sábado, 16 de agosto de 2008

Lembranças de pasta e vino...


Ao pensar em minhas recentes férias na Califórnia, dou-me conta de que há ainda muito sobre o que escrever. Meu grande problema literário é que quase todas as histórias começam da mesma forma: "eu não dava nada por aquele lugar; porém..." Depois da viagem à Itália e da descoberta dos mais deliciosos pratos nos lugares menos prováveis, era de se esperar que eu não viajasse mais munida de qualquer espécie de preconceito. Mas, fazer o quê, talvez tenha assistido a muitos documentários pixando os Estados Unidos como a Meca da junk food, e por isso mesmo desconfiasse de qualquer restaurante que não tivesse cara (ou nome) de bistrot francês. Atire a primeira pedra quem nunca julgou um livro pela capa.

No entanto, foi interessante notar que, no mesmo dia, tive diferentes experiências gastronômicas que contrariaram minhas expectativas: um lugar que sugeria comida ruim foi sensacional, e o que era caro, cheio de mequetrefes e prometia que era uma beleza, serviu-me comida insossa e com um péssimo atendimento.

Mas falemos das coisas boas, que já estou exausta de reclamar e você, querido e companheiro leitor, deve estar exausto de ter ouvidos de penico (ou seriam olhos?).

Naquela manhã acordáramos em Sonoma com um objetivo: degustação de vinhos. Para ser mais exata, eu acordara com esse objetivo, uma vez que minha tia, além de ser a motorista designada, não era lá muito fã da coisa. Sem ter feito minha lição de casa com a enorme apostila do curso de sommelier que deixara em São Paulo, decidi que o acaso e a opinião alheia nos direcionariam às vinícolas. Tenho vergonha de dizer que foi um cupom de desconto dado pelo escritório de turismo da cidade que nos levou à primeira. Ok, eram onze horas da manhã e tudo o que eu queria era vinho. Eu sei, eu sei, são os sinais do alcoolismo, mas ah! vá! eu estava de férias! Larga do meu pé.

Fomos atendidas em um salão amplo, de pé direito muito alto, com um comprido balcão de madeira escura. Tudo muito sóbrio, sério, combinando com o longo caminho de cascalhos ladeados de árvores antigas que nos trouxera do estacionamento até ali. Havia apenas mais um casal a uns dois metros de distância, e nossos pensamentos ecoavam no salão. Um senhor magro, grisalho, quase britânico com seus óculos de aros finos e perfeitamente redondos apoiados à ponta do nariz comprido, veio apanhar nossos cupons e nos mostrar o cardápio da degustação. "Esses são os do cupom; estes outros aqui são nossos vinhos especiais, reserva", disse ele, educadamente, servindo-nos nossa primeira taça.


O vinho era muito bom, e imediatamente comecei a comentar com minha tia, em português, ao que o senhor ficou curioso. Sem conhecer muito os termos específicos em inglês, enrolei um pouco os termos em francês e começamos a conversar sobre os vinhos. Ele quis saber o que eu achava daquele.

Segunda taça. Minha tia esboçou um tímido ok, e por isso mesmo surpreendeu-se com meu entusiasmado "hhhhhmmmmmmmmmm, que vinho booooooooooooooom..."

"Você gostou desse?", perguntou-me o senhor, com um meio sorriso suspeito.
"Nossa, ele é muito bom!"
"Jura? Você achou tudo isso?", perguntou minha tia, achando que o problema fosse seu paladar.
"Aaaaah", explicou ele, "eu não servi o mesmo vinho para as duas." Aproximou-se um pouco do balcão, mantendo ainda a postura, e baixando a voz quase em um cochicho. "Eu servi a você este aqui", disse, apoiando a ponta do dedo fino e comprido sobre um dos vinhos reserva. "Não conte a ninguém."

Terceira taça. Mesmo truque. "Eu vou mimar você um pouco", disse ele, sorrindo. Ao fim das cinco taças, quatro das quais custando o triplo dos vinhos que beberíamos com o cupom, não resisti e comprei uma garrafa de Pinot Noir. Excelente vendedor, pensei.

Seguimos para a próxima vinícola, mais ampla, réplica de château francês no limiar do bom gosto, prestes a cair para o lado Disney da coisa. Aproveitei para fotografar os vinhedos e as flores, olhar em volta e respirar aquele lugar tão diferente de minha casa.

