terça-feira, 28 de outubro de 2014

Orecchiette de couve-flor com azeitonas pretas e o vôngole que não foi


Se existe um hábito que meus filhos estão pegando de mim é o de folhear livros de culinária. Aliás, tudo o que Madame Bochechas não curte assistir a desenhos com o irmão, ela gosta de ver programas de culinária comigo. Gordice corre no sangue.

Noutro dia, estou folheando um dos lindos livros da Rachel Khoo, com os dois pimpolhos olhando e me perguntando o que é cada item das fotos, meu Matador de Dragões enfia o dedo assertivo sobre uma fotografia de um prato de vôngole e ervilhas.

"Que é esse?"
"Vôngole. Von-go-le."
"Côncole?"
"É um bichinho, que vive dentro da concha, no fundo do mar. A gente cozinha e come o bichinho de dentro da concha. Essa parte aqui, ó."

Naquele momento eu me preparei para o famoso "eeeeeeeeeeca".
Mas não.

"Hmmm! Delí-shia!", exclamou.
"Você quer comer vôngole, Thomas?"
"Hm-rum!"
"Jura? Quer que a mamãe compre e prepare?"
"Sim!"

Eu tinha ervilhas-tortas. Tinha spaghetti. Tinha creme de leite e até um resto de Calvados eu tinha. Todos os ingredientes menos o vôngole. E eu não ia deixar escapar a oportunidade de fazer os pimpolhos experimentarem algo novo e que eu imaginava tão difícil de fazer uma criança apreciar.

Dois dias depois, dia de feira. Demorei anos para encontrar bons lugares para comprar peixe, e na época em que morava nos Jardins, havia já estabelecido uma boa relação com o peixeiro da feira de quinta, que, descobri depois, era também quem fornecia para o Alex Atala. Nunca tive problemas com ele, e foi ele quem me vendeu meus primeiros mariscos, fresquíssimos, com cheiro de maresia. (Dizem que ele pretendia abrir uma peixaria. Preciso ir atrás disso.)

Fiquei triste quando saí de São Paulo e perdi meu peixeiro. Não consigo confiar nas carnes e peixes dos mercados de onde moro. Nada parece super fresco. Dei um voto de confiança ao peixeiro da feira, muito simpático, apesar do salmão dele sempre parecer meio velho e os camarões sempre estarem com a cabeça caindo.  Eu usava do que conheço e escolhia o que havia de mais fresco, de preferência a partir do peixe inteiro, para que eu pudesse averiguar as escamas, os olhos, as guelras.

Aí um dia eu comprei uma bandeja de pescada. E quando fui empanar, ela se desmanchava nos meus dedos. Cheiro de mar sujo. Peixe estragado. Fiquei fula da vida, reclamei, acontece, ficou por isso mesmo.

Nesse dia de feira, resolvi dar outro voto de confiança. Afinal, vôngole é fácil de checar se está bom: se estiver aberto antes de cozinhar, está estragado. Se não abrir depois de cozinhar, também. Pedi um punhado generoso de vôngole e ainda especifiquei que pretendia dar aquilo aos meus dois filhos pequenos.

"Está bem fresquinho?"
"Sim, estão super vivos!", disse ele.

Ele embalou e levei para casa, feliz e contente. Havia dito ao pimpolho que prepararia o bichinho da conchinha, ele ficara bastante empolgado.

Em casa, abro o saquinho. Um odor pungente me atinge o nariz, como um vento num porto sujo em dia quente. Fico sem saber se aquilo é normal. Não preparava vôngole havia muitos anos, desde antes do Thomas nascer, e não me lembrava de como eles cheiravam.

Resolvi colocar de molho para tirar a areia. A água começou a ficar bem suja, e quando fui escorrê-los, percebi que metade estava aberta. Ao levar uma das conchas abertas ao nariz, ficou claro que aquilo era cheiro de bicho morto. Comecei a separar todos os abertos e jogar fora. Então deixei de molho de novo. E em dez minutos havia mais um punhado deles abertos, e o cheiro persistia.

Eventualmente, sobraram pouco mais de dez vongolezinhos, de 1kg que eu comprara. Mas eu já não queria mais comer aquilo, muito mais dar para meus filhos.

