quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Um bolo de rapadura, tapioca e castanhas para meu pai e minha amiga


No que meu filho passou o fim de semana com o que acreditávamos ser uma forte reação alérgica a corantes alimentícios (segundo o médico), com pereba até a orelha, fiquei pensando nessa mentira que repetimos para nós mesmos de que infância não é infância sem uma porcaria de vez em quando. Pensei em de onde veio essa ideia de que criança = doce. De que se você não comer um pacote de salgadinho sabor artificial de qualquer coisa, você não teve infância.

Lembrei-me de um episódio do Two Greedy Italians, em que eles discutem a obesidade infantil na Itália, e comentam sobre sua infância brincando na rua e roubando frutas do vizinho. FRU-TAS. E falando de figos e tangerinas como ouço crianças falando de bolacha recheada.

Pensei em como Thomas e Laura, apesar de já terem experimentado fora de casa toda a sorte de porcarias, adoram frutas e mel, e roubam tomates do quintal, e saem correndo por aí roendo cenouras inteiras, com a mesma empolgação de quando lhes dou uma colherada de sorvete ou um pedaço de bolo. Eles não passam o dia inteiro me pedindo biscoito recheado. Passam o dia inteiro me pedindo colheradas de mel. E bananas. E maçãs. E melancia. E iogurte. Sem açúcar. Não porque eles sejam alienados da sociedade, não porque não saibam o que é um danoninho, não porque sejam crianças esquisitas. Mas porque o que há disponível na despensa é banana, não biscoito. O que tem na geladeira é iogurte natural, não danoninho. Porque criança tem potencial para comer direito, se você der comida boa. E porque, pra mim, criança não é doce. Criança é brincadeira. E criança distraída não pede comida o tempo todo. Criança distraída fica com fome de verdade. E criança com fome come o que tem. Come maçã.

E aprende a gostar de maçã. Aprende que maçã é lanche, é sobremesa. Que maçã é doce. Que é gostosa. Que fica melhor ainda com uma pitadinha de canela em pó por cima. Assada, então, nem se fala. Mas maçã assim, fresquinha, de comer de dentada, é campeã.

Thomas quase nunca come o lanche dele na escola. Mesmo os bolos, mesmo os queijos, mesmo suas frutas favoritas. A curiosidade daquilo que não tem em casa é maior, e ele surrupia o que pode do lanche dos outros. Não dá uma hora depois do almoço, no entanto, já o encontro abrindo a lancheira e procurando o lanche outrora ignorado. E come tudo. A fruta, o queijo, o chá, o bolo, o pão, o que for. Não me preocupo. Sei que, apesar da ocasional porcaria fora de casa, ele está sim aprendendo a comer direito. E espero que logo a curiosidade passe e ele faça boas escolhas sozinho.

Ainda assim, fiquei matutando em como nossa geração foi martelada com esse conceito de que criança que não come porcaria está sendo privada de sua infância. Quando penso numa criança feliz, a última imagem que me vem à cabeça é uma criança cheia de brinquedos e comendo Trakinas. Penso numa criança com espaço pra correr, amigos, família que a ame e, se é para falar de comida, comida boa, aquele frescor de frutas da estação num dia quente com pés na grama. Uma fatia gorda de melancia suculenta no verão.

Mas não há propaganda de melancia na televisão.

Crianças com imaginação tomam toddynho. No meu mundo, crianças que tomam toddynho correm risco de terem seus estômagos queimados por substâncias tóxicas, que é o que vem acontecendo (me pergunto se ninguém mais lê jornal, pois para mim não há recall e pedido de desculpas que me convença a comprar um Toddynho). E crianças que tomam toddynho estão jogando o dinheiro de seus pais no lixo, porque o que custa aquele soro de leite com chocolate de terceira, eu poderia derreter chocolate belga num copo de leite integral.

De todas as lembranças de infância que eu tenho, as mais positivas são desvinculadas de produtos alimentícios e ligadas diretamente a comida de verdade. Emporcalhar o uniforme da escola na amoreira do estacionamento. Tomar sorvete de limão caseiro da minha avó, na chácara. Roubar massa fresca crua de sua mesa na cozinha. Sovar panettone numa bacia com meu pai, e o dia em que o panettone dele virou um poste, porque ele colocou massa de três em uma só forma. O bolo de cenoura da minha mãe, o mesmo a vida toda. Minha mãe e sua amiga enrolando brigadeiro na cozinha um dia antes do meu aniversário. A primeira vez em que comi palmito, quando serviram potinhos de salada na pré-escola. A torta fina de goiabada que as freiras da escola serviam em dias comemorativos (uma fatia para cada aluno). O arroz doce que a avó de uma amiga sempre preparava para mim quando eu ia à sua casa. A primeira vez que comi gorgonzola, na casa dessa mesma amiga.

