada por isso.

Inspirei profundamente pela segunda vez e analisei os ingredientes. Por eles eu conseguiria descobrir que tipo de bolo era aquele e, assim, a ordem do preparo. Primeiro ponto interessante: não havia manteiga nem óleo na lista. A-há! Corri para minha bíblia das técnicas de confeitaria e fui direto ao preparo de génoise, um tipo de pão-de-ló que é uma das bases da confeitaria francesa, que não leva fermento, garantindo seu volume apenas através do trabalho correto das gemas e das claras de ovos. No entanto, o bolo da vovó levava fermento.

Hmmm...

Pesquisa, pesquisa, pesquisa. Sponge cake. Pão-de-ló. Um génoise de ovos separados que leva fermento.

Pensei nas etapas, que faziam sentido: ovos separados, bater gemas com açúcar, misturar claras e farinha alternadamente. Ok. Mas e a laranja? "Calda fervendo de laranja por último" era tudo o que a receita dizia. Aquilo transportou-me imediatamente a um de meus bolos favoritos: um bolo de limão de Nigella, muito simples, aromatizado com a casca do limão apenas. Depois de pronto, é que ele é regado com uma calda rala de suco de limão e deixado descansar, tornando-o muito macio, úmido e inacreditavelmente aromático.

Será?

Só me restava tentar. Apanhei os ovos e comecei a separá-los. Claras num pote, gemas na tigela da batedeira. Medi o açúcar. Notei que minha avó riscara a quantidade original e adicionara meia xícara (ou "chícara", como se escrevia antes e como sempre achei mais bonito...). Tudo bem, eu confio nela, ainda que me pareça demasiado para um bolo sem manteiga [normalmente são os bolos ricos em manteiga, como um bolo inglês, que têm a quantidade de açúcar menor ou igual à de farinha]. Separei meia xícara com as claras e derramei o resto sobre as gemas, despreocupadamente.

Por que eu sempre faço isso? Eu sei — EU SEI — qual é o processo correto e como fazer as coisas darem certo. Por que eu ignoro as regras e me deixo levar pela distração?? Por quê???

Liguei a batedeira, esperando ver ondas amarelo-pálidas sob o batedor. Ahn... não. A grande quantidade de açúcar, misturada assim de uma vez às pobres gemas, transformou tudo em uma farofa amarelo-forte, o que teria sido obviamente evitado se eu tivesse primeiro batido as gemas e então acrescentado o açúcar aos poucos, para dar tempo de as gemas absorverem-no.

Aumentei a velocidade.
Nada.
Acrescentei mais uma gema.
Melhorou, mas ainda assim a mistura era granulosa.
Deixei quieto.
Prossegui. Pelo menos, se não desse certo, eu saberia o motivo, pensei.

Fiquei com preguiça de transferir a mistura amarela para outra tigela e lavar a da batedeira para bater as claras em neve, então resolvi batê-las à mão. Vê-se logo que o cérebro não estava na melhor forma àquele dia. Muita dor no braço depois, conforme misturava porções alternadas de farinha e de claras em neve, brilhantes e lisas por causa do açúcar, a massa milagrosamente tomou corpo de algo que poderia dar certo. Assim como Daniel, usei uma enorme laranja Bahia, com sua lindíssima casca uniformemente cor-de-laranja para aromatizar o bolo.

A forma com furo no meio não foi escolhida por acaso. Após uma consulta com aquele que mais comeu o tal bolo de laranja durante sua vida, meu pai me garantiu que sua mãe possuía apenas duas formas: uma assadeira retangular e uma redonda com furo no meio. A assadeira era para o bolo de limão. A redonda furada era para o de laranja. Quem sou eu para discutir?

Imaginei que a temperatura fosse média e que o tempo de cozimento fosse mais ou menos 40 minutos, e chutei certo.

