segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Finalmente, ricciarelli


Na casa de meus pais tinha formigas. 

Eu ficava louca, que era só deixar um pedacinho de bolo em cima da mesa, e em quinze minutos, lá estavam elas. A gente tentava de tudo para se livrar delas, mas elas sempre, sempre voltavam. Isso não era apenas frustrante por perder meu pedaço de bolo, ou ter que lembrar de deixar o mel e o açucareiro dentro de um pires com água o tempo todo. Era frustrante porque eu não podia fazer ricciarelli. 

Eu havia comprado o livro How to be a Domestic Goddess, da Nigella, e andava louca, querendo preparar tudo. Mas tendo voltado da Itália havia pouco tempo, eu me via quase sempre gravitando em torno de qualquer receita com sotaque italiano. E eu olhava para o nome do biscoito, a foto dos losangos esbranquiçados de açúcar, e sem mesmo ter jamais experimentado deles, sonhava com os biscoitos ao lado de uma xícara de café quentinho da Bialetti.

Acontece que tinha formigas. 

E a receita pedia para que os biscoitos fossem formados e deixados para secar sobre a mesa durante a noite. E eu já bem imaginava o que encontraria de manhã cedo se deixasse montinhos de doces envoltos em açúcar em qualquer lugar da casa. 

E os ricciarelli continuaram no campo dos sonhos, como um pedacinho inalcançável da Itália. 

O tempo passou, eu juntei os trapos com meu marido, e em nossa casa havia formigas. Mas não muitas. Elas eram mais fáceis de enganar. Mas eu não queria arriscar perder meus sonhados docinhos. 

O tempo passou mais um pouco, e nos mudamos para outro apartamento. Lá não havia formigas. Mas já passara tantos anos da ideia de produzir os biscoitos, que eles acabaram virando apenas isso: uma ideia. Acostumei-me a pensar que "um dia faria ricciarelli", e nunca me ocorreu de fato prepará-los.

O tempo passou ainda mais e mudei de cidade. Ironicamente, nessa casa com quintal quase não há formigas. Do lado de dentro, pelo menos. Mas acho que elas tem mais o que comer lá fora. E depois de muita esquizofrenia culinária, me vejo novamente namorando todos os meus livros de cozinha italiana, de todas as partezinhas deliciosas da Itália. E, folheando aquele mesmo livro toscano da Tessa Kiros (ou tentando, com Madame Bochechas querendo parar em todas as páginas com foto, esperando que eu diga o nome do prato), dei de cara com eles de novo, os ricciarelli. 

Talvez tenha sido o fato de a receita vir de outro livro, mantendo aquela outra intocada no campo das ideias no livro da Nigella, como um vestido de festa que você nunca tem coragem de usar. Talvez tenha sido o fato de, na última viagem à Itália, ter enfim provado o danado do biscoito, em Siena, onde são feitos, e trazido o docinho mais para perto da terra firme. 

O que importa é que apanhei claras, pelei e moí amêndoas, e produzi ricciarelli. Ou não. 

As amêndoas moídas não ficaram tão finas quanto a receita pedia, e elas não se misturaram como deviam às claras em neve, que também não incorporou bem o açúcar orgânico, já que era para usar uma mistura do comum com o de confeiteiro. A textura do biscoito ficou errada, úmida demais, não os sequei por tempo o bastante, e os biscoitos espalharam como cookies no forno. Ficaram uma delícia, é verdade, e minha mãe e eu (amantes de biscoitos italianos de amêndoas ou qualquer coisa parecida), devoramos tudo. Mas não eram ricciarelli.

O bom de errar uma receita simples como essa, é que hoje em dia não me conformo com o erro. Quero logo fazer de novo, provar que consigo, entender que bobagem eu fiz. Isso bem aconteceu com os últimos pães que fiz. E aqui vai um pequeno adendo à história dos biscoitos... 

