quarta-feira, 2 de maio de 2018

Abril, outro post em duas partes, Ele a última bagagem, a última fronteira


Foram 9 meses de análise e ressignificação, de um infinito quebra-cabeças de minhas partes e minhas relações com o mundo, e pela primeira vez respirava o ar gelado do início de primavera, mas assim como o tempo lá fora, o inverno permanecia em mim. Onde estava a renovação que buscava com tanta ânsia, onde estavam as flores depois de tanto tormento?

Se tudo está bem, então por que não está?

Parte do The 100 Day Project. Um sketch bobo por dia, combinado ao número dos dias. Começou no 1, vai ao 100. Você vê o processo e o resultado no Instagram: @anaelisagg e no hashtag #100sillysketches

Foi numa tarde de cervejas duplamente extraordinárias - porque eram boas, e porque tomei umas extras - que me meti numa discussão sem pé nem cabeça com ninguém; fiquei ali regurgitando livros e filosofias em cima de gente amiga que não tinha pedido por aquilo. Era como gritar com as paredes; sem quererem se meter em briga, meus colegas simplesmente ignoravam minhas investidas.

Ainda bem.

Foi preciso passar por essa vergonha e me acabar em arrependimentos e desculpas, para ver que havia uma raiva dentro de mim que andava sufocada, quietinha, esperando num canto, olhando para baixo, torcendo para ser a última a ser escolhida, na expectativa de que se esquecessem dela e que assim pudesse prosseguir sua rotina de ocasionais e incompreensíveis explosões.

Mas isso não se repetiria, pensei. Arranquei a raiva de seu canto e expus sua face sob fortes holofotes, e me dei conta de que, como sempre é, despida de sua fantasia de raiva, quem se encontrava ali era o medo.

Um medo imenso e descabido de não ser boa o suficiente. De ninguém querer meu trabalho aqui. De não ser interessante o bastante.

Eu havia esmiuçado todos os aspectos da minha vida nesses nove meses de vida fora da ilha, menos meu trabalho. Que eu continuo chamando de trabalho, como se fosse uma coisa externa a mim, uma atividade qualquer que eu troco por dinheiro, apesar de ser em verdade uma parte integral de quem sou e a fonte de minhas maiores e mais assombrosas inseguranças. É minha criação e minha visão de mundo, minha opinião e minhas cores, meus traços, minhas palavras, meu estômago inteiro e meu coração pulando, apertando; sou eu nua no mundo e no silêncio aguardando inevitável julgamento.

Não é um trabalho.

Uma semana antes, eu havia enfim parado de procrastinar e resolvido organizar os arquivos do computador, necessidade número um desde o triste fim de meu HD externo um ano antes. Marshall Mcluhan dizia que a maior parte das pessoas vive ou no passado ou no futuro, e que talvez apenas os artistas vivam no presente de fato. Jamais entendera a razão de não ficar conjecturando meu futuro como meus amigos, ou de me surpreender ao relembrar um acontecimento de meu passado como se tivesse ocorrido a outra pessoa, e aquela afirmação pareceu-me uma explicação bastante razoável para o que sempre me pareceu um problema cerebral exclusivo meu.

E lá estava eu, estupefata em frente ao computador, assistindo à vida de um desconhecido ser contada em fotos, desenhos e pinturas.

A cada nova imagem vinha uma nova lembrança, de algo que eu fizera, que eu produzira, que eu desenvolvera, que eu escrevera, que eu criara, que eu ganhara, e que havia sido largado ao esquecimento de uma carreira esquizofrênica de quem acha que tudo é meio besta e não é bom o suficiente para se fazer alarde a respeito.

Lembrei-me também, ao longo da história daqueles trabalhos, cada conselho que eu recebera e que me fizera mudar de ideia, de rumo, de direção. Cada conselho bem intencionado mas intrisicamente ruim para mim. Conselhos parecem ser, em sua grande maioria, se não em sua totalidade, ótimos apenas para quem os dá.

