terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Um bolo feio para um prato bonito (UPDATED)

Há uma semana atrás, pedi pela internet um prato de bolo de cerâmica preta, estilosíssimo, que eu queria havia muito tempo. Ok, meu lado prático diz: casa pequena, coisas demais; você não precisa de mais uma tranqueira. Mas meu lado cozinheira (e possivelmente meu lado menininha cor-de-rosa sem noção, completamente suprimido por uma personalidade "tô nem aí") acha um horror não ter um prato decente para expor um bolo.

Quando o bendito chegou, entretanto, foi a decepção das decepções. A cerâmica era vagabunda e o prato viera todo riscado. Estava na cara que a pintura não duraria nem três esfregões com esponja macia. Fazer o quê? Devolvi e pedi meu dinheiro de volta.

Tendo testemunhado minha profunda frustração por causa do prato, minha mãe resolveu ser um doce (para não dizer "mãe do ano") e aplacar minha tristeza com um prato de bolo decente (mais do que decente) da Le Creuset. Lindo, vermelho como minha panela, com bordinhas para aparar caldas que escorrem e que ainda por cima pode ir ao forno. Não fiquei contente, não...

Para estrear o prato, resolvi preparar um bolo do tipo "dá certo sempre", para evitar maiores problemas, e um a que sempre recorro quando estou com preguiça de lavar louça, pois ele não suja mais do que uma tigela e uma colher. Recorri a um livrinho que adoro, que comprei em Verona, nem tanto pelas receitas mas (e é aí que a profissão toma conta) pelo projeto gráfico: Torte Rustiche Come Le Faceva La Nonna ("Bolos rústicos como fazia a vovó"). A carinha de caderno pautado de páginas amareladas, as ilustrações aquareladas, as receitas italianíssimas (e algumas austríacas, como Sacher Torte, Stollen e Apfelstrudel; vê-se que os autores eram do norte)... Como eu poderia resistir?

A primeira vez que fiz esse bolo foi ainda na casa de meus pais, e lembro-me de ter ficado surpresa com sua intensidade. Adoro também seu nome: Il Moro ("O Mouro"), que sempre faz com que me lembre de quando li Othelo pela primeira vez, e me deixa curiosa a respeito da época em que a receita foi criada. Todos os bolos, doces e tortas do livro são, segundo seus idealizadores, parte de uma compilação de vários cadernos de receita antigos e tradicionais, e por isso quase todas as receitas são bastante simples e podem ser feitas com apenas uma colher de pau, ou, no máximo, um liqüidificador. Nada de processadores, nada de etapas complicadas, nada de ingredientes exóticos. E é justamente essa característica tão doméstica que me atrai a esse livro específico, o que considero estranho, já que, em geral, fujo de receitas-lambança "feitas para a dona de casa". Tudo o que, sou obrigada a admitir, afasta-me da cozinha "doméstica" brasileira, me atrai à cucina casalinga... Não consigo evitar, e sei que para muitos é como dizer que não gosto de música brasileira.

Desvios à parte, este não é o bolo mais bonito que eu poderia produzir para estrear o prato, mas é, sem sombra de dúvida, o bolo de chocolate mais fácil do mundo. Como não havia laranjas, usei 1 colher de chá de água de flor de laranjeira, mas acho que ainda prefiro o frescor das próprias frutas, ainda que a flor de laranjeira tenha contribuído com um sabor ligeiramente exótico e, por que não, um toque ainda mais "mourisco". Transcrevo aqui a receita, traduzida, pois eu sinceramente duvide-o-dó que alguém encontre esse livro para comprar em outra língua que não o italiano.

IL MORO
(do livro Torte Rustiche Come Le Faceva La Nonna)
Tempo de preparo: 10 minutos + 20-25 minutos de forno
Rendimento: 8 fatias


Ingredientes:
  • 150g de farinha de trigo
  • 170g de açúcar cristal orgânico
  • 1 ou 2 pitadas de canela
  • 2 colh. (chá) de fermento químico em pó
  • 80g de cacau em pó (NÃO USE chocolate em pó)
  • casca ralada de 1 laranja
  • 100ml de leite
  • 1 ovo

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 200ºC. Unte e enfarinhe uma forma de bolo de 20cm, forrando o fundo com papel vegetal manteiga. Como o bolo leva muito cacau, ele tende a queimar mais rapidamente.
  2. Peneire os ingredientes secos em uma tigela, misturando-os bem. Junte a casca de laranja e o ovo e misture com uma colher de pau (esqueça aquela sua espátula delicada e use o utensílio mais bruto que tiver, pois a massa é um reboco!). Vá diluindo com o leite, até que fique homogêneo. A massa ficará espessa, escura e brilhante.
  3. Espalhe-a da melhor forma possível na forma, mas não se preocupe demais, pois ela preencherá a forma conforme esquentar. Leve ao forno. A receita original diz para deixar 30 minutos, mas aos 20 ele já dá sinais de estar pronto. Fique de olho e teste com um palito assim que a superfície estiver seca e inflada, pois o bolo precisa conservar certa umidade. Se o palito tiver ainda alguns indícios de massa, está pronto. Se estiver completamente limpo, passou. Ele ficará ainda muito gostoso, mas será um pouco seco. Desenforme, retire o papel do fundo do bolo e deixe esfriar sobre uma grade.
Já fiz esse bolo com sucesso em uma forma de bolo com furo no meio, bem pequena.

[UPDATE: Levei parte do bolo à minha mãe, e minha irmã fez um comentário pertinente: a textura lembra um pouco a de pão-de-mel. Não a agradou muito, pois, segundo ela, é um "bolo de chocolate que não tem gosto de bolo de chocolate". De fato, ele tem qualquer coisa que lembra a intensidade dos bolos de especiarias que europeus adoram fazer no natal. Claro, o livro sendo italiano, com receitas de avós italianas de verdade, não poderia se esperar um bolo com gosto de brasileiro. De qualquer forma, achei bom deixar isso muito bem avisado, para que ninguém saísse produzindo o bendito desavisado, achando que é um daqueles bolos que qualquer criança gosta. Ok?]

Cozinhe isso também!

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