Fui buscar Thomas na escola e expliquei que o vôngole estava estragado e que não seria possível comê-los, mas que eu cozinharia um apenas para que ele visse como era por dentro.

Ele achou linda a conchinha fechada e ficou vidrado no bichinho aberto. Deixei que pegasse na mão e observasse. E, quando pensei que ele acharia tudo aquilo muito estranho, perguntou:

"Pode comer?"
"Não, meu amor, esse não está bom pra comer."
"Aaaaaaaaaah..."
"Mas mamãe vai comprar um que esteja bom pra você experimentar, ok?
"Aah... tá bom."

E lá fui eu improvisar almoço para uma criança que nunca deixa de me surpreender. E o almoço foram conchinhas que nunca me decepcionam. Ou orelhinhas. ;)

Esse prato de orecchiette é muito simples, mas muito, muito gostoso, leve e fresco. Usei a couve-flor no lugar do usual brócolis, e, ao invés de anchovas, pensei nos ingredientes de uma tapenade de azeitonas, pois couve-flor combina maravilhosamente bem com azeitonas pretas. Pimpolhada raspou o prato de qualquer forma (Madame Bochechas ADORA couve-flor), e lá vou eu agora começar a também comprar peixe em São Paulo e trazer na térmica, porque aquele peixeiro da feira eu não quero nunca mais olhar na cara.

ORECCHIETTE COM COUVE-FLOR E AZEITONAS PRETAS
Rendimento: 4 porções

Ingredientes:

  • 320g orecchiette
  • 1 couve-flor pequena, cortada em floretes médios
  • 1/4 xic. azeite
  • 2 dentes de alho fatiado
  • alguns raminhos de tomilho fresco
  • pica umas 10 azeitonas pretas bem picadinhas
  • um punhado de salsinha bem picadinha
  • suco de meio limão (siciliano de preferência, mas pode ser tahiti)
  • parmesão ralado na hora (ralado fininho)


Preparo:

  1. Leve bastante água salgada à fervura, junte os floretes de couve-flor e cozinhe apenas até que estejam al dente. Retire com uma escumadeira e pique em pedacinhos pequenos (não maiores que o macarrão). Reserve. Cozinhe o macarrão na água da couve-flor.
  2. Numa frigideira grande, aqueça o azeite e junte o alho e o tomilho em fogo baixo. Quando o alho amaciar e começar a soltar perfume (sem dourar) junte a couve-flor picada. Misture bem e cozinhe mexendo de vez em quando. Você quer que a couve-flor termine de amaciar, mas não doure. 
  3. Junte à couve-flor as azeitonas, salsinha, suco de limão, misture e cozinhe por apenas 1 minuto.
  4. Escorra o macarrão, reservando 1/4 xic. da água do cozimento. Junte essa água e a massa à couve-flor, com mais 1/4 xic. de parmesão e 1 fio de azeite. Misture bem e acerte o tempero. Sirva imediatamente com mais parmesão por cima.


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Um "ratatouille" italiano com coucous marroquino de ervas para um novo jeito de me complicar


Existe sempre um jeito de estragar o que está funcionando. Certo?

No meu caso, a rotina que funcionava bem, de colocar Madame Bochechas para dormir às 9h da manhã (lembrando que ela acorda às 6h e se acaba de brincar) para poder trabalhar, foi atropelada pela decisão de transformar o berço da pequena em mini-cama no fim de semana. Pois, afinal, fizemos o mesmo com Thomas por volta dessa idade, e ela já vinha pedindo por isso.

Foi felicidade total ver a mini-cama montada, e, assim como o irmão, na primeira noite ela foi dormir sozinha, sem nem precisar mandar.

"Olha só", disse meu marido, orgulhoso. "Ela não vai dar trabalho nenhum. Até a soneca da tarde ela foi tirar sozinha."
"Você não lembra de como foi com o Thomas, né? Ele fez a mesma coisa, e na noite seguinte já não queria mais ir pra cama."
"Ah, não, mas ela não vai ser assim, porque ela vê o irmão, tem o exemplo do mais velho."
"Tô te falando..."