Eu era artista antes de entender que isso era uma profissão. Produzia adesivos engraçadinhos em papel auto-colante e vendia a alguns centavos para meus amigos aos 10 anos. Aos 12, numa feirinha montada no prédio, vendi minha primeira pintura: uma tentativa de um pato realista batendo asas, inspirado nos patos que eu vira no Parque da Aclimação com meus pais. Aos dezesseis, ganhei meu primeiro concurso de literatura, e tive meu primeiro conto publicado. Aos dezenove, já escrevera três romances inteiros, imensos, sobre vampiros e sagas em terras fantásticas, e um deles quase foi publicado, não fosse o fato de a editora achar que não havia mercado para vampiros e sagas em terras fantásticas em 1999.

Mas sempre tive receio de dizer que era artista. Parecia um título que deveria ser outorgado por outrém e nunca assumido por si mesmo. 

Larguei Filosofia para fazer Propaganda e Marketing, odiei publicidade e fui trabalhar com design gráfico, frustrei-me com design e fiquei só com ilustração, sentia-me incompleta, e corri para as artes plásticas, dando as costas para os cartoons que gostava de fazer, e das artes, pensei em correr de volta para a ilustração, percebendo que havia largado completamente a escrita pelo caminho. E ao ver minha vida sendo organizada naquele computador, parei e chorei.

Primeiro chorei minha falta de coragem. 

Ao longo dos anos, ouvi os conselhos e o julgamento de um mundo que achata e deforma e uniformiza e monocromatiza o multicolorido, que escraviza sua identidade em funcionalidade e pragmatismo, e abandonei minha pluralidade natural, essas muitas luas, muitas faces, muitas fases simultâneas que se completam em mim, esse olhar multiplicado do mundo que parece intrínseco e fácil em mulheres que ousam ser mulheres de verdade.

Sufoquei-me na obrigatoriedade de ser uma só, só mãe, só trabalho, só ilustradora, só pintora, só isso, só aquilo, uma coisa por vez e virei só coisa nenhuma.

"Eu não sei para onde ir", disse a meu marido. "Sempre que tento me apresentar de uma forma tradicional, meu trabalho parece conter hiatos e pausas e rasgos, e fica tudo imcompleto e capenga, como um bicho manco, porque a verdade é que uma coisa precisa se apoiar na outra. Minha pintura não existe sem minha fotografia, minha ilustração não existe sem o meu texto, eu não existo sem todos eles."
"Mas quem te disse que você precisa fazer só uma coisa?"
"Meus professores. Meus mentores. O mercado. O mundo."
"E você os ouviu por quê?"
"Porque eu estava insegura. Porque não tive coragem. Porque achei que o caminho dos outros era o caminho certo."
"E era?"
...
"Não."

Então chorei de novo, desta vez o choro de luto e alívio do sepultamento de um alguém que não é mais.
Não à toa, naquela mesma semana, descobri um caminho novo, um lago novo, que sempre estivera ali mas que eu ainda não percorrera.


Reconstruí minha trajetória sem esconder nada. Dei igual valor para todas as vitórias e derrotas, para os textos, as fotos, os desenhos, as pinturas, a música, a filosofia, a leitura, o pensamento, a maternidade, os relacionamentos, e o que vi surgir foi a coerência que sempre senti ausente na apresentação de meu trabalho.

Recriei meu portfólio. De novo. Outra vez. www.anaelisagranziera.com

Estou correndo atrás de tudo o que eu quero ao mesmo tempo, em todas as direções que me interessam.

Minhas aquarelas.

Meus cartoons.

Minha fotografia.

Meu texto.

Abro mão de tudo o que não sou eu para abrir espaço para o que sou de verdade. Viva a Primavera e o renascimento de tudo.

Quero terminar meu livro e publicá-lo. Você que sempre me disse que queria um livro meu, vai ter.

Você que tem um espaço de exposição em Toronto, quer expor fotos ou pinturas minhas? Estou buscando.

