Daí, quando fui à Itália pela primeira vez, encantei-me por toda aquela cozinha não explorada nas cantinas de São Paulo nos anos 80 e 90, ou mesmo por minhas avós, talvez por pura falta do ingrediente certo. Quando voltei, mergulhei nos livros de culinária, com a aspiração de reproduzir aqui o que sentira durante minha viagem, através da comida. Tinha esperança de sentir de novo a brisa marítima da Costa Amalfitana ao cozinhar o mesmo spaghetti alla puttanesca que comera num restaurantezinho de Positano, cujo dono colocara no rádio as mesmas músicas italianas antigas que meu pai ouvia na minha infância, de uma fita cassete que tinha na capinha justamente uma foto... de Positano. Inception. ;) Uma coincidência e um momento especial que jamais conseguirei reproduzir na vida. E foi o que descobri quando preparei a receita tal e qual os livros mais tradicionais indicavam e, por delicioso que estivesse, a brisa marítima não veio, a canção ao fundo não era a mesma e eu olhava para um dia cinza e paredes de concreto ali fora da minha janela.
Então vieram livros de confeitaria que meus dedos, pouco dados a tarefas minuciosas que não envolvam pincéis, não conseguiam reproduzir em toda a sua perfeição visual. E tantos outros que, lidos, produziam em mim essa aspiração de ser "um tipo de pessoa". "O tipo de pessoa" zen. Não. "O tipo de pessoa" elegante. Not. "O tipo de pessoa que só come o que colhe do quintal". Nein. "O tipo de pessoa que gasta 5 reais por refeição para 6 pessoas." Fué.
Ao longo do tempo, fui percebendo que estava abordando meus livros de forma errada. E que ao invés de ASpirar ser algo através da comida, era mais gostoso me INSpirar pelos livros. E nossa, como alguns livros são de fato inspiradores. Tenho alguns, mesmo, cujas receitas quase nunca preparo, mas que às vezes apanho para folhear e me lembrar de uma sensação de que gosto na cozinha, ou de um estilo, uma visão diferente dos ingredientes. Caso do Nigel Slater, que eu adoro de paixão, mas cujos livros sempre apanho, folheio, folheio, folheio, e parece que nunca tenho todos os ingredientes necessários para nenhum prato seu. No entanto, sua abordagem da cozinha é tão relaxante, que basta uma olhadela num livro seu para que eu mude o rumo de um jantar sem ideias. Quase sempre uso suas receitas como linhas-guias para outra coisa, feita com os ingredientes que tenho em casa.
Outra fonte que tenho devorado nos últimos dias, desde que a Patrícia me indicou, é o site Green Kitchen Stories. Talvez porque eles tenham uma atitude que condiz com o meu momento culinário, de usar diversas farinhas e leites vegetais não por conta de uma alergia ou política pessoal, mas apenas pelo benefício da variedade. É inspirador o modo como eles experimentam com misturas de ingredientes e sabores diferentes, e só de ver as cores dos pratos já tenho vontade de me desafiar a colocar a maior quantidade possível de legumes em uma só refeição. O site é cheio de informações nutricionais, mas sem o tom militante ou terrorista de outros sites do gênero. Os crepes de sarraceno e espinafre, que fiz aqui com leite de amêndoas fresquinho e recheei com queijo minas em cubinhos e abobrinhas refogadas e alho e manjericão, foram devoradas. Engraçado foi ver o Matador de Dragões comendo os crepes super verdes e deixando o queijo (justo o queijo!) no prato. ;) A infusão de mel com gengibre, cúrcuma, limão e pimenta também veio em boa hora, já que a família toda está com tosse, todo mundo junto ao mesmo tempo. Em boa hora, também, porque eu tinha acabado de colher a cúrcuma do quintal, e não sabia bem o que fazer com ela. Hoje à tarde vai também virar uma versão do lassi que eles indicam.
