segunda-feira, 11 de junho de 2018

O que trouxe Maio




Quando meus pais chegaram, as temperaturas ensaiavam uma primavera tímida. Alguns passeios no parque de casacos leves e cachecóis, outros de camisetas. Era difícil não pensar nos céus azuis de Maio em São Paulo, mas apesar do cobalto intenso entre nuvens, a sensação era outra: a alegria de dedos livres de luvas, do sol ameno acariciando os braços, dos cabelos soltos no vento. Havia um anseio primordial pelo calor, pelo ar fresco na pele, pela luz. Essa luz que veio rápida, tornando os dias mais longos, essa luz que chama para fora.

Sentei-me sobre a grama pela primeira vez em meses. Vi as crianças correrem descalças pelo parque. Os caminhões de sorvete mequetrefe voltaram. Os carrinhos de cachorros-quentes nos parques. Os Robins, meus Sabiás honorários. E os Chipmunks, aos montes, fugindo do som de meus passos com gritinhos agudos e se escondendo em seus buraquinhos no chão.

Antes que digam, essa não é uma cerejeira. Apenas uma árvore de flores muito cor-de-rosa.
As cerejeiras estavam em flor. Tão tarde esse ano, disseram. Mas como se elas dessem o sinal de comando, a natureza explodiu em flor e verde e pólem e sons e cheiros junto com aqueles buquês cor-de-rosa e brancos. Hávia tulipas iridescentes de todas as cores, atravessando a terra escura com força e em riste em direção ao sol como lanças ali fincadas. E arbustos de flores pequeninas cor-de-leite-fresco, tão delicadas, que o vento arrancava suas pétalas circulares e as carregava pelos ares, dançando e brilhando como confete perfumado. Dentes-de-leão forravam de amarelo-ouro a grama macia por toda e qualquer parte. Havia flores em chapéus e cestos de bicicletas.

Houve também vendavais e telhados levados e árvores partidas. Árvores por toda a parte, arrancadas pelas raízes, galhos imensos despencados duma altura infinita. A festa da natureza nunca termina sem alguns feridos.

Houve patinete. Laura olhou o patinete de duas rodas, e choramingou, um, dois, três dias. No quarto, descia morro, ia na frente, acelerada, sumindo pela rua.



Maio foi mês de muito vinho, muita conversa, muito abraço, muita brincadeira de avós, muita contação de história, muito desenho, muita costura, muitos planos. Foi um mês de uma visita tranquila, duas semanas simplesmente juntos, levando e trazendo da escola, passeando cachorro nos parques, comendo ramen e hambúrguer. Aquele calor que vinha de meus pais, no fim, por ele eu também ansiava. E vê-los aqui contentes, sem mais dúvidas das decisões que havíamos tomado para nossas vidas, trouxe-me uma paz imensa.


Eles se foram um dia depois do aniversário de meu pai e um dia antes do dia das mães.


Foi providencial o convite que tivemos de amigos para passarmos o dia das mães em sua casa no lago, fora de Toronto, e o acordar muito cedo, o road-trip, a ansiedade pelo passeio e pela brincadeira, apaziguou o vazio da partida no coração de todos.


Lá, a dona da casa mostrou-me a horta que preparava, e uma profusão fantástica de ruibarbo plantado pelo antigo dono e com o qual ela já não sabia o que fazer. As crianças ajudaram a colher tudo o que pudemos, e carreguei para casa comigo algumas picadas de inseto, braços queimados de sol, e ruibarbo o bastante para bolo, geleia e o que mais quizesse. 

Com ele, preparei primeiro um bolo simples, receita como sempre apanhada no Smitten Kitchen.  Em seguida uma geleia de ruibarbo simplíssima da dona Martha Stewart, que fica azedinho-doce, e que as crianças adoraram. Um pote foi imediatamente de presente aos donos originais do ruibarbo, como agradecimento. E o restante dos talos tenros, cortei e congelei, e no fim do mês, uma parte deles virou muffins deliciosos que as crianças mesmas fizeram. Novamente, aquela receita perfeita da tia Martha. Receita esta, aliás, que transcrevi numa linguagem mais simples em dois post-its cor-de-rosa e colei à geladeira, para ter sempre à mão. Também porque, com as férias de verão chegando, pensei numa boa estratégia para manter Thomas praticando a leitura em inglês sem parecer lição-de-casa. E resolvi testar minha ideia já com antecedência: Thomas leu os ingredientes e os processos, e Laura mediu tudo e misturou. Trabalho em conjunto, pouca ajuda minha, e os muffins saíram perfeitos. 
Vemos filhotes de todos os bichos pór aí. De gansos a guaxinins, como este.