Deveria ter apostado dinheiro. ¬_¬

Dia seguinte, coloco a mocinha na cama para o cochilo da manhã. Eu com três aquarelas atrasadas para entregar, emails de cliente para resolver e um projeto pessoal pro dia 8 de novembro que eu nem comecei a esboçar. Ela esperneia e sai da cama. Eu boto na cama de novo. Ela esperneia e sai. Eu boto. Ela sai. E assim sucessivamente até que já era tão tarde, quase na hora de buscar o Thomas na escola, e eu já estava tão cansada, que desisti e não consegui fazer nada a não ser resolver três emails enquanto ela brincava no quarto.

À noite, mesma coisa. Bota na cama, sai. Bota na cama, sai. O que parecia uma infinidade de vezes, mas que eu contei e foram 23, até ela enfim cansar e dormir.

Sempre em mente todos os milhares de episódios da Super Nanny que eu vi antes de ter filhos. Fofa e carinhosa pedindo pra ir pra cama. Só carinhosa botando na cama. Botando na cama sem falar nada. Eventualmente eu só me colocava à sua frente de braços cruzados e ela voltava para a cama, vencida por alguns 15 segundos, até eu dar as costas e ela achar que estava livre novamente.

Exercício de paciência infinita.

Rotina simples complicada por uma decisão simples e inevitável. Porque criança é assim mesmo. Tudo bem até incorporar uma nova variável na equação. Aí... fué. Dá-lhe se adaptar tudo de novo. E de novo. E outra vez. Ad infinitum.

Aí você tem aquela pilha de legumes na gaveta. Resolve que quer um cozido de todos eles, abobrinha, berinjela e tomates. Mas não quer tudo maçarocado com gosto de coisa nenhuma. Quer textura, e quer sentir o gosto de tudo individualmente. Aí você pega algo simples e complica. Mas há complicações que valem a pena.

Aprendi com o livro de Suzanne Goin, um que usava loucamente antes de ter filhos, que às vezes é bom cozinhar os elementos separadamente e juntá-los depois. Você respeita o tempo de cozimento de cada um e eles mantém sua textura e sabor individuais mesmo misturados. Pensei primeiro num ratatouille, mas quis usar manjericão no lugar do tomilho. Engraçado isso de perfil de sabor, como são exatamente os mesmos ingredientes e mesmo processo: com tomilho é francês, com manjericão, italiano. Depois que o cozido estava pronto, descobri, num livro da Rachel Khoo recentemente comprado (parte da leva de aniversário), que se você mistura as fatias desses legumes artisticamente numa travessa e assa tudo de uma vez, é tian de legumes; se você cozinha todos separadamente e junta tudo no final, num cozido, é ratatouille. Eu achando que ratatouille se cozinhava tudo junto e descubro que antes de mim os franceses já complicavam as coisas.

Para absorver o caldinho do cozido, preparei um couscous marroquino. Mas queria que ele tivesse alguma personalidade também, então juntei a ele ervas e castanhas, para textura. O conjunto da obra fez sucesso, especialmente com Madame Bochechas, que bem sabe quando convém complicar minha vida ou deixar mamãe feliz.

RATATOUILLE ITALIANO COM COUSCOUS MARROQUINO DE ERVAS
Rendimento: 4 porções adultas

Ingredientes:

  • azeite
  • 1 cebola grande, picada
  • 3 dentes de alho, picados
  • 2 abobrinhas grandes ou 4 bem pequenas
  • 2 berinjelas grandes ou 4 bem pequenas
  • 4 tomates grandes, pelados (ou 1 lata de tomates pelados)
  • 1 punhado de salsinha, talos separados das folhas e reservados
  • 1 punhado generoso de folhas de manjericão
  • 1 1/2 xic. couscous marroquino
  • 1/3 xic. castanha de caju torrada, picada
  • sal e pimenta-do-reino


Preparo:

  1. Corte a berinjela em cubos de cerca de 2cm, com a casca. Coloque em um escorredor, polvilhe com sal e deixe sorar por meia hora. Enquanto isso, corte a abobrinha em quartos no sentido do comprimento e então em triângulos de 1cm de espessura. Se estiver usando abobrinhas menores, corte apenas ao meio e então meias-luas. Pique os talos da salsinha bem miudinho para usar no cozido. Pique os tomates (se estiverem na lata, pode apenas cortá-los com uma tesoura, sem precisar retirar da lata). Quando terminada a meia hora, passe a berinjela sob um pouco de água corrente para retirar o excesso de sal e esprema bem entre os dedos. 
  2. Numa frigideira grande,  aqueça um fio de azeite e 1/3 do alho picado. Junte a abobrinha antes do alho dourar, tempere com sal e pimenta e cozinhe em fogo médio-alto, mexendo de vez em quando, até que a abobrinha esteja dourada e macia. Retire da frigideira e reserve em uma tigela.
  3. Na mesma frigideira, coloque um pouco mais de azeite (umas três colheres) e junte a berinjela e mais 1/3 do alho. Tempere com pimenta e pouco sal (experimente para ver se a berinjela já não estava salgada o bastante) e cozinhe em fogo médio-alto, mexendo com certa frequência, até dourar e ficar macia. Coloque na tigela junto com a abobrinha.
  4. Ainda na mesma frigideira, aqueça mais um fiozinho de azeite e junte a cebola e o restante do alho. Cozinhe em fogo BAIXO, mexendo de vez em quando, para que a cebola e o alho amaciem bem devagar, cerca de 10 minutos.
  5. Quando começarem a dourar, junte os talos de salsinha e o tomate picado. Misture bem, cozinhe por dois minutos, e então junte os legumes reservados e 1/2 xic. água. Leve à fervura, então abaixe o fogo e cozinhe por cerca de 10 minutos, ou até que o caldo engrosse um pouco. Corrija o sal e pimenta. Rasgue metade das folhas de manjericão e junte ao cozido. Desligue o fogo.
  6. Coloque o couscous numa tigela resistente ao calor. Ferva 1 1/2 xic. de água. e derrame sobre o couscous. Tampe com um prato e deixe descansar 5 minutos.
  7. Pique a salsinha e o restante do manjericão e junte numa tigelinha com as castanhas, sal, pimenta e 2 colh. (sopa) azeite. Junte ao couscous já inflado, misturando com um garfo para não empelotar. Corrija o sal e a pimenta. 
  8. Sirva o cozido sobre o couscous, com mais um generoso fio de azeite por cima. 






quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Um bolo de rapadura, tapioca e castanhas para meu pai e minha amiga


No que meu filho passou o fim de semana com o que acreditávamos ser uma forte reação alérgica a corantes alimentícios (segundo o médico), com pereba até a orelha, fiquei pensando nessa mentira que repetimos para nós mesmos de que infância não é infância sem uma porcaria de vez em quando. Pensei em de onde veio essa ideia de que criança = doce. De que se você não comer um pacote de salgadinho sabor artificial de qualquer coisa, você não teve infância.

Lembrei-me de um episódio do Two Greedy Italians, em que eles discutem a obesidade infantil na Itália, e comentam sobre sua infância brincando na rua e roubando frutas do vizinho. FRU-TAS. E falando de figos e tangerinas como ouço crianças falando de bolacha recheada.

Pensei em como Thomas e Laura, apesar de já terem experimentado fora de casa toda a sorte de porcarias, adoram frutas e mel, e roubam tomates do quintal, e saem correndo por aí roendo cenouras inteiras, com a mesma empolgação de quando lhes dou uma colherada de sorvete ou um pedaço de bolo. Eles não passam o dia inteiro me pedindo biscoito recheado. Passam o dia inteiro me pedindo colheradas de mel. E bananas. E maçãs. E melancia. E iogurte. Sem açúcar. Não porque eles sejam alienados da sociedade, não porque não saibam o que é um danoninho, não porque sejam crianças esquisitas. Mas porque o que há disponível na despensa é banana, não biscoito. O que tem na geladeira é iogurte natural, não danoninho. Porque criança tem potencial para comer direito, se você der comida boa. E porque, pra mim, criança não é doce. Criança é brincadeira. E criança distraída não pede comida o tempo todo. Criança distraída fica com fome de verdade. E criança com fome come o que tem. Come maçã.

E aprende a gostar de maçã. Aprende que maçã é lanche, é sobremesa. Que maçã é doce. Que é gostosa. Que fica melhor ainda com uma pitadinha de canela em pó por cima. Assada, então, nem se fala. Mas maçã assim, fresquinha, de comer de dentada, é campeã.