De todos os meus livros, no entanto, os que mais me inspiram são os do David Tanis. Não que eu pretenda a qualquer momento preparar orelha de porco ou risotto de lagosta. Mas no meio dessas receitas menos acessíveis, há um texto maravilhoso que sempre me traz de volta à terra. Seu elogio à simplicidade da refeição (em termos de conceito e não de preço), sempre me coloca de volta no eixo, quando começo a complicar demais e me atrapalhar. Basta olhar para o livro na estante para me lembrar de que posso servir uma fatia de queijo e um pedaço de fruta de sobremesa (e ter essa alegria de ver os pimpolhos curtindo pera com gorgonzola ou banana com queijo branco e canela do mesmo jeito). Que uma mesa bonita não é necessariamente uma profusão de pratos complexos, mas às vezes simplesmente um peixe feito direito e um prato de vagens cozidas al dente e temperadas com bastante azeite e limão. A gente que gosta de cozinhar às vezes se empolga e entra em uma maratona culinária, quando muitas vezes, para aquele almoço bom, aquelas boas memórias, basta tomates maduros com sal, um bom pão. Ao invés de transformar as maçãs que tinha em casa em uma torta, simplesmente coloquei-as no forno, e as crianças se esbaldaram (adultos também). [Só tirar os miolos, colocar um tantinho de açúcar e um splashzinho de conhaque – já usei rum ou calvados –, fechar as tampinhas e levar ao forno médio numa travessa por 45 minutos ou até que as cascas dourem e estourem. Deixar amornar e servir com a caldinha que se forma na travessa. Com iogurte, então, fica uma delícia. Achei mais detalhado aqui.]
Nessa fase em que ando preparando uma sopa atrás da outra, sorri ao ler um trecho de um de seus livros esses dias, em que dizia que poderia facilmente viver de uma dieta de sopa e vinho: um potinho de sopa, uma tacinha de vinho. Bom... eu também.
Essa sopinha de lentilhas e berinjelas é deliciosa, cremosa e satisfaz. E vai bem com uma tacinha de vinho. Não omita o passo de assar as berinjelas, pois isso lhes dá um sabor defumado delicioso. A receita original pedia para que se usasse lentilhas verdes, francesas, caras pra chuchu. Considerando que as lentilhas francesas são boas porque se mantém al dente, mas que estamos falando de uma sopa, em que tudo tem que virar purê, substituí por lentilhas comuns brasileiras, porque eu sou "o tipo de pessoa" que acha que dinheiro não nasce em árvore.
SOPA DE LENTILHAS E BERINJELAS ASSADAS
(de uma antiga revista Food & Wine)
Tempo de preparo: 50 minutos
Rendimento: 4 porções
Ingredientes:
- 600g berinjela, de preferência maiores, cortadas em quartos no sentido do comprimento
- 2 colh. (sopa) azeite de oliva
- sal e pimenta à gosto
- 1 xic. lentilhas
- 1 punhado de folhas de sálvia fresca
- 2 xic. caldo de galinha ou legumes
- 1 xic. leite
- 1 colh. (sopa) suco de limão
Preparo:
- Pré-aqueça o forno a 205ºC. Coloque as berinjelas com a casca para baixo numa assadeira, tempere com sal, pimenta e 1 colh. (sopa) azeite. Asse por 30 minutos ou até que as berinjelas estejam muito macias, mas não queimadas.
- Enquanto isso, numa panela média, cubra as lentilhas com 5cm água. Junte 1/2 colh. (chá) sal e 2 folhas de sálvia e leve à fervura. Abaixe o fogo e cozinhe em fervura branda por 20 minutos. Escorra as lentilhas e descarte as folhas de sálvia. (No meu caso, sobrou tão pouco líquido das lentilhas, que não escorri, simplesmente incorporei à sopa. E recomendo que se faça o mesmo, afinal todo o sabor e nutrientes estão ali.)