Você que quer uma ilustração minha? Continuo produzindo. Para quartos de bebês, caricaturas da família, o que você quiser. Entre em contato, dou um jeito de enviar. Veja o que ando fazendo no Instagram: @anaelisagg

Você que tem uma revista ou um espaço para publicação dos meus cartoons, do diário ilustrado e as pataquadas das crianças, mande um email.

Quer uma redatora freelancer, uma colaboradora para seu jornal, estou aqui.

Disseram-me por toda a vida que eu jamais seria boa em algo se fizesse um pouco de tudo. Mas nunca ninguém me explicou que se não fizesse um pouco de tudo não seria feliz.

Feliz é bem melhor. Escolho feliz.  

Basta de síndrome de impostor. Basta de correr atrás do caminho dos outros. Meu caminho é múltiplo. E ele é meu. 

........



E o resto?
Abril começou com uma Páscoa tranquila. Não há uma avalanche de ovos de chocolate nos supermercados. É razoavelmente difícil encontrar chocolate temático, apesar de as lojas de 1,99 ficarem cheios de cacarecos decorativos em forma de coelhos e ovos de plástico coloridos. Comprei alguns desses ovos vazios, e enchi de pistas para criar uma caça ao tesouro que levaria ao prêmio: um coelhinho de chocolate, meia dúzia de bombons e um caderninho de desenho com caneta. Depois de uma manhã inteira desenhando - pois os cadernos fizeram mais sucesso até do que eu esperava - almoçamos uma torta de acelga suíça e queijo em massa folhada da Suzanne Goin, que adaptei e cobri com outra camada de massa, e relaxamos. Na segunda-feira, feriado para as escolas, fomos ao lago passear com o cão e ver os patos que haviam voltado.

Uma semana depois foi aniversário de Thomas, e a comemoração foi exatamente como o de Laura. Thomas fez questão de preparar sozinho seu bolo e enrolou, com ajuda da irmã, todos os brigadeiros e beijinhos.


Abril foi um mês de fazer pão toda semana, e quando tive a paciência de novo de apanhar aquela massa de pizza retangular e fazê-la em formato de pizza outra vez. Você divide a massa ao meio, forma bolas e deixa fermentar enquanto o forno esquenta no máximo. Abre com as mãos, sem usar rolo, e coloca numa folha de papel alumíno untada com um tico de azeite. Cobre com um pouco de molho de tomate, bem pouco, uma concha só, transfere a massa no alumínio para a assadeira e bota no forno por 10-13 minutos. Tira, polvilha com queijo e a cobertura que quiser (a da foto é prosciutto e mozzarella de búfala) e volta para o forno por 8-10 minutos. O papel alumínio destaca facilmente da parte de baixo da pizza e você pode inclusive reaproveitá-lo para a próxima pizza. A assadeira fica limpinha e a pizza fica linda e deliciosa, com uma borda fofa e um meio fininho e úmido. Gorgonzola, cogumelos com alecrim, e mozzarella com salame são outros sabores que fizeram sucesso por aqui.

Essa, de prosciutto, mozzarella de bufala e manjericão.

Anda rolando bolo toda semana, e depois do aniversário do Thomas, a criançada pediu bolo de chocolate de novo. Fiz esse da Tessa Kiros, do livro Twelve, fácil e bom, ainda que preferisse tirar do forno uns 5 minutos antes para que ficasse mais úmido.

Mini dinossauros de plástico, lembrancinhas do aniversário do pimpolho.

TORTA AL CIOCCOLATO
(Do Livro Twelve, de Tessa Kiros)
Rendimento: 1 bolo de 23cm (9inch)

Ingredientes:
  • 200g chocolate 100% cacau (a partir de 85% funciona)
  • 6 colh. (sopa) leite
  • 100g manteiga sem sal
  • 4 ovos, separados
  • 150g açúcar
  • 50g farinha
  • 1 1/2 colh. (chá) fermento