Thomas quase nunca come o lanche dele na escola. Mesmo os bolos, mesmo os queijos, mesmo suas frutas favoritas. A curiosidade daquilo que não tem em casa é maior, e ele surrupia o que pode do lanche dos outros. Não dá uma hora depois do almoço, no entanto, já o encontro abrindo a lancheira e procurando o lanche outrora ignorado. E come tudo. A fruta, o queijo, o chá, o bolo, o pão, o que for. Não me preocupo. Sei que, apesar da ocasional porcaria fora de casa, ele está sim aprendendo a comer direito. E espero que logo a curiosidade passe e ele faça boas escolhas sozinho.

Ainda assim, fiquei matutando em como nossa geração foi martelada com esse conceito de que criança que não come porcaria está sendo privada de sua infância. Quando penso numa criança feliz, a última imagem que me vem à cabeça é uma criança cheia de brinquedos e comendo Trakinas. Penso numa criança com espaço pra correr, amigos, família que a ame e, se é para falar de comida, comida boa, aquele frescor de frutas da estação num dia quente com pés na grama. Uma fatia gorda de melancia suculenta no verão.

Mas não há propaganda de melancia na televisão.

Crianças com imaginação tomam toddynho. No meu mundo, crianças que tomam toddynho correm risco de terem seus estômagos queimados por substâncias tóxicas, que é o que vem acontecendo (me pergunto se ninguém mais lê jornal, pois para mim não há recall e pedido de desculpas que me convença a comprar um Toddynho). E crianças que tomam toddynho estão jogando o dinheiro de seus pais no lixo, porque o que custa aquele soro de leite com chocolate de terceira, eu poderia derreter chocolate belga num copo de leite integral.

De todas as lembranças de infância que eu tenho, as mais positivas são desvinculadas de produtos alimentícios e ligadas diretamente a comida de verdade. Emporcalhar o uniforme da escola na amoreira do estacionamento. Tomar sorvete de limão caseiro da minha avó, na chácara. Roubar massa fresca crua de sua mesa na cozinha. Sovar panettone numa bacia com meu pai, e o dia em que o panettone dele virou um poste, porque ele colocou massa de três em uma só forma. O bolo de cenoura da minha mãe, o mesmo a vida toda. Minha mãe e sua amiga enrolando brigadeiro na cozinha um dia antes do meu aniversário. A primeira vez em que comi palmito, quando serviram potinhos de salada na pré-escola. A torta fina de goiabada que as freiras da escola serviam em dias comemorativos (uma fatia para cada aluno). O arroz doce que a avó de uma amiga sempre preparava para mim quando eu ia à sua casa. A primeira vez que comi gorgonzola, na casa dessa mesma amiga.

Os danoninhos, os yakults, as bolachas de chocolate... todos se perderam, pois estavam lá e eram só combustível. Não me lembro de momentos especiais ligados a eles, porque não havia pessoas envolvidas. Eram só coisas comestíveis. Eram apenas para preencher espaço e tempo.

Lembro-me das propagandas, no entanto. Cada uma delas. Isso deve querer dizer alguma coisa.

Então, no tempo entre escrever esse post e publicá-lo, a alergia do pequeno não melhorou, e o levamos ao hospital. Lá, descobrimos que mesmo crianças vacinadas pegam catapora, mas uma versão mais leve, que é frequentemente confundida com alergias alimentares.

Menos mal, pois seria um martírio controlar o que esse menino rouba das lancheiras dos amigos.

Agora ele está em casa, e é férias tudo de novo, só que sem poder sair no quintal pra brincar. Todo mundo trancado do lado de dentro correndo e enlouquecendo um pouco a mamãe. E no meio dos "Mamã! Iocúte cum mel por quima!" do Thomas, tem uns "Mamã! Bolo!" da Laura. O gene das sobremesas cremosas passou de pai pra filho, e o gene dos bolos passou de mãe pra filha. Vai entender.

Esse bolo foi uma estranha surpresa. Gostei da receita, pois foi daqueles momentos em que, apesar dos ingredientes diferentes, eu tinha absolutamente tudo em casa. Inclusive a rapadura e as castanhas de caju torradas, trazidas por meu pai de Fortaleza. A surpresa foi que, com tanta coisa que vai nesse bolo, eu esperava um gosto assertivo como acontece com um gingerbread. No entanto, o resultado é tão suave, inclusive em doçura, que até dá vontade de fazer uma calda. A erva-doce e a canela ficam bastante suaves, e parece que tudo se encaixa.

