segunda-feira, 6 de abril de 2009

Porque somos todos humanos

Dezembro de 2005.

Ainda havia caixas fechadas na sala. O apartamento tinha um cheiro forte de produtos de limpeza, tinta fresca e pessoas que não éramos nós, que haviam habitado aquele lugar por sabe Deus lá quanto tempo. Eu sabia que demoraria um bocado para que aquela sala tivesse nosso cheiro e nossa cara. A cozinha possuía apenas fogão, geladeira e uma mesa de madeira, que eventualmente iria para a sala. Por enquanto, ela era minha bancada de trabalho. A louça branca continuava empilhada dentro de um caixote plástico, no quarto, enquanto não decidíamos onde guardá-la.

Apanhei minha bolsa e fui pela primeira vez ao supermercado com intenções de abastecer minha inexistente despensa. Preciso de sal. E açúcar orgânico. É, eu já consumia açúcar orgânico naquela época. E farinha. E lentilhas, pois era Dezembro e logo viria o Ano Novo, e eu não poderia pensar num Ano Novo sem lentilhas. E óleo. E azeite. E arroz. E feijão. Dois tipos. Não, três. E milho para pipoca, pois eu posso querer comer pipoca, e o Allex adora pipoca. E caldo de legumes. O de cubinho. Qual? Parece tudo igual. Ah, o que tiver embalagem mais bonitinha. Que tiver mais legumes desenhados. Tá bom. A arroz para risotto. Nossa, que caro... E geléia, para o café da manhã. E manteiga. Com sal e sem sal. E suco. E groselha. E macarrão: fusilli, spaghetti, penne, rigatoni, tortellini de queijo... E orégano, pimenta, mostarda em pó, mostarda de Dijon, mostarda alemã, ketchup, maionese... Ah, e sorvete de creme, porque o Allex é doido por sorvete de creme, e precisamos ter sempre sorvete de creme na despensa, porque é muito versátil. Qual que ele gosta mesmo: N. ou K.? Uh, olha só: ervilhas congeladas. E brócolis congelado. Que mão na roda! Espinafre também! E favas! Ai, vou comprar aquele quibe vegetariano congelado que parece quibe de verdade. E pão de queijo. Para comer com requeijão.

Voltei para casa carregando comida suficiente para oitenta e três pessoas, e comecei a quebrar a cabeça para encaixar todos os itens nas duas pequenas prateleiras da área de serviço e no meu diminuto freezer tinindo de novo.

Tudo acertado, agora era hora de comprar os itens frescos para nosso primeiro almoço em nossa primeira casa. Saí a passos firmes em direção à feira. Minha mãe nunca fora fã de feira. Ela não gostava do barulho, da sujeira na rua e do método de venda ligeiramente agressivo e impaciente que alguns feirantes podem adotar. No entanto, não fazia um ano que eu voltara de minha viagem à Itália, e eu ainda tinha fresco na memória um estilo de vida quase bucólico, do qual as feiras faziam uma importante parte. Na minha mente, eu encontraria produtos maravilhosos e orgânicos, e faria amizade com os feirantes, trocando receitas e histórias. Ao chegar lá, no entanto, fui atendida às pressas depois de escorregar em uma pilha de folhas de alface murchas, e acabei levando ao menos sete tipos de frutas e legumes caros e fora de temporada que eu na verdade não queria. Voltei para casa atordoada e frustrada, mas empolgada por ter encontrado o que eu então só conhecia pelo nome italiano: feijões Borlotti.

Em casa, comecei a preparar a primeira de muitas refeições naquela cozinha. Tinha firme em minha mente o sucesso certo daquele almoço e de muitos outros. Imaginava meus amigos todos passeando pelo pequenino apartamento, com taças de vinho em uma mão e crostini na outra, esperando que eu terminasse de servir o primeiro dos três elaborados pratos daquele encontro, que seria então coroado com alguma sobremesa que seria "a melhor que eles já haviam provado", segundo todos me diriam.

O fato de até então nunca ter preparado mais de um prato de cada vez, quando na casa de meus pais, não parecia importar muito naquela minha fantasia.

Resolvi começar simples, àquele dia. Apenas arroz, feijão, quibe vegetariano e uma saladinha. O arroz era fácil. Vira minha mãe preparando arroz branco durante toda a minha vida. Pica cebola, refoga no óleo, junta o arroz, mexe, mexe, mexe, junta a água fervendo, tampa. O quibe era também fácil, vinha com instruções na embalagem. Não vou fritá-lo, pensei. Vou fazer no forno, que é mais saudável. Os feijões Borlotti já haviam sido debulhados, e, seguindo o livro de cozinha toscana, estavam na panela com água, azeite, louro e alecrim. Lindos, brancos e salpicados de rosa.

Quando tudo parecia pronto, Allex já se sentara à mesa, esperando por mim. Queria colocar tudo em travessinhas à mesa, mas quando fui transferir o arroz, veio a primeira surpresa: estava empapado.

"Não tem problema, eu gosto de arroz empapado", tentou Allex, lendo a decepção em meu rosto.

Servi os quibes, que pareciam bons, mas à primeira mordida, mostraram-se queimados por fora e ainda congelados por dentro.

"Não tem problema", tentou ele novamente, "a gente bota ketchup em cima e tá bom".

E quando todas as minhas esperanças se depositavam em meu lindo feijão cor-de-rosa, ele se revelou cinza. Ninguém nunca me dissera que feijão corado fica cinza depois de cozido, e muito menos que ele não faz caldo! Não é à toa que todas as fotos dos livros de culinária só mostram os feijões ANTES. Olhar para aquelas bolinhas cinzentas nadando em água cristalina foi no mínimo triste. Não sabia o que fazer, e comecei a amassá-los, na tentativa de criar um caldinho. Provei. Sem sal. Mas a receita não mandava colocar sal. Seriam comidos assim? Coloquei sal. Mas ele se dissolvia na água e não parecia atingir os feijões de fato.

"Tudo bem, não dá para acertar sempre", disse Allex, ainda em tom conciliatório.

Comi triste aquela que é considerada até hoje a pior refeição já preparada por minhas mãos, quase superada apenas pela torta de pé.

Conforme o tempo foi passando, fui acertando o arroz branco, mas continuava errando feio no arroz integral, que hoje, finalmente, comecei a acertar. O quibe vegetariano ficou na história, conforme fui parando de comprar comida pronta. Os feijões Borlotti continuaram um desastre por muito tempo até entender que seu segredo está no tempero pós-cozimento. Depois de cozinhá-los com alguns dentes de alho inteiros, alecrim, sálvia, louro, azeite, pimenta e um tomate (que os torna menos acinzentados), eles devem ser escorridos e temperados com sal, pimenta, salsinha fresca, um fio generoso de azeite e um nadinha de vinagre. E só então você entende a paixão dos toscanos por feijões, pois eles são, de fato, uma perdição. A água deliciosamente aromática em que eles foram cozidos pode e deve ser usada em sua próxima sopa de legumes.

E o que aconteceu àquela lentilha de Ano Novo? Ficou na prateleira, fechada, até um dia, um ano depois, em que tentei preparar um prato árabe de arroz, lentilhas e cebolas caramelizadas, que resultou em lentilhas duras sobre arroz empapado e cebolas queimadas.

Cozinhe isso também!

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