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 180oC. Unte com manteiga e enfarinhe uma forma de aro removível de 23-24cm. 
  2. Quebre o chocolate em pedaços pequenos e derreta em banho-maria junto com o leite e a manteiga.  Deixe amornar um pouco.
  3. Numa tigela, bata as gemas e o açúcar até que fique cremoso e espesso. Junte o chocolate derretido, mexendo rapidamente para que não cozinhe os ovos. 
  4. Junte a farinha e o fermento.
  5. Na batedeira, bata as claras até formarem picos suaves. Incorpore as claras em neve à massa rápida e delicadamente, e espalhe a mistura do bolo na forma.
  6. Leve ao forno por 35 minutos, ou até que um palito  inserido no meio saia limpo. (Achei o bolo meio seco assim. Eu checaria aos 30 minutos e tiraria o bolo ainda com algumas migalhas úmidas no palito, para um resultado mais úmido.) O bolo deve ser úmido e deve afundar um pouco ao esfriar. Sirva polvilhado com açúcar de confeiteiro ou com fruta e chantilly.

Também da Tessa, e não é à toa que trouxe tantos livros seus comigo, preparei essa truta salmonada com salsa verde de estragão e batatas cozidas. O peixe mais simples que você vai preparar na vida, já que a parte mais difícil é picar as ervas para o molho com meia hora de antecedência. O molho em si já recomendo fazer em quantidade grande, pois você vai querer espalhá-lo sobre uma salada no dia seguinte, ou no sanduíche, ou sobre um bife, ou sobre o arroz ou qualquer outra coisa. Estragão é minha nova erva favorita.

TRUTA SALMONADA COM SALSA VERDE DE ESTRAGÃO
(Do livro Recipes and Dreams From an Italian Life, de Tessa Kiros)
Rendimento: Diz 2 porções, mas aqui rendeu 4: 2 adultos e 2 crianças.

Ingredientes:
  • 1/2 xic. vinho branco
  • 1 cebola branca pequena, descascada e cortada ao meio
  • 1 talo pequeno de aipo
  • alguns ramos de salsinha
  • algumas sementes de pimenta-do-reino
  • 2 filés de truta salmonada, com pele, de cerca de 500g (Usei rainbow trout, que um filé tinha 450g)
  • sal e pimenta-do-reino
(salsa verde)
  • alguns ramos de salsinha, picados
  • folhas de dois ou três raminhos de estragão, picadas
  • 1 colh. (sopa) de folhas de hortelâ picadas
  • 2 dentes de alho médios, picados. 
  • 2 1/2 colh. (sopa) alcaparras em vinagre, drenadas e picadas
  • 3 filés de anchova, picadas
  • 1 colh. (chá) mostarda de Dijon
  • 2/3 xic. azeite
  • 1 pitada de pimenta caiena
  • pimenta-do-reino moída na hora.

Preparo:
  1. Escolha uma panela baixa ou frigideira com tampa grande o bastante para conter os filés inteiros. Coloque nela 1 xic. de água, o vinho, cebola, salsão, salsinha, pimenta-do-reino e um abela pitada de sal e leve à fervura. 
  2. Limpe o peixe, retirando quaisquer espinhas. Coloque o peixe no caldo, com a pele para baixo. Cubra e cozinhe por 10 minutos. Tenha certeza de molhar o peixe na parte de cima também. 
  3. Remova do fogo e descanse por 5 minutos, e então cuidadosamente transfira o peixe para cada prato.
  4. Passe o caldo por uma peneira e guarde para fazer um risotto (abaixo).
  5. Para remover a pele do peixe antes de servir, basta virar um prato por cima, como quem vira um bolo e puxar a pele delicadamente. Sirva com a parte mais bonita para cima, coberto de salsa verde e acompanhado de batatas cozidas.
  • Para a Salsa Verde: Ela diz para misturar primeiro o alho, as anchovas e as alcaparras, e então a mostarda e o azeite, e as pimentas. Ajuste o tempero e guarde na geladeira por pelo menos meia hora antes de usar. Se mantém por vários dias em pote fechado na geladeira.
  • Para o risotto: Pique 1/2 cebola e refogue em 2 1/2 colh. (sopa) azeite. Junte cerca de 1 xic. de arroz arbóreo e mexa por alguns minutos. Junte um pouco de água fervendo, algo como uma xícara. Quando tiver absorvido, junte o caldo de peixe e cozinhe por cerca de 20 minutos, até que o arroz esteja macio, completando com água fervente se achar necessário. Para finalizar, junte uma colher generosa de azeite, um punhado de parmesão e as ervas picadas que tiver à disposição. Usei salsinha e estragão novamente. Sirva com mais parmesão e pimenta-do-reino por cima. 

