terça-feira, 8 de março de 2016

O fim do Facebook e um pão de fermentação natural


É estranha essa sensação de estranhos aprovando uma decisão sua. Uma multidão de estranhos (dentre os quais alguns poucos nomes ou rostos mais ou menos conhecidos) aprovando sua decisão de comer mingau de aveia de manhã cedo. A mesma sensação de quando eu, aos cinco anos, mostrava um desenho para minha mãe e ela dizia que estava lindo e grudava na geladeira com um ímã de propaganda de farmácia que sempre saia voando ao primeiro vento forte na cozinha estreita em forma de corredor.

A mesma sensação de quando uma pessoa olha um quadro meu, um desenho feito aos meus quase quarenta anos, diz que está lindo, paga, leva para casa e bota na parede.

Eu pinto para mim, porque eu amo, porque eu preciso, porque o processo da transformação da tinta em imagem me fascina como fascina a transformação do meu cérebro quando eu aprendo um idioma, quando entendo um conceito novo, quando aperfeiçôo uma receita, quando resolvo uma birra infantil sem sair do sério, quando consigo saltar um buraco que antes me apavorava saltar.

Desenhei a vida toda mesmo antes de pensar em viver disso.

Para mim. Desenhei o que eu gostava e o que eu imaginava.

Mas a sensação infantil da aprovação que vem com a venda de uma obra é emocionante, é viciante, é fascinante.

E é uma versão infinitamente mais complexa e mais satisfatória do que a sensação de aprovação por eu ter fotografado meu iogurte.

Esses últimos meses de atividade no facebook foram um aprendizado. Primeiro, eles corroboraram com minha preguiça de escrever no blog, porque eu andava de fato sem ideias para textos, focando minha energia criativa em outras áreas da vida e sempre em dúvida se aquela receita era especial o bastante para ser publicada, uma vez que há hoje em dia mais receitas na internet do que gente que de fato cozinha.

É fácil postar no facebook. Não preciso baixar fotos da câmera, tratar, não preciso criar, escrever, revisar e revisar e revisar textos imensos.

Mas também é chato. Porque não consigo criar e escrever textos imensos. Que, mais do que qualquer receita, foi sempre o que me manteve nesse espaço, mesmo tendo por tantas vezes prometido parar com os posts. Eu gosto de escrever. Quase tanto quanto gosto de pintar.

E então o ato de fotografar meu mingau e postar meio parágrafo de receita apenas para mostrar uma rotina culinária virtuosa começou a me parecer frívolo, auto-indulgente e terminantemente inútil. Eu tentei me convencer de que aquilo inspiraria outras pessoas a se alimentarem melhor, mas a verdade é que eu só estava viciada nos comentários de apoio e nos likes.

Eu que sempre odiei facebook caí em sua rede feito um peixe atordoado.

Tentei me convencer de que eu precisava me manter no facebook pelo meu trabalho. Eu preciso ficar conhecida, diziam meus amigos. Mas conhecida pelo quê? Tanta gente no facebook que segue a página mas nunca leu o blog sequer sabe o que faço para viver. Quando as pessoas se referem a mim como "La Cucinetta" eu percebo que essa estratégia visualizada pelos meus colegas de trabalho saiu pela culatra. Quem me conhece por Ana Elisa veio do blog e conhece meu trabalho, e essas pessoas não precisam da interface do facebook, porque elas desenvolveram comigo um relacionamento através do blog pelos últimos dez anos. E isso é bem mais agradável. (Em tempo, não estou desmerecendo quem me conheceu através do facebook e nunca foi nada além de educado e agradável, mas apenas reitero minha preferência por uma interação mais pessoal.)

Os videos, exclusivamente sobre o meu trabalho, têm esse gostinho do blog. Essa sensação mais pessoal e mais criativa, que a linha de produção estéril e histérica de conteúdo no facebook  não tem.