Então Allex entrou em férias, e tivemos uma semana inteira de almoços nós dois enquanto as crianças estavam na escola. E os dois adoraram pai levando e trazendo da escola, e brincando depois da lição, e jogando Trouble e Zombie Dice, e preparando milk-shake e comprando picolé, e indo levar ao parque para andar de bicicleta. 

E Allex, que nunca havia corrido na vida, e que começara no fim do Inverno, calhou de começar a correr 5km por dia e se inscreveu em provas de Trail Running, influenciado por um amigo querido no Brasil que junta grupos de gente para correr no mato e nas montanhas. E assim como todo mundo que encontra saúde, lá veio ele me cutucar e querer me levar junto: corre de novo, dizia ele; você costumava correr, é só comprar um tênis, vai lá, vamos lá. Mas Allex, não tenho tempo. Eu finalmente estou fazendo o que você sempre me disse: para largar as coisas da casa um pouco e usar meu tempo sem as crianças para fazer os meus trabalhos, e é isso que estou fazendo; já tenho trabalho, passeio do cão, cuidar da casa... se eu começar a correr, vou trabalhar menos, e ter menos chance ainda de voltar a ganhar algum dinheiro. Ana, eu prefiro você saudável e feliz comigo até os cem anos do que ganhando dinheiro; eu fico com as crianças de manhã e você sai para correr; eu posso correr depois do trabalho, não tem problema.

Ok. O amor dos pequenos gestos.

E saímos os dois, e me comprei o tênis mais baratinho da promoção do outlet, e saímos para correr no mato. E corri 5km feliz. E corri 5km todo dia. Até pisar torto uma semana depois ao arrumar a cama e ter de ficar duas semanas sem correr coisa nenhuma. Tudo bem. Esperei sete anos para voltar a correr, posso esperar mais duas semanas.

Durante as semanas em que meus pais estiveram aqui, cozinhei muito pouco, é verdade. Fiz-lhes um Berry Cobbler da Alice Medrich, aproveitando um saco imenso de frutas vermelhas congeladas, que traziam amoras, framboesas, cerejas, morangos e blueberries, com a massinha com fubá que fica deliciosa. Não fotografei coisa alguma, mas encontrei a receita aqui e vale repeti-la à exaustão e servir quente com chantilly ou iogurte. Fica pronto no tempo que se demora para comer o jantar, e é uma sobremesa simples e fantástica.

Também reparei um bolo invertido de cranberries (usando das congeladas), cujo uso não me animou quando era outono, mas achei interessante servir a meus pais, já que não se encontra desta fruta super azeda no Brasil. A receita é daquela revisitinha Everyday Food que trouxe comigo, e está aqui. Super fácil e fica de fato delicioso. 

Depois, com Allex de férias, saímos algumas vezes para comer e em outras fomos simples e frugais, e houve poucas refeições que merecessem um comentário por aqui. Boas de fato, mas não exatamente receitas.

Esta foi uma das poucas. Um arroz simples feito com a água do cozimento do brócolis, que o deixa assim amareladinho mas bem saboroso, e salsichas de porco (encontrei das orgânicas, apenas carne e temperos) com batatas-doces. Esta batata-doce cor-de-laranja, que procurei à exaustão no Brasil sem nunca encontrar, é um dos ingredientes favoritos meus e de Thomas. Allex e Laura ainda torcem o nariz, pois parece demais com abóbora, e com certeza pode ser substituído por ela. Refoguei cebola em meias luas em azeite e manteiga até quase caramelizarem, e alho e alecrim e uma pitada de páprica picante e as batatas-doces em cubos, e fui refogando devagar e devagar, com sal e pimenta-do-reino, até amaciarem e pegarem cor. Então entraram as salsichas já cozidas e cortadas em rodelas grossas, que foram douradas rapidamente, e um nada de vinagre e água, para raspar o fundo queimadinho com a colher de pau e terminar de cozinhar as batatas, criando uma liga mais cremosa entre os ingredientes. Água evaporada, muita salsinha fresca, sal acertado e sentar-se à mesa.

Tenho feito muito o mesmo prato substituindo as salsichas por ervilhas congeladas, e deixando um pouco mais de molho na panela. Um pouco de queijo feta esmigalhado, ou lascas de parmesão, ou queijo haloumi (ou coalho, no Brasil) douradinho, ou mesmo ovos cozidos, completam a mistura sempre. E daí que uma batata-doce grande alimenta quatro pessoas. Cozinha inteligente e econômica, para contrabalançar os dias de comer fora.