Ignore a desastrada gota de óleo sobre a mesa e concentre-se na delícia que é esse prato.
As sobras das batatas e as cebolas que havia no caldo, misturei a alface e abacatee espalhei por cima o restante da salsa verde, e almocei muito feliz e contente. O caldo, como sugerido na receita, foi congelado.
E duas semanas depois, virou esse risotto bianco, perfumado de peixe e ervas, acompanhado de cenouras glaceadas com ervilhas e tomilho.


E a última fronteira, o pudim de leite, o crème caramel. Que eu não preparava havia anos, pois era o doce assinatura tanto de minha sogra quanto de minha mãe, e, não querendo interferir nos rituais de ninguém, durante sete anos permiti que a lembrança do pudim estivesse associada apenas às avós. Agora longe, lembrei-me dele, e retomei o pudim para mim, e as crianças pediram para que eu fizesse de novo quando as avós viessem, pois pudim, para eles, é coisa de avó mesmo. :)

Esse é tão fácil quanto nosso pudim de leite condensado, mas bem menos doce e com sabor de baunilha.

CRÈME CARAMEL
(Do livro Falling Cloudberries, de Tessa Kiros)

Ingredientes:
  • 2 xic. açúcar
  • 4 xic. leite
  • 1 colh. (chá) extrato de baunilha
  • 6 ovos

Preparo:
  1. Pré-aqueça o forno a 160oC ou o mínimo que seu forno tiver. Faça o caramelo colocando uma xícara de açúcar numa panela com uma ou duas colheres de água e leve ao fogo médio até o açúcar derreter e começar a dourar. Diminua o fogo e cozinhe até que esteja cor de âmbar. 
  2. Despeje o caramelo no fundo da forma (usei uma forma de bolo com furo no meio com capacidade para 10xic.) e reserve. 
  3. Aqueça o leite em outra panela até levantar fervura branda. Enquanto isso, em uma tigela grande, bata os ovos com o resto do açúcar e a baunilha  até que fique bem homogêneo. 
  4. Derrame uma cocha do leite quente sobre os ovos, misturando bem, para que os ovos não cozinhem. Misture o restante do leite com uma colher, para não produzir muita espuma. Passe por uma peneira para retirar qualquer possível pedacinho de ovo.
  5. Despeje com cuidado a mistura na forma com caramelo e coloque a forma numa assadeira com água fervendo. 
  6. Leve a assadeira ao forno por 50-60 minutos, ou até que o pudim esteja começando a dourar em algumas partes e esteja firme, mas ainda balance. Dependendo do seu forno ou da sua forma, isso pode demorar mais. O meu demorou 80 minutos para ficar pronto.
  7. Retire com cuidado a forma do banho-maria, e deixe esfriar completamente antes de levar à geladeira por algumas horas ou preferencialmente durante a noite.
  8. Passe uma faquinha nas laterais para soltar o pudim e desenforme sobre um prato fundo e sirva. 



E agora me dá licença, que meus pais vieram visitar e quero curtir um pouco. ;)


segunda-feira, 26 de março de 2018

A pausa de Março

Laura pintou muito durante o March Break. Eu não.
Março andava bem.
Andava igual.

Andava com patinação no gelo, com bolo de fim de semana, com livro no sofá.

Adoro ver listas de livros dos outros, pois me obriga a conhecer autores novos, e lá fui eu no site da biblioteca pública de Toronto pedir livros que achei que demorariam um bocado para chegar. E que chegaram todos de uma só vez, na primeira semana do mês com o papelzinho dizendo que eu tinha vinte dias para devolver aqueles seis livros.