Eu caí na pegadinha do facebook numa época em que meus amigos pararam de usar email fora do ambiente de trabalho e antes do wasapp surgir. Fora do facebook, perdi contato com muita gente, perdi eventos, e era difícil convidar as pessoas para o aniversário dos meus filhos. Entrei porque resolvi dar o braço a torcer e não ser tão retrógrada, tão resistente a mudanças. Com medo de não entender mais a tecnologia quando chegasse a vez dos meus filhos se enveredarem por ela.

Pareceu inofensivo no começo.

Então vi meu dia ser engolido pela torrente de informações inúteis na minha timeline. E descobri que você gasta um tempo brutal preocupado com a opinião de gente que não sabe nem onde você mora. E você fica irritado com discussões infrutíferas que você jamais teria na vida real com alguém que é de fato seu amigo. E você entende que na internet, muita gente que você admirava na verdade é um tremendo babaca. E você vê que convidar pro aniversário do seu filho via facebook é prático, mas clicar "eu vou" é tão fácil quanto esquecer de ir, e que a informalidade e a distância da internet só dá mais margem para a falta de respeito e de educação do ser humano.

Facebook consumiu meu tempo e meu bom humor. Acabou com minha paciência e com boa parte da minha fé na humanidade. Não é a toa que as pessoas mais tranquilas que conheço são aquelas que não tem conta em redes sociais.

Sinto há tempos uma necessidade de me fechar em mim mesma e no meu mundo, e encerrar meus conflitos e minhas opiniões em meu peito por tempo o bastante para que elas borbulhem para fora em forma de arte e pensamento construtivo, ao invés de serem cuspidas em fotos insignificantes e anedotas esquecíveis.

Da mesma forma que compreendi que não é a vida urbana que me repele, mas especificamente São Paulo, entendi que não é a vida online que repudio, é especificamente o Facebook e similares formas de ostentação de vidas forjadas.

Dá pra ver que muita coisa anda mudando dentro de mim. Essa busca incessante por um jeito meu definitivo de cozinhar, essa busca por uma forma mais saudável de me olhar no espelho, essa busca por um meio mais tranquilo de criar meus filhos, a busca por ter menos tralha, a busca por um lugar bom para morar, a busca por um bom modo de trabalhar e viver do meu trabalho, a busca por uma forma mais lúcida de me relacionar com o mundo digital. E isso envolve muitas idas e vindas, muitas decisões e arrependimentos, muitas tentativas e erros.

Talvez sejam os quarenta anos se aproximando. Fiquei em choque outro dia quando meu marido me lembrou de que eu faria 37 esse ano. Mas isso é assunto para outro post.

Eu entendo que as pessoas às vezes fiquem irritadas com minha volubilidade.

Eu mudo porque eu tento. Tentanto, eu experimento, e experimentando eu descubro o que funciona e o que não funciona para mim e para o momento que estou vivendo.

Facebook não funciona. Uma ferramenta que me parece boa porque corrobora com minha preguiça jamais será boa. Uma decisão que você tome baseada em preguiça jamais será a certa.

Estou encerrando todas as minhas contas no Facebook. Havia tempos já que mantinha minha conta pessoal tão somente por questões burocráticas: sou obrigada a ter uma conta pessoal para manter uma página profissional. Mas vinham meus amigos me perguntarem se eu havia visto isso ou aquilo na minha timeline, que eles haviam "me marcado", e eu só podia responder com um olhar curioso de quem não faz a mais pura ideia do que o outro está falando.

A profissional eu simplesmente não consigo me forçar a alimentar. O canal não me seduz. Mas sua existência me fez abandonar o blog onde eu descrevia minhas experiências e meus processos, e acho que isso foi uma perda. Quero voltar a alimentar o blog profissional com ilustrações e processos, pois ali as pessoas têm de fato acesso a todo o acervo do meu trabalho, ao contrário do facebook, onde não se consegue fazer uma busca decente de conteúdo e onde as informações são filtradas por algoritmos que decidem quem vai ver o quê baseado em quanto eu paguei ou deixei de pagar para a plataforma.

Mantenho o Pinterest (AnaElisaGaiarsaGranziera), que achei uma ferramenta agradável e útil para compilar conteúdo que me deixa de bom humor, e é um lugar bom para vocês verem que outras coisas eu preparei e gostei e que não vieram parar no blog.