Quando começamos a fazer cerveja em casa, incorremos no erro de principiante de comprar uma saca imensa de um tipo de malte que só se usa em quantidades ínfimas de poucas receitas. E havia um tempo que, para não jogar tudo fora, eu estava com a ideia de moer o malte em forma de farinha para usar em pães e doces. Deu super certo com cookies de chocolate, substituindo toda a farinha de trigo pela de malte torrado. Mas o pão... O primeiro solou. O segundo solou. O terceiro solou. E, usando uma receita super básica, que já transformei à exaustão com bons resultados, não conseguia imaginar o que estava acontecendo. 

Foi só ao preparar o pão italiano integral de uns dias atrás, que me lembrei do erro boçal que cometera: moera o malte com a casca, achando lindo usar aquela farinha tão integral, mas esqueci que as pontas afiadas da casca estavam estourando o glúten e as bolhas de ar dentro do pão. ¬_¬ Informação aprendida no último livro do Pollan, quando ele tenta fazer pão de fermentação natural totalmente integral.

A gente erra, erra de novo, aprende, e conserta. 

Imbuída pelo desejo de redimir os ricciarelli e trazê-los de vez do mundo das ideias direto para meu pires de café, descongelei algumas claras, raspei a casca de uma tangerina (pois não tinha laranjas ou limão siciliano) e usei farinha de amêndoas comprada pronta, bem fininha. E açúcar de confeiteiro. Quando fui misturar as claras em neve com a mistura de amêndoas, achei que não fosse dar certo. Achei que ficaria seco demais. Mas funciona. As amêndoas absorvem  as claras o bastante para formar uma mistura arenosa e firme, apenas um pouco grudenta. Deixei que secassem por mais de três horas. E, no forno, eles mantiveram sua forma. 

A tangerina e as amêndoas funcionaram lindamente, e os biscoitos são aromáticos e deliciosos, do jeitinho que os biscoitos italianos são, com um toque de austeridade. Eles são crocantes na mordida, e vão ficando mais macios no centro, e derretem na língua. Acompanham maravilhosamente uma xícara de café. E são tão fáceis de fazer, que sei que eles vão aparecer muito mais vezes na minha cozinha, redimidos, trazidos definitivamente para terra firme. E sem formigas. Quer dizer... não com Thomas saindo pela casa deixando açúcar de confeiteiro cair pelo chão a cada mordida... ¬_¬

RICCIARELLI
(do ótimo Twelve, de Tessa Kiros)
Rendimento: cerca de 20 biscoitos

Ingredientes:
  • 300g farinha de amêndoas
  • 280g açúcar 
  • 150g açúcar de confeiteiro
  • 1 colh. (chá) fermento químico em pó
  • casca ralada de 1 laranja (ou tangerina, ou limão siciliano)
  • 2 claras de ovo grandes


Preparo:
  1. Forre uma assadeira com papel-manteiga ou silpat (usei silpat). 
  2. Numa tigela grande, misture a farinha de amêndoas, o açúcar comum, 100g do açúcar de confeiteiro, a casca de laranja e o fermento.
  3. Bata as claras até obter picos suaves, não muito firmes. Usando uma colher de pau, incorpore as claras às amêndoas. Não se preocupe em manter o ar das claras. Amasse bem com a colher, até obter uma massa úmida e firme. 
  4. Forme pequenos ovais de 6x4cm, com a ajuda de uma colher. Transfira os ovais para uma assadeira ou duas, deixando algum espaço para que se espalhem um pouco. Polvilhe com metade do açúcar de confeiteiro restante, e deixe os biscoitos secarem por 2-3 horas em temperatura ambiente. 
  5. Pré-aqueça o forno a 140ºC (se seu forno não mantiver uma temperatura tão baixa, prenda uma colher de pau na porta, para mantê-lo ligeiramente entreaberto – foi o que fiz, checando no termômetro se a temperatura estava correta). 
  6. Asse os biscoitos por 30 minutos, ou até que estejam ligeiramente dourados e pareçam firmes por fora. O interior deles estará mole ainda. Retire do forno e deixe que esfriem um pouco antes de polvilhar o restante do açúcar por cima. Os biscoitos se mantém por cerca de 1 semana em pote fechado.




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