É também uma boa opção para quem não quer fazer bolo com açúcar branco, ou quem quer diminuir um pouco a farinha de trigo, pois quase metade é farinha de tapioca. Tapioca, aliás, que eu também tinha em casa por conta de uma amiga querida, Marina, que sempre me prepara tapioca e café quando vou à sua casa.

Daí que quando servi o bolo às crianças no meio da tarde, me peguei pensando neles: meu pai e minha amiga, e quis mandar um pedaço para que eles experimentassem, mas o bolo não coincidiu com meu pai em São Paulo, e toda a maratona da alergia-catapora impediu que eu fizesse uma visita a qualquer amiga.

Pode vir a propaganda de chocolate e salgadinho que quiser falando de compartilhar comida. Não há biscoito industrializado que se compare a dividir um bolo feito em casa com alguém.

BOLO DE RAPADURA, TAPIOCA E CASTANHAS 
(do livro Cozinhando Para Amigos 2, de Heloisa Bacellar)

Ingredientes:

  • 500g rapadura cortada em cubos, ou 3 xic. açúcar mascavo
  • 1 3/4 xic. leite de coco
  • 100g manteiga em cubinhos
  • 2 colh. (chá) canela em pó
  • 1/4 colh. (chá) cravo em pó
  • 1 colh. (chá) semente de erva-doce
  • 1 1/2 xic. coco fresco ralado
  • 1 1/2 xic. castanha de caju torrada, grosseiramente moída
  • 1 1/4 xic. farinha de tapioca
  • 2 xic. farinha de trigo
  • 1 colh. (sopa) fermento em pó
  • 4 ovos, separados
  • Açúcar e canela para polvilhar por cima


Ingredientes:

  1. Pré-aqueça o forno a 200ºC. Unte com manteiga uma forma grande para pudim. 
  2. Numa panela média, aqueça a rapadura e o leite de coco, até dissolver. 
  3. Retire do fogo, junte a manteiga, canela, cravo, erva-doce e misture bem. 
  4. Junte o coco ralado, castanha, farinha de trigo e de tapioca, o fermento e as gemas e misture até que fique homogêneo.
  5. Bata as claras em neve e incorpore rápido mas delicadamente à massa. (Misture sempre uma colherada cheia das claras à massa, batendo bem, para tornar mais leve a massa, de modo que o restante das claras seja incorporado mais facilmente. Sempre funciona.)
  6. Despeje na forma, alise a superfície, e asse por 40-45 minutos, até que fique bem dourado e um palito inserido no meio saia limpo. (Fique atento, o meu, aos 40 minutos, já estava chamuscado em cima.)
  7. Retire do forno e deixe que esfrie na forma antes de passar uma faquinha nas laterais e desenformar. Polvilhe açúcar e canela por cima. 





segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O bolo de aniversário que não era pra ser, tentou ser, quase não foi mas acabou fondo.

Foi um aniversário meio esquisito.

Primeiro, eu me acostumara a ficar um mês planejando o evento, por menor que fosse, escolhendo quitutes a preparar e, principalmente, o bolo. Mas já há alguns anos (hmmm... coincidentemente desde que Thomas nasceu), que me pego surpreendida pelo meu aniversário apenas alguns dias antes. Mas já chegou? Mesmo? Eu não planejei nada!

Esse ano ainda, eu ando meio avessa a doces, para a alegria da minha cintura. Ok, o goró corre solto, mas doce... eh. Faço para que Thomas leve de lanche, faço porque o marido pede, mas raramente me deu vontade de verdade de algum doce específico. E com o bolo, mesma coisa. Fucei, fucei, em todos os livros e revistas da casa, e não encontrei nada que me apetecesse.

Acordei no meu aniversário e não tinha bolo nenhum. Não dera tempo, não dera vontade. O café na cama não aconteceu, porque era preciso levar o pimpolho à escola e já estava todo mundo atrasado. Fico meio chateada com o pimpolho que se recusa a dar parabéns pra mamãe, porque cismou de alguma forma que o aniversário é da vovó. Volto pra casa e descubro que a luz acabou, eliminando meu plano de uma manhã tranquila botando em dia minhas séries e filmes.