Lista de livros que a biblioteca mandou tudo de uma vez para mim.

Comecei.

Meu novo livro favorito. Recomendo.

Devorei um depois do outro, lendo 50 páginas por dia, às vezes mais, e descobri meu novo autor favorito, Kurt Vonnegut, e meu novo livro favorito, Slaughterhouse 5. Que livro fantástico. Que jeito impressionante de enxergar a existência humana. Que humor ácido. LEIA.

As crianças estavam cansadas. Bocejavam aos cantos, já não se animavam para ir à escola. Acabaram de comemorar os 100 dias de escola, a exata metade do ano letivo, e era claro que precisavam de uma pausa. E eu esperava ansiosamente pela pausa de Março, o March Break, o Spring Break, essa uma semana inteira de férias no final do inverno.

Allex viajaria a trabalho por duas semanas, e ficaria fora durante toda essa mini-férias das crianças. Mas eu tinha planos. Planos de patinar no último fim de semana de rinque público aberto do ano, planos de ir a parquinhos diferentes e  fazer piqueniques, planos de ir ao museu e à galeria de arte e de levar as crianças para um brunch ao sábado.

No primeiro sábado, saímos para passear o cão no parque de manhã e nos perdemos em trilhas, brincamos no playground, voltamos para um almoço gostoso em casa e uma tarde de brincar tranquilos, que era o que eles vinham pedindo faz tempo: tempo de ficar em casa. Combinamos de no dia seguinte irmos patinar no outro parque, cujo playground é mais legal, que faríamos piquenique, que passaríamos o dia fora.

Depois da volta do cachorro e do almoço, no entanto, e depois de um caminho de quinze minutos dando bronca nos dois por conta de coisas estúpidas, fiz um macarrão qualquer, e ainda que tudo a meu redor me dissesse para ficarmos em casa, botei patins e capacete na sacola, montei um piquenique e arrastei todos para pegar o metrô até o tal outro parque, porque A GENTE VAI SE DIVERTIR, EU TÔ MANDANDO.

Chegamos e o rinque estava meio estranho, o gelo parecia esquisito, minha cabeça estava aérea, e depois de quinze minutos deslizando, percebi que não estava me divertindo. Olhei em volta e vi as crianças sentadas fora do rinque.

Vamos, gente, u-hú! venham patinar! É o último fim de semana! Depois tem que esperar o ano todo até o próximo inverno! Vamos! Vamos! A gente veio até aqui!

A gente cansou, mamãe.

Tá. Ok. Querem ir ao parquinho?

Tira patins, tira capacete, corre pro parquinho. Monto o piquenique numa das mesas. O vento está gelado e não há um raio de sol para me aquecer. Abro meu livro enquanto as crianças brincam. Thomas não toca na comida. Nem no queijo. Não estou com fome, mamãe.

Hmmm...

Não consigo prestar atenção ao livro. Meus dedos dentro da luva estão gelados, ali parados, segurando as páginas que insistem em virar no vento forte. Olho em volta. Laura está cutucando alguma coisa com um galho. Thomas achou um caminhãozinho e está sistematicamente batendo a mão fechada, devagar e sem força, contra a parte de cima do brinquedo. Nenhum deles está sorrindo.

Vocês não estão se divertindo, estão?

A resposta é um menear de cabeça desanimado.

Vamos para casa.

Em casa, Thomas se abandona no sofá, sem fome e sem vontade, e suas bochechas vermelhas e seus olhos semicerrados me dão a dica: febre. Ele passa os dois dias seguintes com febre, tossindo, sem vontade de fazer nada. Não conseguimos sair de casa para fazer coisa alguma, sequer passear o cão no parque, pois o vento gelado pode lhe fazer mal.

Quando Thomas melhora, começa a tosse da Laura. Mais dois dias trancafiados em casa.

Invento outras coisas para eles fazerem, e os chamo para uma competição de pães. Uso a água do cozimento da beterraba para Laura fazer um pão cor-de-rosa, e a água do cozimento da casca da abóbora, para que Thomas faça um pão amarelo.
 