Mantenho meu canal de trabalho no you tube (Ana Elisa Gaiarsa Granziera, ou Desenhoquê),  onde venho tentando explicar o que é de fato o meu trabalho. Volto logo com videos, assim que a vida se estabilizar, pois assim que voltei de férias durante o carnaval, marido teve apendicite, depois complicações, os horários das crianças mudaram... enfim. A vida acontece. Até o fim da semana tem video novo, e pretendo criar uma newsletter decente para quem se interessar em receber notícias a respeito de meu trabalho, como exposições, vendas, material novo.

Mantenho meu portfólio profissional (www.anaelisagranziera.com) e o blog de ilustração (www.anegg.com.br), que anda desatualizado pra burro, justamente porque fiquei jogando tudo no facebook, esse lugar onde a informação se perde e se inutiliza.

E aparentemente volto para esse blog em intervalos esparsos. Quando um conflito interno borbulhar em forma de texto.

Agradeço a quem apoiou as páginas do facebook até hoje. Peço desculpas pelo abandono. Agradeço quem continuou com o blog mesmo com ele às moscas. Talvez seja seu pensamento positivo insistente que me faça retornar sempre. Com certeza é esse relacionamento à distância, mas caloroso, que me faz ficar.

Os textos são mais longos, o "like" quase nunca é certo. Mas é como um pão de fermentação natural. É lento. É trabalhoso. Nem sempre dá certo. Mas o gosto que fica na boca é melhor. O prazer é mais duradouro. O aprendizado é garantido, mesmo quando não dá certo.

Eu nunca havia colocado receita de fermento natural no blog. Então aqui vai. Porque no fim, não é um bicho de sete cabeças. Mais do que técnica, exige intuição e atenção e sentidos apurados. Tudo aquilo que a interação fast food das redes sociais arranca de nossa experiência humana.

FERMENTO NATURAL
(do livro How to Bake, do Paul Hollywood)

Ingredientes:

  • 500g de farinha (+250g para cada alimentação) - de preferência orgânica, pois tem mais nutrientes para as bactérias; já fiz teste com a comum e não vai tão bem
  • 1 maçã orgânica pequena (precisa ser orgânica - você quer as bactérias na casca, não precisa nem lavar)
  • 360ml de água (morna se o dia estiver abaixo de 21ºC, temp. ambiente se estiver por volta de 24ºC e se gelada se estiver perto dos 30ºC ou superior)


Preparo:

  1. Rale a maçã com casca, apenas descartando o miolo. Misture aos 500g de farinha e à água até ficar mais ou menos homogêneo. (A minha farinha branca tinha acabado e usei uns 100g de farinha de centeio com sucesso.) A consistência que você quer é de mingau de aveia grosso. Ajuste a água se julgar necessário. Coloque a mistura num pote de vidro grande, tampe e deixe em temperatura ambiente por 3 dias. 
  2. Depois desse tempo, a mistura deve ter um cheiro adocicado como sidra e talvez escureça um pouco. Pode ter bolhas e até ter crescido. Descarte metade da mistura e alimente novamente com 250g de farinha e 170ml de água, ou o que for preciso para retornar a massa àquela consistência do primeiro dia (a massa tende a ficar mais líquida conforme o tempo passa.) Tampe novamente e deixe por mais 2 dias. 
  3. Depois desse tempo, a massa deve estar bem ativa, com muitas bolhas pequenas. Se nada estiver acontecendo, veja a lateral do pote, se há marcas de que a mistura cresceu e desinflou. Se isso aconteceu, está ativo. Se houver líquido sobre a massa, está ativo demais e o fermento já comeu tudo o que tinha: descarte o líquido, metade da massa e realimente, deixando por mais um dia. 
  4. Quando estiver pronto para fazer seu pão, descarte metade da mistura (ou, na verdade, guarde em outro pote para manter seu fermento, na geladeira, realimentando uma vez por semana), e misture 250g de farinha e água o bastante para criar uma massa bem molenga. (Você vai usar essa mistura toda para o pão, por isso guarde aquela parte que descartou para continuar com seu fermento.) Deixe por 24h.
  5. Quando a massa começar a borbulhar dentro desse tempo, está pronta para ser usada. Idealmente, ela deve estar grossa como massa para panqueca e borbulhante. Se não estiver, alimente outra vez e deixe por 2 dias. O tempo que seu fermento demora para amadurecer varia muito, dependendo dos ingredientes e do ambiente. Tenha paciência. 