Laura cochila, e eu, meio fula, querendo voltar pra cama, resolvo que o melhor a fazer é pintar, já que isso não requer eletricidade. Meu humor melhora conforme vou trabalhando, e assim que assino a tela, a pequena acorda e a luz volta. Sorrio, pensando no funcionamento do universo.

Há tempo ainda, antes de buscar o pimpolho na escola, e resolvo fazer meu bolo, afinal. O que deveria ser o bolo de aniversário mais fácil do mundo.

Apanho uma receita ponta-firme da Alice Medrich, de uma tigela só, e em cinco minutos o bolo está no forno. Duas camadas lindonas que pretendo rechear com um brigadeiro de baunilha e morangos frescos.

Não queria um bolo sofisticado. Algo de nostálgico me pegou de jeito e eu queria daqueles bolos simples de chocolate e morango, doces, úmidos, de infância, de confeitarias de bairro, antes de a gente crescer e saber o que é chocolate belga e morango orgânico.

Enquanto o bolo assa e dona Laura brinca loucamente lá fora, coloco uma lata de leite condensado na panela, uma colher de manteiga e meia fava de baunilha e cozinho até dar ponto de brigadeiro. Deixo numa tigela e, quando esfria um pouco, junto um pouquinho de creme de leite fresco.

Os bolos saem perfeitos, como sempre. Receita confiável é uma alegria só. Vou buscar Thomas na escola, almoçamos rapidamente uma massa alla carbonara de abobrinhas, e enquanto as crianças terminam de comer, resolvo montar o bolo.

Então me empolgo. Tudo está correndo bem, afinal. Olho para aqueles bolos e resolvo que vou transformá-los em quatro camadas ao invés de duas. Porque havia muito recheio para apenas intercalar dois bolos. Corto um dos bolos com fio dental, técnica linda que vou usar pelo resto da vida. O sucesso do corte me empolga mais ainda. O recheio. Hmmm... talvez tenha pouco para quatro camadas. Junto mais creme de leite. Na tigela, o ponto parece bom. Espalho colheradas na primeira camada, cubro com morangos fatiados e a segunda camada de bolo. Tudo vai bem. Mas então, ao colocar a segunda camada de recheio, o leite condensado começa a escorrer. Os morangos começam a cair pra fora. E eu vou ficando meio louca, meio desesperada, o sentimento de tudo dando errado no meu aniversário se apoderando de mim.

Me dá um siricotico, jogo todo o recheio por cima do bolo, jogo o bolo dentro da geladeira e ligo o botão do "f*da-se". A outra camada de bolo, que eu não dividi ao meio, embrulho e atiro no freezer. Thomas continua se recusando a aceitar que é aniversário da mamãe e isso me joga de novo no poço fedorento do mal humor de aniversário.

À noite as crianças ficam com a vovó e vou ao show da banda do marido, que é ótimo como sempre. Duas Guinness a mais, e minha ressaca na manhã seguinte é garantida, o que me faz acordar grogue e com a certeza de ter estragado o que deveria ser meu agradável sábado de aniversário.

Só que não.

As crianças dormiram na avó. Marido me traz café na cama e eu cochilo mais um pouco, coisa que nunca, NUNCA tenho oportunidade de fazer. Ele me leva para almoçar num bistrô tranquilo, e eu finalmente tenho oportunidade de estrear um daqueles vestidos de cintura marcada, meio anos 50, que eu queria desde a gravidez do Thomas e que comprara recentemente. O almoço é uma delícia. Vamos a uma exposição de arte contemporânea, e nos divertimos xingando quase tudo o que vemos. Meu deus, que exposição ruim. Ainda bem que a companhia é ótima. Minha mãe me liga pedindo pra deixar as crianças mais um dia, e conseguimos mais tempo para nós.

No dia seguinte, eleição e catar de volta a pimpolhada. Apanho o bolo da geladeira, já suspirando de decepção, e eis que Thomas se empolga.

"Eba! Parabens pa mamã!"
"Parabéns pra mamãe?"
"É. Aniquecaio da mamã! Cadê a quela?"
"A vela?"
"É."
Vou apanhar uma velinha perdida na gaveta.
"O cogo! O cogo!"
"O fogo?"
"É."