Atravessamos os jardins bem cuidados em direção a um salão um pouco mais comercial, cheio de souvernirs e os mais diversos acessórios ligados a vinho. Assim que nos aproximamos do balcão, um homem veio nos avisar: "Daqui a cinco minutos um ônibus cheio de turistas barulhentos chegará aqui. Se vocês quiserem apreciar o vinho com calma, é melhor irem à sala reservada, do outro lado do jardim. Lá eles têm outras cartas de vinho, também." E a caminho da tal sala já podíamos ouvir a algazarra da turistada.

Nesta sala, fomos atendidas por uma mulher bonita, loira e entusiasmada, cheia de vontade de conversar sobre seu vinho com quem estivesse disposto. E eu estava disposta. E tão logo a conversa começou, começaram os mimos. Lá, bebi um dos Chardonnay mais fantásticos que já provei.

"O Chardonnay californiando tem fama de ser amanteigado", explicou ela, "o que nem sempre é bom. Mas esse é diferente, veja se você percebe... É um dos nossos melhores vinhos!"
"Uaaaau! É como... nossa! É como crème brulée engarrafado!!"
"Exato!"

Quando me dei conta, ela já estava servindo a sétima taça em uma degustação que previa apenas cinco, apenas pelo prazer de ver se eu conseguia sentir a diferença de um vinho para o outro. Correndo o risco de estragar na mala (o que não aconteceu), precisei comprar o Chardonnay, ao saber que ele era vendido apenas na vinícola. Aaaaah, se eu tivesse uma cave, teria levado uma caixa inteira...

Por indicação dela, fomos a uma pequena loja ali perto para provar alguns vinhos de boutique. Algumas taças depois, descobri um de sobremesa fortificado (é um Porto, mas eles não podem chamar de Porto) tão bom, mas tão bom, que até minha tia que não é fã levou uma garrafa para ela. E eu também.

Depois de tanto vinho, no entanto, eu estava faminta e precisando urgente de algo no estômago para não passar nenhum vexame. O senhor do vinho do Porto nos indicou um restaurante italiano ao lado. Por falta de paciência de procurar outra coisa, decidimos tentar.

Por fora, o lugar era simples. Por dentro, então, uma decepção. Um balcão separando você da cozinha, no melhor estilo Mc Donald´s, e uma lousa branca acima de nossas cabeças, com os molhos e tipos de massas escritos à caneta, à disposição para o freguês combinar como quisesse. Pedi penne ai funghi porcini e titia pediu penne alla putanesa. E fomos nos sentar do lado de fora, em cadeiras de plástico e mesas cobertas de toalhas também plásticas.

Já estava esperando o pior, quando nossos pratos chegaram. Sensacionais, perfumadíssimos, saborosíssimos. E não era apenas a fome falando. Os porcini eram frescos, macios, deliciosos, e em pedaços muito pouco tacanhas, a massa estava perfeitamente cozida, e o queijo era de qualidade. Titia fez tantos elogios a seu prato que insistiu para que também o fotografasse. Uma das melhores refeições que tive durante a viagem, e em um dos lugares mais capengas.


Sentindo gosto da Itália na boca, resolvemos aproveitar o tema e conhecer um tal de mercado italiano em uma das grandes vinícolas no outro extremo da região. Ao chegarmos lá, a grande quantidade de ônibus estacionados embaixo de auto-falantes tocando música italiana já nos avisava do que estava por vir. Claro, o lugar era um parque temático. O mercado não era nada interessante, e todo o complexo era uma armadilha para turistas. Tanto, que não tive vontade de experimentar seus vinhos, ao ver como eles faziam daquilo um espetáculo brega, ao contrário dos outros lugares onde estivéramos.


Restou-nos apreciar a vista, essa sim fantástica. Sentamo-nos em um dos amplos terraços e ficamos quietas, observando as vinícolas que se estendiam sobre colinas douradas e suaves. A música italiana tocava, o gosto dos porcini ainda estalava em minha língua; olhei à minha volta, para as flores, os pinheiros italianos, a cópia de villa num terracota que jamais será a terracota dos antigos casarões da Toscana, e me vi, ridícula, de olhos marejados. O peito apertou de saudades da Itália, e me perguntei como era possível que me doesse tanto a distância de um lugar onde passei tão pouco tempo de minha vida...

Levantei-me e fui embora, sem olhar para trás, revoltada com como algo tão falso pôde resgatar em mim saudades da experiência verdadeira. Pensei nos vinhos que me esperavam no porta-malas do carro e nas refeições que estavam por vir e segui em frente. E prometi a mim mesma não julgar mais os restaurantes por sua cara, mas continuar julgando vinícolas se suas cedes parecerem feitas de fibra de vidro.

Cozinhe isso também!

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