Eles de divertem muito sovando e moldando e seus pães ficam lindos e me enchem de orgulho.

Allex volta da primeira viagem também doente e passa o dia inteiro na cama. No dia seguinte, ele faz as malas e volta para o aeroporto. Quando seu avião decola, eu caio na cama com febre alta e uma tosse que não me deixa dormir pelas cinco noites seguintes.

As crianças ajudam. Eles me fazem café e tentam me deixar descansar enquanto vêem desenhos e jogam jogos. Agradeço a mim mesma por sempre cozinhar tudo em dobro, pois há no freezer comida o bastante para aqueles dias sem que eu tenha de ir ao mercado. Desço o cão para o gramado ao lado do prédio três ou quatro vezes por dia, e ele sente falta dos passeios, mas cada vez que boto o pé para fora o ar gelado de 0 graus faz meus pulmões doerem e volto para casa pior.

É o fim do March Break e não fizemos nada do qeu eu havia planejado. Consigo contar de cabeça algumas trilhas feitas no parque, algumas idas ao playground, aquela mal fadada tentativa de patinar e a tarde divertida fazendo pão, e Thomas mal tem o que escrever na sua lição de casa sobre as mini-férias.

A família toda ficou doente, ele escreve.

As aulas voltam e eu continuo ruim.

Sair no vento gelado para levar e buscar criança na escola e levar cachorro para passear é difícil. Já não tenho mais febre, mas continuo tossindo, continuo entupida e sem conseguir dormir uma noite inteira, o que me deixa muito de mau humor.

A semana passa e sinto minha cabeça amarrada a um balão de hélio. Tudo gira, tudo é impalpável, não consigo me concentrar em nada que não seja absolutamente prático. Não me lembro mais o que estava fazendo antes de ficar doente. Fantasio com um dia inteiro deitada na cama.
Encontramos no parque essa árvore partida ao meio  com essa pedra linda encaixada. As criaças dizem que é um meteoro que destruiu a árvore como um raio. Gosto da teoria delas.
Apanho o livro para ler de novo. Ok, ler funciona. Fico brava pois aqueles cinco ou seis dias doentes me tiraram do ritmo de leitura e agora terei de renovar o empréstimo na biblioteca. Tinha uma parte de mim que queria conseguir terminar tudo nos vinte dias. Tive de mandar essa parte calar a boca e seguir a vida.

Seguindo a vida, precisei voltar a cozinhar comida. Eu não queria andar até o mercado, ainda me sentia esquisita, então resolvi catar as cascas de banana que vinha congelando havia um tempo e finalmente testar a receita das almôndegas que vira no canal da Bela Gil.

As crianças me ajudaram e estavam de fato empolgadas para experimentar aquela preparação tão inusitada.

Tem o Feio Mas Gostoso. Esse é Lindo Mas Horrível.

Eu ia colocando os temperos, o orégano junto com o cominho, e pensava: o que é que o C* tem a ver com as CALÇAS? Nunca vi orégano com cominho antes. Mas confiei. Fui indo, pensando que talvez aquele doce das cascas ficasse melhor com curry do que com molho de tomate com manjericão. Mas confiei. As almôndegas, que ficaram muito úmidas, foram assadas na AirFryer (sim, Allex continua trabalhando na Philips, e ele finalmente conseguiu enfiar uma AirFryer na minha cozinha. Confesso, adoro assar bolinhos nela, que ela assa em doze minutos o que demora 45 no forno normal.) Ficaram douradas e lindas no molho de tomate.

As crianças tentaram. Elas foram valentes. Conseguiram comer uma almôndega inteira cada um. Meu limite foram duas. O resto foi para o lixo. Intragável. Combinação mais esquisita de sabores. Não rolou. Assim que melhorei, fomos juntos ao mercado, onde comprei carne de boi e de porco para preparar almôndegas finlandesas da Tessa Kiros, deliciosas com molho de creme de leite e purê de batatas. Para compensar meus filhos pelas almônegas de casca de banana.