Acendo a vela e ele corre para apagar a luz da cozinha. E canta parabéns pra mamãe a plenos pulmões. E me dá um beijo. E agradece pela fatia de bolo. E o bolo, no fim, está uma delícia. Assim, desmontando, assim, com leite condensado escorrendo para fora do prato em direção à prateleira da geladeira. Marido rouba uma garfada. Ele que não gosta de bolo. "Pô, esse bolo ficou bom!" O bolo que quase não foi mas acabou fondo, num aniversário quase esquisito, mas que no fim, foi fantástico.

^_^

Deixo a receita do bolo em si, pois é infalível, e do recheio como sugestão, no ponto anterior ao momento em que me empolguei e estraguei tudo. Com 1/4 de xícara de creme, e deixado na geladeira para firmar, ele não vai dar problemas de escorrer. Eu produzira o dobro da receita abaixo, pois queria duas camadas gordinhas ou quatro fininhas. Mas como acabei usando um bolo só, dividido ao meio, deixo a receita original.

O BOLO DE CHOCOLATE MAIS FÁCIL DO MUNDO
(de um dos meus livros de sobremesa favoritos: Sinfully Easy Delicious Deserts, de Alice Medrich)
Rendimento: 1 bolo de 20cm alto o bastante para ser dividido ao meio

Ingredientes:

  • 1 xic. farinha de trigo (125g)
  • 1/3 xic. + 1 colh. (sopa) cacau em pó não adoçado (35g) – ela pede natural, mas eu uso o alcalinizado e não tenho nenhum problema
  • 1 xic. + 2 colh. (sopa) açúcar (225g)
  • 1/2 colh. (chá) bicarbonato de sódio
  • 1/4 colh. (chá) cheia de sal
  • 8 colh. (sopa) manteiga sem sal, derretida (115g)
  • 2 ovos grandes
  • 1/2 xic  água quente
  • 1/2 colh. (chá) extrato natural de baunilha
  • 1 1/2 xic. da cobertura de sua escolha*


Preparo:

  1. Posicione a grade do forno no terço inferior. Pré-aqueça o forno a 180ºC. Unte com manteiga uma forma de 20cm, com cerca de 5cm de altura, e forre o fundo com papel-manteiga. 
  2. Numa tigela grande, misture com um fouet a farinha, cacau, açúcar, sal e bicarbonato.
  3. Junte a manteiga derretida e os ovos e misture com o fouet (se for um fouet mais pesado; senão, use um garfo, pois a massa fica bem firme) até que a massa esteja toda úmida e pareça uma pasta bem grossa. Então bata vigorosamente, umas 30-40 batidas. 
  4. Use uma espátula para misturar a água quente e a baunilha, raspando bem as laterais. A massa ficará brilhante, uniforme, e bem mais líquida. 
  5. Despeje na forma e asse por 35-40 minutos, até que um palito inserido no meio saia limpo. Deixe que bolo esfrie na forma, sobre uma grade. Então passe uma faquinha nas laterais e desenforme, retirando o papel do fundo. Assim, já frio, o bolo se mantém em temperatura ambiente por 4 dias ou no freezer, embrulhado, por 3 meses.
  6. Para cortá-lo ao meio, apanhe um fio-dental comprido e passe à volta do bolo, como quem mede uma cintura com fita métrica. Se achar necessário, pode espetar palitos à volta, para apoiar o fio e ter certeza de que está na altura certa. Então cruze as pontas do fio-dental e puxe, como se fosse dar um nó. O fio passará por todo o centro do bolo, cortando-o de modo uniforme. 
  7. Recheie como quiser.


* Sugestão de recheio: coloque uma lata de leite condensado, 1 colher (sopa) de manteiga e meia fava de baunilha em uma panela em fogo médio-baixo e cozinhe, mexendo, até o ponto de brigadeiro. Deixe esfriar um pouco e misture 1/4 xic. creme de leite fresco. Leve à geladeira para firmar um pouco antes de usar. Então espalhe uma parte na camada de baixo do bolo, distribua morangos frescos fatiados por cima, posicione a camada superior do bolo e termine de espalhar o leite condensado por cima, decorando com mais morangos frescos. 





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