- Raspe a polpa das berinjelas com uma colher e coloque no jarro do liquidificador. Descarte a casca. Junte o caldo de legumes ou galinha e as lentilhas e bata até que fique homogêneo (faça em partes, se for muito volume para seu liquidificador).
- Volte tudo para a panela, junte o leite e o limão e leve à fervura branda. Ajuste o sal e a pimenta e mantenha a sopa quente enquanto termina a guarnição.
- Numa frigideira pequena, aqueça a outra colher de azeite. Junte as folhas de sálvia restantes e cozinhe em fogo médio até que fiquem crocantes.
- Sirva a sopa, guarneça com as folhas de sálvia e um fio de azeite. (A sopa pode ser feita no dia anterior.)
9 comentários:
Oi Ana!
Estou começando a me inspirar na variedade de sopas... eu amo sopa,mas não consigo sair do quarteto ervilha-lentilha-abóbora-mix dos mesmos legumes por... medo de não gostar (e principalmente, da família não gostar).
Mas estou me sentindo mais inclinada e tentar com seus posts :) até porque nenhuma das receitas já feitas daqui me decepcionou quando tentei fazer.
Obrigada por compartilhar tantas dicas e receitas.
Beijinhos!
Tão bom saber que vc está curtindo o blog que indiquei tanto quanto eu. Tô louca pra provar algumas receitas de lá, incluindo os crepes verdinhos (que delícia esse recheio que vc inventou, meldels).
Amo sopas, faço pouco, deveria fazê-las com mais frequência. O bem-estar que sinto depois de uma tigela de sopa é qualquer coisa. Nunca fiz sopa com beringela, preciso provar.
xx
E de repente... já achei o que fazer com a montanha de berinjelas da geladeira! Sopa it is!
Eu finalmente voltei a cozinhar outra coisa que não é ovo com legumes hahaha Outro dia eu fiz grão de bico cozido com pesto de salsinha (inspirado no seu feijão manteiguinha de alguns posts atrás), e hoje fiz um habúrguer de arroz, feijão e coentro ;) Agora como vou me inspirar na sopa, isso será um problema: o verão chegou com tudo :( Pelo menos fica na lista pro inverno, hehe.
Abraços
adoro ler seus textos.V oce escreve de tal forma que me leva sempre a esperar pelo seu proximo post. adoro quando fala da Italia. Confesso que, as vezes tambem tento reproduzir algo que comi em algum lugar, so. para tentar me levar de novo ao mesmo atravez das recordacoes. Acho linda a preocupacao que voce tem com seus filhos. Desejo a voces muita felicidade. obrigada pelos textos e receitas. com carinho
M celia
Ana,
Quase nunca comento aqui, mas por preguiça que por qualquer outro motivo nobre.
Mas... Já que falou em inspiração... Esse é o modo como frequento seu site. Bem nesse espírito, se não sei o que fazer (com tal e qual ingrediente ou não) vou dar uma olhada no LaCucinetta.
Isso sempre funciona. Mesmo que seja para pelo menos pegar um fio de ideia para o jantar. Ontem mesmo aconteceu isso: estou numa fase de sopa forçada (não que não goste, mas temporariamente é só o que posso comer e tá me dando nos nervos) e vim aqui para procurar o que fazer com brócolis um dos meus último vegetais na geladeira.
Resultado: fiz uma adaptação da ótima sopa de brócolis com Stilton substituindo a batata por inhame, porque era o que tinha.
Já estou me alongando. É isso, uma inspiração puxa a outra e seguimos.
Beijos
Ana
Teu blog me inspira na cozinha e na vida. Obrigada!
Lara
Fiz a sopa hoje e ficou incrível! Muito obrigada pelas constantes inspirações... Beijos!
Mais uma vez, obrigada por uma ótima receita de sopa. Mais uma vez, fiz a receita desconfiando do resultado final e pá! Ficou ótima! ; )
A sálvia de guarnição ficou deliciosa!
Bjim.
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