Você deu sorte, papai, disse Thomas quando o pai voltou. Estava longe e não teve de comer bolinho de casca de banana.

Virou piada interna familiar.

Também gastei um monte de tâmaras Medjool para fazer um Date and Nut bread da Kim Boyce que só eu comi. Fiquei meio sem fazer mais nenhum bolo ou biscoito, vivendo à base de iogurte com mel nos dias em que a garganta doía demais e eu não tinha apetite, e as crianças redescobriram a alegria do iogurte com fruta. Comprei um monte de fruta congelada e essa tem sido a sobremesa e o snack favorito dos dois na última semana.

Espere. Estou enganada. No mesmo fim de semana em que Thomas ficou doente, resolvi preparar com Laura um bolo de laranja da Dorie Greenspan, cuja receita original é de rum e baunilha, mas ela oferece a variação de laranja. Tudo ia bem até eu colocar a manteiga derretida ainda fumegante na massa. Os bolos no forno afundaram miseravelmente. Mas continuaram gostosos e comemos tudo mesmo assim.

Esse é Lindo E DELICIOSO.

Em outro dia catei novamente o livro do Ottolenghi, Plenty More, e fiz essa salada linda de beterraba branqueada com ervilhas, abacate, coentro e cebolas marinadas em limão, para acompanhar panquequinhas de folha de cenoura que eu improvisara.

Com as crianças na escola, tentei voltar aos meus almoços tranquilos. Salada de couve roxa e abacate com croutons e bacon, e um vinaigrette de cebola feita na gordura do bacon.

Bacon.

Eu ainda estou tossindo. Estaria dormindo melhor, não fosse um estranho torcicolo vindo sabe-se lá de onde, que começa na minha omoplata esquerda e sobe pelo pescoço até atrás da orelha.

Allex voltou, ainda meio perdido, tendo ficado duas semanas fora da rotina familiar. Todo o chão onde pisamos esses dias parece estar sobre um mar arredio.Ele me traz um monte de queijo holandês e uma cerveja forte de presente. Porque canadense não sabe fazer cerveja forte.

As crianças estão bem, o descanso apesar de tudo foi ótimo para elas, mas eu ainda tenho esse balão de hélio amarrado na cabeça, que parece não me deixar concentrar em coisa nenhuma. Olho as listas na minha agenda e não me lembro direito o que eu estava fazendo antes de ficar doente. Espere. Eu já disse isso antes. Viu?

Ficar completamente sozinha e doente por uma semana foi difícil. Bem difícil. Mas foi bom ver que dou conta. A gente sempre dá conta. Mesmo quando a gente diz que não está dando conta, a gente já está. Porque é sempre uma escolha. Você pode ser o objeto que as forças movem, ou você pode ser a força que move tudo. I am the freaking force. Eu escolho mover tudo à minha volta e mover minha vida.

Houve uma noite em que quis sentar e chorar. E quando a primeira lágrima escorreu, senti-me idiota. O que isso faz por mim? Levanta a bunda. Faz um chá. Se cuida. Leva o cão pra fazer xixi. Sai e compra um iogurte para as crianças. Pipoca de janta. A vida segue. Empurra a vida que ela se mexe e segue. A vida é meio preguiçosa às vezes. Tem que dar uns pontapés na bunda dela pra ela se mexer mais rápido de vez em quando.  

Só preciso descobrir como estourar essa droga desse balão de hélio na minha cabeça para conseguir focar de novo nos meus projetos.

Que que eu precisava fazer mesmo? Vender a bicicleta. Pum. Vendi. Vender minha mesa de desenho. Mora em Toronto? Quer uma mesa para Craft? Tô vendendo a minha. Levar o cão ao veterinário. Arranjar médico de família. Comprar comida. Descobrir como fazer meu imposto de renda.

Done.
Done.
Done.
Done.

Menos café. Menos café ajuda.

Foca, Ana. Senta. Desenha. Pinta. Escreve. Desenha. Pinta. Escreve.

I am the freaking force.

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