PÃO SOURDOUGH BÁSICO
Rendiemento: 2 pães
Tempo de preparo: um montão.

Ingredientes:

  • 750g farinha de trigo orgânica
  • 500g fermento natural
  • 15g sal
  • 350-450ml de água (morna, temp. amb., ou fria/gelada, dependendo da temperatura do dia)


Preparo:

  1. Misture a farinha, fermento e sal em uma tigela grande. Junte 350ml de água aos poucos, misturando com as mãos e adicionando mais água se necessário, até formar uma massa macia e grosseira, e conseguir "limpar" a farinha da tigela. 
  2. Unte a bancada com óleo, despeje a massa e sove por 5-10 minutos, até a massa ficar macia e formar uma superfície lisa. A massa não deve ficar excessivamente grudenta nem chegar a ser seca. 
  3. Quando a massa estiver uniforme e sedosa, coloque em uma tigela untada, cubra com filme plástico e deixe em temperatura ambiente (algo entre 15-25ºC) por 5 horas ou até que pelo menos dobre de tamanho. 
  4. Prepare duas tigelas iguais para fermentar o pão, forrando com panos de linho (que não grudam na massa como panos de prato) e polvilhando com bastante farinha. 
  5. Sove a massa por alguns segundos, forme duas bolas iguais e coloque de cabeça para baixo as tigelas forradas e enfarinhadas. Polvilhe com mais farinha e embale as tigelas em sacos plásticos fechados, para não deixar a umidade escapar. Deixe em temperatura ambiente (entre 22-24ºC) por 10-13 horas. (Se o dia estiver muito quente e a massa estiver fermentando rápido demais, coloque na gaveta de legumes da geladeira por algumas horas.) A massa está pronta quando tiver pelo menos dobrado de tamanho e, ao pressionar seu dedo, a superfície volte ao normal devagar. Se a superfície estiver enrugada, passou do ponto. Retire da tigela, tente "espanar" o excesso de farinha, sove por alguns segundos, formando a bola novamente e deixe fermentar por mais 5-6 horas até dobrar de tamanho. 
  6. Para assar você tem duas opções. A opção do livro é de pré-aquecer o forno a 200ºC e forrar duas assadeiras com silpats. Inverta as tigelas nas assadeiras, retirando o pano, faça um corte na superfície do pão e leve ao forno um por vez por 30-40 minutos, até que doure e emita um som oco ao bater os nós dos dedos na parte de baixo. Minha opção é pré-aquecer o forno no máximo com uma panela de ferro dentro por meia hora, inverter o pão lá dentro, fechar a tampa e assar por 30 minutos e depois mais 15 sem a tampa. Isso sempre me dá uma crosta mais crocante e mais dourada, mas suspeito que seja por conta de defeitos no meu forno que isso não aconteça de outra forma. Fica a critério do freguês. 


Esse pão fica deliciosamente azedinho. Eu tinha parado de fazer sourdough, engolida pela preguiça e alguns resultados ruins, mas fiquei louca de vontade de novo depois de assistir à série Cooked, na Netflix.

Mesmo que seu sourdough não dê muito certo da primeira vez, fique achatado, sem cor, denso, o que for: ele ainda renderá excelentes torradas ou croûtons, melhores do que qualquer uma que você já tenha comido. Se nem isso, pelo menos excelente farinha de rosca. ;) Vale a tentativa.

Até o fim da semana devo encerrar o facebook. Então se você quiser algo que sabe que está lá, tem tempo de dar uma última fuçada. ;)


Cozinhe isso também!

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