 

Por último, veio a alegria das frutas. Ontario e sua primavera tardia ainda tem pouca coisa a mostrar, e as frutas da estação vêm todas da California e do México. Passei todo o inverno com duas crianças pedindo por melancia, e desde que elas surgiram no mercado orgânico, tenho comprado assim, pequenas, de duas em duas, e feito um bocado de exercício ao carregar no braço por 2km duas melancias e dois melões e mais toda a compra da semana nas práticas mas desconfortáveis sacolas de 1 dólar da Ikea. E os melões são doces e chamam as abelhas nos parques. E eles tem gosto dos dias que não terminam e da grama entre os dedos dos pés, e do ar quente por dentro da blusa. 

E com os granulados que restaram dos brigadeiros que as crianças fizeram para o aniversário do vovô, Laura me ajudou a fazer um bolo formigueiro. E comemos bolo formigueiro e melão no nosso café da manhã de pousada de praia, inventando em nossas mentes as manhãs de férias mesmo em dias de escola. 

O bolo é o tal bolo de iogurte da Laura, que continua sendo um de meus bolos favoritos, não só por ser fácil o bastante para uma criança de 5 anos preparar sozinha, mas porque a textura é sempre ótima e é infinitamente adaptável. Ontem Laura o fez de novo, mas substituindo 1/3 de xícara de farinha por cacau em pó e o transformando num bolo de chocolate delicioso e macio.

Maio trouxe meus pais, trouxe o calor da primavera, o verde intenso e as flores, trouxe a sombra das árvores sobre as calçadas, trouxe de volta a alegria da rua e os piqueniques, trouxe frutas que não são maçã, trouxes dias que só acabam às nove da noite, trouxe a corrida de volta à minha vida, trouxe merecidas férias para um marido que trabalhara dois anos sem pausa, e trouxe de volta dois livros que eu deixara com minha irmã, acreditando não mais precisar deles. Folhear os dois livros da Marcella Hazan de novo me proporcionou um conforto maravilhoso e inesperado, a lembrança de uma cozinha italiana simples e boa e direta ao ponto. E numa conversa com uma amiga, desabafei: sempre que me pego procurando receitas muito complicadas e ingredientes difíceis, preciso parar e prestar atenção ao que anda acontecendo comigo; pois parece que minha mente é muito ligada à minha cozinha, e a cozinha simples do arroz com ovo, do bolo de iogurte e do muffin básico de sempre, parecem só existir quando minha mente é também simples. E quando a confusão se instala e eu me perco na floresta escura da insegurança, pareço buscar mais intensamente os caminhos mais tortuosos para me tirar dali, caminhos que são sempre dos outros e não meus. E me pego mais cansada, mais confusa, mais frustrada, por não conseguir trilhar com leveza aquele caminho empedregulhado que pareceu tão fácil para meu vizinho, para meu colega, para aquela moça do Instagram que eu sigo. 

E Maio terminou com uma série de reflexões. Maio começou e terminou com o livro Walden, de Henry Thoureau, meu primeiro clássico americano do século XIX lido em inglês. Leitura lenta. Mas leitura boa. Um texto rebuscado para exaltar uma vida simples. Uma vida com o necessário. Uma vez supridas as suas necessidades básicas, diz Thoureau, vá viver uma aventura. Não se perca com o supérfluo. Não acumule coisas. Dinheiro supérfluo só compra coisas supérfluas. Tudo o que você tem e do qual não precisa, custa-lhe mais trabalho e tempo para manter. 


É simples a vida simples. É simples a vida. Mas manter a mente nessa estado de águas calmas para se enxergar o fundo do lago é um exercício de atenção constante. Atenção aos insetos na grama, atenção à música a que seus filhos dançam, ao modo como a melancia se dissolve sobre a língua, ao vento quente que traz o cheiro do mato, ao abraço tão longo na mãe antes de partir, ao olhar de amor do marido, ao pedido por carinho do cão, aos anseios do próprio peito que precisam ser mais ouvidos do que as racionalizações da mente maculada pela sociedade. 

Maio terminou com a necessidade de encontrar meu próprio caminho, minha trilha no mato, minha aventura. O caminho para o lago turvo. O silêncio da espera, o olhar calmo até o dissipar das ondas.  A vida é simples se a vemos simples. Minha vida só é simples quando não me deixo complicá-la. Atenção! Aqui e Agora!, dizem os pássaros de Aldous Huxley. 

"Why should we be in such desperate haste to suceed, and in such desperate enterprises? If a man does not keep pace with his companions, perhaps it is because he hears a different drummer. Let him step to the music which he hears, however measured or far way." (Walden, Henry Thoureau).

("Por que deveríamos ter tanta pressa desesperada em atingir o sucesso, e em tão desesperados empreendimentos? Se um homem não acompanha os passos de seus companheiros, talvez seja porque ele ouve um ritmo* diferente. Deixe-o dançar à música que ele ouve, não importa quão medida ou distante.")
* no texto original, "drummer" é "baterista".















Cozinhe isso também!

Related Posts with Thumbnails