O bolo ficou um pouco mais denso do que eu esperava, por conta da dificuldade em criar o primeiro volume com as gemas, mais a gema extra que pesou um pouco. Ainda assim, depois de todos os perrengues, o bolo ficou lindo, macio e muito saboroso, perfumadíssimo de laranja e com aquela fantástica casquinha de açúcar à sua volta, como o bolo de cenoura de minha mãe. Eu sei que a receita é boa quando o marido não-boleiro aprova. "É de bolo assim que eu gosto", disse ele, e me enchi de orgulho por saber que poderei fazer a meus netos o bolo que minha avó fazia para os dela. Porém, enquanto reunia palavras para escrever esse texto, lembrei-me da xícara branca de relevos azuis que minha avó usava como medida. Afinal, vó que é vó não tem medidores de inox. Portanto, deixo aqui a receita como ela alterou, mas acredito que tudo saia maravilhosamente bem com meia xícara a menos de açúcar.

Em tempo, a vovó C. ficou muito contente em receber uma visita e um pedaço do bolo, e confirmou que era aquele mesmo o preparo. Quando fui me despedir, ela segurou meu rosto com suas duas mãos diminutas e me mandou continuar fazendo muitos doces. Mandou, tá mandado.

BOLO DE LARANJA DA VÓ C.
Tempo de preparo: 30 min. + 40 min. de forno
Rendimento: 1 bolo de 21cm


Ingredientes:
  • 4 ovos em temp. ambiente, separados
  • 2 xíc. de açúcar cristal orgânico
  • 2 xíc. de farinha de trigo
  • 1 colh. (chá) de fermento químico em pó
  • casca ralada de 1 laranja
  • 1 xíc. de suco de laranja

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180ºC. Unte e enfarinhe uma forma redonda de 21cm com furo no meio. Reserve 1 colh. (sopa) do açúcar, para a calda, no final.
  2. Bata as gemas na batedeira, até que fiquem fofas e esbranquiçadas. Vá acrescentando 1 1/2 xíc. de açúcar aos poucos. Junte a casca de laranja.
  3. Bata as claras em neve com o restante do açúcar, até que fiquem firmes mas ainda úmidas e brilhantes.
  4. Peneire a farinha com o fermento e vá acrescentando à mistura de gemas, em quartos, alternando com as claras em neve, misturando bem a cada adição, mas com cuidado para não perder muito o volume. Despeje na forma e leve ao forno por 35-40 minutos, até que esteja dourado e um palito saia limpo quando inserido no bolo.
  5. Deixe descansar uns 10 minutos e desenforme num prato.
  6. Numa panela, leve o suco de laranja e colher de açúcar reservada à fervura. Despeje a calda fervendo sobre o bolo (se quiser, faça furos sobre ele, para que o suco realmente entre no bolo) e deixe que esfrie completamente antes de servir.

domingo, 29 de junho de 2008

PADARIA DE DOMINGO 11: retorno com muffins ingleses

É com imensa felicidade que declaro o retorno da Padaria de Domingo!

Desde que voltei da Califórnia não conseguia parar de pensar nos muffins ingleses, aqueles pãezinhos de panela, pequenos, achatados e macios, ótimos para tostar e chafurdar na manteiga. Mas batia a preguiça. Todo domingo ela vinha, como quem não quer nada, e sobrepujava meu desejo por english muffins.

Fui salva pelo texto de um blog de que gosto muito, Not Eating Out in New York, que falava sobre o preço crescente da comida nos Estados Unidos e como a autora pretendia gastar menos dinheiro com supermercado. "Fazer meu próprio pão" era um dos itens. De fato, já fiz essa conta: 300-350g de farinha dão, normalmente, para um pão de bom tamanho que mata a fome de um casal no café-da-manhã durante uma semana. Cada quilo de farinha produz, logo, três pães. Cada um desses pães costuma usar por volta de 5g de fermento ativo seco. Cada embalagem vem com dois envelopes de 10g cada. Já fiz as contas com pães básicos, sem gordura, como o italiano, e com leite e manteiga, como o de forma. E o resultado é sempre o mesmo: o pão caseiro costuma custar 1/3 do preço do industrializado (aqui na minha vizinhança, pelo menos).

Com isso, volto de uma vez por todas com o Padaria de Domingo, para garantir o pão nosso de cada dia mais saudável e mais barato. Para começar, então, muffins ingleses.