Os danoninhos, os yakults, as bolachas de chocolate... todos se perderam, pois estavam lá e eram só combustível. Não me lembro de momentos especiais ligados a eles, porque não havia pessoas envolvidas. Eram só coisas comestíveis. Eram apenas para preencher espaço e tempo.

Lembro-me das propagandas, no entanto. Cada uma delas. Isso deve querer dizer alguma coisa.

Então, no tempo entre escrever esse post e publicá-lo, a alergia do pequeno não melhorou, e o levamos ao hospital. Lá, descobrimos que mesmo crianças vacinadas pegam catapora, mas uma versão mais leve, que é frequentemente confundida com alergias alimentares.

Menos mal, pois seria um martírio controlar o que esse menino rouba das lancheiras dos amigos.

Agora ele está em casa, e é férias tudo de novo, só que sem poder sair no quintal pra brincar. Todo mundo trancado do lado de dentro correndo e enlouquecendo um pouco a mamãe. E no meio dos "Mamã! Iocúte cum mel por quima!" do Thomas, tem uns "Mamã! Bolo!" da Laura. O gene das sobremesas cremosas passou de pai pra filho, e o gene dos bolos passou de mãe pra filha. Vai entender.

Esse bolo foi uma estranha surpresa. Gostei da receita, pois foi daqueles momentos em que, apesar dos ingredientes diferentes, eu tinha absolutamente tudo em casa. Inclusive a rapadura e as castanhas de caju torradas, trazidas por meu pai de Fortaleza. A surpresa foi que, com tanta coisa que vai nesse bolo, eu esperava um gosto assertivo como acontece com um gingerbread. No entanto, o resultado é tão suave, inclusive em doçura, que até dá vontade de fazer uma calda. A erva-doce e a canela ficam bastante suaves, e parece que tudo se encaixa.

É também uma boa opção para quem não quer fazer bolo com açúcar branco, ou quem quer diminuir um pouco a farinha de trigo, pois quase metade é farinha de tapioca. Tapioca, aliás, que eu também tinha em casa por conta de uma amiga querida, Marina, que sempre me prepara tapioca e café quando vou à sua casa.

Daí que quando servi o bolo às crianças no meio da tarde, me peguei pensando neles: meu pai e minha amiga, e quis mandar um pedaço para que eles experimentassem, mas o bolo não coincidiu com meu pai em São Paulo, e toda a maratona da alergia-catapora impediu que eu fizesse uma visita a qualquer amiga.

Pode vir a propaganda de chocolate e salgadinho que quiser falando de compartilhar comida. Não há biscoito industrializado que se compare a dividir um bolo feito em casa com alguém.

BOLO DE RAPADURA, TAPIOCA E CASTANHAS 
(do livro Cozinhando Para Amigos 2, de Heloisa Bacellar)

Ingredientes:

  • 500g rapadura cortada em cubos, ou 3 xic. açúcar mascavo
  • 1 3/4 xic. leite de coco
  • 100g manteiga em cubinhos
  • 2 colh. (chá) canela em pó
  • 1/4 colh. (chá) cravo em pó
  • 1 colh. (chá) semente de erva-doce
  • 1 1/2 xic. coco fresco ralado
  • 1 1/2 xic. castanha de caju torrada, grosseiramente moída
  • 1 1/4 xic. farinha de tapioca
  • 2 xic. farinha de trigo
  • 1 colh. (sopa) fermento em pó
  • 4 ovos, separados
  • Açúcar e canela para polvilhar por cima


Ingredientes:

  1. Pré-aqueça o forno a 200ºC. Unte com manteiga uma forma grande para pudim. 
  2. Numa panela média, aqueça a rapadura e o leite de coco, até dissolver. 
  3. Retire do fogo, junte a manteiga, canela, cravo, erva-doce e misture bem. 
  4. Junte o coco ralado, castanha, farinha de trigo e de tapioca, o fermento e as gemas e misture até que fique homogêneo.
  5. Bata as claras em neve e incorpore rápido mas delicadamente à massa. (Misture sempre uma colherada cheia das claras à massa, batendo bem, para tornar mais leve a massa, de modo que o restante das claras seja incorporado mais facilmente. Sempre funciona.)
  6. Despeje na forma, alise a superfície, e asse por 40-45 minutos, até que fique bem dourado e um palito inserido no meio saia limpo. (Fique atento, o meu, aos 40 minutos, já estava chamuscado em cima.)
  7. Retire do forno e deixe que esfrie na forma antes de passar uma faquinha nas laterais e desenformar. Polvilhe açúcar e canela por cima. 





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