Decidi fazê-los não apenas devido à voz que sussurrava dentro de minha cabeça, mas também por sua praticidade. Eu costumava ter uma receita recortada de uma Cláudia Cozinha, mas joguei-a fora pensando "nunca vou acordar às 5h da manhã para fazer isso...". Após pesquisar um pouquinho, porém, descobri que eles podem ser congelados e descongelados na própria torradeira. O que poderia ser mais prático? Lá vem o arrependimento por ter jogado a receita fora, que parecia mais simples e mais fácil do que a que resolvi fazer...

Acabei adaptando uma receita do Professional Baking, pois não tinha leite em pó desnatado e não gosto de gordura hidrogenada. A receita, como sempre para batedeiras planetárias, pedia para que a massa fosse sovada com o gancho por quase 25 minutos. Aos 20, resolvi esparramá-la sobre a bancada e terminar de sová-la à mão. Simplesmente porque a massa era uma das mais grudentas com as quais já lidei, e imaginei que talvez o método de Bertinet funcionasse bem nesse caso.

É nesses momentos que acredito que fazer pão é um ato de amor. Porque é preciso muito amor no coração para não surtar ao ver pedaços grudentos de massa voando por cima dos seus ombros e espatifando-se contra a parede da cozinha. De qualquer forma, o método de fato tornou a massa um pouco mais manipulável, ainda que muito MUITO grudenta.

Minha maior dificuldade foi não em moldar os pãezinhos, mas em transferi-los da assadeira onde fermentaram para as frigideiras quentes. Quando li no livro a instrução de fermentar os muffins sobre travessas "covered with cornmeal", não me dei conta da diferença de "dusted with cornmeal". Deveria ter exagerado mesmo na quantidade de farinha de milho, pois os muffins redondos e fofos grudaram na assadeira nos pequenos espaços sem farinha, e caíram desajeitadamente nas frigideiras, deformando-se.

Nada, porém, que influencie no sabor. Os muffins agradaram saídos da frigideira e, hoje de manhã, fiquei extasiada ao ver que eles realmente descongelam e se aquecem sob as resistências da torradeira, tornando-se novamente macios e exalando aquele delicioso perfume de pão fresco quentinho, que apenas um louco não quereria em sua cozinha de manhã cedo.


MUFFINS
INGLESES
(adaptado do livro Professional Baking)
Tempo de preparo: 25 minutos + 3 horas e meia + 40 minutos para cozinhar
Rendimento: 18 muffins ingleses


Ingredientes:
  • 500g de farinha de trigo
  • 1 1/2 xíc. de água fria
  • 8g de fermento fresco
  • 1 1/2 colh. (chá) de sal
  • 1 1/2 colh. (chá) de açúcar cristal orgânico
  • 2 colh. (chá) de leite
  • 1/2 colh. (sopa) de manteiga em temperatura embiente
Preparo:
  1. Esfarele o fermento junto com a farinha, junte o açúcar, o sal e a manteiga, e derrame a água e o leite, sovando com o gancho de uma batedeira planetária por 20 a 25 minutos na velocidade 2. A massa será MUITO mole. O longo tempo de mistura e de fermentação é o que dará ao muffin sua textura tradicional.
  2. Deixe fermentando por 2 horas e meia a 3 horas, em local fresco (21ºC).
  3. Retire o ar da massa, afundando-a, e derrame-a em uma superfície com muita farinha. Divida em porções de 45g cada e forme bolas com elas. Deixe descansar por 5 minutos.
  4. Achate as bolinhas de massa com as palmas das mãos e coloque em assadeiras bem cobertas de farinha de milho. Deixe fermentar novamente, por cerca de meia hora.
  5. Aqueça bem tantas frigideiras quantas puder manusear simultaneamente, e deixe-as em fogo baixo. Coloque os muffins nas frigideiras (quantos couberem, sem que se apertem) e cozinhe por 5-8 minutos de cada lado, até que estejam com marcas dourado-escuras.
  6. Sirva imediatamente, ou espere que esfriem, corte-os ao meio e congele-os. Para comê-los, leve do freezer direto para a torradeira por um minuto ou dois.

Cozinhe isso também!

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